INTRODUÇÃO
A educação não é a atividade fim da FAO. No entanto, a mesma tem ocupado um papel de destaque desde o início de sua atuação, em 1945, pois a FAO considera o tema como um meio de aumentar e melhorar a produtividade, a qualidade de vida das populações rurais e os níveis de nutrição e segurança alimentar. Contudo, embora a FAO seja uma agência especializada em alimentação e agricultura, a educação tem sido uma de suas principais estratégias para a redução da pobreza, desenvolvimento rural e segurança alimentar, e tornou-se um “tema” caro e candente para atingir os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (2000):
La Educación para la población Rural es crucial para alcanzar los Objetivos de Desarrollo del Milenio- las metas mundiales que los dirigentes del mundo fijaron en la Cumbre del Milenio em septiembre de 2000 - y especialmente para erradicar la pobreza extrema y el hambre, lograr la enseñanza primaria universal, promover la igualdad entre los géneros y la autonomía de la mujer, y garantizar la sostenibilidaddel médio ambiente (FAO, 2004b, p. 4).
Estas propostas para o desenvolvimento rural têm como estratégia a educação, e são difundidas via projetos, programas e políticas1 no Brasil. Os projetos de educação desenvolvidos em parceria com a FAO realizam a formação de professores, merendeiros e técnicos agrícolas, provocando mudanças no currículo, nas práticas pedagógicas e ainda, na produção de alimentos.
Esta agência internacional desenvolve atividades no Brasil desde 1949, tendo início em atividades florestais voltadas para o desenvolvimento rural na Amazônia. Seus antecedentes históricos demonstraram que as discussões acerca da alimentação estiveram relacionadas à falta de eficiência da produção de alimentos, e, por isso, havia-se a necessidade de criar uma organização em nível internacional que pudesse investigar, padronizar e direcionar a produção agrícola mundial,2 de modo a modernizá-la e torná-la mais eficiente. A agência foi fundada oficialmente em 16 de outubro de 1945, no pós-guerra. Em 1951, sua sede foi transferida para Roma - Itália, onde está situada até hoje pelo fato de o governo italiano ter sido o responsável pela criação da primeira organização internacional intergovernamental a lidar com questões agrícolas em nível mundial (BARACURY, 2006).
A PROPOSTA DE DESENVOLVIMENTO RURAL E DE EDUCAÇÃO DA FAO
A FAO é uma das agências especializadas do Conselho Econômico e Social - ECOSOC3 da ONU, que atua em parceria com as agências da Organização4 e com organismos internacionais, entre outros que desenvolvem ações conjuntas e/ou isoladas de cooperação técnica agrícola que envolve a elaboração de pesquisas, projetos, programas e políticas para e/ou junto aos países membros. Destas ações são produzidos documentos com relatórios de cooperações técnicas, como meio de divulgar as experiências e disseminar as propostas que tiveram êxito. Percebemos que, o que move as intenções desta Agência são a percepção da existência de uma relação estreita entre a nutrição dos indivíduos, o bem-estar das populações, o desenvolvimento rural e o crescimento econômico.5
Desde sua criação até hoje, a FAO assume o papel de agência especializada que atua como “fórum neutro” nos países-membros. Para ela, ser um “fórum neutro” adquire um posicionamento “não-partidário”, “{...} onde todos os países, desenvolvidos e em desenvolvimento, se reúnem em pé de igualdade para negociar acordos, debater políticas e impulsionar iniciativas estratégicas.” (FAO, 2011).
Embora a FAO se apresente como “fórum neutro”, na condição de agência especializada de um organismo internacional (ONU), ela possui personalidade jurídica de direito internacional público, ou seja, tem poder de celebrar tratados e convenções com Estados-Nações e com outras organizações internacionais. Para Milani e Loureiro (2013, p. 3), a relação de poder brando (powersoft)6 entre uma nação e uma organização internacional “se reveste de ideologias forjadas e refinadas no Ocidente com o objetivo de manter e reproduzir estruturas de dominação econômica, cultural e política, principalmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial. ”
Destacamos que mesmo havendo uma redução da cooperação prestada pela FAO no Brasil, o país contraiu direitos e obrigações ao estabelecer um tratado com a Agência. Dentre elas, podemos citar a implementação de políticas, programas e projetos7no âmbito nacional, bem como a transferência dessas “experiências” para países em desenvolvimento (CHIANCA, 2008).
A relação estabelecida entre um país e uma organização internacional, neste caso, o poder de influência que a FAO exerce sobre o Brasil, pode ser caracterizada como poder brando. Historicamente, a FAO se colocou na posição de “Fórum Neutro”, onde suas ações são determinadas não por um, mas por todos os países-membros em que ela presta cooperação. Entretanto, as “recomendações” feitas por ela não se tratam apenas de propostas que podem ou não ser implementadas pelos países-membros, tratam-se de medidas que eles apontam como “exitosas”, que devem ser incorporadas na política de cada nação-membro para atingir determinado fim a que se propõe.
As ações de cooperação da FAO para o desenvolvimento rural no Brasil foram fortalecidas no período de 1945 a 1964 (FAO, 2010), pois naquele momento os projetos de Cooperação Técnica Internacional - CTI estavam articulados ao projeto desenvolvimentista da nação, que visava “{...} um projeto de industrialização planejada e apoiada pelo Estado {...}” (BIELSCHOWSKY, 2000, P. 247).
