A teoria econômica sustenta que o ritmo de acumulação do capital humano influencia o crescimento econômico de um país (MINCER, 1958; SCHULTZ, 1964; BECKER, 1964). Por meio da educação - considerada o eixo fundamental do investimento em capital humano -, seria mais fácil aos trabalhadores absorverem novas tecnologias, elevando a produtividade do trabalho e, consequentemente, seu nível de renda. O aumento da escolaridade da população propiciaria a redução dos diferenciais salariais entre os trabalhadores, bem como das disparidades regionais, contribuindo para a redução da desigualdade socioeconômica.
A mobilidade intergeracional foi relacionada a esse arcabouço teórico por diversos autores, entre eles Solon (2004). Em seu modelo, o grau de mobilidade diminui na medida da eficácia do investimento privado em capital humano e de seu retorno, enquanto aumenta com a progressividade do investimento público em educação.
A mobilidade educacional ascendente de famílias de baixo status aumentaria a oferta de trabalhadores qualificados, reduzindo o retorno do ensino superior e, contribuindo, assim, para a redução das desigualdades socioeconômicas. Por outro lado, uma maior desigualdade na distribuição dos rendimentos ocasionaria maior disparidade nos investimentos em capital humano entre as famílias ricas e pobres, e, assim, mais persistência intergeracional (BECKER; TOMES, 1979).
Dentre as particularidades do mercado de trabalho brasileiro que o tornam bastante desigual está o baixo grau de mobilidade intergeracional de renda e educação, que faz com que os filhos de pobres tenham maior probabilidade de reproduzir os graus de educação e de rendimentos de seus pais, enquanto os mais ricos e escolarizados conseguem, via de regra, transmitir seu status às gerações subsequentes. Dada essa persistência intergeracional, os níveis de desigualdade são mantidos ao longo do tempo (LAM, 1999).
No processo de mobilidade intergeracional ascendente, o background familiar exerce papel crucial. Entendido como o conjunto de fatores relativo à estrutura familiar que afeta o desempenho do indivíduo na escola e, mais tarde, no mercado de trabalho, ele é classificado por Silva e Hasenbalg (2002) em três dimensões, a saber: o capital econômico, que diz respeito aos recursos materiais de que a família dispõe e que facilitam o aprendizado das crianças; o capital cultural, que consiste na distribuição de educação entre os membros adultos da família e indica o meio ambiente cognitivo em que a criança está inserida; e o capital social, que se refere aos recursos que estão disponíveis à criança por meio da presença física dos adultos na família e pela atenção que eles lhe dão.
Na literatura nacional, há ampla evidência empírica dos efeitos dos recursos familiares, nas suas diversas dimensões, nos resultados educacionais de indivíduos em idade escolar.1 Já a busca por analisar o efeito do background familiar sobre os rendimentos do trabalho, embora seja um esforço já existente, é menos frequente, em razão da restrição de pesquisas que captem simultaneamente informações sobre o trabalhador e seus pais. Os trabalhos com representatividade nacional mais recentes sobre o tema fizeram uso da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1996, que apresentava um suplemento com perguntas sobre os pais do entrevistado quando este tinha 15 anos de idade.
Nas últimas décadas, observou-se uma mudança de cenário no mercado de trabalho brasileiro, caracterizada pelo aumento do estoque de mão de obra qualificada. A oferta de trabalhadores com nível universitário apresentou aceleração em seu crescimento ao longo dos anos 2000, ao passo que a expansão do grupo com ensino médio completo sofreu uma inflexão já a partir do final dos anos 1990 (IPEA, 2013). Essa expansão educacional foi acompanhada de um crescimento nas políticas de ação afirmativa no ensino superior, com o objetivo de promover o acesso de grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica. Como consequência, as disparidades na quantidade de educação formal recebida por brancos e negros2 reduziram-se, embora estejam longe de serem eliminadas.
O avanço educacional da população negra, contudo, não se traduz na eliminação das desigualdades raciais nos rendimentos do trabalho, pois, mesmo quando avançam no sistema educacional, os negros têm maiores dificuldades de converter a escolarização em rendimentos. Isso ocorre, por um lado, porque eles se veem em desvantagem em relação aos brancos no que se refere ao acesso à educação de qualidade e ao background cultural que mediará seu processo de socialização e, por outro, porque, mesmo quando conseguem superar essas desvantagens, encontram-se alijados das redes sociais que lhes permitiriam ascender às posições mais prestigiadas do mercado de trabalho.
Ainda que o propósito da educação não se limite aos retornos econômicos que porventura dela decorram, este artigo está voltado à análise dessa dimensão da escolarização. O objetivo deste trabalho é, assim, analisar o efeito do background familiar - particularmente da escolaridade dos pais - sobre os rendimentos do trabalho e sobre os retornos da escolaridade no Brasil, comparando os resultados obtidos por brancos e negros, por meio de equações de rendimentos estimadas com dados da Pnad. Cumpre notar que, depois de muitos anos sem abordar a questão, a Pnad 2014 voltou a conduzir um suplemento de mobilidade sócio-ocupacional. Dadas as transformações ocorridas no mercado de trabalho brasileiro e a consequente diferença amostral entre as Pnad de 1996 e de 2014, justifica-se um estudo com dados mais recentes, a fim de verificar se houve, com a ampliação da escolarização da população, diminuição do efeito do background familiar sobre o desempenho dos indivíduos no mercado de trabalho e, consequentemente, da estratificação social entre brancos e negros no país.
O trabalho está organizado conforme se segue: na segunda seção abordam-se o comportamento recente dos retornos da escolaridade no Brasil e os mecanismos por meio dos quais, de acordo com a literatura, a estrutura educacional da família é capaz de afetar os rendimentos dos indivíduos no mercado de trabalho. Em seguida, confere-se ênfase às desvantagens vivenciadas pelos negros em seu processo de realização econômica. Na quarta e quinta seções são apresentadas, respectivamente, a metodologia e a base de dados utilizadas. Depois disso, são discutidos os principais resultados das estimativas obtidas. Por fim, seguem-se as conclusões.
EXPANSÃO EDUCACIONAL, RETORNOS DA ESCOLARIDADE E BACKGROUND FAMILIAR
A literatura internacional mostra que os retornos da educação nos países em desenvolvimento podem diferir daqueles observados nos países desenvolvidos em razão de uma gama variada de fatores, entre eles o acesso mais restrito à escolaridade. Assim, o aumento dos rendimentos do trabalho resultante de um ano adicional de estudo seria maior nos países de renda baixa e média, em comparação às economias desenvolvidas, em virtude da menor oferta de mão de obra qualificada naqueles países. Evidências nesse sentido foram documentadas por Psacharopoulos (1973, 1981). Mais recentemente, Montenegro e Patrinos (2014) encontraram um prêmio salarial médio para cada ano adicional de estudo de 10,0%, ao analisarem dados de 139 economias entre 1970 e 2013. Considerando apenas a última estimativa disponível para cada país analisado, o prêmio médio global era de 9,7%, mas se mostrava significativamente maior na África Subsaariana (12,4%) e na América Latina (9,2%), e abaixo da média na Europa Oriental (7,4%) e no sul da Ásia (7,7%), endossando as conclusões anteriores de Psacharopoulos. A análise intertemporal revelou um declínio dos prêmios salariais desde os anos 1980, quando eram da ordem de 13,3%, em paralelo à expansão da escolaridade média global, que passou de 6,6 para 11,6 anos.
