OM A FORTE EXPANSãO DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO ALAVANCADA NOS ANOS 2000, os cursos de Direito, que eram oferecidos por pouco mais de 589 instituições em 2002,1 viram esse número saltar para 1.624 em 2020, atingindo sozinho cerca de 14% do total de matrículas2 e ultrapassando cursos que tinham mais ingressantes, como Administração e Pedagogia. Isso se deu, em grande medida, pelo processo de institucionalização dos campos jurídicos, principalmente a partir da Constituição Federal de 1988, quando atores jurídicos conseguiram regulamentar diversas carreiras de Estado como próprias de profissionais com diploma em Direito, bem como por conta da expansão do mercado de serviços jurídicos privados.
Porém, embora tanto a formação como o mercado próprio de profissões jurídicas tenham se expandido, como se dão as dinâmicas entre a formação e o mercado de trabalho? De que forma o mercado de trabalho absorve os formados em Direito? As mulheres, que passaram a ser maioria nesses cursos, conquistam mais espaço e renda nesse mercado? Essas são algumas questões centrais que buscaremos dar conta de responder ao longo deste trabalho.
Os estudos sobre profissões/ocupações em geral buscam entender como a profissão em sociedades capitalistas estrutura e comanda ações dos indivíduos (Barbosa, 1993). A sociologia das profissões jurídicas, em especial, se constitui como um campo bastante explorado no Brasil (Almeida, 2014; Bonelli et al., 2017; Bonelli & Oliveira, 2003), tendo em certa medida levado em conta muitas das preocupações que levantamos aqui. Porém, a maior parte dessas análises se concentra em estudos de caso de setores privados da advocacia ou de tribunais específicos, deixando uma lacuna no que diz respeito à investigações empíricas que deem conta principalmente de compreender o impacto das ocupações jurídicas de modo mais geral.
Nossa pretensão aqui é fazer uma abordagem com um espaço temporal maior, buscando avaliar como a população desse setor ocupacional se distribui no mercado formal. Para tanto, utilizaremos dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2002 a 2020 para buscar capturar o efeito da expansão do ensino jurídico sobre a dinâmica do mercado de trabalho próprio desse campo de atuação.
Para dar conta de nossos objetivos, buscamos na seção seguinte traçar um panorama da literatura que lida com o enfoque sobre profissões jurídicas e desigualdades de acesso a carreiras do campo. Posteriormente explanamos os métodos, as variáveis e os dados utilizados para atingir nossos objetivos. Por fim, concluímos com algumas considerações e apontamentos futuros necessários ao estudo no campo.
Profissões jurídicas e desigualdades de gênero
Muitos estudos têm apontado a tendência, a partir de meados dos anos 2000, de predominância das mulheres no ensino superior em Direito e no mercado de trabalho jurídico (principalmente no campo da advocacia privada) no Brasil (Barbalho, 2008; Bertolin, 2017; Bonelli et al., 2008; Kahwage & Severi, 2019). Em geral, esses trabalhos buscam analisar como as transformações de uma carreira, que até meados do século XX era fundamentalmente masculina, tendem a gerar ou manter padrões de comportamento baseados nas atitudes dos “fundadores” da profissão.
Essas discussões questionam aspectos do mundo do trabalho fundamentados em certa ideia de meritocracia, a qual seria calcada em um “valor” neutro, quando na verdade é um fator que tende a favorecer mais a certos tipos de comportamentos, em geral os masculinos. Um sistema meritocrático, entendido como aquele que premia indivíduos pelo seu desempenho individual, independente de outros fatores como classe, raça, gênero, etc., embora seja o mais desejado, necessita de regras bastante claras e de responsabilização para evitar vieses de escolha. Estudos empíricos, porém, têm demonstrado que, mesmo quando adotadas políticas de recompensa por performance, as desigualdades de gênero, raça e nacionalidade persistem (Castilla, 2008) e que coortes geracionais e mobilidade de funcionários devem ser observadas para explicar essas desigualdades (Philips, 2005), o que demonstra que apenas a chegada de novos atores às profissões não consegue modificar, no curto e médio prazo, o status quo.
No Brasil, as pesquisas empíricas têm se concentrado mais em estudos de caso de tribunais estaduais e nas perspectivas de mercado dos advogados formados por estados específicos. Um importante estudo nesse sentido é o de Bonelli et al. (2008), em que são avaliadas diferenças de percepção no profissionalismo relacionadas ao gênero de jovens advogados do estado de São Paulo. As autoras avaliam que, no estado de São Paulo, “o impacto do ethos profissional sobre o gênero revela-se mais acentuado do que os reflexos do feminino sobre o profissionalismo, principalmente porque a participação das advogadas está represada nas posições de menor prestígio e poder da carreira” (Bonelli et al., 2008, p. 282). A expansão numérica observada seria um importante fator para a redução da hostilidade no espaço profissional.
