INTRODUÇÃO
Na Europa, no curso do século XIX e na passagem para o século XX, diferentes intelectuais, políticos e pedagogos investiram na tese de que uma melhoria na formação da população (entendida aqui como a ampliação ao acesso à experiência da escolarização) implicaria o “progresso” da nação. Ainda, tal premissa se referia ao processo de modernização educacional, identificada na racionalização e na evolução técnica e tecnológica de artefatos, dispositivos, métodos, teorias e práticas voltados ao campo pedagógico, os quais proporcionariam o estímulo à industrialização, o aumento no desenvolvimento econômico e o aprimoramento do sistema político (ESCOLANO, 1997). O aforismo do “progresso”, tão usual entre os reformadores sociais naquele momento, foi sustentado sob a égide da elevação da cultura do povo, de sorte que esta seria a força motriz para esse projeto do novo mundo (HOBSBAWM, 2019).
Diante desse fato, a luz lançada à escola desvendou seus problemas e atrasos que, com efeito, acentuaram a necessidade de mudanças nessa instituição para atender aos imperativos da modernidade e não obstar os avanços imaginados por esses reformadores. Com isso, as transformações e supostas medidas inovadoras foram largamente estimuladas na escola no período mencionado, podendo-se encontrar entre suas principais ações: os usos de manuais escolares, carteiras e mobiliário apropriado para o ambiente escolar; a emergência do método intuitivo; a proibição dos castigos físicos; a organização das escolas em séries ou graus; a coeducação dos sexos; e a implementação de exames (SOUZA, 1998). Um processo que insinuou ser universal, visto que a escola na modernidade construiu uma liturgia aparentemente comum, um modelo compartilhado que instituiu procedimentos a serem reproduzidos no cotidiano escolar - o que permite sublinhar que o mesmo ocorreu de maneira semelhante no contexto espanhol quanto ao processo de modernização educacional (BAÑUELOS, 1997, p. 116; VIÑAO, 2001). Dessa forma, o propósito dessa investigação foi capturar essa voga modernizadora a partir das análises da celebração dos exames na Escola Moderna de Barcelona (1901-1906)2.
Por compreender que nesse pano de fundo circularam retóricas e práticas sobre a escola que estavam orientadas pelas concepções de renovação pedagógica naquele momento, a Escola Moderna se revela como uma instituição com característica diferente, a saber: foi reconhecida como uma escola anarquista, mantinha em seus quadros colaboradores e professores associados ao movimento anarcossindicalista espanhol, e seu fundador Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909) tinha suas predileções pela doutrina (PRADO DA SILVA, 2021). Portanto, identificada essa dimensão política na referida escola, me concentro em analisar os modos como foram mobilizadas as prescrições acerca dos exames, em contraste à referência do contexto em que se encontrava, bem como investigo sua atuação na prática a partir desse procedimento, com o intuito de observar as intencionalidades pedagógicas, rupturas e continuidades entre as experiências, as projeções e o contexto.
Ainda que muitos estudos, em alguma medida, tenham se dedicado ao tema (SOUZA, 1998; SOUZA, 2000; SOUZA, 2006; TEIVE, 2009; VEIGA, 2009; BOTO, 2014; KROP, 2015; PIÑAS, 2020; ROCHA; GOUVEA, 2021), inclusive tratando do mesmo objeto de análise - a Escola Moderna de Barcelona (LEUTPRECHT, 2018) -, a noção sobre esse procedimento contraiu algumas imprecisões, daí me pareceu fundamental definir o que entendo serem os exames escolares3. Assumo aqui que o exame foi um ritual utilizado na escola da modernidade com o propósito de medir a evolução das faculdades dos escolares, visto que o modelo de escola graduada exigia da ação dos agentes pedagógicos um procedimento que “comprovasse” que a criança adquirira os conhecimentos necessários, os quais teriam que ser mobilizados para lhe dar continuidade na trajetória escolar que empreenderia pelos demais graus estabelecidos pelos sistemas educacionais.
Diante disso, os agentes pedagógicos elaboravam critérios para serem mensurados e que poderiam fornecer uma “prova” tangível das capacidades da criança. Esses critérios poderiam ser tanto de ordem intelectiva - a base dos conteúdos teóricos transmitidos em sala de aula - ou físicos, morais e comportamentais. Dessa forma, os exames foram utilizados de maneira variada, um procedimento polissêmico e polivalente que se orientava por uma diversidade de instrumentos avaliativos, uma experiência docimológica que buscou formas de medir os objetivos pedagógicos da escola avaliando os resultados obtidos no processo educativo a partir de instrumentos assentados em parâmetros pré-estabelecidos e que se ancoravam em provas, processos de classificação e seleção dos escolares, bem como na preparação dos docentes para convencionar tais práticas.
Sendo o exame um procedimento premente da escolarização e elemento presente do que convencionalmente chamamos de Currículo, me oriento nas reflexões de Ivor Goodson (1997, 2008, 2012) sobre a História Social do Currículo. O autor salienta que
O currículo é produto forjado na cultura e como tal está em eminente processo de negociação e tensão em diferentes níveis sociais, entre os quais, cabe salientar, a produção pré-estabelecida do currículo, os jogos de poder que influenciam a sua construção definitiva, para enfim consolidá-lo como parâmetro escolar e ser praticado no cotidiano escolar. Este último, um nível de reprodução e confronto que submete o currículo ao desafio de ser implementado no processo educacional. Por isso, a análise entre o currículo escrito e o currículo como atividade em sala de aula desponta como um gesto indelével (GOODSON, 1997, p. 20).
Goodson sugere, grosso modo, que as análises sobre o Currículo da escola sejam divididas em três partes: 1 - uma verificação sobre o tema no contexto e seu debate político em âmbito oficioso; 2 - uma análise do currículo escrito, o que é projetado virtualmente por meio de prescrições e concepções teóricas; e 3 - a investigação do que foi praticado no cotidiano escolar. Seguindo as orientações mencionadas, na primeira parte do texto realizo uma digressão sobre o debate em torno dos exames no contexto espanhol, de modo a esclarecer como ocorreram os usos do exame em contexto e tempo específico; posteriormente, faço uma investigação sobre as prescrições dos exames na Escola Moderna de Barcelona através das orientações da sua diretora, Clemence Jacquinet, e, por fim, verifico o que estava sendo praticado pelos agentes pedagógicos dessa experiência escolar. Destarte, para estas análises, reuni um conjunto de prescrições e registro dos exames extraídos do órgão oficial da Escola Moderna, Boletin de la Escuela Moderna de Barcelona (1901-1906), além de outros periódicos e revistas pedagógicas que circularam, na passagem do século XIX para o XX, na Espanha.