Em se tratando especificamente da mão de obra com formação universitária, em que pese o aumento de sua oferta nas últimas décadas, a demanda também cresceu, impulsionada pela emergência de novas tecnologias de informação e comunicação, que requerem dos trabalhadores habilidades complementares às tecnologias adotadas, em especial aquelas de natureza abstrata, multinível e não cognitiva. Nos Estados Unidos (EUA), o prêmio salarial pela conclusão do ensino superior, relativamente à conclusão do ensino médio, aumentou sistematicamente nas últimas três décadas, o que é atribuído ao aumento da demanda relativa por trabalhadores qualificados em ritmo superior à oferta (GOLDIN; KATZ, 2007; OREOPOULOS; PETRONIJEVIC, 2013).
Entre as especificidades do mercado de trabalho brasileiro que devem ser consideradas no momento de se analisarem os retornos econômicos da educação, encontra-se a baixa porcentagem de adultos com ensino superior. De acordo com dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), 14,8% da população brasileira na faixa etária de 25 a 64 anos concluiu algum curso universitário. A título de comparação, ao se considerarem países com nível semelhante de desenvolvimento, observa-se que cerca de 20,5% da população adulta argentina possui nível superior completo, enquanto no Chile esse percentual se aproxima de 22,5%. A média dos países da OCDE, considerando dados de 2016 ou mais recentes, é de 35,7% (OCDE, 2018).
Esse cenário de uma população com baixo percentual de trabalhadores qualificados tem como consequência elevadas taxas de retorno da educação. Nas décadas de 1980 e 1990, por exemplo, o prêmio salarial de trabalhadores urbanos do sexo masculino com o diploma de nível superior, em relação àqueles com o ensino secundário completo, era de 56,5% na Argentina e de 60,6% no México, ante 130,9% no Brasil (MANACORDA; SANCHEZ-PARAMO; SCHADY, 2010).
Todavia, há de se ressaltar que, assim como em âmbito global, os diferenciais salariais entre os níveis de escolaridade vêm declinando no Brasil nos últimos anos (IPEA, 2013; DAVANZO; FERRO, 2016). Entre 2001 e 2012, os retornos obtidos por ano adicional de estudo nas áreas urbanas do país passaram de 11% para 8,9%, se consideradas as mulheres, e de 11,5% para 8,8% entre os homens (DAVANZO; FERRO, 2016).
A diminuição nos retornos da educação está associada, em grande medida, à expansão da oferta de mão de obra escolarizada que ocorreu nas últimas décadas, evidenciada pelo aumento nas taxas de matrícula. No ensino superior, por exemplo, a taxa bruta de matrícula - dada pelo quociente entre o número total de matriculados, independentemente da idade, e a população na faixa etária de 18 a 24 anos - saltou de 15,1% para 32,1% entre 2001 e 2014 (OLIVEIRA, 2017). Oliveira (2017) observa que, de acordo com os critérios de classificação de Martin Trow (2007), o sistema de ensino superior brasileiro teria, a partir de 2012, deixado de ser elitizado para tornar-se um sistema de massas em estágio embrionário.
A expansão educacional vivenciada no Brasil nas últimas décadas significa que as pessoas que hoje ingressam no mercado de trabalho foram socializadas por pais e adultos mais escolarizados que os de gerações anteriores. Essa informação se torna relevante quando se busca analisar e entender o efeito do background familiar - sobretudo da escolaridade dos pais - nos rendimentos do trabalho no Brasil.
Os mecanismos por meio dos quais a estrutura educacional da família é capaz de afetar os rendimentos dos indivíduos no mercado de trabalho podem ser diretos ou indiretos. Os fatores familiares podem, por exemplo, influenciar o desempenho dos filhos no mercado de trabalho ao captarem atributos não observáveis (ou de difícil mensuração) do trabalhador, atuando, assim, como proxies desses atributos. Pais mais escolarizados, por exemplo, seriam capazes de prover uma educação de maior qualidade para seus filhos. As razões para tal seriam múltiplas: como indivíduos mais escolarizados em geral têm maiores salários, eles podem adquirir mais bens e serviços para o aprendizado de seus filhos; pais mais escolarizados geralmente têm como parceiro alguém com nível de escolaridade similar, o que potencializa o efeito da estrutura familiar; pais mais educados conseguem prover um ambiente familiar mais favorável ao estudo e à reflexão e, assim, mais propício à absorção de conhecimentos; e pais mais educados tendem a possuir menos filhos, podendo, assim, investir mais atenção e recursos na educação de cada filho (CURRIE; MORETTI, 2003; SCHULTZ, 1988).
Na literatura empírica nacional alguns autores já se propuseram a testar esses canais de influência. Lam e Schoeni (1993) encontraram indícios de que o background familiar no Brasil produz efeitos substanciais sobre os rendimentos do trabalho individual. Utilizando dados da Pnad de 1982, os autores mostraram que trabalhadores cujos pais tinham ensino superior apresentavam um salário 20% maior do que trabalhadores com pais analfabetos e 9% maior do que trabalhadores cujos pais haviam completado o ensino básico (equivalente a quatro anos de escolaridade), quando controlada a escolaridade do próprio trabalhador. Além disso, a inclusão de variáveis relativas ao background familiar na equação de rendimentos reduzia as estimativas dos retornos da escolaridade de um quarto para um terço.
Reis e Ramos (2011) utilizaram o suplemento da Pnad de 1996 com informações dos pais dos indivíduos para realizar uma análise sobre a relação entre a estrutura educacional da família e a distribuição dos rendimentos do trabalho no Brasil. Por meio de simulações contrafatuais, os autores constataram que, se todos os trabalhadores tivessem sua escolaridade remunerada da mesma maneira que aqueles com mães mais escolarizadas - isto é, que completaram pelo menos oito anos de estudo -, os rendimentos aumentariam, em média, em cerca de 6% e a desigualdade na distribuição da renda do trabalho diminuiria - o L de Theil, por exemplo, passaria de 0,554 para 0,520. Por outro lado, caso não houvesse diferenças na distribuição educacional dos trabalhadores, com todos apresentando a mesma distribuição educacional dos trabalhadores cujas mães completaram os níveis mais altos de educação, os rendimentos do trabalho aumentariam, em média, quase 70% em relação à distribuição original e o T de Theil passaria de 0,574 para 0,460.
