INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019, na China, foi descoberto um novo coronavírus, causador da síndrome respiratória Covid-191. Com alto nível de contaminação, esse patógeno espalhou-se rapidamente pelos continentes, repercutindo na saúde da população global - 5% dos casos necessitam de suporte intensivo com taxa de mortalidade podendo chegar a 40%2)-(4. Isso levou a Organização Mundial da Saúde a declarar a situação como pandemia em março de 20205.
Assim, objetivando diminuir a transmissão do vírus e evitar o colapso do sistema de saúde, determinou-se o distanciamento social mediante suspensão de eventos, cancelamento de viagens e fechamento do comércio, de empresas e instituições de ensino, de modo a reduzir o contato entre as pessoas6.
No estado de Santa Catarina, as aulas presenciais em todos os níveis de educação foram suspensas pelo Decreto nº 525, de março de 2020, sem perspectiva de normalização, até a autorização do retorno gradual das atividades em sala de aula em novembro7),(8. Entretanto, durante esse período de incertezas, para atenuar o impacto da Covid-19 na esfera pedagógica e garantir o aprendizado dos alunos, o Ministério da Educação por meio da Portaria n° 343/2020 autorizou o uso de tecnologias virtuais para implementação do ensino remoto/emergencial para substituir, em caráter excepcional, as aulas teórico-cognitivas presenciais9),(10.
O ensino remoto configura-se como solução para dar continuidade aos estudos em meio à pandemia, e seu objetivo não é formular um sistema educacional, mas sim realizar as aulas de maneira semelhante às que seriam no presencial utilizando-se recursos digitais11. A educação a distância (EaD), regulamentada para todos os níveis de educação no Brasil em 1996, é uma modalidade de ensino que apresenta estrutura e metodologias preestabelecidas para a condução do processo de ensino-aprendizagem por tecnologias digitais de informação e comunicação (Tdic) com professores e alunos em espaços físicos diferentes12),(13.
O fechamento de uma universidade comunitária em Santa Catarina também resultou nessa passagem do presencial ao on-line. Isso ocasionou, no curso de Medicina, uma situação disruptiva em relação ao formato de ensino, visto que se utilizam metodologias ativas na formação acadêmica que não haviam sido aplicadas digitalmente até o momento.
As metodologias ativas aplicam situações-problemas simuladas ou reais advindas da prática profissional durante as discussões em grupos para que o estudante busque explicações para responder ao conflito, levando-o à produção de conhecimento e ao desenvolvimento individual e coletivo14. A atividade pedagógica visa fortalecer a autonomia do discente e torná-lo pertencente à sua construção profissional para estabelecer um aprendizado sólido e criar consciência crítica. O professor não transmite saberes, mas acompanha o desenvolvimento do aluno e estimula a busca por conhecimento e autossuficência15.
Dessa circunstância surgem questionamentos acerca do processo educacional. Gordon et al.16 indagam se as instituições de ensino possuem os recursos necessários e se estão preparadas para essa mudança para o virtual. Já Gomes et al.17 interrogam se o ensino emergencial afetará a formação de futuros médicos em quesitos técnicos e nas relações pessoais, e se esse processo trará respostas inovadoras para a educação. Enfim, quais seriam as perspectivas do corpo docente sobre essas questões?
Com este estudo, procurou-se investigar como os professores de um curso de Medicina que utiliza didaticamente metodologias ativas perceberam a vivência de aulas remotas durante a pandemia do coronavírus. Este estudo teve como objetivos ampliar as concepções sobre a EaD na ótica desse formato educacional e entender suas repercussões no processo de ensino-aprendizagem.
MÉTODO
Trata-se de pesquisa de campo por coletar informações de indivíduos, com o objetivo exploratório de trazer familiaridade com o problema por meio da construção de hipóteses18. A abordagem é quanti-qualitativa, enfocando o qualitativo. Atribuem-se ao quantitativo as propriedades mensuráveis, e o qualitativo envolve o significado dos conteúdos18),(19.