DESCONTINUIDADES E FRAGILIDADES QUANTO AOS USOS DOS EXAMES
Dentre os diferentes consórcios que se preocuparam em discutir e promover projetos de modernização pedagógica nas escolas, naquele último quarto do século XIX, destaco o Congreso Pedagógico Hispano-Americano que ocorreu em Madrid, no ano de 1892. O referido evento - diferentemente do primeiro Congreso Nacional Pedagógico de 1882 no país - teve uma ampla adesão internacional, reunindo intelectuais, pedagogos, professores, militares, médicos, engenheiros, entre outros, dos mais diferentes países europeus4. Entre os colaboradores do Congreso se encontrava Manuel Bartolomeo Cossío, membro da Institución Libre de Enseñanza - ILE5. Personagem ilustre entre os intelectuais reformadores da educação já naquele momento, Cossío tinha influência e reconhecimento no campo, tendo em vista que realizara inúmeras viagens pela Europa (sobretudo Inglaterra), buscando contatos com outros intelectuais e pedagogos, de modo a descobrir novas experiências pedagógicas que poderiam ser implementadas na ILE e divulgadas pela Espanha (URTAZA, 2007). Aproveitando esse fácil acesso aos congêneres de ofício, Cossío explorou um tema em especial naquele Congreso, que, aparentemente por falta de espaço e relevância para os organizadores, não pôde ser exposto nas seções oficiais e incluído nas atas de conclusão. Dessa forma, o pedagogo elaborou um questionário que foi entregue aos delegados internacionais sobre os exames e a progressão dos estudantes nos diferentes graus nas escolas oficiais em seus respectivos países6. As respostas e reflexões sobre esse questionário foram divulgadas pelo próprio Cossío anos depois no Boletin de la Institución Libre de Enseñanza - BILE. Sublinho aqui alguns dados por ele coletados.
Logo na abertura do questionário, Cossío perguntou: “Existem exames para passar de um grau a outro no ensino primário (em seus países)?” (COSSÍO, 1894a, p. 5). O delegado francês disse que lamentava não poder fornecer uma resposta concreta, “pois a grande diversidade de exames de todas as ordens no ensino (primário) fica impossível explicar em poucas palavras como procedem cada um”. O representante belga, Alexis Sluys (diretor da Escola Normal de Bruxelas), afirmou que havia, sim, exames no ensino primário em seu país, de sorte que essas escolas eram organizadas em três graus (primário, superior e normal) e que a progressão da criança de um grau para outro se dava por meio de exames. Por sua vez, os delegados da Áustria e da Alemanha salientaram que existiam exames, no entanto, “tais exames são mero formalismo, não tendo participação decisiva”, porque quem decidia a progressão dos estudantes eram os próprios professores (COSSÍO, 1894a, p. 5-6).
Chama a atenção a flexibilidade nos usos desses exames nas escolas primárias desses países, ora sendo obrigatórios para promoção das crianças para os demais graus, ora sendo uma decisão do próprio professor, não havendo necessidade da ratificação por inspetores ou outros oficiais de Estado. Essa frouxidão é confirmada com a segunda pergunta: “Basta, para (o estudante) progredir, a aprovação do professor, sem a necessidade de exames?”, respondida, pela maioria dos delegados, que estaria a cargo do professor decidir a promoção dos estudantes7 (COSSÍO, 1894b, p. 334-335). Frente a essas informações, verifica-se que os exames poderiam até ser utilizados como ritual exigido para a criança “provar” a competência e a capacidade mínimas a serem exploradas nas próximas etapas da vida escolar. Seguro afirmar que essa decisão exclusiva do professor permitiu uma variedade de tipos de exames - algo confirmado pelo delegado francês -, bem como de critérios para julgar a “aprovação” das crianças, uma vez que não haveria uma orientação geral para as escolas oficiais nesses países. Esse “simples formalismo” quanto aos usos dos exames, como sugeriram alguns delegados, supõe crer que sua fragilidade foi um traço característico nos debates sobre esse procedimento à época. Não havia convicção sobre sua utilização e as formas como isso deveria ocorrer.
Assim, deve-se levar em consideração os apontamentos extraídos dessa coleta de informações de Cossío, revelando o descompasso entre a implementação dos exames como procedimento que conferiria a progressão dos estudantes nos diferentes graus da educação primária. No entanto, é a resposta dos delegados ingleses, ainda na primeira questão, que concede detalhes característicos desse procedimento, os quais os demais delegados não destacaram. Um dos delegados, Mr. Oscar Browning, professor da Universidade de Cambridge e diretor da revista Educational Review, esclareceu de antemão que o sistema educacional inglês era bastante diferente do espanhol, afirmando mesmo que não existia sistema educacional em seu país, uma vez que todo o ensino era privado e somente a educação primária era organizada pelo Estado. Segundo ele, a educação primária na Inglaterra era organizada em sete graus (ou classes), estabelecida por uma lei do Parlamento e
As subvenções das escolas são concedidas em vista aos resultados dos exames (payment by results), pelos quais se verificam a passagem (do estudante) de uma classe à outra e (estes) são presididos pelos inspetores oficiais, sem a presença dos docentes nessa banca. Está muito arraigada entre os ingleses a compreensão de que um exame escolar é mais um exame dos professores que de seus alunos, e nele fica muito perceptível o caráter de sporting de nossa raça. Se fala com frequência de alunos que são submetidos à um exame, como se tratasse de um troféu para o professor; como se este apresentasse cavalos para um concurso hípico. Demasiado efusivo é o vício capital de nosso sistema educativo (COSSÍO, 1894a, p. 6, destaques do autor).
O professor Browning noticiou importantes fatos sobre os exames no seu país. Primeiro, revelou que os órgãos de Estado estavam mais presentes no cotidiano das escolas primárias; em especial, os inspetores escolares (oficiais) tomavam a incumbência de proceder com os exames e julgar a promoção das crianças nos sete graus estabelecidos por lei. Isso demonstra uma maior diligência dos órgãos oficiais comparados aos demais relatos reunidos no questionário, conquanto essa racionalização sobre os procedimentos educacionais permita supor a busca por uma maior eficiência no controle de progressão dos estudantes nas escolas oficiais. Porém, emergem outras preocupações que estão cristalizadas nas descrições do professor inglês. Esse controle nos exames advinha também de uma escolha seletiva das escolas que seriam beneficiadas com recursos para ampliação e manutenção. As escolas que conseguissem uma melhor performance (melhores resultados) nos exames receberiam uma maior quantia das subvenções, isto é, havia uma relação direta entre a classificação obtida pela escola e a quantidade de recursos a que ela teria direito.
Não foi por acaso a analogia do delegado inglês, comparando os exames escolares na Inglaterra ao sport. Os valores da concorrência e da competição se tornaram a base dos usos dos exames, cuja finalidade não era somente medir o conhecimento das crianças, e, sim, identificar quais escolas seriam premiadas com as subvenções do Estado. Isso não é pouco, pois, como denunciou o professor Browning, os exames se consolidavam como um ritual escolar com um fim em si mesmo. Os alunos eram treinados para terem melhores resultados nos exames a fim de conseguirem destaques e louvores; isto é, os professores preparavam seus alunos como “cavalos de um concurso hípico” para competirem e depois serem expostos como crianças distintas e superiores. Ao menos nas colocações do professor inglês, “o vício capital do sistema educativo” de seu país estaria ancorado na vaidade que os exames despertavam em todos os envolvidos no processo pedagógico, tanto os professores quanto os estudantes. Dessa forma, o professor inglês advertia que a razão pela qual se exerciam os exames era a garantia econômica cedida para as escolas com os alunos que obtivessem melhores resultados. Para ele, a exploração dessas estratégias de emulação desvirtuava a preocupação central na qual os professores e os órgãos de Estado deveriam se concentrar: a assimilação do conhecimento por parte da criança.