Os projetos de desenvolvimento rural nos países onde a FAO atua, principalmente naqueles considerados periféricos, passaram por quatro momentos: o primeiro refere-se a projetos com enfoque comunitário (final da década de 1940 até anos 1960), também conhecidos como projetos de desenvolvimento local - com algumas características semelhantes à proposta atual de desenvolvimento rural; o segundo trata-se de projetos de desenvolvimento rural com enfoque na reforma agrária (a partir de meados da década de 1960 a 1980, retomada anos mais tarde entre os anos 1990 e 2000); o terceiro, desenvolvimento rural integrado, entre os anos 1980 e 1990; o quarto e atual, desenvolvimento rural sustentável com enfoque territorial e participativo para o alívio da pobreza. Embora tenhamos datado as perspectivas de desenvolvimento rural, é importante salientar que as mudanças de paradigmas do desenvolvimento rural não ocorreram de forma linear com o encerramento de um modelo e o início de outro. Nestes diversos períodos, os diferentes princípios foram defendidos de forma concomitante, mas com variadas ênfases, dependendo do país e do contexto sócio econômico deste.
Segundo Favareto (2010), o desenvolvimento rural com enfoque comunitário teve início na década de 1930 e se fortaleceu a partir de 1945 com a criação da ONU e suas agências. Esta concepção de desenvolvimento rural, com enfoque comunitário, tinha como matriz o fortalecimento das potencialidades das comunidades via participação da população e a criação de cooperativas, muito semelhante ao discurso atual sobre desenvolvimento rural.
Identificamos que a educação proposta pela FAO, neste enfoque de desenvolvimento comunitário, não é apenas de caráter formal destinada às crianças em idade pré-escolar e Ensino Fundamental. São privilegiadas ações educativas de caráter não-formal ou informal, voltadas para a formação de jovens e adultos. Para tanto, em 1951, foi realizada uma mesa redonda sobre a educação rural no Brasil, convocada pelo Josué de Castro, com a participação de representantes da FAO e da Comissão de Educação Rural em Itaperuna - Estado do Rio de Janeiro. Nela foi declarado que “alfabetizar o homem do campo, não lhe resolve os problemas, pois muitas vezes constitui apenas elemento para desenraizá-lo do meio rural” (CPDOC, 1951). A proposta de educação rural apresentada na mesa redonda buscava evitar o êxodo rural e, ao mesmo tempo, formar novas lideranças de jovens e adultos que pudessem ser inseridos ao processo de desenvolvimento do país. Indicava-se a necessidade de modernizar as formas de produção via formação técnica: “o técnico é muito importante, pois tem como função fecundar o meio. O Brasil está “a cavaleiro” do resto do mundo em educação rural) CPDOC, 1951, p.5.
A Comissão de Educação Rural de Itaperuna, que participou da mesa redonda em 1951, havia realizado em 1950 a Primeira Missão Rural de Educação de Adultos. Esta Missão tinha como objetivo a “ação educativa integral” para elevar as condições de “vida material e social”, por meio de uma “organização social da comunidade” via assistência de técnicos e especialistas. A Missão Rural era constituída por especialistas da área de medicina, enfermagem, veterinária, assistência social, agronomia, educação sanitária, economia doméstica, operador de rádio e cinema e motorista. A Missão Rural operou em quatro principais setores: médico-sanitário, agropecuário, de economia doméstica e de serviço social (CPDOC/FGV, 1950). A experiência da Missão Rural de Educação de Itaperuna serviu de modelo para a criação da Campanha Nacional de Educação Rural - CNER em 1952. No entanto, “por seu caráter de “volante” - que se mostrou ineficiente- levou a CNER a optar pelas Missões Rurais de Educação fixas.” (BARREIRO, 2010, p. 53).
Segundo Barreiro (2010), as Missões Rurais de Educação foram o centro de atuação da CNER. A formação dos técnicos para as Missões Rurais foram realizadas nos EUA, onde fizeram “acordos financeiros técnico-ideológicos entre a CNER e o Ponto IV {...} uma agência americana interessada na expansão da ideologia da modernização e no modo de produção capitalista”. Também foi realizado um acordo entre a CNER e Cooperativa Americana de Remessas para o Exterior dos EUA - CARE, que por meio de um convênio doavam ferramentas, curativos e materiais de primeiros socorros para agricultores e carpinteiros rurais (BARREIRO, 2010, p. 54).
Neste debate entre representantes da FAO e de integrantes da Comissão de Educação Rural em Itaperuna, Estado do Rio de Janeiro, promovido por Josué de Castro (CPDOC, 1951), assim como nos Cadernos da Campanha Nacional de Educação Rural (REVISTA DA CAMPANHA NACIONAL DE EDUCAÇÃO RURAL, 1954 -1955) destacamos os princípios para esta modalidade de ensino: 1- a fixação do homem ao meio rural por meio de alterações das condições socioeconômicas, relacionadas à melhoria das condições de vida e aos aspectos ideológicos que teriam a função de evitar a adesão ao comunismo por meio da implementação de uma “reforma agrária não radical”; 2- promoção de mudanças na mentalidade dos sujeitos para a formação de indivíduos ativos, com desejo de mudanças e condições de “atuação na realidade” em que está inserido, por meio da estratégia de implementação de planos de intervenção locais, flexíveis e interdisciplinares, voltados para a formação de líderes; 3- a defesa de constituição de uma proposta educativa para as populações do campo que atenda às necessidades locais e de escolas normais rurais para a formação de educadores que tenham identidade cultural com o meio.