Por outro lado, Bertolin (2017), também em pesquisa em escritórios de advocacia no estado de São Paulo, avalia que há o chamado “teto de vidro” que impede que mulheres conquistem as posições mais altas em escritórios de advocacia, já que exercem cargos de associadas ou empregadas em quase 49% dos escritórios, enquanto no topo da carreira (sócios de escritórios) elas não chegam nem a 30%. Para a autora, não houve adaptação entre a entrada maciça de mulheres nesse mercado e a condição da maioria delas de ser responsável ainda pelo cuidado em assuntos domésticos.
Nas pesquisas que se concentram nas carreiras jurídicas do setor público, há também uma tendência de estudos de caso de tribunais estaduais, igualmente atentando para o problema das desigualdades nesse setor que, em tese, deveria ser guiado por princípios de mérito bem definidos, já que funcionários públicos passam por concurso público e a ascensão na carreira depende de tempo de serviço e merecimento. A ideia é que, em uma distribuição “normal”, gênero e raça não deveriam influenciar resultados de ascensão e bônus na carreira.
Em relação ao setor público, as carreiras da magistratura são as que têm recebido maior atenção, principalmente, por serem consideradas as ocupações de elite do Judiciário. Muitos desses trabalhos buscam avaliar se o crescente número de mulheres formadas se transforma em mais representatividade na magistratura (aspectos quantitativos) e quais são os impactos dessa representação, ou seja, se um maior número de mulheres em postos importantes tende a gerar decisões fundamentadas pelo gênero (aspectos qualitativos).
Fragale et al. (2015), analisando os impactos quantitativos da chegada de mulheres às cúpulas do Judiciário, avaliam que, dentro das regras institucionais da organização da magistratura, seria de fato questão de tempo para a entrada de mais mulheres nessas cúpulas. Porém, ainda que esse salto quantitativo fosse praticamente “certo”, os espaços da magistratura não necessariamente teriam uma tendência a ganhos qualitativos com pautas de interesses de mulheres sendo representados ali. O que aconteceria na verdade é que as mulheres, para se manterem em postos-chave, deveriam adotar o modus operandi baseado no masculino.
Ainda em relação à desigualdade intrínseca de um ambiente dominado por homens, mudanças que tendem a melhorar a representação podem causar distorções. Em estudo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Bonelli e Oliveira (2023) demonstram que as políticas de cotas levaram a um leve aumento masculino, já que homens negros e pardos entram mais nas vagas reservadas do que mulheres negras e pardas. Isso, por sua vez, leva ao problema de olhar mais detidamente para a necessidade de políticas interseccionais em relação a esses marcadores.
Embora a chegada quantitativa de mulheres na magistratura tenha se aproximado cada vez mais do número de homens, haveria uma correlação negativa entre a hierarquia e o gênero: quanto maior o cargo/posição, menor é a presença de mulheres (Severi, 2016, p. 85). Pelo lado dos estudos da possível mudança qualitativa do Poder Judiciário com mais mulheres entre magistradas, Severi (2016) aponta para o fato de que quanto mais heterogênea a composição funcional da magistratura, maior é a probabilidade de um sistema de justiça que consiga ser mais sensível à pauta de direitos humanos. Para atingir essa heterogeneidade seria necessária uma política mais direta dos tribunais pela adoção de paridade de gênero em órgãos superiores e cotas de raça no acesso à magistratura.
O único trabalho, de nosso conhecimento, que tem pretensão empírica e aborda o mercado de trabalho jurídico de forma mais geral é o de Campos e Benedetto (2021). Os autores analisam, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os dados referentes a ocupações jurídicas entre os trimestres iniciais de 2015 e 2020, selecionando os profissionais que têm como ocupação principal: i) advogados (generalistas ou especialistas, atuantes em quaisquer áreas); ii) consultores jurídicos (idem); iii) membros da magistratura (juízes, desembargadores e ministros); iv) membros do Ministério Público (promotores e procuradores); v) membros da Defensoria Pública (defensores públicos); vi) membros das advocacias-procuradorias públicas (procuradores federais, estaduais, municipais - de todos os tipos); e vii) delegados de polícias judiciárias (estaduais ou federal). O estudo indica a alta relevância desse mercado de trabalho, mesmo que o número de formados seja muito superior ao daqueles em atuação, bem como as grandes diferenças de ganhos no setor, dependendo de variáveis como urbanização, trabalhar no setor público ou no privado, gênero e raça. O trabalho também demonstra que grande parte desses profissionais (59%) é não assalariada, por conta da própria - especificidade das profissões jurídicas como um setor liberal.3
Porém, apesar de representar um ganho substantivo, o estudo lida com os dados do mercado de trabalho de forma agregada, não demonstrando as diferenças entre setores ocupacionais, desigualdade de renda entre esses setores e os distintos impactos das variáveis sociodemográficas nas ocupações.