Contudo, esse debate não era novo, e isso já estava sendo reclamado por Bartolomeo Cossío anos antes do Congreso. Na abertura do texto “Supresión de los exámenes en las Escuelas Normales”, publicado também na BILE, Cossío apresentava o tom das críticas que seriam levadas em suas reflexões sob a afirmação de que: “Concepções de diversas ordens justificam a necessidade de suprimir os exames de fim de curso em todos os estabelecimentos de educação e, especialmente, nas Escolas Normais” (COSSÍO, 1890, p. 369). O pretexto para tal oposição aos exames encontrava-se, a rigor, no reducionismo acadêmico que eles provocavam, pois tal procedimento se concentrava em um momento específico do ano letivo, obliterando todo o desenvolvimento depreendido no processo educacional ao longo do ano. Além disso, figurava sobre os exames a particularidade de examinar somente os conhecimentos intelectuais e teóricos, negligenciando, nas palavras do pedagogo espanhol, “A vocação, as condições de caráter, a moralidade” (COSSÍO, 1890, p. 369). Na concepção de Cossío, as dimensões morais também deveriam ser tomadas pelo juízo de valor dos professores, e somente eles teriam a competência e o acúmulo do conhecimento, após determinado tempo de observação das crianças, para realizar tal julgamento. Desse modo, nota-se uma preocupação de caráter moralizador, segundo a qual os professores deveriam estar atentos aos comportamentos e às condutas dos estudantes, para assim estabelecer quais e como determinados comportamentos precisavam ser consolidados no cotidiano escolar.
A insuficiência dos exames reiterava as críticas dos delegados ingleses no Congreso, uma vez que seu problema fulcral estava em serem um fim em si mesmos. Sobre essa consideração, Cossío afirmou que o
Resultado dessa preferência concedida ao êxito sempre aventurado e casual de um exame sobre o trabalho normal de todo o curso, é que os esforços dos alunos e professores se convergem para a preparação daquele ato (os exames), adestrando os primeiros na arte de sair dele ‘com lucidez’. Os exames são ‘a preocupação das famílias e dos alunos’ … que se constituiu como o verdadeiro fim da educação. Os exames não foram estabelecidos para comprovar os estudos, senão ao contrário, estes, para o exame (COSSÍO, 1890, p. 370).
A rejeição de Cossío aos exames ancorou-se no argumento de que a forma como vinham sendo utilizados tornou-os o propósito final da educação, aquilo que justificaria o processo pedagógico e tributaria credibilidade para a ação do professor. Como traço inovador, os exames não se destinariam a avaliar o conteúdo apreendido pela criança, mas, sim, o próprio ritual forneceria o status que a escola na modernidade desejava, ou seja, a imagem de uma instituição moderna e racional, que forjava procedimentos tangíveis e mensuráveis para julgar a evolução (ou não) dos alunos. Os exames assumiam, então, mais esse aspecto da racionalização da escola na modernidade, algo em voga e justificado pela ambiência naquele momento.
Circunscrita ao contexto espanhol, a adoção de exames e provas com o objetivo de medir o conhecimento dos alunos e verificar a possibilidade de sua promoção para graus mais elevados do estrato acadêmico acabou sendo uma prática impulsionada em decorrência do modelo de organização do sistema educacional adotado, ao longo dos anos finais do século XIX e início do século XX. Esse modelo observado na Espanha, de escola seriada ou graduada, contava com três graus acadêmicos: primera enseñanza, segunda enseñanza ou bachillerato e curso superior ou universitario. No percurso dos séculos XIX e XX, era habitual que os alunos de primera enseñanza que desejavam ingressar para o curso bachillerato fossem lançados a exames, com uma banca examinadora a julgar os conhecimentos daqueles saberes tradicionalmente conhecidos como teóricos (História, Geografia, Química, Física etc.).
Todavia, essa não era uma prática recorrente no grau de primera enseñanza: para a passagem do aluno pelos seus níveis (párvulos, medio e superior), ficava a cargo do professor tomar as decisões, sem a obrigatoriedade de aprovação dos escolares em provas, sendo praticamente inexistente essa prática na primera enseñanza (VIÑAO, 2004, p. 136). Essa inconsistência, que esteve presente no processo de promoção dos alunos, como afirma o historiador Viñao (2004), ensejou diferentes debates na Espanha, sobretudo em grupos organizados, tais como professores e catedráticos.
Em um longo debate que se estendeu na primeira década do século XX, sobre a permanência ou não dos exames públicos para o ingresso dos escolares no bachillerato, a “Associação de Catedráticos de Madrid”, em assembleia, deliberou que
Os exames são absolutamente necessários: no ingresso dos alunos para julgar sua suficiência e determinar sua atitude com relação ao segundo grau de ensino que deseja empreender; na conclusão do estudo de cada matéria, mesmo que esta esteja dividida em vários cursos, para declarar-lhe suficientemente instruído nela; e ao terminar ao bachillerato. Para apreciar se está ou não suficientemente preparado para receber um título que lhe habilita para seguir uma carreira ou dar por terminada sua instrução nos conhecimentos próprios da cultura geral, indispensável a toda a pessoa que deseje considerar-se regularmente culta (LA EDUCACION, 1904, p. 1, destaques do autor).
Ainda que essa convicção por parte de algumas associações e sociedades de classe em relação aos usos dos exames ficasse aparente, esta não foi a tônica naquele momento, e as incertezas frente aos usos desse procedimento pedagógico foram algo presente nas experiências espanholas. Como salienta Viñao (2004), essa falta de perícia do sistema educacional espanhol permitia uma flexibilização do uso ou não dos exames como método de promoção dos alunos.
Esse vácuo legal deixou aos centros docentes uma ampla margem de manobra no que era possível na inexistência de exames e o processo de promoção, a partir da apreciação diária do professor, com o estabelecimento, em especial nas escolas graduadas das cidades e em alguns colégios privados, de todo um sistema, mais ou menos ritualizado, de exames e modos de promoção (p. 137).
Cossío, em suas críticas anteriormente mencionadas, advogava que essa flexibilização nos exames seria fundamental, uma vez que a avaliação não deveria ser realizada em momentos específicos e sobre conteúdos determinados, mas ao longo de todo o ano letivo pelos professores, observando-se todas as faculdades da criança (COSSÍO, 1890, p. 369).
