Introdução
Nos maiores centros urbanos estadunidenses, entre os anos finais do século XIX e os seguintes, impressos circularam em espaços públicos carregando termos como imperialism, chauvinism, belicism, fanatical patriotism, jingoism, bem como seus antônimos. A historiografia estadunidense frequentemente se refere ao período como “The age of American imperialism” ou “American colonial period”, incluindo nessa “era” a invasão e posterior anexação do Havaí, em 1898, como um dos territórios dos Estados Unidos e, no mesmo ano, como resultado da vitória na guerra hispano-americana, o domínio sobre Guam, Filipinas, Cuba e Porto Rico.
Naquele ano, o presidente dos Estados Unidos era William McKinley, em cuja campanha para reeleição em 1900 foi pressionado pelas disputas entre apoiadores e antagonistas a defender posições expansionistas. Assassinado em 1901, foi substituído por Theodore Rooselvelt que acolhia prazerosamente os adjetivos de imperialista, chauvinista, jingoísta2, dentre outros.
Na memorabilia da guerra entre Espanha e Estados Unidos estão guardadas inúmeras evidências de traições perpetradas por todos os lados, porém nenhuma se sobressai às cometidas pelos Estados Unidos contra as populações locais. Começaram sob o argumento de salvarem os cubanos das atrocidades espanholas e de colaborarem na luta por um governo autônomo, livre do secular domínio hispânico. Chegaram ao Tratado de Paris, assinado em 10 de dezembro de 1898, pelo qual a Espanha renunciava a qualquer vantagem sobre Cuba e, uma vez tendo saído inteiramente da Ilha, os Estados Unidos poderiam ocupá-la, respeitando todas as obrigações estabelecidas pelo direito internacional. O Tratado previa, ainda, a cessão pela Espanha aos Estados Unidos de todas as ilhas incluídas nas chamadas Índias Ocidentais - destacadamente Porto Rico - e na Índias Orientais - Guam e Filipinas, estas mediante pagamento de 20 milhões de dólares à Espanha3. Mas foi a dominação das Filipinas que marcou “o ponto de virada da expansão territorial americana” (HARRINGTON, 1935, p. 211; HARRINGTON, 1937). Após estabeleceram o controle dos territórios, das populações e dos governos, mantidos como zonas de ingerência mesmo quando formalmente devolvidos às suas populações, os Estados Unidos foram acusados pelas gentes locais das mesmas barbáries das quais antes acusavam os espanhóis (KARNOW, 1989).
A “questão filipina”
Em entrevista concedida em 1903, o então presidente dos Estados Unidos, William McKinley, apresentou uma versão muito pessoal, íntima mesmo, daqueles acontecimentos recentes.
Eu gostaria de dizer apenas uma palavra sobre o negócio das Filipinas. Tenho sido muito criticado por causa das Filipinas, mas não mereço. A verdade é que eu não queria as Filipinas e quando elas vieram até nós, como um presente dos deuses, eu não sabia o que fazer com elas. Quando a Guerra Espanhola estourou, Dewey4 estava em Hong Kong e eu o ordenei que fosse para Manila e capturasse ou destruísse a frota espanhola, e ele teve que fazê-lo; porque, se derrotado, ele não teria lugar para se reformar daquele lado do globo, e se os Dons [Senhores] fossem vitoriosos, provavelmente cruzariam o Pacífico e devastariam nossas costas do Oregon e da Califórnia. E então ele teve que destruir a frota espanhola, e o fez! Mas isso foi tudo o que pensei então. Quando percebi novamente que as Filipinas haviam caído em nosso colo, confesso que não sabia o que fazer com elas. Procurei conselho de todos os lados - tanto de democratas quanto de republicanos - mas tive pouca ajuda. Achei que primeiro iríamos pegar apenas Manila; depois Luzon; então também outras ilhas, talvez. Caminhei pela Casa Branca noite após noite até meia-noite; e não tenho vergonha de dizer-lhes, senhores, que, mais de uma noite, me ajoelhei e orei a Deus Todo-Poderoso por luz e orientação. E em uma noite já avançada me ocorreu assim - não sei como foi, mas aconteceu: (1) Que não poderíamos devolvê-las à Espanha - isso seria covarde e desonroso; (2) que não poderíamos entregá-las à França e à Alemanha - nossos rivais comerciais no Oriente - isso seria um mau negócio e vergonhoso; (3) que não podíamos deixá-los sozinhas - eles eram incapazes para o autogoverno - e logo teriam anarquia e desgraça pior do que a da Espanha; e (4) que não havia mais nada a fazer a não ser levá-las todas e educar os filipinos; elevá-los, civilizá-los e cristianizá-los e, pela graça de Deus, fazer o melhor que pudermos por eles, como nossos companheiros, homens por quem Cristo também morreu. E, então, eu fui para a cama e adormeci; dormi profundamente, e na manhã seguinte mandei chamar o engenheiro-chefe do Departamento de Guerra (nosso cartógrafo) e disse a ele para colocar as Filipinas no mapa do Estados Unidos (apontando para um grande mapa na parede de seu escritório), e aí estão eles, e lá ficarão enquanto eu for presidente! (McKINLEY, 1903, p.64).
Uma parcela expressiva dos congressistas e dos homens de negócios recebeu com entusiasmo a apropriação das Filipinas pelos Estados Unidos, sob argumentos os mais variados, desde a cândida crença no “excepcionalismo americano” - que impediria de deixar o outro “sozinho”, mergulhado na “incapacidade de autogoverno” - até o mais descarado interesse na expansão extraterritorial para fins de exploração comercial. Dentre os nomes proeminentes a favor da colonização estava o magnata e congressista Marcus Alonzo Hanna, conhecido como Mark Hanna, cujos interesses econômicos dispensavam o invólucro metodista adotado pelo seu pupilo McKinley em matéria política. Por outro lado, não foram poucos os protestos contra a iniciativa expansionista. Homens e mulheres de variado espectro social, por em torno de dois anos, lutaram energicamente para que os Estados Unidos renunciassem aos espólios da guerra. Não obtiveram os resultados desejados, mas criaram uma tradição de luta que só se intensificou e se aprofundou com o tempo (CHATFIELD, 2020).