DESIGUALDADE DE OPORTUNIDADES E DIFERENCIAIS SALARIAIS POR RAÇA
Ainda que a expansão educacional observada nas últimas décadas tenha afetado tanto brancos como negros, políticas de ação afirmativa implementadas a partir dos anos 2000 contribuíram para a redução das disparidades raciais na educação. Artes e Ricoldi (2015) compararam a participação dos negros no ensino superior brasileiro antes e após o incremento das políticas de ação afirmativa, por meio da análise dos microdados dos Censos Demográficos de 2000 e 2010. As autoras constataram um significativo crescimento nas taxas de acesso à graduação, com grande diferencial por raça: o percentual de negros que frequentavam cursos de graduação saltou 290,7% entre 2000 e 2010, ao passo que o de brancos aumentou 73,7% no mesmo período. Com efeito, se em 2000 a relação era de quatro brancos para um negro na graduação, essa taxa diminuiu para dois brancos para cada negro em 2010.
A progressiva redução das disparidades raciais no acesso à educação, contudo, não significa que se esteja caminhando para a eliminação da desigualdade salarial entre brancos e negros no mercado de trabalho. Isso porque os negros auferem rendimentos inferiores aos dos trabalhadores brancos mesmo quando detêm grau de escolaridade, igual ao deles e ainda que se controlem outras características observáveis individuais - como a experiência profissional, o setor de atuação, a ocupação e a região de residência. Evidências nesse sentido foram encontradas por Augusto, Roselino e Ferro (2015), Campante, Crespo e Leite (2004), Zucchi e Hoffmann (2004), Soares (2000), Cavalieri e Fernandes (1998), entre outros.
As causas do hiato salarial entre brancos e negros transcendem a chamada discriminação puramente salarial - que ocasiona o pagamento de salários diferentes a indivíduos igualmente qualificados e que desempenham as mesmas funções. Conforme apontam Gonzalez e Hansebalg (1982, p. 98), os negros enfrentam “uma desvantagem competitiva em todas as etapas do processo de mobilidade social individual”. Quando avançam no sistema educacional, eles têm maiores dificuldades de converter os mesmos níveis educacionais em rendimentos, pois se veem em desvantagem em relação ao branco no que se refere ao acesso à educação de qualidade. Outra desvantagem se daria com relação ao capital social, representado pela rede de contatos que permite a conversão de credenciais educacionais em renda.
De acordo com o modelo desenvolvido por Montgomery (1991), a rede de relações sociais das famílias, formada por conhecidos, amigos e parentes, desempenharia um papel importante na obtenção de emprego, em razão da assimetria de informação existente no mercado de trabalho, que impossibilita ao empregador identificar corretamente a produtividade de cada trabalhador. Em vista disso, as firmas recorreriam a métodos informais de seleção de mão de obra, como a recomendação de candidatos por parte de seus empregados mais habilidosos - os quais, por seu turno, tenderiam a indicar colegas com características similares às suas. Dessa forma, o capital humano não seria o único determinante do acesso ao emprego, com o capital relacional dos trabalhadores exercendo, também, um papel importante. Indivíduos “bem relacionados”, isto é, com contatos em cargos de maior colocação hierárquica, tenderiam a conseguir empregos com salários mais altos, enquanto o oposto ocorreria para aqueles sem boas conexões.
Segundo Rocha (2015), as vantagens de um capital social influente normalmente estão associadas à condição de homem branco, mediando, assim, parte da desigualdade racial no mercado de trabalho. Os negros, por serem, em média, oriundos de famílias com poucos recursos econômicos e sociais, teriam um déficit de capital social, o que reduziria suas oportunidades profissionais, particularmente a possibilidade de ascender a trabalhos mais bem remunerados. Em última instância, portanto, o background familiar, por meio de sua influência sobre os vínculos sociais firmados ao longo da vida, seria um determinante adicional dos rendimentos dos indivíduos no mercado de trabalho.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A metodologia adotada neste trabalho para a estimação dos retornos da escolaridade baseia-se em uma versão estendida da equação de rendimentos minceriana. Em sua formulação original, o modelo de Mincer (1974) representava o logaritmo natural dos salários (W) como uma função linear dos anos de escolaridade do trabalhador (S), acrescida de um termo quadrático referente à sua experiência no mercado de trabalho (E):
em que β ,δ e γ são os coeficientes de regressão, α é o intercepto do modelo e µ um componente de erro aleatório.
Essa especificação tinha como base teórica a chamada teoria do capital humano, segundo a qual os investimentos em capital humano que visam a aumentar a produtividade do trabalhador e, consequentemente, seus rendimentos, são verificados preferencialmente nos indivíduos mais jovens, embora continuem a ocorrer ao longo de praticamente toda a vida laboral (BECKER, 1964). Seus retornos, porém, são decrescentes, tornando-se menores à medida que são realizados por indivíduos mais experientes.
De um ponto de vista estatístico, essa especificação trazia, contudo, três problemas potenciais: o viés dos coeficientes de regressão, ocasionado pela omissão de variáveis relevantes para a determinação dos rendimentos do trabalho; a não linearidade da relação entre salários e escolaridade; e a endogeneidade da variável escolaridade, pois esse fator estaria associado a características não observadas do trabalhador.
O primeiro problema passou a ser contornado pela adoção de controles para fatores que conhecidamente afetam o rendimento do trabalho dos indivíduos, como as características do posto de trabalho e as diferenças regionais e setoriais de produtividade. Assim, ao longo dos anos e em consonância com as particularidades do mercado de trabalho em estudo, a equação minceriana foi estendida, passando a incorporar uma vasta gama de covariáveis que visam, se não a eliminar, a reduzir substancialmente o viés de variáveis omitidas.
A não linearidade entre o logaritmo dos salários e a educação foi constatada ao se observar que o efeito de um ano adicional de estudo sobre os rendimentos do trabalho é mais acentuado quando coincide com a conclusão de um ciclo escolar. Conhecido como “efeito diploma”,3 esse fenômeno foi verificado empiricamente para o Brasil por autores como Ramos e Vieira (1996) e Crespo e Reis (2009). Em vista disso, consagrou-se na literatura o tratamento não linear da relação entre salários e educação, por meio da utilização de variáveis binárias para captar o efeito da escolaridade, em lugar de tratá-la como uma variável cardinal.
Por fim, a endogeneidade da variável escolaridade resultaria da existência de fatores não observáveis - ou de difícil mensuração - positivamente correlacionados com a escolaridade do trabalhador. Em particular, indivíduos provenientes de classes sociais mais altas tenderiam tanto a alcançar níveis mais elevados de escolaridade como a auferir maiores rendimentos do trabalho, o que poderia resultar na obtenção de estimativas tendenciosas da taxa de retorno da educação. Neste trabalho, a abordagem adotada para atenuar o problema da endogeneidade na variável escolaridade baseia-se em Lam e Schoeni (1993), que incluem a escolaridade dos pais como controle para o background familiar. Segundo esses autores, o background familiar atuaria como uma proxy de variáveis não observáveis que afetam os rendimentos do trabalho individual.