O trabalho passou por apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa consoante com a Resolução nº 466/201220 do Conselho Nacional de Saúde, tendo aceite com CAAE nº 34217420.70000.5368. Asseguraram-se confidencialidade e privacidade dos participantes.
Os participantes foram selecionados por facilidade de acesso (amostra não probabilística por acessibilidade)21. O universo da pesquisa constituiu-se pelos professores do primeiro ao quarto ano de Medicina da universidade em questão, responsáveis pelos cenários de tutoria e Unidade Prática de Saúde na Comunidade (UPSC) que realizaram aulas teóricas remotas durante a restrição das atividades presenciais. Ambos os cenários são formados por grupos de oito a dez estudantes e um professor.
A tutoria envolve aprendizados teóricos aplicados por Aprendizagem Baseada em Problemas. Desenvolve-se mediante apresentação de problema preparado pelos professores-tutores e relacionado com quesitos necessários para a formação; os alunos realizam chuva de ideias para a análise da problemática e a identificação de lacunas de conhecimentos, definindo os objetivos de aprendizagem; após estudos pessoais, os temas são discutidos em aula resolvendo-se o conflito22),(23.
A UPSC utiliza como didática a problematização, contando com parte prática desenvolvida nas unidades básicas de saúde e com aula teórica denominada ciclo. O processo baseia-se nos seguintes aspectos: identificação de uma lacuna de conhecimento durante a vivência prática dos discentes; determinação de um foco de estudo para fomentar sua capacidade de busca de soluções reflexivas; elaboração de hipótese com base em referencial teórico; e aplicação do novo conhecimento na realidade (ação-reflexão-ação)23),(24.
Os docentes foram contatados por e-mail e WhatsApp por conta da limitação do convívio social. Forneceram-se informações sobre a proposta de pesquisa em link que direcionava ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para aceite em colaboração com o estudo20 e ao questionário. A coleta de dados ocorreu entre novembro e dezembro de 2020.
O questionário foi um interrogatório autoaplicável em duas etapas formulado pelas pesquisadoras na plataforma Google Forms. O primeiro momento compreendia questões sobre idade e sexo dos participantes acompanhadas de nove perguntas objetivas com quesitos escalonados e possibilidade de uma escolha relativas aos seguintes aspectos: sentimento de preparo para atuar virtualmente, experiência prévia com EaD, discussão com colegas sobre a situação, solicitação de auxílio, recebimento de orientações sobre aulas on-line, percepção de lado positivo da mudança, aprimoramento em ser professor, dificuldade de adaptação de rotina e extenuação durante esse período.
A segunda parte contou com nove questionamentos com respostas descritivas para avaliação subjetiva da opinião dos participantes acerca de: facilidades/fragilidades da educação virtual, possíveis aprendizados com essa experiência, ferramentas digitais e recursos tecnológicos utilizados, carências de recursos da sala de aula, cumprimento das atividades, qualidade do ensino, mediação do docente nas aulas e vivências significativas. Ao final havia espaço para comentários.
A análise dos dados objetivos foi descritiva - as estatísticas automaticamente construídas pelo Google Forms levaram ao processamento por meio de cálculo matemático, apresentação em tabelas e interpretação, de modo a explorar os dados18),(25. Para a apreciação qualitativa, aplicou-se análise temática de conteúdo, na qual se produzem inferências sobre temas relevantes no discurso e apuração da frequência com que aparecem19, conforme mostra o fluxograma da Figura 1. A análise de correlação, que verifica a intensidade de associação entre variáveis26, foi realizada manualmente pelas pesquisadoras por cálculo simples de relação linear baseado em tabela formulada no Excel, exibindo-se as de maior significância.