Boston foi um dos primeiros e mais combativos polos da luta anti-imperialista; nessa cidade surgiu, em novembro de 1898, a primeira Anti-Imperialist League, cujo nome foi modificado para New England Anti-Imperialist League para se distinguir de outras ligas que estavam surgindo país a fora; em 1904, voltou ao nome original. Segundo Winslow (1899), em maio de 1899, a [New England] Anti-Imperialist League tinha mais de trinta mil membros. Em fins daquele ano, em torno de catorze cidades já haviam constituído as suas ligas - Boston, Springfield, Massachusetts, Nova York, Filadélfia, Baltimore, Washington, Cincinnati, Cleveland, Detroit, St. Louis, Los Angeles e Portland. Em outubro, com delegados de trinta estados reunidos em uma conferência anti-imperialista, aquelas organizações locais criaram uma liga central, a American Anti-Imperialist League, com sede em Chicago, que não substituiu as investidas das agremiações espalhadas pelo país (HARRINGTON, 1935; LANZAR-CARPIO, 1930; WINSLOW, 1899).
Compunham a diversificada lista dos coligados contra o expansionismo estadunidense figuras proeminentes nas mais diferentes esferas de atuação, tais como: Jane Addams, Mark Twain, William James e Andrew Carnegie5, destacados aqui apenas como uma pequena amostra.
No quinto encontro anual da New England Anti-Imperialist League, realizada em 28 de novembro de 1903, o filósofo William James expressou os valores que uniam tão diferentes indivíduos sob a mesma bandeira:
Costumávamos acreditar que éramos de um barro diferente de outras nações, que havia algo no fundo do coração americano que respondia ao nosso nascimento feliz, livre daquele fardo hereditário que as nações da Europa carregam e que as obriga a crescer atacando seus vizinhos. Sonho vão! Pura fantasia de Quatro de Julho, dispersada em cinco minutos pela primeira tentação. Em cada alma nacional, existem potencialidades da pirataria mais descarada, e nossa própria alma americana não é exceção à regra. Impulsos angelicais e desejos predatórios dividem nosso coração exatamente como dividem o coração de outros países. É bom nos livrarmos da hipocrisia e da farsa, e saber a verdade sobre nós mesmos. A virtude política não segue divisões geográficas. Ela segue a eterna divisão dentro de cada país entre os homens mais animais e os mais intelectuais, entre as tendências conservadoras e liberais, o jingoísmo e o instinto animal que governariam as coisas por força principal e possessão bruta, e a consciência crítica que acredita em métodos educacionais e em regras racionais de direito. […] O país regurgitou de uma vez por todas a Declaração de Independência e o Discurso de Despedida6, e não engolirá imediatamente o que está tão feliz por ter vomitado. Chegou a um hiato. Ele se empurrou deliberadamente para o círculo de ódios internacionais e se juntou à matilha comum de lobos. Ele saboreia a atitude. Tiramos nossos cueiros, ele pensa, e atingimos a maioridade. Somos objeto de medo para outros países [...]. (JAMES, 1903, p.25-26).
O chamamento de James à consciência moral dos seus concidadãos confrontava mais do que “a questão filipina”, uma vez que, afinal, mesmo quando anos depois fora conferido o direito de autogoverno a algumas das novas possessões, os Estados Unidos não renunciaram ao mando seja para manter o controle econômico - como em Cuba, por exemplo - seja para sustentar, além do econômico, o controle militar e cultural, como nas Filipinas. É a tudo isso que James se refere. O governo do seu país encampara uma política expansionista e xenófoba. Havia batido a Espanha por meios militares muito desiguais e dela comprara territórios a preços módicos - como já havia feito com a França; traiu as populações locais daqueles territórios envolvidos há tempos em lutas pela independência da Espanha e em sonhos de construírem uma república. Os Estados Unidos entraram na luta para apoiá-las, mas não demoraram a traí-las. A elite intelectual da Nova Inglaterra protestava contra essa que lhe parecia ser uma nova face perversa da política praticada pelos Estados Unidos, país tão recente e promissor em matéria de democracia. Sua luta visava a preservação dos valores contidos nas doutrinas dos pais-fundadores que invocavam o veto a governos de se imporem a povos e da obrigação de os Estados Unidos não imitarem os velhos métodos de intromissão em assuntos alheios que a Europa historicamente adotara (HARRINGTON, 1935).
Os relatos das forças militares responsáveis pelo governo das Filipinas nos anos que se sucederam à guerra hispano-americana e, em seguida, dos superintendentes responsáveis pela escolarização dos filipinos e pela subordinação das práticas culturais vigentes em favor de um novo decálogo, atualizado, americanizado, da civilização ocidental e cristã, dão conta das intervenções prioritárias dos Estados Unidos nas ilhas: saúde, saneamento básico e (re)modelação dos filipinos por meio da educação.
No processo de construção acelerada de escolas e de exportação massiva de artefatos escolares, muitas indústrias estadunidenses se empenharam na fabricação de lousas, carteiras, mapas, abecedários entre outros aparatos, assim como editoras se mobilizaram na confecção de cadernos e livros destinados a crianças, jovens e adultos filipinos. Editoras como American Book Company e Silver, Burdett & Co que já estavam engajadas nesse movimento expansionista em Cuba, Porto Rico e outros territórios, não tardou a contribuir para a conquista dos corações e mentes filipinas. Das primeiras levas que enviaram para as ilhas, já constavam The Baldwin Primer e The Arnold Primer, respectivamente, destinadas ao ensino do ler e escrever.
Os pacifistas e anti-imperialistas como James não se espelhavam naquelas práticas. Porém, é cabível supor que os Estados Unidos ensaiavam à época um estilo de dominação que, mesmo sendo inaugurada e mantida pela força, operava estrategicamente pelo convencimento, pela subjugação das almas, pelo encantamento e pela gratidão; práticas de amoldamento cultural, pacificação dos espíritos como contrapartidas das benesses civilizacionais por eles ofertadas: água encanada, esgoto, erradicação de pestes, escolas e muita pregação religiosa eram argumentos utilizados com alto potencial persuasivo. Testados internamente com grande êxito, não demoraram a provar eficácia externa: a imagem de um soldado estadunidense segurando, em cada mão, “schoolbooks and krags7” é usada há mais de um século como emblema daquele imperialismo salvífico.
A hipótese aqui adotada indica que os Estados Unidos como um amálgama cultural produziu tanto o belicismo, a xenofobia, o desprezo pelo não-branco, pelo não-cristão quanto gestou o anti-escravismo, a defesa da educação, o pacifismo, a diplomacia e o direito ao autogoverno de todos os povos. Não é casual virem de William James manifestações - dentro dos limites da civilidade - sobre a crença na “superioridade da América” (JAMES, 1903).