BASE DE DADOS E VARIÁVEIS SELECIONADAS
Para a realização deste trabalho foi utilizada a Pnad, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) até 2015 e descontinuada após esse ano. A Pnad investigava, com periodicidade permanente, características gerais da população e informações relativas a migração, educação, trabalho, rendimento, fecundidade e habitação. Além disso, essa pesquisa conduzia, com periodicidade variável, perguntas suplementares sobre saúde, segurança alimentar, acesso à internet, entre outros temas que eram incluídos de acordo com a necessidade de informação.
As edições de 1996 e 2014 da Pnad contaram, em caráter excepcional, com um suplemento aplicado a uma parcela da amostra original da pesquisa, destinado a captar informações relativas à mobilidade sócio-ocupacional dos entrevistados. Tal suplemento foi aplicado, no caso de 1996, a indivíduos com 15 anos ou mais de idade cuja condição no domicílio era pessoa de referência ou cônjuge e, na edição de 2014, a moradores de 16 anos ou mais de idade selecionados aleatoriamente.
Assim, o universo de análise considerado neste trabalho compreende os indivíduos do sexo masculino que foram alvo dos suplementos de mobilidade da Pnad e que, adicionalmente, possuíam 16 anos ou mais de idade, eram economicamente ativos e se encontravam ocupados na semana de referência da pesquisa, auferindo rendimentos do trabalho positivos. O recorte etário adotado leva em consideração o fato de que a idade mínima para o ingresso no mercado de trabalho brasileiro é de 16 anos - conforme o art. 403 da Lei n. 10.097 (BRASIL, 2000). A eliminação das mulheres da amostra, a exemplo de Lam e Schoeni (1993), foi julgada necessária em virtude das diferenças quanto aos determinantes da participação feminina e masculina no mercado de trabalho. Adicionalmente, a literatura aponta que os retornos da escolaridade, bem como os efeitos do background familiar nos rendimentos do trabalho, variam a depender do sexo do indivíduo. Tendo em vista que o enfoque deste trabalho é nos diferenciais raciais, e não nas questões de gênero, buscou-se evitar entrecruzamentos desse tipo na análise.
A variável dependente do modelo foi obtida pela divisão do rendimento mensal do trabalho principal pelo número de horas trabalhadas, a qual foi obtida multiplicando-se por 4 a jornada semanal declarada nesse trabalho. O valor resultante, correspondente ao rendimento por hora, foi considerado na escala logarítmica.
As variáveis explanatórias, listadas no Quadro 1, a seguir, apoiam-se na literatura empírica nacional e internacional sobre estrutura salarial e buscam explicar a variabilidade nos rendimentos ocasionada: pela heterogeneidade dos trabalhadores com relação a suas características produtivas (nível educacional e experiência profissional) e demográficas (cor); pelas segmentações setoriais e regionais no mercado de trabalho; e pelas diferentes características dos postos de trabalho.
Cumpre destacar que, a partir de 2002, a Pnad passou a adotar a Classificação Brasileira de Ocupações-Domiciliar (CBO-Domiciliar), que é uma adaptação da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) para pesquisas domiciliares. A natureza das diferenças entre a CBO-Domiciliar e a classificação de ocupações utilizada até 2001 impossibilita recompor, sequer ao nível mais agregado, os grupamentos de ocupações construídos para a divulgação da Pnad a partir de 2002. Assim, a fim garantir a comparabilidade entre os resultados obtidos com a Pnad 1996 e a 2014, não foram adotados controles para grupamento ocupacional nas equações de rendimento que são objeto de análise neste trabalho. Cumpre notar que a omissão desse controle também é observada em Lam e Schoeni (1993) e Reis e Ramos (2011), que trabalharam, respectivamente, com dados da Pnad 1982 e 1996.
Entre as características de mobilidade investigadas pela Pnad, encontrava-se, na edição de 1996, o nível de instrução do pai e da mãe. Em 2014 essa pergunta foi refinada de modo a reportar-se não necessariamente aos progenitores, mas ao homem e à mulher responsáveis, de fato, pela criação do entrevistado e que com ele coabitavam quando ele tinha 15 anos de idade. Assim, com base nessas informações, criaram-se duas variáveis binárias destinadas a captar se o pai (no caso da Pnad de 1996), ou o homem responsável pela criação e que coabitava com o entrevistado (para a Pnad de 2014), concluiu o ensino médio e se ele possuía instrução superior completa. Variáveis equivalentes foram construídas para captar o grau de escolaridade da mãe ou da mulher responsável pela criação. Essas variáveis, descritas no Quadro 1, foram adotadas como proxies do background familiar. Estimaram-se especificações alternativas da equação de rendimento, incorporando-se ora a escolaridade do pai, ora a da mãe, ou ambas como proxies do background familiar.
Atributo aferido | Variáveis utilizadas | Nomes das variáveis |
---|---|---|
Escolaridade | Três variáveis binárias destinadas a distinguir os indivíduos sem instrução ou com ensino fundamental incompleto (tomados como base), aqueles com ensino fundamental completo, os com ensino médio completo e os com diploma de nível superior. | fundamental, medio e superior |
Escolaridade do pai | Três variáveis binárias para identificar o nível de instrução do pai (ou do homem responsável pela criação): sem instrução ou com ensino fundamental incompleto (categoria de base), ensino fundamental completo, ensino médio completo e ensino superior completo. | pai_funda pai_medio pai_super |
Escolaridade da mãe | Três variáveis binárias para identificar o nível de instrução da mãe (ou da mulher responsável pela criação): sem instrução ou com ensino fundamental incompleto (categoria de base), ensino fundamental completo, ensino médio completo e ensino superior completo. | mae_funda mae_medio mae_super |
Experiência profissional | A idade declarada pela pessoa, adotada como proxy de sua experiência no mercado de trabalho e medida em dezenas de anos para evitar que os coeficientes estimados sejam muito pequenos. | idade |
O quadrado da idade da pessoa medida em dezenas de anos, pois a influência da idade sobre o logaritmo do rendimento não é linear, sendo que, a partir de certa idade, tende a ocorrer queda da produtividade do trabalho. | idade2 | |
Cor | Uma variável binária para distinguir indivíduos negros (pretos ou pardos) de não negros (brancos ou amarelos, tomados como base). Os autodeclarados indígenas foram excluídos da amostra, por serem pouco representativos. | negro |
Condição na família | Uma variável binária para diferenciar a condição do indivíduo na família, que assume valor 1 para a pessoa de referência e valor 0 para cônjuge, filhos e outros. | chefe |
Região | Quatro variáveis binárias para distinguir cinco regiões: Norte, Nordeste (base), Sul, Sudeste e Centro-Oeste. | norte, sudeste, sul e centrooeste |
Localização do domicílio | Duas variáveis binárias para caracterizar a localização do domicílio: domicílio situado em região metropolitana, domicílio situado em área urbana não metropolitana (categoria tomada como base) e domicílio situado em área rural não metropolitana. | metrop rural |
Ramo de atividade econômica | Duas variáveis binárias para distinguir três grupamentos de atividade principal do empreendimento do trabalho principal: agrícola, indústria e serviços (base). | agricola industria |
Posição na ocupação | Três variáveis binárias para distinguir quatro possíveis posições na ocupação no trabalho principal na semana de referência da pesquisa: empregado sem carteira de trabalho assinada (inclusive trabalhador doméstico); trabalhador por conta própria ou na produção para o próprio consumo ou na construção para o próprio uso; empregador; empregado com carteira de trabalho assinada (inclusive trabalhador doméstico), funcionário público estatutário ou militar, adotados como base. | semcarteira contaprop empregador |
Sindicalização | Uma variável binária destinada a identificar se o indivíduo está associado a algum sindicato. | sind |
Fonte: Elaboração da autora.