Nossa intenção aqui é justamente ampliar os setores ocupacionais (incluindo também serventuários de justiça e afins) e avaliar como diferenças sociodemográficas se distribuem dentro desses setores avaliando seu impacto na renda por variáveis como gênero, idade e região do país.
A seguir discorremos rapidamente sobre a opção metodológica de utilização da Rais nesta primeira parte da investigação sobre o mercado de trabalho jurídico.
Discussão metodológica
Atualmente o Brasil dispõe de ótimas fontes de dados para análise do mercado de trabalho como os dados do IBGE (principalmente os censos e as pesquisas amostrais) e os dados do Ministério da Economia (Rais e Cadastro Geral de Empregados e Desempregados - Caged). Todas essas bases têm contribuições importantes e certas limitações.
A Pnad Contínua tem como vantagem a abrangência de sua análise, uma vez que conceitua como trabalhador formal todos aqueles que são: empregados no setor privado com carteira assinada; empregados no setor público com carteira assinada; empregadores com CNPJ; e trabalhadores por conta própria com CNPJ. Para os objetivos de análise de um mercado tão fluido quanto o jurídico, a Pnad Contínua é sem dúvida uma ótima opção. Porém, a pesquisa tem uma limitação inicial que é ainda ser uma série recente (iniciada em 2012), além de apenas a partir do 4° trimestre de 2015 passar a diferir trabalhadores por conta própria entre os que tinham ou não CNPJ, dado determinante para compreender a formalidade do trabalho. Futuramente buscaremos construir uma classificação para avaliar especificamente o mercado jurídico privado com base na Pnad Contínua para avaliar sua distinção em relação aos dados da Rais.
A Rais tem como vantagem agregar dados de estoque populacional do mercado de trabalho formal, recolhendo principalmente informações de empregadores anualmente desde 1985. Para nossa análise vamos considerar as carreiras de ocupação jurídica de 2002 a 2020 e dar conta de uma lacuna sobre desigualdades de gênero nesse campo, avaliando como as diversas ocupações jurídicas incluem os formados e suas diferenças de renda tanto no setor privado quanto no público. A principal limitação da Rais para analisar o mercado de trabalho jurídico é que essa base de dados avalia especificamente pessoas jurídicas ou físicas que possuam ao menos um empregado registrado. Como o mercado de trabalho jurídico privado é muitas vezes marcado por advogados que trabalham por conta própria e sem carteira assinada, analisar apenas o setor formal certamente subestima em certa medida os dados do setor. Ou seja, os dados da Rais não captam a “informalidade” do setor e nem a total formalidade, já que não incluem trabalhadores por conta própria que possuem CNPJ. Outro ponto é que a Rais, apesar de ser um bom “retrato” do setor formal, é uma base de estoque, mostrando pouco do fluxo (perdas e ganhos de postos de trabalho) que ocorre com as ocupações ao longo de um determinado ano.
Como já mencionado, qualquer escolha metodológica implica perdas e ganhos. Como nosso objetivo é dar conta de uma série histórica mais ampla, compreendemos que os dados da Rais podem ser um panorama inicial importante para futuros estudos que busquem avaliar e construir medidas comparativas entre estes e os dados amostrais da Pnad Contínua.
Dados e métodos
As mudanças no ensino superior em Direito
Conforme indicado anteriormente, os anos 2000 vieram acompanhados de uma expansão no sistema educacional, muito representativo na área de Direito, que chegou em 2020 como o curso com o maior número de matrículas (759.328, representando 13,6% do total de matrículas), ingressantes (221.611, ou 12,6% dos ingressos) e concluintes (124.438, ou 14,1% do total de concluintes).4
Esse aumento substantivo no número de discentes nos cursos de Direito favoreceu a entrada maciça de mulheres nesse campo, tornando-se as que mais ingressam nesses cursos e as que mais saem. A Figura 1 busca demonstrar como isso se deu.
Em 2002 homens ainda eram a maioria entre os ingressantes (52,8%), embora as mulheres já estivessem em maior número entre concluintes5 (51,5%). Essa distância veio aumentando substantivamente ao longo do tempo, sendo que, em 2020, as mulheres representavam 54% entre os ingressantes e 58,4% entre os concluintes, enquanto homens eram, respectivamente, 45,7% e 41,6%. Os dados indicam que mulheres tendem a dominar cada vez mais esse campo de atuação.