O também pragmatista, do ramo neohegeliano, George H. Mead ofereceu argumentos àquela hipótese. Interessado no tema da identidade social e da constituição do indivíduo, Mead invocou o desejo de toda sociedade à universalidade e, para realizá-la, o desenvolvimento de mecanismos e instituições capazes de garantir a generalização e a subjetivação dos seus princípios e valores. Ou melhor, toda sociedade busca incluir o maior número possível de indivíduos para que pautem suas condutas segundo aqueles princípios, assim como procura garantir mecanismos que os levem a internalizar aqueles preceitos com o máximo de enraizamento psíquico possível.
Mead considerava, no entanto, que historicamente a universalidade entendida como generalização e subjetivação nem sempre existiu. Ele identificava, hegeliano e evolucionista que era, três formas sucessivas assumidas pelas sociedades ou agrupamentos sociais no intento de se universalizarem.
A primeira forma se daria por meio da extinção ou da eliminação física do outro (sociedade ou agrupamento social); pelo uso da força bruta. Essa seria a forma própria das sociedades tribais.
Na segunda forma descrita por Mead, as sociedades ou agrupamentos não visariam mais a eliminação, mas a subordinação pela conservação dos grupos sociais ou sociedades inteiras. O uso do princípio da subordinação do outro em substituição ao princípio da sua eliminação física seria indicativo de duas manifestações políticas importantes para a história social do homem: a) as origens do Imperialismo e b) o sentido da universalidade social.
Assim, dois fenômenos se destacariam no processo de substituição da eliminação pela subordinação: i) alteração, por um lado, das condições de formação da personalidade dos homens; ii) por outro, através dos mecanismos de subordinação entre as sociedades ou agrupamentos sociais, seriam estabelecidas as relações de superioridade e inferioridade: o grupo dominante procura convencer o subordinado que lhe é efetivamente superior.
Para Mead, o surgimento dessa segunda forma teria dado ensejo ao aparecimento de uma terceira, à qual ele denomina de "superioridade funcional", que encontra no Império Romano o seu primeiro e melhor exemplo:
existe um sentido de orgulho do romano em sua capacidade administrativa assim como em seu poderio marcial, em sua capacidade para subjugar a todos os povos do Mediterrâneo e para administrá-los. A primeira atitude foi a de subjugação, e logo apareceu a atitude administrativa, que pertencia mais ao tipo que tenho referido por superioridade funcional [...] Essa capacidade faz com que o Império Romano fosse completamente distinto dos impérios anteriores que não tinham atrás de si mais do que a força bruta (MEAD, 1972, p. 285).
A universalização da sociedade ou do agrupamento social pela "superioridade funcional", segundo Mead, é "desejável e compatível" com as regras de convivência democrática e é nas sociedades regidas por esse mecanismo, portanto, nas sociedades democráticas, que os indivíduos têm melhores condições de desenvolver suas personalidades. Assim, para ele, a "superioridade funcional" viabilizaria o melhor ordenamento coletivo e, por isso, ofereceria as melhores condições de desenvolvimento do indivíduo porque cada indivíduo “pode[ria] realizar-se no outro através do que é peculiar a si mesmo" (MEAD, 1972, p. 288)8.
Da compreensão de Mead sobre a relação entre a identidade coletiva e a identidade individual, é possível derivar: i) as sociedades que constroem sua identidade são capazes de expressá-la sob a forma de um universal; ou seja, a singularidade de uma sociedade é o que a torna capaz de atestar para si mesma (portanto, para os seus membros) e para as outras sociedades a sua universalidade; ii) a identidade coletiva se realiza e se manifesta nas instituições criadas pela sociedade, e é através delas que a sociedade expõe para seus membros e para as outras sociedades o que se pode chamar de “consensos” possíveis que ela criou ao longo do tempo; por fim, iii) é através das instituições sociais que são constituídas as identidades individuais.
A definição apresentada por Mead de “instituição” permite entender por que ele joga sobre ela o peso das relações sociais: "a instituição representa uma reação comum por parte de todos os membros de uma comunidade em face de uma situação especial” (MEAD, 1972. p. 261). Ao contrário, no entanto, de esmagarem os indivíduos ou de aniquilarem as suas individualidades, as instituições podem constituir indivíduos conscientes de si, porque torna os indivíduos conscientes do outro.
As instituições, em síntese, mediatizariam o indivíduo e a sociedade "genérica" ou, para utilizar uma categoria-chave de seu pensamento: a identidade individual é constituída pela internalização do "outro generalizado".
Assim, as instituições da sociedade são formas organizadas da atividade social ou do grupo, formas organizadas de modo a que os membros individuais da sociedade possam atuar adequada e socialmente adotando as atitudes dos outros para essas atividades. As instituições sociais opressivas, estereotipadas e ultraconservadoras - como a Igreja -, que, com sua antiprogressividade mais ou menos rígida e inflexível esmagam ou eclipsam a individualidade, ou inibem qualquer expressão de conduta e pensamento distintivos e originais das pessoas ou personalidades individuais nelas implicadas e a elas submetidas, são produtos indesejáveis, mas não necessários do processo social geral da experiência e do comportamento (MEAD, 1972, pp. 261-262).
Mead defende a tese de que as sociedades democráticas, regidas pelo princípio da "superioridade funcional", oferecem as melhores condições de constituição das identidades individuais, pois são as sociedades em que as interações travadas no âmbito das instituições permitem que se opere o trânsito entre os valores e princípios que configuram a identidade universal daquela sociedade e a formação dos membros da sociedade segundo aqueles mesmos valores e princípios. Pode-se completar o raciocínio do autor e afirmar: na medida em que uma sociedade consegue (im)por aos seus membros a sua universalidade, ela constrói as condições para impor às outras sociedades a sua alteridade/autoridade.
Os argumentos de Mead em favor da democracia lhe servem de justificativa para legitimar o império que subordina as demais sociedades mediante a “superioridade funcional”. Encontra-se nele um consistente jogo argumentativo no qual eclode o que é do coração da hegemonia estadunidense, nascida no mesmo lapso de tempo em que nos Estados Unidos era constituída a sua identidade cultural moderna: a “superioridade funcional” do Império Romano, seu primeiro exemplo histórico, encontraria na “democracia da América” as mesmas condições de florescimento. A legitimidade dos mecanismos de subordinação interna reitera-se em relação aos membros externos: essa democracia é a expressão da sua “superioridade funcional” e pode legitimamente sustentar o florescimento do “Império Americano”9.