A partir de 1960 houve uma redução desses projetos de educação comunitária, pois dependiam de recursos humanos e financeiros externos, dificultando a sua ampliação e manutenção nos países periféricos. Outro elemento destacado por Favareto (2010), na redução destes projetos durante esse período, refere-se à introdução de práticas estranhas às tradições das comunidades, isto é, de forma paradoxa ao que se propalava. Tratava-se de projetos verticais que não levavam em consideração a cultura das comunidades.
Entre 1951 e 1971, o Brasil recebeu “mais de 80 missões de curta duração ou circunstâncias” (FAO, 2010, p. 7). Entre as missões desenvolvidas nesse período, as que se destacam referem-se à modernização e eficiência na produção de alimentos. Para isso, em 1946, a FAO criou o Departamento Econômico e Social, com o objetivo de estabelecer um quadro político para o desenvolvimento rural; coletar, avaliar e monitorar a situação nutricional, alimentar e agrícola no mundo; analisar políticas alimentar, agrícola e commodities nacional e internacional; e prestar assistência internacional de planejamento aos governos nacionais e organizações regionais. Esse departamento foi composto por diversas divisões,8 dentre elas, a Divisão de Recursos Humanos, Instituições e Reforma Agrária (FAO, 1981).
Moreira (1998) aponta no Brasil a criação da Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), por iniciativa da ala jovem do Partido Social Democrático (PSD) em 1956, que articulando políticos progressistas de distintos partidos chegou a defender a Reforma Agrária, na tentativa de superação da extrema pobreza da população rural como mecanismo de ampliação do mercado interno, como elemento central para um desenvolvimento autossustentado nacional, independente e autocentrado. Elabora-se, então, um discurso que aponta a burguesia nacional como representante dos interesses das diferentes classes na industrialização nacional, tais como o proletariado camponês e a nova classe média. Desenvolveu-se, assim, uma perspectiva consensualista, que minimizava a radicalização das diferenças de classes, na medida em que apostava na possibilidade de constituição de uma comunidade nacional homogênea articulada à tese dos liberais, segundo a qual a produtividade do trabalho com emprego de novas técnicas de produção elevariam os patamares de qualidade de vida da população, dissimulando, desta forma, os conflitos político-ideológicos entre os diferentes grupos sociais (MOREIRA, 1998).
A partir dos anos 1960, as propostas de reforma agrária da FAO recebem ênfase. No entanto, cabe lembrar que a reforma agrária proposta pela FAO para os países em desenvolvimento não se tratava de distribuição compulsória de terras, mas da integração do pequeno agricultor e do sem-terra ao mercado. “A transformação do trabalhador em pequeno proprietário constituía assim a única saída para salvá-lo do comunismo” (MARTINS, 1986, p.88, apud, BARREIRO, 2010, p. 93). Nessa perspectiva, a Agência acredita que para alcançar o desenvolvimento rural seja necessário garantir o acesso à terra, bem como modernizar as formas de produção, investir na formação de conhecimentos e insumos agrícolas. Esta concepção de reforma agrária atendia aos interesses do Estado brasileiro, que por sua vez era contrário à reforma agrária incitada pelos movimentos de luta pela terra.9 Além disso, naquele período havia uma preocupação dos governos de países em desenvolvimento, principalmente dos governos latino-americanos - incluindo o brasileiro - em conter a expansão dos ideários comunistas que “assombravam” as populações pobres, consideradas mais “vulneráveis” à campanha comunista. Nesse sentido, a matriz política reformista proposta pelos organismos internacionais e, especialmente pela FAO, convergia com os interesses do Estado brasileiro na contenção de conflitos agrários e na inserção de políticas desenvolvimentistas. Isto é, tratava-se de uma proposta conservadora que não visava ao fim da concentração de terras, mas à inserção do trabalhador sem-terra à lógica do mercado, à minimização dos conflitos de terras e à manutenção e perpetuação do sistema capitalista.
Entre o período de 1950 a 1970, a FAO realizou diversas ações conjuntas entre agências da ONU (UNESCO, OIT, UNICEF, BIRD, entre outros) para viabilizar os projetos de desenvolvimento rural em países da periferia (FAO, 1981). Entretanto, cabe salientar que entre as décadas de 1960 e 1970 suas principais ações estiveram centradas no desenvolvimento do setor florestal. Isto é, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a urgência em reconstruir a Europa, a madeira brasileira assumiu uma importante função no contexto econômico mundial. Durante um período de quarenta anos, suas ações no Brasil estiveram voltadas para o desenvolvimento da economia exportadora de madeira.
Desde o início da atuação da FAO no Brasil até a década de 1980, a maior parte da cooperação prestada estava ligada ao setor florestal, cuja madeira local ocupou dupla função: a reconstrução dos países atingidos pela Segunda Guerra Mundial e o fortalecimento e a expansão da indústria nacional. Embora o enfoque no desenvolvimento rural comunitário fosse umas das táticas prioritárias da FAO, percebe-se que no Brasil ele aparece como meio de alavancar o desenvolvimento econômico do país, e não como atividade fim.