Por fim, cumpre notar que, a partir de 2004, a Pnad passou a abranger todo o país, pois até então não eram coletadas informações das áreas rurais de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Assim, visando à comparabilidade com o ano de 1996, as informações referentes a 2014 foram filtradas de modo a representar a cobertura geográfica da pesquisa existente até 2003. Adicionalmente, foram eliminados da amostra os indivíduos para os quais faltava alguma informação relevante para a análise. Após a aplicação desses filtros, obteve-se uma amostra de 38.700 indivíduos para o ano de 1996 e de 9.960 indivíduos em 2014, os quais, expandidos segundo os pesos fornecidos pela pesquisa,4 correspondem a, respectivamente, 18.700.556 e 27.408.034 pessoas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Na Tabela 1 são apresentados os resultados das regressões para o logaritmo do rendimento por hora trabalhada. Todos os modelos foram estimados pelo método de mínimos quadrados e incluem controles para experiência profissional, condição na família, região, localização do domicílio, ramo de atividade econômica, posição na ocupação e condição quanto à sindicalização, conforme descrito anteriormente no Quadro 1. Os coeficientes que são comentados ao longo da seção se encontram em destaque.
As regressões (1) a (5) referem-se ao ano de 2014. O modelo (1) inclui, além dos mencionados controles, variáveis binárias para a escolaridade do trabalhador e para indicar se ele é negro. Em consonância com os achados da literatura, os coeficientes estimados indicam a existência de um prêmio salarial associado à conclusão dos ciclos escolares, que é tanto maior quanto mais alto o grau de escolaridade alcançado. Além disso, observa-se, tudo o mais constante, um retorno inferior para o negro da ordem de [exp (−0,1122) −1]·100 = 10,61%.
Modelo | (1) | (2) | (3) | (4) | (5) |
---|---|---|---|---|---|
fundamental | 0,2137*** | 0,1819*** | 0,1710*** | 0,1735*** | 0,1685*** |
(0,0235) | (0,0341) | (0,0341) | (0,0342) | (0,0342) | |
medio | 0,4004*** | 0,4109*** | 0,3629*** | 0,3621*** | 0,3492*** |
(0,0207) | (0,0308) | (0,0311) | (0,0312) | (0,0312) | |
superior | 1,2247*** | 1,2894*** | 1,1557*** | 1,1801*** | 1,1320*** |
(0,0327) | (0,0413) | (0,0428) | (0,0418) | (0,0427) | |
negro | -0,1122*** | -0,0921*** | -0,0873*** | -0,0826*** | -0,0833*** |
(0,0172) | (0,0313) | (0,0315) | (0,0313) | (0,0314) | |
fundamental·negro | 0,0646 | 0,0727 | 0,0663 | 0,0715 | |
(0,0444) | (0,0444) | (0,0443) | (0,0443) | ||
medio·negro | -0,0162 | 0,0034 | -0,0010 | 0,0060 | |
(0,0397) | (0,0399) | (0,0398) | (0,0398) | ||
superior·negro | -0,2134*** | -0,1748*** | -0,1997*** | -0,1777*** | |
(0,0598) | (0,0577) | (0,0580) | (0,0574) | ||
pai_funda | 0,1288*** | 0,0887*** | |||
(0,0294) | (0,0308) | ||||
pai_medio | 0,2013*** | 0,1258*** | |||
(0,0257) | (0,0286) | ||||
pai_super | 0,3606*** | 0,2695*** | |||
(0,0404) | (0,0457) | ||||
mae_funda | 0,1301*** | 0,0826*** | |||
(0,0235) | (0,0249) | ||||
mae_medio | 0,2331*** | 0,1476*** | |||
(0,0264) | (0,0292) | ||||
mae_super | 0,2711*** | 0,1321*** | |||
(0,0402) | (0,0449) | ||||
idade | 0,2656*** | 0,2688*** | 0,3169*** | 0,3260*** | 0,3350*** |
(0,0346) | (0,0344) | (0,0344) | (0,0346) | (0,0344) | |
idade2 | -0,0204*** | -0,0207*** | -0,0249*** | -0,0254*** | -0,0263*** |
(0,0042) | (0,0041) | (0,0041) | (0,0041) | (0,0041) | |
chefe | 0,1528*** | 0,1536*** | 0,1585*** | 0,1610*** | 0,1614*** |
(0,0172) | (0,0172) | (0,0170) | (0,0171) | (0,0170) | |
norte | 0,2159*** | 0,2165*** | 0,2156*** | 0,2068*** | 0,2100*** |
(0,0322) | (0,0322) | (0,0322) | (0,0320) | (0,0321) | |
sudeste | 0,3091*** | 0,3079*** | 0,3059*** | 0,3082*** | 0,3063*** |
(0,0214) | (0,0213) | (0,0211) | (0,0211) | (0,0210) | |
sul | 0,3396*** | 0,3401*** | 0,3456*** | 0,3498*** | 0,3495*** |
(0,0240) | (0,0239) | (0,0237) | (0,0236) | (0,0236) | |
centrooeste | 0,4462*** | 0,4462*** | 0,4375*** | 0,4400*** | 0,4361*** |
(0,0297) | (0,0298) | (0,0301) | (0,0296) | (0,0300) | |
metrop | 0,1295*** | 0,1291*** | 0,1062*** | 0,1151*** | 0,1046*** |
(0,0185) | (0,0184) | (0,0180) | (0,0179) | (0,0179) | |
rural | -0,1610*** | -0,1591*** | -0,1433*** | -0,1432*** | -0,1392*** |
(0,0344) | (0,0343) | (0,0342) | (0,0344) | (0,0343) | |
agricola | -0,2941*** | -0,2967*** | -0,2880*** | -0,2849*** | -0,2838*** |
(0,0381) | (0,0381) | (0,0377) | (0,0379) | (0,0377) | |
industria | 0,0527*** | 0,0511*** | 0,0633*** | 0,0673*** | 0,0688*** |
(0,0183) | (0,0183) | (0,0181) | (0,0183) | (0,0181) | |
semcarteira | -0,0991*** | -0,0983*** | -0,0977*** | -0,0983*** | -0,0979*** |
(0,0229) | (0,0230) | (0,0229) | (0,0229) | (0,0229) | |
contaprop | -0,0320 | -0,0316 | -0,0344 | -0,0396* | -0,0382 |
(0,0236) | (0,0234) | (0,0233) | (0,0233) | (0,0233) | |
empregador | 0,4944*** | 0,4940*** | 0,4748*** | 0,4776*** | 0,4702*** |
(0,0458) | (0,0457) | (0,0447) | (0,0444) | (0,0442) | |
sind | 0,0732*** | 0,0743*** | 0,0726*** | 0,0726*** | 0,0719*** |
(0,0208) | (0,0207) | (0,0205) | (0,0205) | (0,0205) | |
constante | 0,8285*** | 0,8101*** | 0,6670*** | 0,6278*** | 0,6062*** |
(0,0716) | (0,0728) | (0,0731) | (0,0736) | (0,0734) | |
Observações | 9.960 | 9.960 | 9.960 | 9.960 | 9.960 |
R2 | 0,4294 | 0,4312 | 0,4411 | 0,4398 | 0,4433 |
Teste F - (2) | 6,78*** | ||||
Teste F - (3) | 40,89*** | ||||
Teste F - (4) | 37,87*** | ||||
Teste F - (5) | 25,81*** |
Fonte: Elaboração da autora com base nos microdados da Pnad 2014.