Doravante, examinar os estudantes constituiria também um procedimento para ou premiá-los ou puni-los, para exaltar os bons alunos a fim de retificar os que fossem exemplos indesejáveis. Aqueles alunos que tivessem resultados exemplares nos exames deveriam estar em destaque, o que se pode constatar no periódico pedagógico “Juventud Ilustrada”, editado em Barcelona, que separou uma seção de sua revista para estimular e premiar os “pequenos intelectuais” da nação espanhola, colocando suas fotos, como honraria, nas páginas da revista. Assim explicavam os editores:
SEGUROS de que podemos servir de nobre estímulo a nossos pequenos intelectuais, e como prêmio devido a quantos com sua dedicação têm logrado colocar-se em primeiro lugar em nossos centros de ensino, publicaremos nas páginas da REVISTA os retratos dos alunos mais notáveis com que contam os estabelecimentos docentes de todas as províncias da Espanha.
Se conseguirmos despertar a emulação naqueles que serão os homens do amanhã e contribuir com seu progresso, teremos alcançado nosso propósito para o bem da cultura nacional (JUVENTUD ILUSTRADA, 1905, p. 3, destaque do autor).
Pelo trecho acima, é possível constatar a tentativa, por meio dos exames e da divulgação das fotografias das crianças na revista pedagógica, de estimular um determinado modelo de criança e aluno, o “aluno notável”, no qual todos os outros escolares deveriam se inspirar e a partir dele praticar esse “bom” exemplo. Esse é um retrato da escola na modernidade, pois “a história da moderna escolarização corresponde a um lento processo de organização de estilos e de rotinas que perfazem, a seu modo, um jeito específico e característico de transmissão de saberes, de valores e de maneiras de agir” (BOTO, 2014, p. 103). A escola, na modernidade, adotou diferentes formas de reforçar saberes e costumes nas crianças, maneiras estas que se tornaram sutis e podem ser percebidas nesses instrumentos pedagógicos.
Tal procedimento era corriqueiro nas experiências escolares, um modo de enaltecer as virtudes dos estudantes, algo que não ficou restrito às publicações em periódicos e revistas, pois as escolas elaboravam suas estratégias próprias de premiação das crianças, por exemplo: estandartes com as fotografias ou quadros de honras emolduravam as fotografias dos estudantes exemplares (PIÑAS, 2020, p. 311). Tais práticas foram amplamente utilizadas como forma de conservar o bom modelo escolar. Manter a ordem e a disciplina nos ambientes escolares era preocupação recorrente entre os pedagogos. Dessa forma, a função de colocar a criança sub judice seria do professor, e essa tarefa não era somente recomendada, como era considerada primordial para que se avaliassem aqueles com melhores ou piores hábitos, de forma a manter a boa conduta no cotidiano de sala de aula e uma maior eficiência do processo educativo.
Ainda que de modo descontinuado e frágil, os exames foram impulsionados, servindo como procedimento para medir as faculdades intelectuais, físicas e morais dos escolares, ao passo de serem a “prova” tangível de que a criança tinha alçado o nível adequado para concorrer aos demais graus da sua trajetória escolar. Ao mesmo tempo, os exames tornaram-se métodos de negociação para estabelecer a disciplina e a boa conduta dos estudantes: aqueles que obtinham boas notas deveriam ficar em destaque, premiados com fotos em revistas ou estandartes das escolas, enquanto os alunos com comportamentos indesejáveis e capacidades insuficientes eram punidos com notas baixas e ficavam ausentes desses “quadros de estudantes notáveis”. A intenção foi, por meio desses procedimentos, modificar os comportamentos das crianças, uma verdadeira educação das sensibilidades. Isso não foi incomum para aquele momento, ficando essa forma de operar ainda mais evidente quando nos deparamos com as prescrições da diretora da Escola Moderna, Clemence Jacquinet.
EXAMINAR PARA MODIFICAR OS COSTUMES DOS ESCOLARES
Ora, sendo perceptível a falta de acordo quanto aos usos dos exames escolares, ou ainda, como afirma Viñao, sendo patente esse “vácuo legal” sobre a consolidação dos exames, esse fato foi terreno fértil para a flexibilização desse ritual, permitindo que as escolas tomassem o método que melhor lhes conviesse. Por sua vez, a Escola Moderna, em diferentes oportunidades em seu Boletin, queria deixar claro que não adotava as práticas de exames, e isso foi reiterado pelo seu fundador Francisco Ferrer y Guardia. Assim, ele explicava que “não queríamos criar uma desigualdade nova, e portanto, (...) não existia prêmio nem castigo, nem exames em que os alunos se orgulhassem da nota de ‘destaque’, enquanto os regulares se conformavam com a vulgar nota de ‘aprovado’ e os infelizes sofriam a reprovação e eram desprezados por incapazes” (FERRER Y GUARDIA, 2013 [1907], p. 85). Ao menos na dimensão do prescrito, Ferrer y Guardia não coadunava com o uso dos exames para a aprovação dos alunos para outros graus da primera enseñanza na Escola Moderna (Párvulos, Clase elementar 1, Clase elementar 2 e Curso medio8), utilizando um modelo próprio para sua promoção9. Segundo ele, os exames eram procedimentos pedagógicos que poderiam estimular determinados sentimentos indesejáveis nas crianças, tais como a infelicidade, o egoísmo e a vaidade.
Dos exames não se tira nada de bom e recebe, pelo contrário, o princípio do mal no aluno… os elementos morais que inicia na consciência da criança, esse ato imoral qualificado de exame são: a vaidade enlouquecedora aos altamente premiados; a inveja erosiva e humilhação, obstáculo das boas ações, aos menos capazes; e em uns e em outros, e em todos, o alvorecer da maioria dos sentimentos que formam a matriz do egoísmo (FERRER Y GUARDIA, 2013 [1907], p. 88).
Mas, a despeito do que arvorou Ferrer y Guardia sobre os exames na Escola Moderna de Barcelona, sua primeira diretora Clemence Jacquinet prescreveu diversas orientações para os docentes sobre as formas como deveriam examinar os estudantes de modo a julgar suas competências. Não foram os procedimentos formais, os exames “clássicos”, com banca examinadora e provas - instrumentos que constituíam praticamente um ritual de passagem em algumas escolas graduadas por essa época - os mecanismos que a Escola Moderna utilizou em sua dinâmica, pois ela instaurou um procedimento próprio sob as prescrições de sua diretora. Segundo Jacquinet (1901a, p. 8), observar de forma metódica o comportamento das crianças e sua participação nos trabalhos escolares era fundamental, uma vez que seria por meio dessas observações que o professor deveria planejar suas aulas. Por isso,
… é preciso saber discernir uma primeira impressão, anotar cuidadosamente as observações de todos os gêneros que suscitam nos primeiros dias de classe e estabelecer a característica de cada discípulos, com o intuito de poder dirigir a melhor ação sobre eles. Estas observações, que ao longo do desenvolvimento (dos alunos) se ratificam ou se modificam, tem um duplo propósito:
1.° Para orientar o professor em sua classe;
2.º Para ensiná-lo a retificar seu primeiro juízo e desconfiar das opiniões precipitadas (JACQUINET, 1901a, p. 8).