Por fim, a consulta à literatura foi ampliada por meio de busca não sistemática em bases de dados, com escolha do material feita por critério das pesquisadoras. Puderam-se confrontar os resultados obtidos com o referencial teórico sobre educação durante a pandemia do coronavírus para responder às suposições indagadas, produzir conhecimentos e conferir significado aos dados27.
RESULTADOS
Em 2020, a universidade contava com 42 docentes, dos quais 29 responderam à pesquisa (69%). Dos entrevistados, 15 eram professores de tutoria (52%), 12 eram professores da UPSC (41%), e dois eram professores de ambas unidades educacionais (7%). Participaram 16 docentes do sexo feminino (55%) e 13 do sexo masculino (45%). Por faixa etária, havia dois professores abaixo de 30 anos (7%), 11 entre 31 e 40 anos (38%), sete entre 41 e 50 anos (24%), quatro entre 51 e 60 anos (14%) e cinco acima de 60 anos (17%).
As perguntas quantitativas referem-se ao preparo dos docentes para atuar no ensino remoto. Conforme categorização das questões qualitativas, separaram-se três tópicos: facilidades, fragilidades e aprendizados observados nas aulas on-line; aplicabilidade das tecnologias digitais no ensino remoto; e repercussões do ensino remoto na aprendizagem e atuação do professor em metodologias ativas. Referenciaram-se as falas dos participantes por números entre parênteses.
Preparo dos docentes para atuar no ensino remoto
Os valores absolutos e relativos das perguntas quantitativas constam na Tabela 1.
Pergunta | Resposta (N e %) |
---|---|
Você se sente preparado para a EaD? | Não: 5 (17,2%) |
Parcialmente: 19 (65,6%) | |
Totalmente: 5 (17,2%) | |
Você já tinha experiência com a EaD? | Como docente, apenas: 1 (3,4%) |
Como discente, apenas: 8 (27,6%) | |
Como docente e discente: 2 (6,9%) | |
Nunca: 18 (62,1%) | |
Você discute com outros docentes do curso de Medicina sobre as melhores maneiras de proceder nesse momento? | Nunca: 1 (3,5%) |
Às vezes: 15 (51,7%) | |
Sempre: 13 (44,8%) | |
Você solicita auxílio a alguém mais experiente em uso de tecnologias e/ou em EaD quando está com dificuldades? | Nunca: 3 (10,3%) |
Às vezes: 12 (41,4%) | |
Sempre: 14 (48,3%) | |
Você recebeu orientações sobre como proceder às aulas virtuais e/ou instruções sobre como utilizar os recursos tecnológicos disponíveis para esse fim por parte da instituição? | Nenhuma: 4 (13,8%) |
Insuficiente: 11 (37,9%) | |
Suficiente: 14 (48,3%) | |
Você percebe algum lado positivo da mudança das aulas presenciais para on-line? | Não: 6 (20,7%) |
Parcialmente: 21 (72,5%) | |
Totalmente: 1 (3,4%) | |
Não tenho opinião formada: 1 (3,4%) | |
Essa experiência o tornou melhor professor do que antes? | Não: 7 (24,1%) |
Parcialmente: 8 (27,6%) | |
Totalmente: 14 (48,3%) | |
Você sentiu dificuldade em adaptar sua rotina de trabalho e a dinâmica familiar com a mudança de local das aulas para a sua casa? | Não: 11 (37,9%) |
Parcialmente: 12 (41,4%) | |
Totalmente: 6 (20,7%) | |
Você está se sentindo mais extenuado após tutoria/ciclo online do que no processo conduzido de maneira presencial? | Não: 14 (48,3%) |
Parcialmente: 9 (31,0%) | |
Totalmente: 6 (20,7%) |
Não houve diferença entre homens e mulheres e entre faixas etárias quanto ao grau de sentimento de preparo para aulas virtuais emergenciais.
Todos os professores que não se sentiram preparados para atuar no ensino remoto não tiveram experiência prévia com EaD, porém metade se sentiu ao menos parcialmente preparada porque teve contato prévio com aulas on-line.