Notas: (i) os erros-padrão robustos são apresentados entre parênteses; (ii) ***, ** e * denotam os coeficientes estatisticamente significativos a 1%, 5% e 10%, respectivamente; (iii) além dos pesos amostrais (v32039), incorporou-se às estimações a estrutura do plano amostral da Pnad, por meio das variáveis v4617 e v4618; (iv) Teste F - (2): os coeficientes associados às interações fundamental·negro, medio·negro e superior·negro são simultaneamente nulos; Teste F - (3): os coeficientes associados a pai_funda, pai_medio e pai_super são simultaneamente nulos; Teste F - (4): os coeficientes associados a mae_funda, mae_medio e mae_super são simultaneamente nulos; Teste F - (5): os coeficientes associados a pai_funda, pai_medio, pai_super, mae_funda, mae_medio e mae_super são simultaneamente nulos.
No modelo (2) considera-se que a influência da cor sobre os rendimentos no mercado de trabalho pode se dar tanto por diferenças de nível - isto é, em razão da existência de um diferencial constante de salários entre brancos e negros - quanto por diferenças nos retornos da educação para esses dois grupos. O primeiro efeito é captado pela variável negro, enquanto o segundo é representado por interações entre essa variável e as binárias para a escolaridade do trabalhador. Cumpre observar que, ao nível de significância de 1%, é possível refutar a hipótese de nulidade conjunta das interações. Esse resultado indica que, de fato, o efeito da escolaridade sobre os rendimentos do trabalho é distinto para brancos e negros. Não obstante, ao se analisar a significância estatística individual de cada uma das interações, verifica-se que apenas o retorno relacionado ao nível superior de ensino difere entre as duas categorias de cor. Assim, ainda que os negros aufiram menores rendimentos que os brancos para todos os níveis de ensino - efeito que é captado pela variável binária negro -, esse hiato se amplia quando se consideram os trabalhadores mais qualificados: a conclusão do ensino superior, tudo o mais constante, incrementa os rendimentos do negro em exp(1,2894 - 0,2134) - 1] · 100 = 193,29% e a do não negro em [exp(1,2894) - 1] · 100 = 263,06%, relativamente aos indivíduos sem instrução ou com ensino fundamental incompleto. Observa-se, ainda, que ao se incorporarem ao modelo interações entre o retorno da educação e a cor do indivíduo, o coeficiente associado a negro é reduzido em relação ao resultado da coluna (1), passando o efeito de 10,61% para 8,80%. Isso mostra que parte do efeito que se atribuía à diferença de nível entre os rendimentos de negros e não negros deve-se, na realidade, ao fato de a escolaridade superior do negro ser remunerada diferentemente da do não negro.
Entre as razões pelas quais o negro aufere, tudo o mais constante, menores rendimentos do trabalho e menores retornos relacionados ao nível superior de ensino, podem-se apontar, além da discriminação salarial propriamente dita, diferenças na qualidade da educação recebida, bem como em seu alcance profissional. Em particular, conforme apontado na revisão de literatura, os negros no Brasil teriam maiores dificuldades em ascender aos cargos mais prestigiados do mercado de trabalho, em razão de um déficit de capital social. Como consequência, teriam maiores dificuldades em converter sua escolarização em rendimentos. A fim de captar esses efeitos, nas colunas (3), (4) e (5) o modelo passa a incorporar controles para o background familiar, valendo-se, para tanto, da escolaridade do pai, da mãe ou de ambas. Tais controles atuam como proxies da origem socioeconômica do trabalhador, que influenciaria tanto a qualidade da educação recebida como as oportunidades de realização econômica.
Na coluna (3) são acrescentadas variáveis binárias que captam os distintos níveis de escolaridade do pai. O teste F para a hipótese de nulidade conjunta dos coeficientes associados a esse novo bloco de variáveis é estatisticamente significativo ao nível de 1%, mostrando a pertinência de se incorporá-lo ao modelo. Além disso, também no nível individual os coeficientes são significativos. Observa-se que o nível educacional do pai afeta positivamente os rendimentos dos indivíduos, sendo que tal efeito torna-se tão maior quanto mais elevado for o ciclo escolar considerado: indivíduos cujo pai concluiu o ensino fundamental recebem, em média, rendimentos [exp(0,1288) −1]·100 = 13,75% maiores do que os trabalhadores cujos pais sequer terminaram esse ciclo escolar, admitidos constantes a escolaridade do próprio trabalhador, sua cor e os demais controles do modelo. Já para os indivíduos cujos pais terminaram o ensino médio, o diferencial de rendimentos em relação ao grupo com pais sem o ensino fundamental é de [exp(0,2013) −1]·100 = 22,30%. Por fim, pertencer a uma família em que o progenitor concluiu o ensino superior eleva os rendimentos do trabalho, em média, em [exp(0,3606) − 1]·100 = 43,42%, tudo o mais constante.
Na coluna (4) considera-se como proxy do background familiar a escolaridade da mãe, em lugar da do pai. Verifica-se que o efeito da escolaridade da mãe sobre os rendimentos é maior do que o apresentado pela escolaridade do pai, em se tratando dos ensinos fundamental e médio. Por outro lado, o efeito do diploma de nível superior sobre os rendimentos do filho é maior quando detido pelo pai, em vez da mãe.
Na literatura, muitos estudos buscaram explicar as diferenças no efeito das escolaridades materna e paterna no desempenho escolar das crianças - o qual, por seu turno, influenciará seu desempenho futuro no mercado de trabalho. A escolaridade da mãe teria preponderantemente um efeito direto sobre o alcance e a qualidade educacional dos indivíduos, derivado da presença, auxílio e supervisão da escolarização. Por outro lado, a escolaridade do pai teria maior efeito indireto, por meio de sua influência sobre o nível socioeconômico da família e, por conseguinte, sobre a decisão quanto à formação educacional dos filhos. Em particular, um pai com diploma de nível superior teria maiores chances de deter os meios para liberar os filhos do mercado de trabalho e prover-lhes o acesso à educação. Tais diferenças de efeitos encontram explicação na divisão sexual do trabalho, que atribui à mulher a maior parte das responsabilidades no cuidado diário dos filhos, e ao homem o papel de provedor da família.