Um povo polido é exposto ao mundo
Na Exposição de 1904 realizada em Saint Louis, Missouri, em comemoração à compra de Luisiana, os Estados Unidos reservaram muitos espaços para a exibição dos mais variados assuntos relativos às Filipinas. Naquele ano, o país estava ainda envolvido no combate aos movimentos insurrecionais que eclodiam pelas ilhas. Enquanto as forças armadas matavam, torturavam, prendiam os insurgentes, ao governo estadunidense interessava fornecer ao mundo, evidências dos enormes benefícios antropológicos e formativos que estavam concedendo aos filipinos pela colonização inaugurada em 1899. Como testemunho, levaram em torno de 1.200 filipinos nativos, negritos, igorot, moros e visayans para serem expostos (KRAMER, 1999; RYDELL, 1984). E haveria melhor ocasião para expor a incorporação das Filipinas aos Estados Unidos do que os 100 anos da compra de Luisiana aos franceses por três centavos o acre de terra10? Aquela feira era o destino manifesto em escala global (RYDELL, 2003). Era um momento de epifania do progressivismo e do excepcionalismo norte-americanos (WARDE, 2002)
A Louisiana Purchase Exposition, de 1904, ofereceu aos seus milhares de visitantes, a síntese cultural, ainda que inconclusa, do que os Estados Unidos estavam se tornando: um amálgama de civilização e barbárie, em equilíbrio instável.
Aquela exposição internacional realizada em Saint Louis, Missouri, hierarquizou, como nunca havia sido feito, a sequência de povos em ordem evolutiva - dos mais selvagens aos mais civilizados; dos mais escuros aos mais puramente caucasianos; dos adoradores de xamãs aos cristãos - mediante uma classificação tão competente que teria encantado aos antropólogos forenses, spencerianos, lamarckianos e, certamente, lombrosianos que a visitaram. Tão minuciosa que mais parecia obra de entomólogos!
Aquele era o grande ensejo de abafar as vozes de William James e de todos os críticos do imperialismo americano. Na Exposição Mundial de Saint Louis, eles veriam filipinos em confraternização com os brancos americanos; veriam filipinos dispostos ao trabalho; veriam suas criancinhas aprendendo inglês em classes conduzidas pela pedagogia moderna; todos americanizados e, melhor ainda, todos querendo ser americanos.
Os organizadores da Exposição de Saint Louis reservaram 47 acres para reconstituir uma reserva na qual entre 1.100 e 1.200 nativos das Ilhas Filipinas representavam os seus modos de vida nas suas próprias casas. Nas bordas da reserva, foram agrupadas diferentes tribos, que por si só chamavam a atenção pelos seus hábitos e modos de vida; entre essas tribos, a exibição mostrou que há mais ou menos 20 povos e 100 dialetos tribais, com claras linhas de diferenciação, dependendo do grau de evolução atingido.
A mostra da educação filipina ganhou atenção especial dos organizadores, desde suas primeiras iniciativas em 1902. Constam das orientações do governador-civil das Filipinas, William H. Taft, que fossem reunidos para a exposição toda legislação; a mais completa descrição das escolas, do sistema de supervisão e administração, dos métodos de instrução e treinamento, dos currículos e planos de ensino; dos sistemas de avaliação; materiais de ensino; livros-didáticos e outros livros escolares; móveis e demais equipamentos; museus, coleções e bibliotecas com os catálogos respectivos. Em duplicatas, fotografias das escolas acompanhadas da história de cada uma; trabalhos escolares; experimentos; pesquisas; orientações dos professores e muito mais (THE PHILIPPINE EXPOSITION BOARD, 1902)
Foram exibidos os “samar moros”, em torno de uns quarenta, vindos da Ilha de Mindanao; esses eram mulçumanos e considerados “piratas”. Por dois séculos e meio haviam tornado miserável a vida dos espanhóis e dos nativos das Ilhas, porque saqueavam os povoados, igrejas e faziam os espanhóis prisioneiros. Os “negritos” vinham das montanhas próximas às Ilhas e eram os habitantes aborígines; eram descritos como se parecessem com os negros africanos, mas menores em estatura, com uma inteligência extremamente pequena e um método muito primitivo de viver (BUEL, 1904). Os “bagobos”, em alguns aspectos, eram escalonados como os mais primitivos e os mais espetaculares dos povos das Ilhas. Usavam trajes feitos de pérolas extraídas de conchas; eram mais selvagens ainda do que os “moros”, porque ofereciam sacrifícios humanos aos deuses, mais por razões culturais do que religiosas. Por fim, três tribos recentemente domesticadas - os “bontoc”, os “suyoc igorot” e os “tinguianes” - que eram destacados não só por serem os mais evoluídos economicamente como também por terem aceitado mais prontamente o governo norte-americano nas Ilhas e, por isso, com ele colaboravam de “forma civilizada” (WARDE, 2002; BUEL, 1904).
Para alimentar mais espanto, foram apresentados os anões filipinos Juan (John) e Martina (Mary) Della Cruz, os dois menores adultos conhecidos no mundo civilizado. Juan tinha 29 anos e 29 polegadas; Martina tinha 27 polegadas e 31 anos. Eram filhos de pais normais e tinham um filho de 8 anos normal (WARDE, 2002; BUEL, 1904)11.
Saneando as almas e os corpos, as it should be!
Assim que a rebelião dos filipinos à dominação dos Estados Unidos foi ferozmente contida em 1902, o governo estadunidense implantado nas ilhas deu início à criação de um sistema público de ensino. Na mesma onda colonizadora e à mesma época, foi iniciada a criação de sistemas de ensino em Cuba, Porto Rico, Zona do Canal do Panamá e as reformas substantivas no sistema de ensino do Havaí. Não por um acaso, mesmo sendo iniciativas independentes, guardavam muitos elementos comuns seja em termos de orientações seja em termos dos aparatos utilizados. O governo militar instalado nas Filipinas cuidou inicialmente da criação das escolas e do seu provimento; ao assunto, dedicavam parte dos seus longos relatórios - abarcando todos os aspectos da administração local - dirigidos ao governo federal dos Estados Unidos, por meio da Philippine Comission12
Esse assunto e outros que se destinavam a sustentar o caminho dos filipinos rumo à civilização eram de interesse dos militares, mas, com bastante alívio, conseguiram o auxílio dos civis na organização dos serviços educacionais assim como de outros serviços setoriais. Em 1901, o Presidente William McKinley nomeou William Howard Taft como governador-geral civil das Filipinas depois dos anos iniciais de governo do Departamento de Guerra. Para o governador civil foram transferidas as tarefas relacionadas à instrução e ao treinamento profissional; com ele, foi criado o Bureau of Education das Filipinas. Em 23 de agosto de 1901 um navio do exército transportou 523 que ficaram conhecidos como “thomasites” - professores estadunidenses que se dispuseram sair dos Estados Unidos para salvar uma parcela da humanidade, servindo à pátria e a Deus, naquelas distantes ilhas do Pacífico13. O objetivo era criar e fazer funcionar um sistema “americano” de ensino nas Filipinas, seus graus e modalidades. Para isso, exportaram para lá superintendentes, professores, currículos e planos de estudo, materiais pedagógicos e móveis escolares, incluindo sinos, relógios, bandeiras dos Estados Unidos, quadros numéricos, globos terrestres, mapas do Oceano Pacífico, do mundo e dos Estados Unidos, quadros negros, réguas métricas, galões de ardósia, carteiras, lápis de ardósia e de grafite, galões de tinta, estantes, dentre outros. E muitos livros escolares, dentre eles as cartilhas, os livros de leitura e gramáticas em inglês.