A partir da década de 1950, a Floresta Amazônica tornou-se um importante destino das Missões da FAO, cujo objetivo era o desenvolvimento rural na perspectiva da exploração florestal da Amazônia (FAO, 2010). Essa perspectiva de desenvolvimento rural culminou com a chamada Revolução Verde, “também conhecida como modernização conservadora que, mediante o estímulo ao uso de maquinário e novos insumos agrícolas, concentrou a terra e impulsionou o êxodo rural” (NUNES, 2014, p. 17), o que não resultaram na elevação dos níveis de nutrição e na redução da pobreza do campo. Pelo contrário, aprofundaram os conflitos e as desigualdades sociais.
No período em que a ênfase foi o desenvolvimento rural integrado, entre os anos 1980 e 1990, a perspectiva de desenvolvimento rural da FAO estava relacionada à produção de alimentos a partir da inserção de novas tecnologias no campo como a utilização de máquinas, equipamentos e insumos químicos (fertilizantes e pesticidas). Assim, o foco na formação técnica de jovens e adultos recai na formação de um “novo” perfil de camponês e na viabilização dessas tecnologias. A segurança alimentar também foi defendida como meio de garantir bem-estar à população rural e urbana, além de evitar conflitos causados pela fome e pela miséria que se alastravam no pós-guerra. O aumento da produção de alimentos era considerado um dos principais elementos para o desenvolvimento das áreas rurais, pois, para a FAO, a ausência de desenvolvimento das áreas rurais era considerada um problema de produção e não da desigualdade decorrente da concentração de terras e riquezas.
Identificamos neste discurso e estratégias da FAO a concepção da Comissão Econômica para Assuntos Econômicos da América Latina e Caribe - CEPAL, a qual Oliveira (2013) caracteriza de dualista, por identificar nos países em desenvolvimento elementos considerados “modernos”, isto é, favoráveis ao desenvolvimento e elementos “atrasados” que travavam a evolução destes países aos mesmos patamares dos países centrais do sistema capitalista. A CEPAL indicava que as características modernas relacionavam-se com a industrialização; já as arcaicas tinham as relações estabelecidas no meio rural, principalmente. Esta perspectiva ignora que são as relações de extrema exploração no meio rural, dentre outras, que permitiram o avanço do processo de industrialização do país, pois forneciam alimentos a baixo custo, reduzindo o valor da força de trabalho para as indústrias, assim como constituíram um exército industrial de reserva que pressionava para baixo os salários também nas cidades, por meio do êxodo rural. Conforme Oliveira (2013) explicita, o atraso e o moderno no Brasil não são dicotômicos -como procura crer o discurso desenvolvimentista da FAO -, são acima de tudo congruentes e complementares.
É evidente que no meio rural as relações atrasadas devem ser superadas, mas não em contraposição ao moderno industrial (permeado por exploração extrema e produção de miserabilidade), mesmo porque mantêm com este uma relação orgânica. Este discurso, propalado, sobretudo, pelos organismos internacionais na América Latina, e que foi difundido e aprofundado no país pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros - ISEB. A partir dos anos 1950, surte o efeito de apostar na falácia da industrialização do meio rural como resolução das mazelas sociais dos países e na educação como principal meio para isto.
Para a FAO (1979, p. 38), só poderia haver desenvolvimento rural se fossem “instaladas vários tipos de indústrias” nas áreas rurais. Para tanto, era necessário que os Estados investissem em infraestrutura “{...} econômica e social, sobretudo no saneamento e na educação {...}”; em serviços educacionais de pré-escola e ensino fundamental para as crianças, jovens e adultos, “{...} a criação e a ampliação de redes de capacitação e extensão para homens e mulheres, as quais permitam adquirir e aperfeiçoar técnicas e aumentar a produtividade {...}”; em execução de programas de reforma agrária que ajudariam reduzir os conflitos de terras e êxodo rural e, consequentemente, evitar um “crescimento urbano desordenado” (FAO, 1979).
O Serviço de Extensão e Educação Agrícola da Juventude Rural desenvolvia um papel estratégico nas ações de desenvolvimento rural proposto pela FAO, que visava promover por meio da formação técnica um novo perfil de camponês que, além de produzir para subsistência, também estivesse inserido no mercado. Nesse sentido, em 1979, a FAO realizou em Roma, uma Conferência Mundial sobre a Reforma Agrária e Desenvolvimento. Dessa conferência resultou a “Declaração de Princípios e o Programa de Ação que constituem, de fato, a Carta da população rural pobre {...}” (FAO, 1979, p. 12), também conhecida como a “Carta do Campesino”. Esta “carta” teve como objetivo reorientar as “{...} políticas nacionais de desenvolvimento, no âmbito dos países; a realização de uma Nova Ordem Econômica Internacional em todo o mundo.” (FAO, 1979, p. 12).
Pudemos constatar que os objetivos de industrialização do meio rural no Brasil foram amplamente efetivados, mas longe de suprimir os problemas e conflitos sociais, surtiram o efeito de acirramento destes. Ianni (1984), ao estudar o município de Sertãozinho, no interior de São Paulo, demonstra o processo histórico de industrialização do campo com a implantação das usinas canavieiras. Esta industrialização produziu como resultado a usina e o canavial. Na usina desenvolve-se uma complexa organização do trabalho... e no canavial o trabalho é realizado sobretudo pelo “boia fria”, residente na cidade e submetido à condição de precarização das relações de trabalho, que sonha, sobretudo, com um trabalho formal.