O grau de orientações recebidas da instituição não se correlacionou com o grau de sentimento de preparação para a educação emergencial. Não houve associação positiva entre os professores que discutiram com outros colegas e/ou solicitaram auxílio com o sentimento de estarem preparados para aulas virtuais; contudo, os docentes que não procuraram ajuda não se sentiram preparados para atuar no on-line.
Facilidades, fragilidades e aprendizados observados nas aulas on-line
As facilidades observadas pelos professores foram: 1. acesso facilitado e ausência de locomoção; e 2. flexibilização de horários. Os aspectos organizacionais foram um ponto positivo por conveniência.
Não haver deslocamento (P12).
Conforto de sua casa, café, água, controle térmico (P14).
Horários mais flexíveis (P6).
Igualmente, a proteção contra a Covid-19, motivo que alterou a dinâmica do ensino, foi uma facilidade.
“Propósito de segurança biológica” (P26).
As fragilidades percebidas pelos docentes referem-se os seguintes aspectos: 1. diminuição do convívio social e da interação humana, e falta de vivência do cenário prático; 2. acesso desigual à internet e problemas técnicos; e 3. dificuldade em interpretar os alunos.
Para os docentes, o ensino remoto prejudicou a convivência porque a tecnologia não estabelece o contato da mesma maneira. Também, para os professores da UPSC, a falta da parte prática do cenário foi adversa ao andamento das aulas por afastar os estudantes da realidade e romper com o percurso de ação-reflexão-ação da problematização.
Não existe medicina adequada sem convívio (P5).
Houve um déficit na interação social em trabalho de equipe (P20).
Perde-se o contato humano (P28).
A construção do processo de aprendizagem significativa nasce da vivência do estudante na prática na comunidade. Se essa vivência não se estabelece, a aprendizagem significativa se fragiliza, uma vez que não se consegue captar a essência da realidade vivenciada a partir de uma prática fictícia/simulada (P2).
A segunda fragilidade citada foi a diferença na qualidade de conexão e de recursos tecnológicos, que dificultou a interação e criou inequidades para o andamento das aulas.
Dependência em meios digitais e suas falhas (P26).
Não temos capacidade de equipamentos e acessos que permitam uma participação em igualdade de condições (P19).
Houve ainda adversidades em compreender as expressões dos estudantes pela limitação da tela ao diálogo.
Necessidade de maior atenção para analisar as posturas corporais (P13).
A interpretação de comportamentos e resposta é diferente no remoto (P20).
Os aprendizados obtidos pelos professores foram: 1. habilidade em tecnologia e comunicação e suas aplicações no ensino; 2. capacidade de reinvenção e adaptação; e 3. possibilidade de continuação do estudo.
Os docentes careceram de se aproximar das tecnologias e de suas possibilidades para a docência para uma melhor realização das aulas remotas.
Adquiri habilidade para usar meios eletrônicos de comunicação (P4).
Novas maneiras de promover aprendizado, maior aprendizado e atualização nos meios digitais (P26).
Os participantes compreenderam com esse momento excepcional que o ser humano é capaz de adaptar-se a situações adversas e a educação transformou-se, possibilitando a continuação dos estudos.
Capacidade de adaptação diária (P5).
Resiliência (P23).
Existe a possibilidade do aprendizado (P10).
As aulas on-line podem ser muito produtivas (P15).
Aplicabilidade das tecnologias digitais no ensino remoto
As ferramentas tecnológicas predominantemente utilizadas pelos docentes foram o computador e o celular, e secundariamente o tablet. O Google Meet foi o serviço de comunicação utilizado pela maioria dos professores (96%) em algum momento da prática pedagógica emergencial. Outros menos utilizados foram Zoom, Hangouts, Classroom, Google Forms e WhatsApp.