O Report of Philippine Comission (UNITED STATES, 1901), correspondente ao período de dezembro de 1900 a outubro de1901, registra a exportação para as Filipinas de uma leva de livros publicados para as primeiras séries das escolas estadunidenses, ainda sem adaptações (Quadro 1)14.
Relatório de 1900-1901 | Informações Complementares (MJW) | ||||
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Tipo | Título15 | Quantidade recebida | Autor | Editora | Ano provável dá ed. utilizada |
Cartilha e Livros de leitura | Baldwin’s Primer | 60.000 | May Kirk [Scripture] | American Book Co. | 1899 |
Baldwin’s First Year Reader | 10.000 | James Baldwin | - | - | |
Baldwin’s Second Year Reader | 25.000 | James Baldwin | American Book Co. | 1897 | |
Baldwin’s Third Year Reader* | 10.000 | James Baldwin | American Book Co. | 1897 | |
Bass’s Beginners’ Reader | 10.000 | - | - | - | |
New Educational Reader | 10.000 | - | - | - | |
Thought Reader | 10.000 | Maud Summers | Ginn & Co. | 1900 | |
Leituras suplementares | Big People and Little People of Other Lands | 10.000 | Edward R. Shaw | American Book Co. | 1900 |
Fifty Famous Stories Retold | 10.000 | James Baldwin | Franklin Publ. Co. | 1896 | |
Health Chats with Young Readers | 10.000 | M.A.B. Keally | M. A. B. Kelly | 1898 | |
Heart of Oak, Series nº 2 | 10.000 | Charles E. Norton Kate Stephens George H. Browne |
D. C. Heath Co. | 1895 | |
Heart of Oak, Series nº 3 | 10.000 | Idem | D. C. Heath Co. | 1895 | |
Little Nature Studies | 10.000 | John Burroughs | Ginn & Co. | 1895 | |
Nature Studies, Davis | 10.000 | - | - | - | |
[The story] Robinson Crusoe for Youngest Readers | 10.000 | Daniel Defoe Rebecca Hoyt Gordon Browne |
Educational Pub. CO. | 1898 | |
Friends and Helpers | 10.000 | Sarah J. Eddy | Ginn & Co. | 1891 | |
Gramáticas | First Steps in English | 10.000 | [Hans C. Peterson?] | [A. Flanagan Co.?] | [1902?] |
Mother Tongue, nº 1 | 10.000 | Sarah L. Arnold George L. Kittredge |
Ginn & Co. | 1900 | |
Mother Tongue, nº 2 | 10.000 | Sarah L. Arnold George L. Kittredge |
Ginn & Co. | 1900 |
*Requisitado em Agosto de 1901.
Fonte: UNITED STATES, 1901, p. 560-562 e outras fontes consultadas por MJW.
No Fourth Annual Report of The Philippine Comission (UNITED STATES, 1904), relativo a 1903, estão arrolados os livros adotados na Escola Normal da capital, Manila, para o ensino da língua inglesa sem informação se adaptados ou não.
Relatório referente a 1903 | Informações Complementares (MJW) | |||
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Subject | Text-books | Autor | Editora | Ano provável da ed. utilizada |
First Year | ||||
English | Fifty Famous Series | - | - | - |
Old Stories of the East | James Baldwin | American Book Co. | 1896 | |
Stories of Animal Life | [Diferentes autores] | - | - | |
Fairy Stories and Fables | James Baldwin | American Book Co. | 1895 | |
Second Year | ||||
English | Stepping Stones, nº 4 | Sarah L. Arnold Charles B. Gilbert |
Silver, Burdett & Co. | 1897 |
Third Year | ||||
English | Allen’s Grammar16 | - | - | - |
Stepping Stones, nº 4 | Sarah L. Arnold Charles B. Gilbert |
Silver, Burdett & Co. | 1897 | |
Fourth Year | ||||
English | Allen’s Grammar Stepping Stones, nº 5 |
- Sarah L. Arnold Charles B. Gilbert |
- Silver, Burdett & Co. |
- 1897 |
Fonte: UNITED STATES, 1904, p. 827 e outras fontes consultadas por MJW.
No relatório seguinte, o Fifth Annual Report of the Philippine Comission (UNITED STATES, 1905), que cobre o ano de 1904, há um anexo onde estão arrolados os livros didáticos escritos ou adaptados para uso nas escolas filipinas.
Título | Autor | Editor | Ano do pedido |
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The Arnold Primer: Stepping Stones to Literature Series | Sarah Louise Arnold | Silver, Burdett & Co. | 1903 |
A First Reader: Stepping Stones to Literature Series | Sarah Louise Arnold, Charles [B.] Gilbert | Silver, Burdett & Co. | 1903 |
The Story of the Philippines | Adeline Knapp | Silver, Burdett & Co. | 1903 |
Fonte: UNITED STATES, 1905, p. 900.
Esses livros escolares, bem como os demais equipamentos, comporiam, segundo o Quinto Relatório Anual, “exatamente” o mesmo lote destinado às escolas dos Estados Unidos: papel, lápis, quadro-negro etc. em grande quantidade, da mesma maneira que se fazia nas escolas estadunidenses (UNITED STATES, 1905). Para as escolas filipinas, no entanto, eram destinados livros não só nas suas versões originais como também adaptações de livros em inglês; além disso, depois de muitas tentativas, os dirigentes do sistema de ensino se renderam às evidências: como os moros não se dispunham a ler, escrever e falar em Inglês, providenciaram para eles os mesmos livros, mas “impressos em caracteres árabes [...] para que aprendam a ler e escrever sua própria língua” (UNITED STATES, 1907, p. 346), no suposto de que esse aprendizado seria um passo na direção da aquisição da língua inglesa.