De que forma essa dinâmica de inversão do número de mais mulheres nesses cursos se reflete no mercado de trabalho próprio das profissões jurídicas? Como já mencionado, o ponto que tentamos compreender é se o salto quantitativo demonstra ganhos qualitativos de gênero nesse mercado, com maior isonomia salarial e ocupacional para as profissionais que passam a estar em maior número de formadas.
Esses são alguns dos pontos que buscaremos encaminhar no próximo tópico.
O mercado de trabalho formal no setor jurídico
Para trabalhar com os dados referentes às ocupações jurídicas, selecionamos na Rais, a partir das famílias ocupacionais existentes na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO/2002),6 todas as ocupações que necessitam do ensino superior em Direito: advogados que trabalham no setor privado; procuradores e advogados públicos; delegados de polícia (distrital, regional e federal); membros do Ministério Público; magistrados e serventuários de justiça e afins. Foram incluídas nas análises apenas aquelas com vínculo ativo em 31 de dezembro de cada ano e que possuíam ensino superior completo.7
Como se pode ver na Figura 2, o mercado de trabalho jurídico é bastante amplo, tendo se mantido em constante crescimento com algumas poucas retrações principalmente em 2016, no mercado privado de advogados, e a partir de 2017, sobretudo entre procuradores e advogados públicos. Mas ainda assim, em relação ao mercado de trabalho como um todo, em que a eliminação de postos de trabalhos ficou em média acima dos 10% entre 2014 e 2020, as perdas de postos de trabalhos em cargos específicos de áreas jurídicas não foram tão significativas. Pequenas retrações em alguns momentos foram seguidas de altas relativas.
Outro ponto importante a se ressaltar são as diferenças de gênero nesse mercado. Em relação aos advogados, mulheres passaram a quase equipararem-se a homens nos postos de trabalhos a partir de 2008, superando-os a partir de 2010 e tornando-se presença maciça na carreira no setor privado. O número de advogados(as) no setor privado chegou à casa dos 93.000/94.000 postos do setor formal em 2020. Mais uma vez é importante ressaltar que esses dados referem-se exclusivamente aos postos de trabalho com carteira assinada, certamente havendo uma subestimação do total de profissionais no setor privado que trabalham com CNPJ ou não. Pelos dados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), há atualmente 1.303.016 advogados inscritos8 na Ordem, o que demonstra em certa medida que grande parte dos profissionais desse campo não está inserida no mercado de trabalho formal com carteira assinada, mas sim no mercado formal com CNPJ próprio ou no mercado informal como classificado pelo IBGE.9
Entre serventuários de justiça, mulheres já eram maioria em 2003 e mantiveram ampliação próxima em relação aos homens. Esse é um dado que precisa ser observado com mais atenção, pois, como se trata de ocupações públicas de Estado, existe tendência de manter certa estabilidade, embora a ocupação dos serventuários de justiça foi a que teve o maior aumento total. A estabilidade no setor público por gênero também é verdadeira para as outras ocupações, embora em menor proporção; houve leve crescimento no total de vínculos entre todas as famílias ocupacionais, mantendo-se estável a diferença entre homens e mulheres. A diferença mais saliente se dá principalmente entre delegados de polícia, cujo efetivo de homens é muito maior do que o de mulheres.
É interessante notar que o movimento interno de disputa dos atores do sistema de justiça mencionado por Arantes e Moreira (2019) pode ser avaliado dentro desse quadro. Segundo os autores, o pluralismo estatal “retrata, portanto, o desenvolvimento institucional decorrente da luta de atores estatais por afirmação institucional, que resulta na pluralização da estrutura intraestatal” (p. 104). Ou seja, a disputa interna entre atores estatais por autoafirmação institucional dentro de certos “encaixes” específicos, em que tais atores conseguiram inserir-se como agentes fundamentais, foi fundamental para que os atores jurídicos ganhassem espaço nas carreiras de Estado. Esses encaixes estão em geral relacionados à expansão do acesso à justiça, com cada ramo do sistema judicial lutando por estabelecer suas fronteiras próprias e ampliá-las. Os dados apontam para certa eficiência desses atores em inserirem suas carreiras como pontos-chave na carreira estatal, o que demanda mais estudos que avaliem de fato se a expansão dessas carreiras se traduziu em acesso mais efetivo à justiça.
Outro ponto fundamental para a análise dos dados das carreiras jurídicas está relacionado aos valores recebidos em tais ocupações e como esses se diferenciam por gênero. A Figura 3 detalha a média de rendimentos por família ocupacional e gênero.