Como o Google Meet foi mais utilizado, os educadores destacaram como recurso de mais fácil manuseio para a execução das aulas remotas.
Proporcionou um ambiente muito próximo do que é uma tutoria presencial (P8).
É prático, seguro e temos funções e atualizações que auxiliam ainda mais neste trabalho on-line (P18).
Para um terço (33%) dos participantes, não foi possível substituir por meios digitais os seguintes recursos pedagógicos usados no presencial: 1. quadro para a construção de chuva de ideias, esquemas e desenhos; e 2. peças anatômicas sintéticas. Eles julgam essas ferramentas físicas como fundamentais para uma aula completa e de qualidade.
O compartilhamento de tela não consegue fazer o mesmo trabalho (P16).
Quando tentei adaptações achei insatisfatório (P27).
Em contrapartida, para os outros dois terços (66%), esses recursos pedagógicos foram satisfatoriamente adaptados por meio de: 1. compartilhamento de tela para imagens, vídeos, slides e anotações; 2. chat para chuva de ideias, mandar artigos e comentários; e 3. programa 3D. Podem-se realizar aulas com possibilidade de aprendizado com a implementação de recursos digitais.
Utilizou-se ferramentas disponíveis no Google Meet para suprir essa necessidade (P1).
Adaptamos com os recursos que havia disponível e fico satisfeita com o resultado (P18).
Quase todos os docentes que sentiram carência de recursos durante as aulas não tinham experiência prévia com EaD. Entre os professores que substituíram os recursos satisfatoriamente, metade tinha contato prévio com EaD. Todos os docentes que não solicitaram algum tipo de ajuda sentiram carência de recursos, enquanto a maioria dos professores que solicitaram alguma ajuda não sentiram carência.
Os educadores do ciclo sentiram mais carência de recursos em comparação com os docentes de tutoria. A principal falta para os professores do ciclo foi o quadro, e, para os professores da tutoria, a falta foi igual para quadro, peças sintéticas e slides. Os professores do ciclo que conseguiram substituir os recursos utilizaram tanto o compartilhamento de tela quanto o chat, ao passo que os docentes da tutoria utilizaram sobretudo o compartilhamento de tela para esse fim.
Repercussões do ensino remoto na aprendizagem e atuação do professor em metodologias ativas
Entre os educadores, 93% acreditam que as atividades acadêmicas foram cumpridas dentro do proposto durante a pandemia, apesar de o virtual não ser a melhor maneira para efetuar as aulas.
Aproximadamente um terço (33%) dos professores não percebeu diferenças na qualidade educacional visto que: 1. as questões de aprendizagem são cumpridas; e 2. o nível da aula é semelhante com preparação prévia dos estudantes. Para eles, a transição para o on-line não impactou o desempenho dos alunos e o compromisso com os estudos, mantendo-se o nível das aulas.
Não percebi dificuldades (P11).
Todos os assuntos são discutidos no ciclo (P22).
Os outros dois terços (66%) observaram diferenças na qualidade do ensino, nos seguintes aspectos: 1. menor domínio do conteúdo; 2. falta de compromisso; e 3. diminuição da desenvoltura e participação. Para esses docentes, as atividades realizadas de maneira virtual impactaram negativamente o formato educacional e/ou o comportamento dos estudantes, afetando o processo de ensino-aprendizagem.
Observo que houve prejuízo na aprendizagem e no domínio dos conteúdos (P13).
Teve um grande desinteresse dos alunos (P27).
O desempenho e desenvoltura de alguns colegas foram menos efetivos pelo meio virtual, por vezes com dificuldade em expressar-se (P23).
Metade (50%) dos docentes não mudou de conduta para a mediação das aulas remotas em decorrência de: 1. manter o padrão do presencial; 2. continuidade de condução das discussões; e 3. tudo ocorrer espontaneamente. Esses professores não mudaram o padrão de mediação para as aulas para que pudessem continuar a exercer seu papel de docente em curso por metodologias ativas, acompanhando e estimulando a busca por conhecimento e dando significado à aprendizagem.