Ainda sobre exames, Jacquinet fez uma longa prescrição:
Repetiremos aqui o que já foi dito em classe, a saber: os exames não têm por objetivo colocar a prova o mérito do professor nem bajular nossos discípulos que tenham respostas brilhantes e uma bagagem de conhecimento mais ou menos substancial e bem consolidado. Não, o exame serve para que o professor julgue o que os discípulos assimilaram no curso do trimestre, especialmente, aquilo que se relaciona com sua inteligência: Aprenderam a observar? Começam a fazer deduções de suas observações? Manifestam o gosto pelos estudos, quer dizer, … existe algum ramo de conhecimento da qual mostre uma curiosidade positiva?
Isso é o que deve constar claramente no interrogatório da pessoa que examina os discípulos. Por consequência, para poder dar-se conta exata do estado intelectual dos discípulos convém em primeiro lugar que o exame não seja elaborado previamente, perdendo dez ou quinze dias planejando um interrogatório que serve somente momentaneamente para verificar memorização e obstruí as faculdades de juízo [dos discípulos] (JACQUINET, 1902a, p. 75, destaques da autora).
Percebe-se que Clemence Jacquinet se encontra bastante próxima da postura de Cossío no que se refere ao exame e aos modos de sua utilização. Os exames não poderiam ser o fim em si mesmos; também não deveria existir uma formalidade quanto ao dia de sua aplicação, nem seu uso como uma comprovação tangível das faculdades da criança. Para a diretora, os exames deveriam fornecer dados sobre os propósitos estipulados para a educação na Escola Moderna. Por isso, o interrogatório servia de baliza e era fundamental para verificar se os docentes tinham sido capazes de forjar o espírito livre e a capacidade de observação e para estimular a curiosidade das crianças nos estudos trabalhados, se haviam alcançado aquilo que a diretora desejava como fim pedagógico. Ademais, os exames, nas intenções da diretora Jacquinet, revelavam-se como um guia das ações dos docentes, um instrumento diagnóstico que permitiria ao professor elaborar suas ações. Essas informações eram obtidas de uma observação precisa e metódica do docente.
Cabe aqui evidenciar essa racionalização da escola na modernidade sobre a infância. As preocupações dos professores não estavam ancoradas somente no fato de terem que transmitir determinados saberes aos estudantes, mas o azo dessa racionalização da escola se encontrava nos modos a partir dos quais os agentes pedagógicos investiram em sua organização. Havia uma clara disposição em estabelecer parâmetros de infância (e discentes) nos quais, através dessa avaliação metódica, se encaixavam os estudantes em variados modelos. Dessa forma, a escola na modernidade buscou uniformizar as crianças em categorias, de modo a homogeneizar os ambientes escolares sob o pretexto de buscar uma melhor eficiência no processo de aprendizado, o que permite constatar uma influência dos estudos psicológicos impulsionados no curso da segunda metade do século XIX, que dividiam os níveis de desenvolvimento da criança a partir da idade (GOUVÊA, 2008). Essa seletividade, segundo o pensamento em voga, permitiria que o docente se apropriasse melhor da evolução dos alunos, fazendo, assim, um exame mais rigoroso que forneceria maiores informações para suas intervenções pedagógicas.
Os reflexos dessa lógica sobre os exames são observáveis quando percebemos que sua utilização fazia parte desse processo de seleção e classificação das crianças, a fim de agrupá-las em níveis intelectuais (e provavelmente etários), conforme sugeriu Jacquinet.
A propósito dos estudos, tínhamos a intenção de dedicar o mês de Setembro ao exame dos discípulos antes de classificá-los, mas bastou somente um dia para constatarmos nosso completo desconhecimento e (desse modo) a classificação ..., se funda sobre todo o grau de desenvolvimento intelectual que temos encontrado em cada criança (JACQUINET, 1901b, p. 9).
Aparentemente, no primeiro ano da Escola Moderna, os docentes efetuavam os exames dos alunos todas as semanas, observando-os e verificando a evolução dos estudantes, comparando suas observações com as das semanas anteriores. Esses exames eram divulgados, mensalmente, na seção “Observaciones” e “Memoria de los estudios” (JACQUINET, 1901b, p. 8-10; JACQUINET, 1901c, p. 23-24; JACQUINET, 1901d, p. 35; JACQUINET, 1902b, p. 46-48). Conforme ilustrou Jacquinet sobre esse procedimento,
A impressão que tivemos dos alunos na primeira semana de classe e a disposição que manifestaram foram, em geral, satisfatórias.
Hoje devemos examinar se as duas semanas seguintes confirmam nossas observações, se confirma o progresso (dos alunos) ou se devemos modificar nossas primeiras impressões (JACQUINET, 1901b, p. 9).
No entanto, esse exame também deveria partir de outras duas questões: “1.º Conseguimos estabelecer ordem na classe, deixando os discípulos em liberdade? Em caso negativo, que meios empregamos?” (JACQUINET, 1901b, p. 9). Nessa passagem, verifica-se outro propósito para os exames, para além daquele interrogatório inicial com o objetivo de investigar a apreensão dos conhecimentos e o despertar do “espírito científico”: havia também um interesse na disciplina dos estudantes; examinar as crianças pressupunha, ademais, avaliar seus comportamentos. A escola assume, assim, o papel de reguladora moral e promotora de novos hábitos na infância, não estando focada em somente transmitir o conhecimento científico. Curioso que a resposta para a primeira pergunta lançada por Jacquinet seja um verdadeiro tratado em defesa da ordem, do cumprimento do dever, da disciplina e da autoridade do professor no processo de formação dessas crianças. Isso salienta os dilemas da Escola Moderna de Barcelona, que se via em um território dúbio, querendo, por um lado, insistentemente difundir a importância de uma educação pela/para liberdade, e, por outro, desvelando seus intentos disciplinadores com a justificativa de que seriam um mal necessário para a melhoria do processo formativo das crianças. Via de regra, duas dimensões presentes nas teorias pedagógicas naquele momento, e que a própria Jacquinet denunciou suas inconsistências e incoerências entre as prospecções teóricas dos renovadores educacionais e o pragmatismo da realidade no ambiente escolar.
A primeira pergunta responderemos que a experiência tem demonstrado uma vez mais a grande distância que existe entre a teoria e a prática; a educação liberal é excelente sob a condição de realizá-la com discernimento; se se quer realmente que as crianças cheguem a ser homens livres, é preciso começar por fazê-los compreender e conhecer seus deveres, e... de aceitarem a disciplina do trabalho (JACQUINET, 1901b, p. 9).
Embora houvesse alguns apontamentos quanto a exames e a interrogatórios que visavam medir a “inteligência” das crianças, tudo indica que nessa primeira fase da Escola Moderna de Barcelona, período em que Jacquinet esteve na direção (1901 -1902), as preocupações inerentes aos exames dos estudantes aglutinavam critérios comportamentais e disciplinares10. Não obstante, Clemence Jacquinet, com o intuito de orientar os docentes para esse tipo de exames, prescreveu uma longa orientação no Boletin quanto ao perfil dos alunos, sua “natureza” e “caráter”.