A resistência dos moros, igorotos e alguns outros habitantes das ilhas à dominação linguística, portanto cultural, dos Estados Unidos alimentou uma avalanche de estudos, mas também de impropérios contra esses “povos pré-civilizados” ou “incivilizados” ou, ainda, insubordináveis a toda e qualquer forma de civilização. Povos que teriam escapado, em todos os sentidos, às evoluções pelas quais a humanidade já havia passado; parte deles pagã; outra parte mulçumana, o que representava para os invasores equivalente nível não-civilizado, porque não-cristão. Tudo isso a Exposição de 1904 havia mostrado sobejamente; estudiosos haviam escrito a respeito, como fizera Stanley Hall no segundo volume de Adolescence, publicado em primeira edição em 1904, e o professor E. B. Bryan havia testemunhado diante de centenas de seus pares no encontro anual também em 1904 da National Education Association, realizada exatamente naquela Louisiana Purchase Exposition17.
A não disseminação da língua inglesa a todos os habitantes das Filipinas foi avaliada um grave sinal do alcance não-universal do sistema americano de ensino, uma deficiência lamentável, considerado o objetivo primeiro de todo o empreendimento, manifesto claramente em 1901 e repetido em todos os relatórios posteriores.
As matérias de estudo para as escolas elementares podem incluir leitura, escrita, gramática, aritmética, geografia, história, fisiologia, música, desenho, exercícios físicos, treino manual e estudos naturais. O ensino na língua inglesa deve ocupar o primeiro lugar. Os professores estão proibidos de ensinar qualquer matéria não autorizada nas escolas públicas durante as horas escolares legais (UNITED STATES, 1901, p. 532).
Para Bryan, a culpa, no entanto, não era dos competentes superintendentes, dos supervisores, ou dos devotados e muito bem-preparados professores. A culpa era daquelas tribos que sequer podiam ser chamadas de filipinas (BRYAN, 1904)
Em 1915, o Annual Report, referente a 1913-1914 (UNITED STATES, 1915), informa que todos os livros para as escolas primárias e intermediárias, com exceção dos livros de Música e da maioria dos textos complementares, tinham sido preparados para as escolas filipinas. Livros específicos de geografia comercial, história colonial e condições econômicas para escolas secundárias tinham sido publicados e capítulos sobre as Filipinas tinham sido adicionados em textos sobre geografia física, história dos Estados Unidos e biologia. Todos esses livros teriam sido adaptados às necessidades das escolas e dos estudantes filipinos; quando comparados aos similares estadunidenses, o resultado era favorável. Ainda assim, “um comitê avaliou cuidadosamente os livros em 1913 e indicou mudanças desejáveis e recomendou adoção por um período de cinco anos” (UNITED STATES, 1915, p. 286).
Nas primeiras listas de livros escolares informadas nos relatórios oficiais do governo estadunidense nas Filipinas é evidente a presença de poucos autores responsáveis por mais de três títulos, entre os quais James Baldwin (1841-1925) e Sarah Louise Arnold (1859-1943); de 1903 em diante, Arnold parece ter suplantado Baldwin definitivamente18. Tanto Baldwin quanto Arnold foram introduzidos nas Filipinas nas versões criadas para o público escolar dos Estados Unidos, para só posteriormente ganharem versões adaptadas para os filipinos, quase exclusivamente em inglês, mas não só. Nas Filipinas circularam também manuais pedagógicos destinados a professores formados ou em formação, traduzidos para o espanhol e utilizados originalmente em Cuba e outras possessões estadunidenses19, além daquela pequena porção de cartilhas e livros de leitura impressos em caracteres árabes adaptados para os “rebeldes mulçumanos”.
Milligan (2004; 2020), estudioso das Filipinas, do Islã e de conflitos etnorreligiosos, examina diferenças instituídas pelo Bureau of Education nas Filipinas entre as escolas para os moros e as escolas para os demais filipinos, destacando entre as maiores a troca do “mais apropriado” instrumento de instrução. Nas suas palavras,
O primeiro governador da província de Moro, Leonard Wood, viu pouco valor nas línguas locais, que ele descreveu como não apresentando "características de valor ou de interesse para além de um tipo de língua selvagem". No entanto, os Superintendentes de Instrução Pública Najeeb Saleeby e Charles R. Cameron, bem como o Governador Tasker Bliss, mais tarde favoreceram o ensino das crianças por meio de suas próprias línguas. Eles acreditavam que esse era um meio mais eficiente e eficaz de ensinar as ideias americanas e de se alfabetizarem. Para esse fim, Saleeby criou livros de leitura [readers] em Tausug e Maguindanao usando a escrita árabe. Eles continham uma cartilha fonética, bem como uma tradução do Arnold Primer formatada da mesma maneira que a versão em inglês para facilitar a tradução. Apesar dessas diferenças, no entanto, a política linguística subjacente era tornar, afinal, o inglês a língua comum de todo o país (MILLIGAN, 2004, p. 458)20.
A circulação de Sarah Louise Arnold nas escolas nas Filipinas foi, portanto, para além da sua famosa cartilha traduzida e adaptada; ela também se fez presente por meio de seus manuais para professoras(es) e professorandas(os), traduzidos ou não, e por meio de orientações para a área da Economia Doméstica, na qual era especialista, e instruções para as escoteiras, dada sua liderança nesse meio (WARDE, 2014; 2002). Não demorou a prevalecer sobre outros autores de livros didáticos - destacadamente James Baldwin - e manuais pedagógicos, graças ao investimento profissional e pessoal da editora Silver, Bardett & Co., e, em menor dose, de outras como a Ginn & Co. que já exerciam o controle do mercado dos didáticos (WARDE, 2011)21. Também pesou favoravelmente a Sarah Arnold sua adesão crescente ao método analítico pela vertente da setenciação na cartilha [primer] e das historietas nos livros de leitura [readers] que, somada aos investimentos da Silver, Burdett & Co., lhe permitiram incrementar a aproximação desses materiais pedagógicos ao universo dos públicos infantis de destino por meio de traduções e “adaptações” providenciadas pela própria editora22.
Não exige muitos esforços a constatação de que The Arnold primer em inglês, adaptada ao público filipino, é uma das suas realizações mais conspícuas. Algumas imagens das capas e das páginas internas da edição de 1901 para os Estados Unidos e de 1902 para as Filipinas permitem que se visualize o que era dado por “adaptação”. As duas edições se repetem no formato, tamanho, distribuição das páginas (128) e “lições” (que se sucedem sem separações formais). Na edição de 1901, no entanto, a primeira mensagem, supostamente da autora, é dirigida às crianças “para ser lida para elas pelo(a) professor(a), enquanto a edição de 1902, não assinada também, é dirigida ao(à) professor(a). Nas duas versões, as “lições” se encerram com uma carta assinada por Sarah Louise Arnold aos(às) professores(as) a respeito dos passos seguidos na cartilha: primeiro sentenças, seguidas de palavras que as compõem e depois de letras iniciais comuns às palavras - “cuidadosamente selecionadas” - e de sons das palavras, alertando para o fato de que “palavras não inteiramente fônicas (como ‘beautiful’) devem ser ensinadas pela visão [sight], não pelo som [sound]”, assim seriam mais bem memorizadas, “como mostra a experiência” (ARNOLD, 1901, p. 128; 1902, p. 128. Grifos de SLA).