Mantive a mesma conduta que sempre tive nas tutorias (P8).
Consigo relatar a prática profissional contextualizando com a parte teórica (P9).
Questiono e induzo ao raciocínio e curiosidade (P15).
A outra metade (50%) mudou de conduta para mediação das aulas por necessidade de: 1. intervir e cobrar mais nas discussões; 2. dispensar mais atenção ao processo; e 3. motivar mais os alunos. Houve reconfiguração da dinâmica nas atividades remotas para alguns educadores, que demandaram implementação de ações para garantir a continuidade do fluxo das aulas e para avaliar os estudantes.
Precisei interferir mais vezes para estimular as discussões (P24).
Necessidade de observar se o aluno estava seguro nas suas colocações ou se estava reproduzindo material lido (P7).
Mais energia dispensada a fim de motivar os estudantes (P13).
Perspectivas sobre a importância das relações interpessoais para resolução dos impasses foram trazidas nos relatos.
Me chamou a atenção a seriedade do grupo (P22).
Considero que a boa comunicação, partilhando responsabilidades foi a melhor ferramenta [...] (P29).
Acerca da mudança de qualidade das aulas, os professores do ciclo constataram menor desenvoltura e participação; já os professores da tutoria observaram queda no domínio de conteúdo e interesse.
A proporção de educadores que mudaram de conduta para mediação das aulas foi igual entre os docentes do ciclo e da tutoria. A maioria dos professores que mudaram de conduta perceberam diferenças na qualidade do ensino. Um terço dos professores que não mudou de conduta não percebeu diferenças na qualidade educacional, contudo os outros dois terços que não mudaram de conduta perceberam diferenças de qualidade.
Por fim, poucos preencheram a seção de comentários. Foi indicado que o questionário da pesquisa continha muitas perguntas amplas e de caráter qualitativo, fazendo com que o preenchimento fosse fatigante.
DISCUSSÃO
A suspensão das aulas presenciais levou à implementação imediata do ensino emergencial, gerando um paradigma educativo. Um dos principais desafios está relacionado à atuação dos docentes, pois, em alguns dias, foram cobrados a dominar a prática educacional virtual, mesmo sendo impossível uma capacitação efetiva em período curto e com etapas de preparação sendo menosprezadas11),(28),(29. Neste estudo, apenas um quinto dos docentes sentia-se totalmente preparado para as aulas remotas durante a pandemia, e menos da metade possuía algum contato prévio com EaD, sendo este principalmente como discente. Conforme exposto por Rodrigues30, a formação do educador está muito relacionada ao conteúdo e não engloba o letramento digital e habilidades para outras formas de construir o ensino e suas ferramentas.
Adicionalmente, muitos dos professores que utilizavam tecnologias anteriormente para as aulas possuíam apoio técnico, e, nesse momento, esse suporte por parte das instituições é essencial11),(16. Maciel et al.31 expõem, em relato de experiência sobre aulas por metodologias ativas durante a pandemia, que a comunicação entre docentes para a solução de problemas e o diálogo com a coordenação dos cursos são fundamentais para uma aprendizagem bem-sucedida. Os educadores da presente pesquisa perceberam a importância de apoio para superar as dificuldades do virtual. Metade deles referiu falha da instituição em fornecer auxílio para uso de tecnologias.
O contato dos educadores com o ensino digital promove a sua inserção nesse modelo educacional, que, mesmo com as adversidades durante a pandemia, possibilita aprimoramento da prática docente32. Três quartos dos professores referiram que as aulas remotas possuem um lado positivo e contribuem para sua atuação profissional. Essa circunstância faz repensar sobre formas de produzir conhecimento a partir da apropriação das Tdic e novas possibilidades futuras para trilhar novos caminhos no ensino33),(34.