Dessa forma, o desenvolvimento rural integrado, assim como os demais processos de desenvolvimento rural, proposto para os países periféricos foram marcados pela contradição. A primeira, buscar a melhoria das condições de vida da população rural pobre sem alterar a estrutura agrária, isto é, sem a socialização dos meios de produção para reproduzir sua existência; a segunda, incluir apenas os possuidores de meios de produção no processo de desenvolvimento, deixando à margem a maioria da população rural pobre e sem-terra; a terceira, aumentar a produtividade sem a desconcentração de terras, beneficiando apenas o capital industrial, financeiro e comercial de pesticidas, fertilizantes, equipamentos e máquinas agrícolas que, em muitos casos, levaram os pequenos produtores à aquisição de dívidas e à perda de suas terras, aumentando ainda mais a concentração de terras e riquezas.
Apesar de a FAO (2010) afirmar que a partir de 1990 houve uma redução do número de projetos de cooperação técnica no setor florestal, verifica-se que após os anos de 1980 houve um aumento significativo de projetos nesse setor, mas com enfoques diferentes. Até a década de 1980 o foco estava no desenvolvimento do setor florestal, principalmente pela exploração dos recursos naturais. A partir de 1980, por conta da pressão dos movimentos ambientalistas que culminaram na elaboração do Relatório de Brundtland (1987), também conhecido como “Nosso Futuro Comum”, provocou mudanças na perspectiva de desenvolvimento rural proposto pela FAO. A partir de 1990, o enfoque dos projetos estava na conservação dos recursos florestais. Após os anos 2000, o foco manteve-se no manejo sustentável das florestas (FAO, 2010), como demonstra o quadro a seguir:
Projetos de Segurança Alimentar/Redução da Pobreza e Desenvolvimento Rural | |
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Título do Projeto | Período |
UTF/BRA/040/BRA - Organização Produtiva das Comunidades Pobres - PRODUZIR | 1994-2009 |
UTF/BRA/040/BRA - Organização Produtiva das Comunidades Pobres - PRODUZIR - Módulo AMAZÔNIA | 1995-2009 |
UTF/BRA/057/BRA - Apoio ao Desenvolvimento Sustentável da Agricultura Familiar no Brasil | 2002-2008 |
UTF/BRA/064/BRA - Apoio à Implementação e Alcance do Resultados do Programa Fome Zero | 2004-2009 |
UTF/BRA/067/BRA - Formação de Alimentação Escolar com Conselheiros e Agentes Associados para o Programa Nacional de Alimentação Escolar | 2005-2009 |
GDCP/BRA/001/ITA - Apoio ao Programa Fome Zero no Controle da Água, na área de Dois Irmãos, Brasil | 2005-2008 |
GDCP/BRA/002/ITA - Tecnologias para Melhoria da Segurança Alimentar em hortas de distritos selecionados da cidade de Teresina, no Estado do Piauí | 2005-2008 |
TCP/BRA/3101 - Apoio Metodológico e de Capacitação para o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e para o Programa Nacional de Agricultura Familiar - PRONAF | 2006-2008 |
Projetos de Gestão Sustentável do Recursos Naturais | |
Título do Projeto | Período |
UTF/BRA/060/BRA - Gestão Ambiental Rural em Assentamentos Humanos | 2002-2009 |
UTF/BRA/062/BRA - Projeto de Consolidação dos Instrumentos Políticos e Institucionais para Implementação do Programa Nacional de Florestas | 2004-2009 |
UTF/BRA/066/BRA - Desenvolvimento de Comunidades Costeiras | 2006-2010 |
GCP/BRA/061/WBK - Projeto Florestas Atlântica | 2004-2008 |
TCP/BRA/3101/3202 - Estabelecimento de uma Base Metodológica e Construção de Parcerias para o Inventário Nacional Florestal | 2008-2010 |
GCP/BRA/070/EC - Gestão de Florestas, Apoio à Produção Sustentável e Fortalecimento da Sociedade Civil Brasileira | 2007-2011 |
Projetos para Facilitação da Cooperação Técnica - TCP | |
Título do Projeto | Período |
TCP/BRA/3102 - Componente 02 - Fortalecimento da Comunicação TCP/MDA | 2006-2008 |
TCP/BRA/3102 - Componente 03 - Agroenergia de Biomassa Residual | 2006-2008 |
TCP/BRA/3102 - Componente 04 - Agroenergia: impactos econômicos e ambientais | 2006-2008 |
TCP/BRA/3102 - Componente 05 - Preparação do Plano de Gestão Integrada do Ecossistema para Baía da Ilha | 2006-2008 |
TCP/BRA/3102 - Componente 06 - Cadeia Produtiva da Aquicultura no Estado do Paraná | 2006-2008 |
TCP/BRA/3102 - Componente 07 - Projetos de Melhores Práticas em Segurança Alimentar no Brasil | 2006-2008 |
TCP/BRA/3102 - Componente 08 - Melhoria do Quadro Jurídico do Governo Federal para o Uso Sustentável Extrativista das Florestas | 2006-2008 |
TCP/BRA/3201 - Apoio ao Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável, na pecuária, recuperação do pasto e na intensificação da produção sustentável no Brasil | 2008-2009 |
Projetos Regionais | |
Título do Projeto | Período |
TCP/RLA/3106 - Assistência de emergência para a detecção precoce da gripe aviária no Cone Sul | 2006-2008 |
TCP/RLA/3108 - Preparação de um Programa Regional de Sanidade Animal | 2007-2008 |
TCP/RLA/3109 - Desenvolvimento de Ferramentas Técnicas de Referência para a Gestão de uma Biossegurança Ampliada para os países integrantes do MERCOSUL | 2007-2009 |
TCP/RLA/3110 - Análises e fortalecimento de programas de alimentação e nutrição comunitária | 2007-2008 |
TCP/RLA/3111 - Melhoramento dos mercados domésticos de pescado e produtos pesqueiros na América Latina e Caribe | 2007-2009 |
TCP/INT/3201 - Formulação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) Sul-Sul / Programa de Cooperação Norte-Sul para Implementação da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD) | 2008-2009 |
Fonte:CHIANCA (2008) e FAO (2010). Quadro elaborado pela autora (2015).