Por fim, na coluna (5), são adotadas como proxies do background familiar tanto a escolaridade do pai como a da mãe. O teste F para a hipótese de nulidade conjunta de todos os coeficientes associados às binárias para a escolaridade tanto do pai como da mãe mostrou-se estatisticamente significativo a 1%. Do ponto de vista individual, ademais, é possível refutar a hipótese de nulidade de cada um desses coeficientes. Por fim, ao se compararem os valores obtidos para o coeficiente de determinação (R2) dos modelos, constata-se que essa especificação é aquela com maior poder explicativo. Em vista disso, tal modelo será adotado como referência, para fins de comparação com o ano de 1996, na próxima seção. Ao se contrastarem os resultados dessa especificação com a da coluna (1), verifica-se que a adoção de controles para o background familiar reduziu os prêmios salariais associados ao término dos ciclos escolares. Assim, depreende-se que parte desse prêmio se devia, na realidade, ao efeito mediador dos recursos familiares sobre a qualidade da educação recebida pelos filhos e também sobre suas oportunidades no mercado de trabalho.
O Gráfico 1, a seguir, resume as diferenças no prêmio associado à conclusão do ensino universitário, ao se compararem os modelos (2), (3), (4) e (5). O retorno relacionado ao diploma superior para o negro é de 193,3%, quando não se consideram controles para o background familiar - de acordo com a especificação (2) -, e de 159,7%, quando tanto a escolaridade do pai como a da mãe são controladas - segundo a regressão (5). Já em se tratando dos não negros, esses efeitos são bastante superiores, da ordem de 263,1% e de 210,2%, respectivamente.
Além de poder contribuir diretamente para o ganho individual, o background familiar também pode interferir no desempenho no mercado de trabalho por meio de sua inter-relação com o nível de escolaridade do próprio trabalhador. Em outras palavras, o retorno da educação do trabalhador pode variar a depender do nível educacional de seus pais. Assim, a fim de contemplar esse efeito, estimaram-se equações de rendimento que incorporam interações entre as variáveis binárias para a escolaridade do pai e a escolaridade do próprio trabalhador, a qual, por simplicidade, foi tratada de modo cardinal nessa variante do modelo, oscilando de 0 (no caso de pessoa sem instrução ou com menos de 1 ano de estudo) a 14 (no caso de pessoa com 14 anos de estudo) e assumindo o valor 17 para aqueles com 15 anos ou mais de estudo. Além disso, tendo em vista as evidências da Tabela 1 de que o retorno da escolaridade é diferente para brancos e negros, nessa especificação o modelo foi estimado em separado para esses dois grupos. Os resultados encontram-se reportados na Tabela 2. O Gráfico 2, a seguir, foi construído com base nos resultados dessas estimações e apresenta o comportamento do rendimento por hora em função dos anos de estudo do trabalhador, adotando-se a categoria de base das variáveis binárias e admitindo um indivíduo com idade igual à média da amostra. Conforme se vê, independentemente da cor do indivíduo, seus rendimentos, para um mesmo nível de escolaridade, são maiores caso seu pai detenha o ensino médio, em lugar do fundamental incompleto. Essa diferença, ademais, amplia-se à medida que aumenta a escolaridade do trabalhador. Ainda que o mesmo comportamento seja observado para os negros, seus rendimentos situam-se sistematicamente abaixo daqueles auferidos pelos não negros em situação análoga quanto à própria escolaridade e à de seu pai.
Fonte: Elaboração da autora com base nos microdados da Pnad 2014.
Nota: (i) admite-se um trabalhador que não é a pessoa de referência de sua família, reside em área urbana não metropolitana do Nordeste, encontra-se ocupado no setor de serviços, possui vínculo formal de trabalho e não é sindicalizado; (ii) a idade média dos negros é de 37,76 anos e a de não negros é de 39,58 anos; (iii) os modelos foram estimados em separado para negros e não negros.
Modelo | Não negros | Negros | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Coeficiente | Erro padrão robusto | Coeficiente | Erro padrão robusto | |||
educ | 0,0776 | *** | 0,0042 | 0,0528 | *** | 0,0033 |
pai_funda | -0,1091 | 0,1256 | -0,0784 | 0,1162 | ||
pai_medio | -0,2522 | ** | 0,1234 | -0,4220 | *** | 0,1407 |
pai_super | -0,7753 | *** | 0,2102 | -0,0162 | 0,4940 | |
educ_pai_funda | 0,0201 | * | 0,0108 | 0,0231 | ** | 0,0100 |
educ_pai_medio | 0,0381 | *** | 0,0097 | 0,0556 | *** | 0,0112 |
educ_pai_super | 0,0839 | *** | 0,0146 | 0,0319 | 0,0331 | |
idade | 0,3307 | *** | 0,0500 | 0,3919 | *** | 0,0441 |
idade2 | -0,0203 | *** | 0,0059 | -0,0343 | *** | 0,0053 |
chefe | 0,1704 | *** | 0,0242 | 0,1363 | *** | 0,0236 |
norte | 0,3458 | *** | 0,0767 | 0,1521 | *** | 0,0355 |
sudeste | 0,2989 | *** | 0,0374 | 0,2719 | *** | 0,0253 |
sul | 0,3191 | *** | 0,0380 | 0,3523 | *** | 0,0319 |
centrooeste | 0,4055 | *** | 0,0498 | 0,4304 | *** | 0,0360 |
metrop | 0,1143 | *** | 0,0262 | 0,0785 | *** | 0,0223 |
rural | -0,1520 | *** | 0,0511 | -0,1081 | ** | 0,0455 |
agricola | -0,2129 | *** | 0,0638 | -0,2943 | *** | 0,0469 |
industria | 0,0609 | ** | 0,0272 | 0,0514 | ** | 0,0223 |
semcarteira | -0,1107 | *** | 0,0367 | -0,0923 | *** | 0,0285 |
contaprop | -0,0113 | 0,0334 | -0,0626 | ** | 0,0306 | |
empregador | 0,4596 | *** | 0,0544 | 0,4846 | *** | 0,0739 |
sind | 0,0901 | *** | 0,0310 | 0,0714 | *** | 0,0260 |
constante | 0,1076 | 0,1117 | 0,3054 | *** | 0,0949 | |
Observações | 4.876 | 5.084 | ||||
R2 | 0,4385 | 0,3740 |
Fonte: Elaboração da autora com base nos microdados da Pnad 2014.
Notas: ***, ** e * denotam os coeficientes estatisticamente significativos a 1%, 5% e 10%, respectivamente.