A mudança do local das aulas para casa exigiu que os docentes conciliassem sua rotina de trabalho com as atividades domésticas e o convívio familiar. Cerca de dois terços dos participantes dessa pesquisa apresentaram alguma dificuldade na transição das aulas para dentro do lar. Um impasse pode ter sido a adequação ao compartilhamento de equipamentos como computadores com outros membros da família, que, igualmente, precisaram realizar o home office ou estudar no domicílio35)-(37.
Ademais, neste estudo, metade dos docentes alegou maior cansaço após aulas remotas em comparação com as presenciais. Sintomas psicossomáticos por exaustão podem ocorrer por alta exigência das instituições privadas e desmotivação37),(38. Para os educadores que atuam na linha de frente contra o coronavírus, há ainda o estresse do risco de ser infectado ou infectar outras pessoas, a exposição à morte em grande escala, o distanciamento de familiares e amigos, e o aumento da jornada de trabalho39.
O artigo de Figueiredo et al.40 aponta que a transição para aulas on-line emergenciais em curso de Medicina diminui o deslocamento e aumenta o tempo livre, todavia o distanciamento restringe a interação entre alunos durante aulas, projetos de extensão, grupos de pesquisa e estágios. Consoante com essa posição, nesta pesquisa, os professores alegaram vantagem do virtual em relação ao tempo e ao espaço, sendo possível compartilhar o mesmo ambiente por intermédio da tecnologia41. Também avaliaram que a presença física é insubstituível, e a falta de contato é prejudicial, visto que o homem necessita viver em comunidade42.
O distanciamento impossibilitou a inserção dos discentes na prática médica, afastando-os do seu objetivo de estudo - os pacientes e suas realidades43),(44. O contato com a realidade visa formar profissionais empáticos e comprometidos com o biopsicossocial para que possam estar preparados para atuar no Sistema Único de Saúde, e as habilidades de comunicação provêm do convívio com a população e com professores e colegas17),(23),(45.
Thomas et al.46 interrogaram professores de faculdade médica na Índia e contataram que 62,9% deles não gostam de aulas remotas por problemas de conexão à internet. O contraste relacionado à tecnologia disponível por alunos e docentes pode criar diferença de participação e condição desigual de aprendizagem16),(47. Entretanto, segundo Severo Bem Junior et al.44, no Brasil, no ensino superior privado e em faculdades médicas, há menos estudantes com dificuldade de acesso ao meio digital. Esses dados assemelham-se com a presente pesquisa, na qual se observaram problemas técnicos, mas relatos de desigualdade foram menos frequentes.
Outra adversidade do ensino emergencial foi a interação por tela, pois, para contribuir para o aprendizado, o educador deve observar tanto a mediação de conteúdos quanto as emoções48. Durante videochamadas, as pessoas aparecem apenas do ombro para cima, e o cérebro carece de receber linguagens corporais, como olhares e movimentos, e mais concentração é exigida ao visualizar várias pessoas ao mesmo tempo49),(50. Também por esses motivos e pela possibilidade de esconder o material, foi complexo para os professores diferir quando o discente estudava previamente ou lia/pesquisava durante a aula.
A crise Covid-19 acarretou obrigatoriedade grande escala da utilização de meios virtuais para a mediação das aulas, exigindo novas habilidades e instigando o letramento digital em níveis individual e social51. A computação já vinha potencializando a aprendizagem a distância por meio das Tdic, contudo a reelaboração desse processo em meio à pandemia está sendo consolidada, surgindo a expressão novo normal para marcar essa evolução52)-(54. Nesse sentido, os professores acreditam que o avanço educacional se deu por necessidade de adaptação para a continuidade dos estudos e impulsionou aquisição de habilidades tecnológicas para a docência. Conforme Paulo Freire55, a mudança é possível, apesar de difícil, sendo necessário constatar a realidade para recriá-la, intervindo, transformando e criando saberes.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística56, em 2019, apurou que, dos domicílios brasileiros, 40,6% têm microcomputador, 11,3% têm tablet e 81% da população acima de dez anos possui celular pessoal. Em outra ótica, a Fundação Getulio Vargas57, em 2021, constatou que há no país 2,1 dispositivos digitais por habitante (40% notebook, 42% desktop e 18% tablet), para uso corporativo e doméstico. Concordante com esses dados, os docentes usaram principalmente computador e celular, e secundariamente tablet para realização das aulas remotas. Apesar de não especificarem, acredita-se que os dispositivos são provenientes de recurso doméstico ou de local de trabalho.