Em nível prescritivo, são concatenados critérios comportamentais, enquadrando os alunos em grupos de “caráter” específico, com o claro propósito de educar as vontades dos alunos a uma projeção racionalizada pela diretora, uma forma sutil de mudança das sensibilidades dos escolares a partir da atuação dos professores. Os estudantes eram classificados em quatro categorias: “Os indiferentes, os impulsivos, os reflexivos e os sensíveis” (JACQUINET, 1901a, p. 6). As prescrições da diretora têm seus contornos sob a ordem e as boas condutas na sala de aula:
Os indiferentes, que não são bons nem maus, formam, infelizmente, a grande maioria do público escolar: são os dóceis, que seguem a corrente. Se a aula é atrativa, e se encabeça com alguns alunos seletos que levem os demais pelo bom exemplo, os indiferentes serão bons alunos; cumprirão suas obrigações, não perturbarão a ordem e todo o seu tempo escolar será um momento pacífico. (JACQUINET, 1901a, p. 6).
Percebe-se a valorização do aluno indiferente quando este é “ordeiro”, “cumpridor das obrigações” e “dócil”; entretanto, esse aluno, passível de ser facilmente persuadido pelos “maus exemplos”, poderia se tornar um perigo, como salientava Jacquinet:
Mas ao contrário disso, se estiverem em contato com colegas que discordam com o dever, constituirão a multidão de admiradores que aplaudem ou imitam todo o mal.
Os indiferentes não sabem querer nem fazer nada por conta própria; são a praga mais funesta de uma Escola, como serão depois a parte mais perigosa da Sociedade. (JACQUINET, 1901a, p. 6).
É perceptível que as orientações se concentravam sob a ordem e execução das tarefas em sala de aula; mesmo que não constatemos o comportamento ideal que os alunos deveriam incorporar no entendimento da diretora, podemos inferir as atitudes que não deveriam ser reproduzidas - por exemplo, o aluno estar em “desacordo com o dever”. Portanto, era primordial para a diretora que o aluno estivesse de acordo com valores como probidade, recato, decoro, assim como estivesse concentrado no dever do trabalho escolar.
Mas o que parece mais espantoso é a identificação dessa categoria de alunos com a falta de autonomia, caracterizando-os como uma “praga” para a escola e um “mal” para a sociedade. Logo, parece que a Escola Moderna desejava estimular a autonomia dos alunos, o agir por si mesmos e por vontade de seus interesses; porém, paralelamente, a diretora identificava costumes que não deveriam ser praticados e investia em regular essa autonomia. Assim, atuava ora regulando comportamentos que os alunos deveriam incorporar para que a ordem fosse mantida em sala de aula, ora manifestava seu interesse em estimular uma vontade própria dos alunos. Aparentemente, esses interesses são ambivalentes, o que provavelmente nos faria considerar intenções conflituosas. Contudo, a diretora nos fornece outros indícios da racionalização dos exames dos alunos, esclarecendo essa postura:
Os impulsivos, muito diferentes dos anteriores, seguem os movimentos de uma imaginação muito viva e se encontram submetidos a todos os impulsos, a todas as demandas do prazer. São, em geral, naturezas sinceras, porém não reflexivas, que jamais se ocupam mais do que do momento presente; mas tem de se reconhecer que para eles até o trabalho mais árido pode constituir-se em diversão passageira. Sua característica é a inconstância.
O impulsivo esquece seu dever para se entregar totalmente à brincadeira que lhe atrai. Depois, quando o prazer termina, percebe as consequências de sua distração, e, como é bom e não lhe falta amor-próprio, teme a merecida repressão, e somente pensa em evitá-la; então, com muita frequência, recorre às desculpas ‘problemáticas’, assim, depois de um dia de recesso, queixa-se, invariavelmente, de uma forte dor de cabeça que, segundo ele, deve-se à lição esquecida (JACQUINET, 1901a, p. 6).
Fica evidente que a diretora queria projetar comportamentos voltados para o que era considerado como “bom tom”, que configurava atitudes “boas” e “corretas”. Assim, os impulsivos deviam ser controlados: seus impulsos irracionais em busca de prazer deviam ser moderados. Os excessos tinham que ser regulados para o “bom” comportamento e a “ordem” serem mantidos, além de, logicamente, manterem o aluno concentrado em seus deveres. Os alunos que esqueciam suas lições por estarem envolvidos nesses excessos de diversão eram considerados preguiçosos e deviam ser condicionados a outros hábitos mais condizentes com a escola da modernidade: hábitos de uma criança comprometida com o trabalho, autocentrada e moderada nos seus comportamentos. Novamente, em algumas categorias, se observa uma regulação moral dos escolares.
As naturezas reflexivas são as menos frequentes, o que se percebe facilmente tratando-se de crianças. Estes alunos precisam mais que todos os outros de uma educação moral bem compreendida; porque nada é mais fácil, se a família não cumpre bem sua missão desde o início, que se modifiquem as disposições tão preciosas da inteligência nos sentimentos mais perversos (JACQUINET, 1901a, p. 7).
A diretora acrescentava que suas orientações formuladas para essa categoria estavam estabelecidas por uma dimensão ética. Podemos averiguar tal fato quando observamos, na prescrição, uma retórica que condenava os alunos que, aproveitando-se de suas vantagens intelectuais, praticavam trapaças, mentiras e dissimulações. O arbítrio de uma vontade deveria ser controlado, pois essa autonomia poderia atentar contra os valores morais e os sentimentos que a Escola Moderna queria realçar na criança. A alegria, a felicidade e o prazer deveriam ser estimulados, mas nunca quando eram conquistados de maneira a prejudicar a austeridade e a boa ordem da sala de aula, bem como trazer prejuízos a outros alunos.
Os reflexivos são, infelizmente, o conjunto dos hipócritas. Para uma criança cuja inteligência privilegiada se manifesta prematuramente e dá generosos e abundantes resultados, encontrar-se-ão cinquenta, nos quais todas as faculdades de atenção e reflexão se dirigirão a fim de gozar de todo o prazer possível, ainda que à custa dos outros. O embuste lhe parece um ato de habilidade, cujo gozo saboreiam com satisfação, tanto pelo que conseguem, como pela convicção que adquirem de sua superioridade sobre os companheiros, e até sobre o professor a quem burlam, por considerá-lo ridículo (JACQUINET, 1901a, p. 7).
Não obstante, na prescrição da diretora, havia aqueles comportamentos que eram valorizados, mas não declaradamente tidos como ideais. Aparentavam qualidades que deveriam ser ressaltadas, um idealismo sobre a infância, apresentando a criança como um ser frágil, intocável e indefeso. Essa concepção era adotada, por exemplo, com as “crianças sensíveis”, que, segundo a diretora, necessitavam de uma intervenção bondosa e carinhosa do professor, de forma a ganhar sua confiança, enfatizando as coisas boas que a criança fazia, estimulando-a aos deveres em sala de aula.