Em geral houve uma leve redução nas médias recebidas principalmente por advogados, membros do MP e magistrados. Entre estes dois últimos, os valores se estabilizaram de forma próxima. Delegados(as) de polícia obtiveram os melhores ganhos de renda média ao longo do tempo, enquanto para procuradores(as) e advogados(as) públicos(as) e serventuários(as) de justiça houve certa estabilidade. Nessa última ocupação, cabe notar que as perdas médias se deram mais entre mulheres do que entre homens, com salários quase idênticos no início da série e distanciando-se em alguma medida ao longo do tempo. A relação nesse campo se inverte: mulheres são maioria entre serventuários, mas passam a ganhar menos ao longo do tempo.
É interessante notar que, quando analisamos os rendimentos, os valores do gráfico praticamente se invertem em relação ao gênero, embora ao longo do tempo tendam a se igualar mais. Mesmo em carreiras públicas em que se pressupõe maior isonomia salarial em relação ao gênero, há certas diferenças que testaremos mais à frente para avaliar se são estatisticamente significantes.
Antes, porém, é importante avaliar como a renda é distribuída pelas famílias ocupacionais, uma vez que os valores médios tendem a incluir valores extremos, demonstrando muito pouco sobre a desigualdade geral dentro das carreiras. Na Tabela 1 listamos os principais decis de renda por família ocupacional e gênero para tentar visualizar como ocorre a distribuição de renda intracarreiras.
Ocupação | Gênero | decil_1 | decil_2 | decil_3 | decil_4 | decil_5 | decil_6 | decil_7 | decil_8 | decil_9 | decil_10 |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Advogados(as) | feminino | 2046,2 | 3003 | 3957,2 | 4977,5 | 6254,1 | 7749 | 9803,8 | 13156,9 | 18815,2 | 156293,4 |
masculino | 2072,5 | 3168 | 4225,8 | 5464,7 | 6898,2 | 8765,3 | 11384,1 | 15186,2 | 21672,2 | 156641 | |
Delegados(as) de Polícia | feminino | 9263,2 | 11765,2 | 13956,3 | 16333,5 | 18619,2 | 20866,2 | 23421,9 | 26497,1 | 31158,2 | 75264,6 |
masculino | 10586,2 | 13279,5 | 15740 | 18006,8 | 20265,4 | 22519,8 | 25017,1 | 28215,7 | 33435,7 | 87638,7 | |
Magistrados | feminino | 29588,8 | 32560,1 | 33876,7 | 35441,4 | 36947,8 | 38959,4 | 40989,9 | 43831,4 | 49530,1 | 159974,4 |
masculino | 30983,6 | 33669,3 | 35252,3 | 36678,7 | 38545,8 | 40661,1 | 43105,3 | 46968,8 | 53929 | 159776,2 | |
Membros do Ministério Público | feminino | 30671,3 | 33576 | 35142,5 | 36678,7 | 38742,5 | 40919,9 | 43673,9 | 47922,2 | 54976,9 | 148276,8 |
masculino | 31338,1 | 33689,1 | 35504,2 | 37576,4 | 39672,5 | 41890,5 | 45418,2 | 50200,6 | 57605,5 | 148968,2 | |
Procuradores e advogados públicos | feminino | 4014 | 5599,4 | 9656 | 16158,5 | 23157,5 | 27138 | 29970,1 | 33895,5 | 38388 | 130826,7 |
masculino | 4128,9 | 6773,9 | 11177,3 | 19060,9 | 24871,5 | 27913,1 | 30932,8 | 35236,4 | 39345,7 | 126369,7 | |
Serventuários da Justiça e afins | feminino | 1469,5 | 2636,2 | 4730,1 | 6333,6 | 7782,2 | 9382,5 | 11456,8 | 14339,5 | 19415,1 | 155011 |
masculino | 1695,9 | 3432,9 | 5492,3 | 6883,4 | 8456,7 | 10277,6 | 12599,7 | 15616,7 | 20692,2 | 149985,7 |
Fonte: Elaboração do autor a partir dos dados da Rais.
Em todas as ocupações, a mediana de renda (5° decil) é maior para homens do que para mulheres. A mediana de renda de advogados(as) girou em torno de seis salários mínimos,11 o que demonstra que o setor jurídico formal garante uma renda muito superior à da maior parte da população economicamente ativa.12 Isso mostra um cenário bastante interessante para os profissionais desse campo, embora, como cabe ressaltar, estamos avaliando apenas os profissionais que trabalham formalmente com carteira assinada, podendo haver muita variação entre os que atuam por conta própria.13
Porém, no geral, avaliamos que o mercado é sólido; enquanto grande parte do mercado de trabalho sofreu com perdas de postos principalmente a partir da crise econômica de 2015 e pelo aprofundamento da crise econômica como consequência da crise sanitária ocasionada pelo vírus SARS-CoV-2 em 2020, o mercado jurídico privado não foi afetado tão fortemente quanto o setor de serviços ao longo do tempo.