Essas alterações na perspectiva do desenvolvimento rural na Agência também provocaram mudanças na proposta educativa da FAO que, a partir de 1990, adotou outra abordagem de educação para o desenvolvimento rural. Nesse sentido, em 2002, após o Fórum Mundial de Educação de 2000, em Dakar - Senegal, durante a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em Johanesburgo, foi firmada uma parceria entre a FAO e a UNESCO, na qual foi criado um novo programa específico de educação para a população rural considerado um marco da iniciativa da Educação para Todos - EPT (FAO, 2004a; 2004b; 2004c).
Em 1996, na Cúpula Mundial sobre a Alimentação, os representantes da FAO também chamaram a atenção sobre a importância da educação básica para a população rural, para a redução da pobreza e da fome, segurança alimentar, a paz e o desenvolvimento sustentável (FAO, 2004b).
A parceria entre a FAO e a UNESCO, bem como o enfoque interinstitucional entre as demais agências da ONU, foram alguns dos compromissos tratados no Fórum de Dakar e na Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável, que visavam facilitar e tornar mais eficiente as ações desenvolvidas entre as agências, a fim de cumprir um dos maiores desafios do milênio: redução da pobreza e educação para todos (FAO, 2004a; 2004b).
O programa Educação para a População Rural - EPR, estabelecido entre a FAO e a UNESCO em 2002, tem como objetivo diminuir a disparidade do acesso à educação entre as áreas rurais e urbanas, superar o analfabetismo via educação formal e não-formal e a formação de capacidades, compreendida pela FAO como formação das habilidades para um trabalho autônomo, diversificado e resiliente,10 que permita os indivíduos tornarem-se resistentes a qualquer adversidade econômica, social, cultural ou ambiental (FAO, 2012).
Segundo a FAO (2004, p. 21, tradução nossa),11 “a redução da pobreza, a segurança alimentar e a educação básica, formam um núcleo do novo discurso sobre assistência ao desenvolvimento” do novo milênio, sendo uma das metas mais perseguidas pelas as agências e organizações internacionais a partir dos anos de 1990 e ao longo do início do século XXI, para atingir as metas do Desenvolvimento do Milênio (2000).
Em 2002, após alguns meses da parceria estabelecida entre a FAO e a UNESCO para a EPR, foi realizada a Primeira Reunião Intergovernamental do Projeto Regional de Educação para América Latina e Caribe, lançada em nível regional a EPR. No ano seguinte, em 2003, foram realizados diversos encontros nacionais de EPT, para a elaboração de um documento síntese que apresenta um diagnóstico sobre a educação rural dos países-membros. O documento foi elaborado a partir das experiências de educação rural realizadas nas nações, e contou com a participação da sociedade civil, ONG´s, Ministérios da Educação e das agências internacionais de cooperação. Tais sínteses resultaram na publicação do documento sobre a “Educação para População Rural na América Latina: Alimentação e Educação para Todos”, que serviram de base para a discussão do Seminário Regional de Educação Rural na América Latina e Caribe. O seminário foi organizado pela FAO em parceria com a UNESCO, Instituto Internacional de Planejamento da Educação - IIPE, com o apoio financeiro da Cooperação Italiana para o Desenvolvimento e com a colaboração do IICA. (FAO, 2004b; 2004c).
No Brasil, o documento síntese foi elaborado pela Eliane Dayse Pontes Furtado,12 no qual apresenta um panorama histórico da educação rural brasileira, bem como a “nova” perspectiva denominada de “educação do campo”, que traz em seu bojo “a luta dos povos do campo por políticas públicas que garantam o direito à educação, a uma educação que seja no campo e do campo”. Além do Brasil, outros países da América Latina e Caribe também apresentaram o documento síntese sobre a educação rural em suas nações, a citar: Chile, Colômbia, Honduras, México, Paraguai e Peru, que serviram de base para as discussões realizadas nas regiões da África, Ásia e Europa nos anos de 2005 e 2006 (FAO, 2004b).
O documento “Educação para População Rural na América Latina: Alimentação e Educação para Todos” (FAO, 2004b, tradução nossa),13 apresenta uma revisão dos planos e estratégias do desenvolvimento rural e agrícola, bem como um diagnóstico geral das políticas e dos programas agrários em andamento, incluindo as principais organizações e instituições e as necessidades educativas do setor. Ademais, aponta a situação geral da educação rural na América Latina, como os principais temas e problemas relacionados à educação básica, desenvolvimento infantil e educação na primeira infância, Ensino Fundamental, Médio e Profissional para jovens, a formação de competências básicas para a vida e educação permanente.14 Também apresenta discussões sobre as estratégias e “boas práticas” para melhorar a qualidade da educação da população rural, incluindo a formação de professores, adequação do currículo e dos materiais didáticos às necessidades da população rural, ampliação da participação da comunidade na educação, melhor uso das ferramentas de tecnologia e informação, e ainda, a alfabetização e a capacitação direcionada para o trabalho da população rural “dentro dos processos atuais de desenvolvimento rural”.