Como nas primeiras imagens acima, boa parte das páginas se repetem integralmente - as imagens, as frases e as palavras. Naquelas páginas onde estão inseridas as “adaptações”, são as imagens e palavras substituídas que geram estranheza uma vez que colocam no lugar de uma menina e um menino garbosos e confiantes, uma garota e um garoto tristonhos, abatidos. Na p. 10 da versão para as crianças estadunidenses, um menino chamado Dan é apresentado muito bem-vestido, com um belo traje esportivo, abraçando uma bola; na página equivalente da versão para as crianças filipinas, José aparece em cima de um animal; José não é exatamente um menino e sua feição não é muito amistosa; de qualquer modo, ele não é a personagem central da página 10: é o carabao! Animal que reaparece nas páginas seguintes como expressão máxima da “adaptação” aos filipinos, de incorporação da cultura da criança filipina à mensagem escolar: não é um boi, não é uma vaca, não é um cavalo, é um carabao, o mais filipino dos animais!23 (WARDE, 2002).
Um terceiro fator contribuiu para o sucesso de Sarah Louise Arnold nas investidas escolares dos Estados Unidos nas ilhas filipinas: sua intersecção com Adeline Knapp, uma dentre aqueles (as)523 professores(as) de 1901 que se afamaram como “thomsatise”, nome derivado de Thomas, o navio que os(as) transportou para lá (TARR, 2006)24.
Os homens e as mulheres que compuseram o grupo não guardavam um passado comum; vinham de lugares distintos; trabalhavam em diferentes instituições; eram originários de famílias enraizadas em distintas vertentes religiosas, políticas e culturais. Observados por microscópio, é possível encontrá-los desenvolvendo práticas pedagógicas específicas, individualizadas, ainda que dentro dos limites estabelecidos pelos dirigentes; mas como indivíduos, preservaram singularidades na interação com as crianças, os pais e as chamadas comunidades locais. Ainda assim, foram conservados na memória da intervenção americana como um grupo coeso e homogêneo; heroico pela coragem de enfrentar aquelas gentes e suas doenças contagiosas; merecedor de pasmada admiração pela disposição de dedicar um tempo da vida a civilizar um “outro” que nem tão próximo assim era. A mitologia em torno desse grupo se avolumou a tal ponto que, com o tempo, sua denominação foi estendida a todos os demais professores estadunidenses que trabalharam em escolas filipinas. Tarr (2006) procura contê-los nas suas devidas dimensões: eram em menor número do que a lenda conta; eram humanos, demasiadamente humanos, cada um a seu modo25.
Sabe-se pouco de Adeline Knapp, responsável pela adaptação dos livros de Sarah Arnold para os filipinos e autora de The Story of the Philippines, publicada em 1902 pela Silver, Burdett & Co.; todos adotados pelas escolas públicas das ilhas, tal como informam os Relatórios anteriormente citados. Há poucas referências ao seu nome nos meios educacionais; ele aparece com um mais de destaque entre os escritos estadunidenses sobre mulheres escritoras e jornalistas, destacadamente as mulheres lésbicas que se destacaram no espaço público, incluindo sua oscilação, primeiro a favor e depois contra o voto feminino26.
Nascida em 1860 em Buffalo, NY e falecida em San Francisco, Ca, em 1909, consta que Adeline E. Knapp foi jornalista e dona de jornais, escritora, ativista social, ambientalista, educadora, sufragista e anti-sufragista. Projetou-se na cena literária de San Francisco na virada do século, para onde havia se mudado, e na cena política escrevendo em jornais contra o trabalho infantil e a destruição da natureza. Em verdade, Knapp escreveu sobre tudo; inclusive sobre pecuária, mas ampliou sua notoriedade como jornalista em âmbito nacional e até internacional, registrando in loco a anexação do Havaí aos Estados Unidos, da qual foi defensora sob argumentos geopolíticos - defesa das costas do seu país - ou sob argumentos político-antropológicos - incapacidade de os havaianos pensarem por conta própria o que queriam e o que precisavam após a derrubada do reinado então vigente. Knapp, assim, expressava sua posição sobre o papel salvacionista dos Estados Unidos em relação aos povos atrasados na corrida rumo ao progresso; o mesmo argumento utilizado por William McKinley para tomar posse das Filipinas.
Sua visão do “outro” expressada no caso do Havaí, era ainda mais contundente em relação à China que não só desprezava como a mobilizava a participar dos movimentos de proibição da entrada de chineses no país, especificamente na Califórnia. Nas Filipinas, reafirmou seus preconceitos, nas linhas e nas entrelinhas do seu The Story of the Philippines de 1902, traçando hierarquias entre as tribos brancas e as não-brancas: os primeiros, efetivamente filipinos, e os demais, que chegaram às ilhas em estágios evolutivos inferiores. No seu retorno aos Estados Unidos, Knapp já tornava explícito seu abandono da causa sufragista. Deu depoimentos no Senado Estadual de Nova York, participou de movimentos anti-sufragistas e o que escreveu sobre o assunto acabou servindo a teses contrárias a autonomia da mulher na casa e no trabalho (DAVIS, 2010).
No mesmo ano da chegada às Filipinas, um grupo de thomasites decidiu publicar depoimentos a respeito da viagem que teria durado de 23 de julho a 21 de agosto, data da chegada a Manila. Ao livrinho, deram o título de The Log of the “Thomas” e o dedicaram à tripulação do navio pelo “seu alto caráter e seus esforços gentis e corteses, que resultaram em uma viagem muito agradável para nosso novo lar - as Filipinas” (GLEASON, 1901, dedicatória). Só homens cuidaram da edição e, com uma exceção, assinaram as matérias incluídas no livrinho. A exceção coube a “Miss Adeline Knapp” cujo depoimento, A Notable Educational Expedition, foi inserido em primeiro lugar27.