Em relação às ocupações do setor público, delegados(as) de polícia, magistrados(as) e membros do MP ocupam posições de elite no setor. O primeiro decil de renda de todas essas ocupações ultrapassam dez salários mínimos, o que, em valores correntes de 2020, os colocam no grupo dos 5% mais ricos, sendo que para magistrados(as) e membros do MP estão entre os 1% mais ricos da população.14
Procuradores(as) e advogados(as) públicos(as) também têm rendimentos acima da média populacional, com a mediana (5° decil) superior a vinte salários mínimos. É interessante notar que essa família ocupacional registra, no decil mais alto, um rendimento de mulheres maior do que o de homens, com uma diferença substantiva em relação a todas as outras ocupações, como poderá ser observado no modelo da Tabela 2. Entre serventuários(as) de justiça e afins existe maior dinâmica interquartílica, com os dois primeiros decis (20% inferiores) recebendo entre 2,5 e 3 salários mínimos, tendo um incremento importante ao longo do terceiro decil, mas, assim como a classe de advogados privados, mais de 90% têm renda de até 21 salários mínimos, valor mediano para todas as outras ocupações.
Como é evidente, em todas as ocupações os valores recebidos por mulheres são inferiores aos de homens (exceto no último decil grifados em vermelho na Tabela 1). Nossa intenção é avaliar, a partir de modelos de regressão linear, as variáveis que afetam a renda recebida (variável dependente), buscando compreender principalmente se as diferenças nos valores recebidos por classes ocupacionais são estatisticamente significativas controlando para além de gênero, com outras variáveis como idade e região do país.
Variável dependente | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
log_renda | ||||||
Advogados(as) | Delegados(as) de Polícia |
Magistrados(as) | Membros do MP |
Proc. e adv. públicos | Serv. de justiça e afins | |
Gênero (feminino) | ||||||
Masculino | 0,050*** | 0,064*** | 0,063*** | 0,013*** | -0,012*** | 0,095*** |
(0,001) | (0,002) | (0,002) | (0,002) | (0,003) | (0,001) | |
Faixa etária (60 anos ou mais) |
||||||
Entre 18 e 24 anos | -0,927*** | -0,787*** | -1,323*** | -1,952*** | -0,855*** | -1,266*** |
(0,005) | (0,026) | (0,037) | (0,026) | (0,022) | (0,006) | |
Entre 25 e 29 anos | -0,512*** | -0,518*** | -0,321*** | -0,323*** | -0,396*** | -0,740*** |
(0,004) | (0,006) | (0,005) | (0,005) | (0,007) | (0,003) | |
Entre 30 e 34 anos | -0,228*** | -0,369*** | -0,212*** | -0,171*** | -0,237*** | -0,427*** |
(0,004) | (0,004) | (0,003) | (0,004) | (0,007) | (0,003) | |
Entre 35 e 39 anos | -0,063*** | -0,253*** | -0,170*** | -0,120*** | -0,123*** | -0,217*** |
(0,004) | (0,004) | (0,003) | (0,004) | (0,007) | (0,003) | |
Entre 40 e 44 anos | 0,013*** | -0,182*** | -0,138*** | -0,091*** | -0,048*** | -0,055*** |
(0,004) | (0,004) | (0,003) | (0,004) | (0,007) | (0,003) | |
Entre 45 e 49 anos | 0,056*** | -0,121*** | -0,127*** | -0,067*** | 0,018*** | 0,055*** |
(0,004) | (0,004) | (0,003) | (0,004) | (0,007) | (0,003) | |
Entre 50 e 54 anos | 0,122*** | -0,069*** | -0,108*** | -0,050*** | 0,059*** | 0,111*** |
(0,005) | (0,004) | (0,003) | (0,004) | (0,007) | (0,003) | |
Entre 55 e 59 anos | 0,117*** | -0,046*** | -0,059*** | -0,016*** | 0,068*** | 0,106*** |
(0,005) | (0,005) | (0,004) | (0,005) | (0,008) | (0,003) | |
Região (Sul) | ||||||
Norte | 0,371*** | 0,194*** | -0,012*** | 0,082*** | 0,513*** | 0,263*** |
(0,003) | (0,004) | (0,003) | (0,003) | (0,005) | (0,002) | |
Centro-Oeste | -0,376*** | -0,336*** | -0,236*** | -0,058*** | -0,181*** | 0,082*** |
(0,003) | (0,003) | (0,003) | (0,003) | (0,006) | (0,002) | |
Nordeste | 0,100*** | -0,213*** | 0,013*** | 0,076*** | -0,840*** | 0,325*** |
(0,004) | (0,004) | (0,003) | (0,004) | (0,006) | (0,003) | |
Sudeste | 0,016*** | -0,330*** | 0,008*** | 0,092*** | -0,163*** | 0,167*** |
(0,002) | (0,003) | (0,002) | (0,003) | (0,005) | (0,002) | |
Constant | 8,991*** | 10,221*** | 10,662*** | 10,637*** | 9,876*** | 9,168*** |
(0,004) | (0,005) | (0,003) | (0,004) | (0,007) | (0,003) | |
Observações | 1.225.997 | 196.108 | 247.968 | 156.025 | 286.758 | 1.477.437 |
R2 | 0,145 | 0,204 | 0,081 | 0,088 | 0,262 | 0,163 |
Adjusted R2 | 0,145 | 0,204 | 0,081 | 0,088 | 0,262 | 0,163 |
Fonte: Elaboração do autor a partir dos dados da Rais.