No mesmo ano, a FAO com a colaboração da UNESCO, publicou o documento “Educação para o Desenvolvimento Rural: novas respostas políticas” (FAO, 2004a, tradução nossa),15 que apresenta um estudo sobre a educação e o desenvolvimento rural, bem como a “nova agenda” para o desenvolvimento e alívio da pobreza rural. O documento reúne a perspectiva de educação da FAO, o qual define a concepção filosófica e pedagógica de educação, desde a Educação Básica ao Ensino Superior, bem como a formação de competências e habilidades necessárias para o trabalho e desenvolvimento nas áreas rurais. Este documento traz um item especifico sobre a experiência brasileira, considerada exitosa no que se refere à criação de um organismo que satisfaça a formação de habilidades e competências para as áreas rurais. O organismo que a FAO e a UNESCO se referem é o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural - SENAR, criado em 1991, pela Lei n° 8.315.
O SENAR é uma entidade privada ligada ao “Sistema S”,16 mantida pelo Estado e pela classe patronal rural, isto é, pelos grandes proprietários de terra e empresários rurais, e está vinculada à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil - CNA, composta prioritariamente por representantes do agronegócio latifundiário brasileiro.17
É nessa perspectiva que se dá a concepção de educação da FAO, baseada na formação de habilidades e competências, vinculada a um projeto de sociedade e de formação humana, que tem como pressuposto a formação de capital humano e social, para o desenvolvimento capitalista.
Em 2005, logo após a publicação do documento “Educação para o Desenvolvimento Rural: novas respostas políticas”, a FAO estabeleceu um projeto de cooperação técnica com o MEC e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, com a proposta “inovadora de educação ambiental, alimentar e nutricional”. A cooperação técnica inclui projetos com hortas escolares para aplicação de conhecimentos técnicos e ambientais, que também serviu de complementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. O projeto de cooperação técnica TCP/BRA/3003, “A Horta Escolar como Eixo Gerador de Dinâmicas Comunitárias, Educação Ambiental e Alimentação Saudável e Sustentável”, entre os anos de 2005 e 2006, foi implementado o projeto piloto com mais de vinte hortas escolares, e teve como público-alvo três municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano - IDH dos estados de Goiás, Rio Grande do Sul e Bahia (FAO, 2010, p. 9-10).
É possível verificar que após 2000, com o Compromisso de Dakar e a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, estabelece-se uma “nova” perspectiva de educação rural para os países periféricos, especialmente no Brasil, que caracterizamos em cinco momentos: primeiro, a parceria estabelecida entre a FAO e a UNESCO de EPR em 2002; segundo, as sínteses realizadas pelos países da América Latina sobre o diagnóstico da educação rural (2003); terceiro, o Seminário de Educação para a População Rural da América Latina (2004); quarto, a publicação do documento “Educação para o Desenvolvimento Rural: novas respostas políticas”, que trata da concepção e da necessidade de uma “nova” educação para as populações rurais, para o desenvolvimento rural (2004); quinto, a implementação do projeto de cooperação técnica entre a FAO, o MEC, FNDE e PNAE (2005), com projetos de hortas escolares, o qual se caracteriza a implantação das “respostas políticas” estabelecidas no documento de 2004.
É importante salientar que as discussões acerca da educação rural sempre estiveram presentes nas propostas estratégicas da FAO para o desenvolvimento das áreas rurais, assim como já foi destacado. Entretanto, verificamos que a partir das décadas de 1990 e, principalmente, após 2000, com o avanço da perspectiva do desenvolvimento sustentável na agenda global, o enfoque na educação rural ganhou mais expressão e espaço no cenário das políticas educacionais.
Verifica-se que as mudanças na concepção de educação rural ocorridas no final da década de 1980 e início da década de 1990 é resultado do processo das reformas neoliberais, em que “o capital impõe a reestruturação produtiva e com ela e a afirmação ideológica, segundo a qual, haveria uma importância da educação básica para a formação profissional dos indivíduos”. Nesse sentido, a educação básica é vista com maior relevância, “sobretudo porque a esta caberia a formação da força de trabalho, desenvolvendo as “competências” para atender as necessidades do mercado.” (BATISTA e ALVES, 2009, p. 3).
Nesse sentido, a FAO (2004a, p. 273-290) diz que além da escolarização e da formação, a experiência laboral contribui para a formação de capital humano, seja ele ligado ao setor agrícola ou não-agrícola. Para a FAO, no contexto da transformação rural, os níveis mais elevados de educação e a disponibilidade de empregos não-agrícolas facilitam o ajuste. {...} “Um nível mais alto de educação aumenta o exército de capital humano e, consequentemente, abre o acesso a salários não-agrícolas mais altos. {...}” (FAO, 2004a, p. 273, tradução nossa).18
Em contrapartida, as populações pobres rurais, com baixos níveis de educação e formação, são excluídas tanto do trabalho agrícola e não-agrícola. O caminho apontado pela FAO para aumentar o acesso das populações rurais pobres ao mercado de trabalho é a formação de competências para a agricultura, bem como àquelas ligadas ao setor não-agrícola, ou seja, industriais. Para tanto, a FAO discute a necessidade de um currículo “específico” e “geral” para as populações rurais. O primeiro, para a formação específica para a agricultura, que contribua com a força de trabalho agrícola; e o segundo, para aumentar a probabilidade de emprego em setores não-agrícolas.