COMPARAÇÃO ENTRE 1996 E 2014
A fim de se compararem os resultados das estimações obtidas com as amostras das edições de 1996 e 2014 da Pnad, considerou-se a especificação (5) apresentada na Tabela 1, que incorpora tanto a escolaridade do pai como a da mãe como proxies do background familiar. Os resultados são apresentados na Tabela 3, a seguir.
Modelo | 1996 | 2014 | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Coeficiente | Erro padrão robusto | Coeficiente | Erro padrão robusto | |||
fundamental | 0,3694 | *** | 0,0214 | 0,1685 | *** | 0,0342 |
medio | 0,6614 | *** | 0,0161 | 0,3492 | *** | 0,0312 |
superior | 1,2953 | *** | 0,0221 | 1,1320 | *** | 0,0427 |
negro | -0,2188 | *** | 0,0104 | -0,0833 | *** | 0,0314 |
fundamental·negro | 0,0077 | 0,0362 | 0,0715 | 0,0443 | ||
medio·negro | 0,0390 | 0,0264 | 0,0060 | 0,0398 | ||
superior·negro | 0,0937 | ** | 0,0474 | -0,1777 | *** | 0,0574 |
pai_funda | 0,1145 | *** | 0,0258 | 0,0887 | *** | 0,0308 |
pai_medio | 0,1565 | *** | 0,0275 | 0,1258 | *** | 0,0286 |
pai_super | 0,2079 | *** | 0,0369 | 0,2695 | *** | 0,0457 |
mae_funda | 0,1226 | *** | 0,0258 | 0,0826 | *** | 0,0249 |
mae_medio | 0,1631 | *** | 0,0284 | 0,1476 | *** | 0,0292 |
mae_super | 0,1127 | ** | 0,0501 | 0,1321 | *** | 0,0449 |
idade | 0,3705 | *** | 0,0220 | 0,3350 | *** | 0,0344 |
idade2 | -0,0389 | *** | 0,0026 | -0,0263 | *** | 0,0041 |
chefe | 0,0982 | *** | 0,0290 | 0,1614 | *** | 0,0170 |
norte | 0,2723 | *** | 0,0197 | 0,2100 | *** | 0,0321 |
sudeste | 0,4014 | *** | 0,0114 | 0,3063 | *** | 0,0210 |
sul | 0,2860 | *** | 0,0137 | 0,3495 | *** | 0,0236 |
centrooeste | 0,3749 | *** | 0,0146 | 0,4361 | *** | 0,0300 |
metrop | 0,1512 | *** | 0,0098 | 0,1046 | *** | 0,0179 |
rural | -0,1973 | *** | 0,0144 | -0,1392 | *** | 0,0343 |
agricola | -0,4931 | *** | 0,0152 | -0,2838 | *** | 0,0377 |
industria | 0,0190 | ** | 0,0096 | 0,0688 | *** | 0,0181 |
semcarteira | -0,2116 | *** | 0,0117 | -0,0979 | *** | 0,0229 |
contaprop | 0,0212 | ** | 0,0106 | -0,0382 | 0,0233 | |
empregador | 0,6507 | *** | 0,0207 | 0,4702 | *** | 0,0442 |
sind | 0,1637 | *** | 0,0106 | 0,0719 | *** | 0,0205 |
constante | -0,5415 | *** | 0,0547 | 0,6062 | *** | 0,0734 |
Observações | 38.700 | 9.960 | ||||
R2 | 0,5222 | 0,4433 |
Fonte: Elaboração da autora com base nos microdados da Pnad 1996/2014.
Notas: ***, ** e * denotam os coeficientes estatisticamente significativos a 1%, 5% e 10%, respectivamente.
Constata-se uma importante redução do efeito de ter terminado um ciclo escolar de 1996 para 2014. O incremento no rendimento decorrente da conclusão do ensino fundamental, por exemplo, era de [exp (0,3694) −1] · 100 = 44,7% em 1996, tendo declinado para [exp (0,1685) −1] · 100 = 18,4% em 2014. Também é possível verificar uma redução do diferencial salarial por raça no período, com o hiato de rendimentos entre negros e não negros passando de [exp (−0,2188) −1] · 100 = −19,7% para [exp (−0,0833) −1] · 100 = −8,0%. É curioso observar que em 1996 o efeito de se deter o diploma de nível superior, relativamente aos indivíduos sem escolarização, era maior entre os negros que entre os não negros. Em 2014 o sentido desse efeito se inverteu, com maior diferença salarial entre indivíduos qualificados e não qualificados observada entre os brancos.
Merece destaque o fato de o background familiar ter, de maneira geral, conservado sua importância entre 1996 e 2014. Ainda que, em se tratando de pais e mães com ensinos fundamental e médio, tenha-se observado uma diminuição na magnitude dos efeitos entre 1996 e 2014, estes se mantiveram positivos e estatisticamente significativos. Por outro lado, o efeito de ser filho de pais com ensino superior sobre os rendimentos aumentou no período. Por exemplo, tudo o mais constante, ter crescido em uma família em que o pai detinha o diploma universitário elevava os rendimentos, em média, em [exp (0,2079) −1] · 100 = 23,1% em 1996, passando esse efeito a ser de [exp (0,2695) −1] · 100 = 30,9% em 2014. Esse resultado sugere que a influência da origem socioeconômica dos trabalhadores sobre seu desempenho no mercado de trabalho não se reduziu no período.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Amparado por resultados de estudos anteriores, este trabalho se debruçou sobre o efeito do background familiar sobre os rendimentos do trabalho e sobre os retornos da escolaridade no Brasil. Sua contribuição específica consistiu em analisar dados mais recentes sobre o tema - oriundos do suplemento de mobilidade sócio-ocupacional da Pnad 2014 - e investigar as diferenças por raça observadas nos retornos da escolaridade.
Os principais resultados encontrados podem ser sintetizados em três pontos: a redução do efeito diploma entre 1996 e 2014, concomitantemente à expansão do sistema educacional no país, particularmente no nível superior de ensino; a menor magnitude do retorno das credenciais universitárias para os negros, comparativamente aos brancos; a manutenção da importância do background familiar para o desempenho dos indivíduos no mercado de trabalho. Esse último resultado pode ser associado ao efeito mediador que a origem socioeconômica dos trabalhadores desempenha sobre a qualidade da educação recebida e sobre as oportunidades profissionais que lhes são oferecidas, por meio do círculo social ao qual pertencem. O fato de subsistir um pronunciado peso do background familiar para a conversão das credenciais educacionais em rendimentos contribui para a manutenção das desigualdades raciais nos rendimentos e, consequentemente, para a perpetuação da estratificação social entre brancos e negros no país.
Cumpre notar, por fim, que um sistema educacional universal, quando logra promover o acesso igualitário à educação de qualidade, é capaz de atenuar o efeito da origem socioeconômica dos estudantes sobre seu desempenho individual, reduzindo a estratificação educacional e, por conseguinte, as desigualdades futuras no mercado de trabalho.