As crianças sensíveis são numerosas, e sua sensibilidade se manifesta de maneiras muito variadas. São estas crianças, predominantemente, de um organismo delicado, às vezes doentio. Alguns são vivos e excessivos em todas as suas ações; outros são sonhadores e concentrados em si mesmos; outros, por último, são excessivamente tímidos, e sentindo-se estranhos em meio aos seus companheiros, geralmente, passam por tontos diante daqueles que não têm vontade de conhecê-los. As crianças sensíveis necessitam, mais que outros, confiar em quem seja seu guia, porque seu coração está pronto a abrir-se para quem lhes manifeste bondade. É preciso observá-los, destacar suas boas qualidades, mostrar muito afeto, porque esta é a única atmosfera na qual se desenvolverão e poderão aprender a forma em que sua sensibilidade seja útil ao bem geral, impedindo, ao mesmo tempo, que se desviem sobre objetos indignos de sua atenção (JACQUINET, 1901a, p. 7).
Todo o esclarecimento de Jacquinet se coaduna com os discursos recorrentes naquele momento, ou seja, uma preocupação em verificar os níveis de conhecimento e assimilação do saber científico alcançados pelos escolares, paralela à tentativa de se escrutinar a dimensão moral e comportamental da infância, de modo a enquadrar a criança em uma categoria, implementando novos hábitos e costumes baseados nesse modelo de infância idealizado. A despeito da negação de suas práticas por parte de Ferrer y Guardia, como dito anteriormente, os exames foram largamente utilizados, e, como veremos na sequência, fica ainda mais evidente o teor moralizador dessa prática na Escola Moderna de Barcelona.
OS EXAMES E AS SENSIBILIDADES
Mesmo que os registros sobre os exames sejam dispersos e irregulares nessa primeira fase da Escola Moderna, que inclusive é o período em que se encontra um maior número de registros dessa ordem, eles dão conta do esforço de Clemence Jacquinet em tentar estabelecer um paradigma de exames a serem reproduzidos pelos docentes. No entanto, esses mesmos registros deixaram um vestígio que permite deduzir que esses exames não eram realizados da forma que Jacquinet desejava. As determinações de certas práticas na Escola Moderna não eram decisão exclusiva de Jacquinet; essa escolha também era compartilhada com os demais professores. O não cumprimento das orientações da diretora são arvorados por ela própria em um artigo no Boletin:
Repetimos: temos cometido um erro quando não operamos de improviso.
Para uma diretora, todas considerações estranhas para o bem dos discípulos devem ser rechaçadas.
Rogamos, então, para os senhores professores da Escola que compreendam nossas intenções e as apliquem do modo indicado (JACQUINET, 1902a, p. 75).
A diretora desejava fugir das formalidades dos exames clássicos praticados em outras experiências escolares, mas, provavelmente por pressão ou falta de opção, abriu mão de seus exames flexíveis e elaborou um tipo de exame destinado à sua preocupação maior, o comportamento das crianças. Nesse sentido, os exames não se utilizavam das categorias definidas por Jacquinet (indiferentes, impulsivos, reflexivos e sensíveis); no entanto as características comportamentais dessas categorias eram associadas aos nomes das crianças. As “Notas Pessoais dos Alunos” são dados que mostram de que maneira eram realizados os exames dos alunos. Verificamos que, na atuação em sala de aula, o exame toma contornos de moralização e adequação dos alunos a uma rotina escolar desejada pela diretora. Eram atribuídas notas acompanhadas de uma descrição qualitativa do comportamento, que caracterizava os estudantes entre “bons” e “ruins”, e/ou descrevia recomendações de como se portarem.
Além dessa, outra ocorrência permite um estudo de como os exames foram mobilizados no cotidiano escolar. A passagem a seguir demonstra a publicização de comportamentos considerados inadequados e praticados por determinados alunos, que têm seus nomes e seus malfeitos expostos no Boletin.
Os alunos Antonio Capdevila, Pedro de José y Dolores Alfágeme devem ter mais força de vontade. Intelectualmente só dormem e isto é a causa que não os põem em nível dos outros companheiros de classe. Dolores Valls, Daniel Compte, Marina Canibell, Manuel Moles, Mauri Montoro, Genoveva Padrós, cumprem bem, mas de vez em quando a distração os domina. (JACQUINET, 1902c, p. 82).
Percebemos o quanto Clemence Jacquinet tornava relevantes essas características evocadas como conspícuas para a vida moderna. Em que pese essa sociedade de avanços e progressos intensos, pelos quais as experiências passavam de forma rápida, bem como os processos de industrialização e modernização que ocorriam de forma acelerada, impactando a vida da população, essa experiência escolar não poderia ter como prospecção crianças “pouco aplicadas”, “distraídas”, “preguiçosas”, que “trabalham pouco”, “inconvenientes” etc. Simultaneamente, Jacquinet acentuava os bons exemplos que deveriam ser imitados: as crianças de “boas condutas”, “inteligentes” e “aplicadas”, por exemplo. Vemos que essas características dos alunos estão catalogadas juntamente com suas notas, uma notável evidência do intento de classificar e hierarquizar os alunos em “melhores” e “piores” e, assim, distinguir as condutas que deveriam ser imitadas e aquelas que deveriam ser corrigidas.
O procedimento de examinar e classificar os alunos em notas, enquadrando-os em melhores e piores, dando descrições qualitativas ligadas à moral e ao comportamento, tencionava a mudança das sensibilidades dos alunos a partir de exemplos a serem tomados como ideais; tal método estava inserido em um modelo habitual de escola desse período. Boto (2014) provoca-nos a pensar sobre isso quando afirma que: “Dizer que a escola ensina princípios e atitudes significa considerar também que, do ponto de vista educacional, o ensino parte de textos escritos, mas registra, para além disso, a acepção da exemplaridade como um código fundamental” (p. 105).
Esses exemplos poderiam ser estimulados através de outra estratégia. Assim como se publicavam fotografias dos estudantes de modo a enaltecer os bons alunos das escolas em Barcelona, como mencionado anteriormente, a Escola Moderna de Barcelona operou da mesma forma, publicando fotografias das clases com o nome dos estudantes e seu comportamento e nível de comprometimento com os trabalhos escolares, conforme podemos verificar nas imagens a seguir:
Fonte: Boletín de la Escuela Moderna de Barcelona, Miscelánea infantil - Ciencia e Literatura (Clasificación de los Discípulos) (1903a, p. 28 [242]).
Fonte: Boletín…, Miscelánea infantil - Ciencia e Literatura (Clasificación de los Discípulos) (1903a, p. 28 [242]).
Fonte: Boletín…, Miscelánea infantil - Ciencia e Literatura (Clasificación de los Discípulos) (1903a, p. 27 [241]).
Claramente, a Escola Moderna tinha como intenção utilizar-se dessas imagens como estratégia de emulação para as crianças buscarem um melhor comprometimento com as atividades e, por consequência, incutir esse modelo de infância idealizado. A hipótese que explica tal procedimento é que se acreditava que a exposição poderia contribuir para a correção de maus comportamentos, quer constrangendo publicamente o aluno, quer notificando a família.