A transformação dos mercados de trabalho rurais implica que os sistemas de ofertas deem respostas pertinentes às necessidades das populações rurais que participam de uma ampla gama atividades econômicas, incluindo a agricultura, mas também atividades industriais, de turismo e outros serviços (FAO,2004a, p. 276, tradução nossa).19
Nessa perspectiva, a FAO (2004a) defende a necessidade de investimentos tanto do setor público como privado na formação técnica e profissional para as áreas rurais, pois ela atende as demandas de formação de habilidades e competências necessárias para o desenvolvimento rural e alívio da pobreza.
O fortalecimento da coesão social é uma das estratégias estabelecidas pela FAO para o desenvolvimento territorial, pois a coesão social é compreendida como uma forma de “negociação”, de “conciliação” e de “barganha”, isto é, consenso entre os diferentes atores, sejam eles “atores poderosos” ou “marginalizados” (FAO, 2007; 2005). Para FAO (2007), os atores poderosos são aqueles que exercem algum tipo de influência ou respeito em âmbito local, podendo ser líderes religiosos ou outros personagens influentes, que possuem um “entendimento profundo do contexto local e ao seu papel como depositários de conhecimentos históricos”. Já os “atores marginalizados” são aqueles excluídos dos processos sociais e econômicos do contexto local, sendo necessária a construção de uma colaboração entre todos os atores sociais para a capacitação dos “atores mais fracos”, para que eles possam “assumir papéis ativos nos processos de tomada de decisão”, e, por conseguinte, facilitar a construção de um consenso entre os diferentes atores, que se materialize em um “Pacto Social Territorial” (FAO, 2007, p. 53-54).
Portanto, quando a FAO traz em sua metodologia de DTPN, a educação como estratégia para o desenvolvimento rural, verifica-se que esta concepção de educação não está passível de neutralidade, mas marcada pela contradição. Primeiro, porque a educação é considerada pela FAO um dos principais instrumentos para promover os diálogo e conciliação entre os diferentes atores, sejam eles donos dos meios de produção ou os que vendem sua força de trabalho. Isto é, a educação como uma ideologia que supere as diferenças de classe, e que promova o desenvolvimento “harmônico” das relações capitalistas, na qual oprimidos e opressores são “aliados” da paz e da ordem social. Segundo, a concepção de educação da FAO está vinculada a um projeto de sociedade e de formação que não visa à emancipação humana plena, ou seja, a educação é compreendida como a formação de habilidades e competências necessárias para promover o desenvolvimento capitalista, e não o desenvolvimento omnilateral humano. Terceiro, a educação proposta pela FAO à classe trabalhadora, tem como um dos objetivos a redução da pobreza e da fome, bem como a melhoria da vida das populações rurais. No entanto, o modelo de educação proposto pela FAO está vinculado a um projeto privatista, no qual é pensado e organizado por um setor conservador, ligado ao latifúndio, ao agronegócio e à agroindústria, os quais visam manter as relações de dominação e poder, sendo a precarização do trabalho e da vida as condições necessárias para a manutenção dessas relações. Quarto, e último, o desenvolvimento rural sustentável no sistema capitalista é desigual e nunca será sustentável. Portanto, a concepção de educação como panaceia dos problemas econômicos, sociais, culturais e ambientais, é uma forma de omitir os problemas estruturais que são inerentes a este sistema, e de responsabilizar os “indivíduos” pelas mazelas produzidas por ele, como se a educação pudesse muni-los contra a perversidade avassaladora do capital.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Indicamos que, guardadas as diversidades históricas com os anos 1950, a FAO, em ação conjunta com outros organismos internacionais, atua para que se constitua uma bandeira de lutas em torno da educação, que contribui mais para dissipar os antagonismos de classe em torno dos problemas da concentração de terras no país, e imprimir uma característica aglutinadora às políticas voltadas para a educação do campo. Se nos anos 1950, em pleno desenvolvimentismo econômico, a bandeira do nacional desenvolvimentismo serviu de elemento para a defesa de uma reforma agrária em moldes conservadores, colaborando para neutralizar as ações dos movimentos campesinos, atualmente, o discurso do “desenvolvimento rural sustentável” e a proposta de educação atrelada a este, na perspectiva dos organismos internacionais, desempenha papel semelhante.
Consideramos ainda que, com a mundialização do capital, aumentou-se a concentração de riquezas e, consequentemente, o desemprego, a pobreza e a fome nos países periféricos. Nessa perspectiva, os organismos internacionais atuam no sentido de amenizar e/ou humanizar os processos destrutivos que são inerentes ao capital. No entanto, suas ações representam um efeito placebo, ou seja, em que não se materializam, pois não é a educação que impedem os sujeitos de participarem efetivamente dos processos políticos, sociais e econômicos e culturais, mas sim a pobreza, condição esta necessária para a reprodução do capital.