Nota:
*p < 0,1;**p < 0,05;***p < 0,01. Categorias de referência em parênteses.
Os dados do modelo confirmam que o gênero é uma variável preditiva importante e estatisticamente significativa em todas as ocupações. Ser homem aumenta a probabilidade de possuir maiores rendimentos em todas as ocupações, exceto entre procuradores(as) de justiça e advogados(as) públicos(as), única família ocupacional em que a diferença salarial de mulheres é maior. Em geral, ser homem aumenta em 0,05 a renda em relação a mulheres. Quanto à profissão de procuradores(as) e advogados(as) públicos(as), mulheres aumentam 0,01% seus ganhos na comparação com homens. Embora as diferenças não sejam tão grandes, observa-se que gênero é um preditor importante para o rendimento.
Para analisar o efeito da idade, dividimos os grupos em faixas etárias (estabelecidas pela Rais) para avaliar possíveis diferenças entre os diversos estratos de idade. Utilizamos esse recurso principalmente pelo fato de que considerar apenas a idade como numérica contínua tende a gerar um viés, uma vez que, em geral, a idade é muito correlacionada com a renda. Analisando as faixas etárias podemos verificar se há diferenças importantes intragrupos etários. Em relação à categoria de referência, as faixas etárias entre 18 e 39 no grupo de advogados(as) são negativamente afetadas; quanto mais jovem, menor é a renda. Entre os que têm de 40 a 59 anos ocorre o inverso; a renda recebida aumenta à medida que avança a faixa etária. Entre delegados(as), magistrados(as) e membros do MP, todas as faixas etárias tendem a receber menos em relação ao grupo com 60 anos ou mais. Para procuradores(as) e serventuários(as) ocorre algo parecido com o grupo de advogados(as), porém, a partir de uma faixa etária acima, entre os que têm de 45 a 59 anos, os níveis de renda tendem a crescer em relação ao grupo com 60 anos ou mais.
Essa é uma variável que, quando considerada em conjunto com gênero, dá conta de responder em certa medida porque as médias recebidas por homens são maiores na maior parte das ocupações; embora as mulheres estejam em maioria no mercado atualmente, essa “virada” se deu nos últimos 10 anos. Sendo assim, a coorte de homens que já estavam entrando no mercado nos anos 1980 e 1990 tende ainda a ser mais beneficiada. Isso faz com que a maior parte de mulheres seja mais jovem em relação aos homens. Mulheres tendem a ser maioria nos estratos entre 18 e 49 anos, enquanto para os grupos de 50 anos ou mais os homens são maioria, o que explica em certa medida os ganhos relativos maiores do que os de mulheres.
Com a entrada maciça de mulheres no mercado de trabalho jurídico, nos anos 2000, a tendência é que, com mais experiência, essas mulheres ganhem espaço nos campos ocupacionais ao longo do tempo, reduzindo o impacto das desigualdades salariais em relação a homens.
Por fim, advogados privados, magistrados, membros de MP e serventuários de justiça do da região Norte têm rendimentos maiores em comparação a essas mesmas ocupações no Sul, enquanto delegados e procuradores caminham na direção inversa. Na região Centro-Oeste, com exceção apenas dos magistrados, todas as ocupações registram ganhos superiores em relação ao Sul. No Nordeste, somente serventuários de justiça têm ganhos maiores quando comparados a seus pares do Sul. Todas as outras ocupações tendem a ganhar menos em relação ao Sul. No Sudeste, delegados de polícia e procuradores públicos ganham menos quando comparados ao Sul, enquanto nas outras ocupações o contrário é verdadeiro.
Como se pode ver, uma diversidade existente tanto em níveis de gênero quanto de idade e região afeta diretamente a dinâmica desse mercado e, principalmente, os ganhos obtidos pela profissão, demonstrando que, embora no médio prazo haja uma maior inserção de mulheres em ocupações jurídicas, o mercado de trabalho formal ainda é marcado por variáveis que tendem a mudar mais lentamente no longo prazo.