Há outro registro, esse sem assinatura, que diz algo sobre o trabalho que resultou nos livros didáticos que Knapp escreveu para os estudantes filipinos:
Agradecemos à Srta. Adeline Knapp, ex-integrante do ‘San Francisco Call’ [jornal onde ela havia trabalho, MJW], pelo excelente editorial sobre a missão desse grande movimento educacional do qual todos fazemos parte. Miss Knapp se envolverá em trabalho literário enquanto estiver nas ilhas e coletará material para uma história escolar das Filipinas, um trabalho no qual ela está empenhada há mais de um ano (GLEASON 1901, p. 50).
Esse apontamento sugere que, talvez, Knapp tenha viajado com algum treinamento prévio e, portanto, licença para lecionar, mas não tenha se instalado nas Filipinas com esse objetivo, e sim o de colher informações de diversa natureza sobre a vida e os hábitos dos habitantes das ilhas.
Essa é a tese de Steinbock-Pratt (2013), um dos poucos historiadores a conferir atenção à Adeline Knapp no âmbito da educação. Examinando as vantagens da viagem para mulheres solteiras, ela lembra que depois de ter publicado muito após sua estada no Havaí quando da queda da monarquia nos anos 1890, Knapp teria se disposto a permanecer um tempo nas Filipinas planejando “escrever livros didáticos para a Silver, Burdett Company, que poderiam ser usados nas Filipinas” (STEINBOCK-PRATT, 2013, p. 103). O diário de Bernard Moses, o primeiro Secretário de Educação da Philippine Commission, alimenta essa tese, pois conta que Knapp o tinha procurado para perguntar quais mudanças precisariam ser feitas nos “readers” das escolas para adaptá-los para uso nas ilhas. Dois meses depois, ela informou a Moses que estava doente e precisava regressar aos Estados Unidos. Ficou pouco tempo, mas o suficiente para visitar as escolas, conviver com os professores e alunos, conversar com os pais, e, principalmente, observar os hábitos cotidianos da população (MOSES apud STEINBOCK-PRATT, 2013). Com esses registros, escreveu dois livros que publicou para a Silver, Burdett & Co., e certamente para a adaptação que introduziu no primer de Sarah Arnold: o já citado The Story of the Philippines (1902), mencionado no Relatório de 1905 (ver Quadro 3) e How to Live: A Manual of Hygiene for Use in the Schools of the Philippine Islands (1902), cuja compra ou adoção não consta dos Relatórios consultados; no entanto, Steinbock-Pratt (2013) sugere que tenha sido efetivamente adotado nas escolas americanas das ilhas.
Não é certo, ainda, o que ou quem teria propiciado o cruzamento de Sarah Arnold (1859-1943) com Adeline Knapp. Com diferença de apenas um ano nas idades, Arnold e Knapp nasceram do mesmo lado atlântico dos Estados Unidos, onde a primeira permaneceu, enquanto a outra se fixou na costa pacífica durante a vida adulta. No começo do século XX, ambas já haviam atingido razoável renome ao menos nos meios intelectuais estadunidenses, por meio de jornais, livros e outras atuações na esfera pública; porém, nada indica, até o momento, que tenham pertencido às mesmas redes de sociabilidade e nem tenham criado laços à distância, o que não seria nada incomum28. Com isso, é cabível supor que a relação tenha sido mediada, ao menos no começo dos trâmites editoriais, pela editora Silver, Burdett & Co.
Os sinais de que os dois livros para escolares já estavam encomendados a Knapp pela editora quando ela viajou para Manila são nítidos. De um lado, porque as encomendas para livros didáticos já haviam se tornado praxe em editoras do porte da Silver, Burdett & Co., principalmente ela que praticamente controlava essa fatia do mercado utilizando-se de práticas de produção, comercialização e propaganda muito avançadas; de outro, porque a seriação de livros escolares já era prática consolidada nos Estados Unidos. Ou seja, arriscar pouco - num segmento muito controlado por agentes e agências diversos - para faturar muito. Não é de se estranhar, portanto, que The Story of the Philippines seja o nono livro de uma série denominada The World and its People composta de “geographical readers”.
Mas, por que conferir tão delicadas tarefas, como a escrita desses dois livros e a adaptação da primer de Arnold, para uma conceituada jornalista que, no entanto, não tinha experiência nas lidas escolares e, tudo indica, continuou não tendo, a considerar as atividades as quais se dedicou nas Filipinas? Quem teria indicado Adeline Knapp para a Silver, Burdett & Co. que, supostamente, a apresentou a Sarah Arnold?
Considerações finais
Essas perguntas não serão aqui respondidas. Por um lado, porque demandam consulta a novos fundos documentais; por outro, porque não pertencem aos alvos centrais deste artigo que deve ser encerrado com um retorno ao seu ponto de partida. Livros de destinação escolar estadunidenses circularam pelas Filipinas - assim como circularam por Cuba, Porto Rico, Havaí... - em muitas versões: originais, traduzidas e adaptadas. Esses trajetos compõem uma modalidade de “transnacionalidade cultural” ou de “transculturação” (PRATT, 1999) ou, ainda, de “tradução cultural” (BURKE; HSIA, 2009), bastante distinta daquelas em que se dão “escolhas entre equivalentes” ou, mais poeticamente, que envolvem “afinidades eletivas”29. Aqui, foi examinada uma modalidade de “relação transnacional” na qual uma das partes não escolheu nada e a outra decidiu tudo, até o ponto em que se olhando no espelho a primeira já não sabia se enxergava a si mesma ou o outro com o qual havia se fundido. Mas em nome do que os Estados Unidos se impuseram às Filipinas? G. Mead responderia: em nome da sua “superioridade funcional”. E Mead era um democrata e estava à esquerda no espectro liberal estadunidense.
Nos anos 1920, Paul Monroe foi chamado a presidir uma comissão de professores que, como ele, eram do Teachers College da Columbia University, para avaliação do sistema educacional das Filipinas, para o que adaptaram testes e outros instrumentos utilizados com os estudantes nos Estados Unidos. Chegaram a resultados semelhantes, hoje óbvios, aos que vinham sendo obtidos em outras colônias existentes à época, não só dos Estados Unidos: “o transplante” de inteiros sistemas educacionais não dá bons resultados, porque ignora as condições locais. Ou seja, as “adaptações” efetuadas eram, no mínimo, inócuas (PHILIPPINES, 1925). O primeiro e maior problema encontrado entre os filipinos: precário domínio da língua inglesa, embora o inglês tenha se tornado uma língua oficial, constitucionalmente. Desse decorriam muitos outros embaraços. Constataram também que os administradores locais que respondiam, então, pelo governo das ilhas, não eram suficientemente competentes e preparados para as funções. Em uma palavra, os filipinos não tinham se americanizado suficientemente e as ilhas filipinas, juntas, não constituíram a união de estados americanos (PHILIPPINES, 1925).