Com a saída da diretora Clemence Jacquinet no segundo ano de curso (1902-1903), a Escola Moderna modificou seus procedimentos e começou a realizar exames com apresentações orais e trabalhos escritos (epistolários) no fim do ano escolar, ao menos para os alunos mais velhos da Clase Superior (9-12 anos14), como consta em seu Boletin.
No domingo 28, se celebrou uma sessão solene do fechamento do ano escolar, cujo ato, ... pode ser comparada com os exames que normalmente as escolas celebram por essa época.
Alunos das diferentes sessões (classes) leram trabalhos bastante originais, alguns escolhidos para serem publicados neste BOLETÍN, que causaram admiração do auditório. (BOLETIN, 1903b, p. 106).
No número seguinte, os referidos escritos dos estudantes foram publicados, apenas os excertos, para fornecer ao público leitor os parâmetros educacionais e saberes que estavam sendo difundidos naquela experiência. De início, o artigo insiste que a Escola Moderna não praticava esse procedimento de exames para a progressão dos estudantes nos graus escolares definidos, tornando públicas, inclusive, algumas denúncias contra essa prática escolar. Contudo, ainda que tentasse negar pela insistência, o que se estava realizando era um evento para verificar o conhecimento dos escolares naquele momento específico, servindo de ritual de passagem e marcando o fim de um ciclo e o início de uma nova jornada formativa.
Parece que isso seria um procedimento importante para a Escola Moderna, uma vez que, a partir desses exames, a Escola selecionou excertos para serem divulgados como “modelos de pensamentos dos bons estudantes”. Destaco somente um dos excertos: “Uma Nação ou Estado, para ser civilizado”, dizia um aluno de 12 anos, “é preciso que suprima o seguinte”:
1º A coexistência de pobres e ricos, e como consequência a exploração.
2º O militarismo, meio de destruição empregado por algumas nações contra outras, devido a má organização da sociedade.
3º A desigualdade, que permite uns governar e mandar e obriga à outros humilhar-se e obedecer.
4º O dinheiro, que faz os ricos subjugarem os pobres (BOLETIN, 1903c, p. 1-2).
Percebe-se que, naquele momento, existia uma mudança no foco dos exames na Escola Moderna, havendo uma menor preocupação com as condutas e os comportamentos dos estudantes, para então se centrar nas questões ideológicas. São notórios, na passagem anterior, traços da ideologia anarquista no pensamento do estudante, que se revelam em suas críticas antimilitaristas e anticapitalistas. E isso não é por acaso, pois muitos dos manuais escolares utilizados pela Escola Moderna enfatizavam em seu conteúdo princípios antiautoritários advindos do anarquismo (anticapitalismo, antimilitarismo, anticlericalismo etc.), como alguns estudos já mostraram (MURO, 2009; PRADO DA SILVA, 2021). Isso evidencia o que estava sendo valorizado quanto ao conteúdo a ser assimilado pelos estudantes naquele momento. Esse ritual de exames com apresentações orais e epistolários perdurou até o fechamento da Escola Moderna (1906), servindo como evento final dos anos escolares (BOLETIN, 1903d, p. 37-39; BOLETIN, 1904, p. 1-5; BOLETIN, 1905, p. 1-3).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com essa mudança na Escola Moderna, portanto, verifica-se que o estudo sobre os exames na escola revela a hierarquização dos saberes, mostrando aquilo que a instituição escolar na modernidade tinha intenção de ensinar à infância, lançado como primordial em seu projeto educacional. Se debruçar sobre a questão dos exames tornou possível extrair o que era fundamental aos agentes pedagógicos para a formação dessa infância idealizada; e, ao observar as práticas dos exames na Escola Moderna de Barcelona, isso fica aparente, sendo claramente perceptível a seletividade daquelas virtudes ou conhecimentos que eram sublinhados nos registros sobre os exames publicados no Boletin. Esse fato revela que a Escola Moderna assumiu diferentes posturas quanto aos usos dos exames, principalmente sobre aquilo que desejava que a criança depreendesse dos estudos: ora existia uma maior preocupação com a ordem e a disciplina nos ambientes escolares, ora se preocupava em transmitir um conhecimento crítico, de teor ideológico e notadamente de inspiração anarquista (anticapitalista, antimilitarista etc.), o qual as crianças deveriam assimilar. A Escola Moderna mostrava-se fiel ao que acreditava serem os propósitos de sua educação: romper com os ideais capitalistas e toda a ideologia que exaltasse as instituições consideradas por ela como autoritárias, tais como o Estado e a Igreja Católica. Esses exames foram um bom parâmetro, pois evidenciaram o que a Escola Moderna acreditava ser o ideal de seu ensino, quais conteúdos e saberes os estudantes deveriam adquirir, quais pensamentos deveriam ser apropriados pelos outros escolares etc.
Frente às preocupações disciplinadoras aparentes nas fontes, vejo certo pragmatismo de Jacquinet, no sentido de que o modelo ordeiro e disciplinado de infância, idealizado por ela, favoreceria a “eficiência escolar”, uma vez que a criança estaria disposta a se concentrar nos trabalhos escolares, resultando na maior assimilação dos conhecimentos transmitidos. Estando certa ou não, a prática dos exames na Escola Moderna de Barcelona revela um evidente jogo de poder entre docentes, bem como entre docentes e estudantes. Quanto a estes últimos, seguramente, as fontes não nos permitem desvendar seus atos de resistência e desacordo com tais procedimentos; no entanto, foi possível verificar que a fragilidade dos usos dos exames por essa época era tamanha que os próprios docentes se sentiam à vontade para romper com as orientações da diretora Jacquinet e estipular seus próprios rituais avaliativos. Essas incertezas e flexibilidades deixam uma questão importante para pensarmos quando nos debruçamos sobre experiências de escolarização e movimentos de inovação e reforma pedagógica decorridos no largo na história: seriam mesmo esses procedimentos invocados como modernos, novos ou inovadores, independente de qual fosse a ordem - teórica ou prática -, transformações que trouxeram melhorias para os diferentes modelos pedagógicos que vinham sendo difundidos? Certamente não podemos responder de maneira açodada a essa questão, logo, é uma pergunta pertinente a ser feita quando nos deparamos com nossas investigações sobre a História do Currículo.
Diante do que foi exposto, podemos afirmar que o exame foi um registro do cotidiano escolar e revela a que patamar os grupos e subgrupos dos agentes pedagógicos pretendiam chegar com o processo educativo estipulado por eles. Examinar tributava o que (a quem) estava sendo medido certo grau de importância. Para isso, era preciso selecionar o que era importante ser medido, fornecer juízo de valor sobre o que estava sendo medido, para enfim, categorizá-lo e classificá-lo de modo hierárquico. Mas também, com os exames, agia-se diretamente sobre os corpos, sobre os modos segundo os quais a infância deveria se portar. Em suma, o exame era utilizado como forma tanto de categorização e classificação dos escolares, quanto como um instrumento de regulação, com o intuito de modificar os comportamentos das crianças ou reforçar aqueles considerados adequados.