Considerações finais
Este trabalho se centrou, em um esforço inicial, no mercado de trabalho jurídico formal, tentando se juntar aos esforços empíricos já citados anteriormente, buscando dar conta do mercado de trabalho jurídico de forma mais ampla, sua distribuição de vagas no mercado formal e suas desigualdades internas relacionadas não apenas ao gênero, mas também à região do país e idade dos profissionais. Por conta de uma parte substantiva desse setor formal estar mais inclusa em carreiras públicas de Estado, principalmente nas ocupações da elite do setor, sua dinâmica é muito importante para avaliar como o crescimento desses segmentos no setor público impacta de fato em mais acesso à justiça e accountability por parte desses profissionais. Mais ainda, é importante avaliar futuramente se essa dinâmica ocorre em função da necessidade da sociedade por mais prestação de serviços de justiça ou apenas pela demanda corporativa de setores jurídicos que estão fortemente inseridos na dinâmica estatal.
As mudanças ocorridas nas profissões/ocupações jurídicas foram bastante significativas nos últimos anos. Cada vez mais mulheres vêm se tornando maioria nos cursos superiores e consequentemente têm avançado no ganho de postos nesse mercado de trabalho. Como as profissões jurídicas, principalmente as ligadas à carreira de Estado, são em geral as mais prestigiosas para portadores de diploma superior, maior heterogeneidade em suas carreiras tende a reduzir desigualdades de gênero no mercado de trabalho em geral.
Embora o mercado não dê conta de absorver todos os formados com diploma em Direito, podemos adotar as perspectivas trazidas por Campos e Benedetto (2021) que resumem que, de um ponto de vista pessimista, o descompasso entre formados e empregados poderia ser resultado tanto de uma “superprodução” de bacharéis em Direito quanto de um descompasso entre os conteúdos ensinados e o que o mercado espera. Pela visão otimista, os autores apontam para o fato de que o currículo de bacharéis em Direito seria amplo o suficiente para que os graduados nesse campo pudessem ser absorvidos por outras áreas de atividades que não as especificamente jurídicas (Campos & Benedetto, 2021, p. 22).
Houve certa estabilidade nos postos de trabalho formais no campo jurídico ao longo do tempo, o que demonstra certa solidez nesse mercado. Ao longo do tempo as carreiras em geral tiveram crescimentos anuais importantes, principalmente nas ocupações de advogados(as) no setor privado, delegados(as) de polícia e serventuários(as) de justiça. Interessantemente, entre os primeiros e os últimos, mulheres ganharam ou mantiveram-se em maior número ao longo do tempo, sendo que apenas o grupo de delegados(as) de polícia manteve certa estabilidade maior de homens ao longo do tempo.
Como em geral a maior parte dessas profissões corresponde a carreiras de Estado e que mantêm salários da elite da administração pública, o que vemos é que o setor jurídico consegue se sustentar ao longo do tempo como ator importante na estrutura estatal, ampliando seu leque de atuação para profissões que se institucionalizaram com mais força após a Constituição Federal de 1988 (entre eles principalmente os membros do MP e procuradores e advogados públicos). Mas interessantemente como demonstra Arantes e Moreira (2019), essa “pluralização” de agentes jurídico-estatais se deu mais por razões corporativas internas às carreiras do que por uma determinada ordem constitucional de necessidade real no acesso à justiça.
Porém, embora a ascensão e melhores ganhos na carreira devessem estar mais associados a aspectos de méritos da atuação dos profissionais, vemos que desigualdades de gênero, idade e região em que os profissionais atuam ainda são importantes variáveis que agem como marcadores na manutenção de desigualdades.
Nossa proposta de agenda de pesquisa futura é avaliar como esse mercado de trabalho tem certa flutuação, analisar o nível de rendimentos médios também entre setores informais e entre os que não trabalham com carteira assinada e observar como as novas tecnologias têm impactado esse setor (softwares para construção e gestão de processos, escritórios e processos on-line, utilização de big data para avaliar probabilidades de decisão judicial, etc.). Todas essas questões são pontos que já estão cada vez mais na pauta do dia a dia nas profissões em geral e consequentemente na vida dos profissionais do Direito, mas o ponto ainda é saber o quanto da vida desses profissionais tende a ganhar os contornos de “uberização”, que já vem ocorrendo em diversos setores ocupacionais, principalmente naqueles que demandam menos técnica e consequentemente menos anos de estudo.
Do ponto de vista do mercado formal, o setor se mantém firme quanto a possíveis flexibilizações existentes em outros setores econômicos. Porém, mais uma vez é importante ressaltar que, como profissão liberal, esse é um setor bastante heterogêneo e que necessita de um olhar ainda mais minucioso para compreender possíveis mudanças e continuidades em sua dinâmica.