A maior utilização do Google Meet pelos professores pode ser reflexo de, anteriormente, a universidade já integrar o G-SUITE, programa de colaboração do Google para setores empresarial e educacional. Eles avaliaram essa plataforma como adequada e de fácil manuseio com várias ferramentas disponíveis. Após o advento da pandemia, o Meet lançou recursos para facilitar e expandir a sua utilização, e esses artifícios ajudam na colaboração e na integração nas aulas12),(58.
Em seu estudo, Santos29 relatou que professores portugueses atuantes no ensino remoto durante a pandemia achavam ser impossível substituir aulas presenciais por virtuais com eficiência, pois nessa transição elementos intrínsecos da educação perdem-se. Essa percepção foi observada por alguns docentes da presente pesquisa ao sentirem carência de recursos durante as aulas. Todavia, esse desajustamento pode decorrer do domínio incompleto das tecnologias pelos educadores, da não formação prévia para educação digital e da resistência ao on-line29),(41.
Entretanto, a experiência de Kawakami et al.59 com apresentação de slides, resumos, mapas mentais e imagens durante discussões teóricas em aulas em curso médico mediado por metodologias ativas durante a pandemia foi positiva para a construção de conhecimentos, o que se assemelha à descrição de alguns professores desta pesquisa. Isso mostra que é possível a adaptação à tecnologia e que o aprendizado se baseia na possibilidade de criação e na mudança de postura31),(53),(60.
Os docentes reconheceram que as aulas virtuais foram uma solução para a paralisação das aulas apesar de dificuldades e/ou críticas. Segundo Hodges et al.11, o ensino remoto difere-se da EaD, pois esta consiste em medida emergencial para a continuidade da educação. A EaD foi estabelecida apressadamente com recursos mínimos, o que impossibilitou o proveito das capacidades dessa modalidade de ensino. Assim, é necessária a avaliação de sua implementação e de seu desenvolvimento em quesitos tecnológicos e pedagógicos para evitar impacto na formação61),(62.
Em pesquisa realizada por Campos Filho et al.63, os discentes de Medicina afirmaram que o estudo rende menos no on-line em decorrência da adaptação e organização. Estrada-Araoz et al.64 constataram que os alunos universitários não estão atraídos para as atividades virtuais remotas e sentem-se desconfortáveis com os entraves do diálogo. A dinâmica do virtual é distinta, com excesso de tarefas, podendo desmotivar os estudantes e sobrecarregar a sua autonomia e sua autodeterminação em envolver-se na construção do conhecimento e ser pertencente à sua formação profissional15),(22),(65.
Essas questões convergem para a opinião de dois terços dos docentes deste trabalho, que consideraram o estudo mais inconsistente e perceberam menor compromisso e participação dos estudantes, levando à necessidade de interferir mais nas aulas e motivá-los durante o período pandêmico. Os professores, ao cobrarem mais, são fundamentais para manter os alunos articulados, com melhor performance e assimilação de conhecimento37),(41.
Ademais, a interação entre docente e discente modificou-se nesse momento educacional. Por isso, a empatia - perceber a necessidade do outro - é uma habilidade essencial para manter as relações interpessoais e superar impasses, de modo a criar um ambiente de solidariedade e confiança para uma aprendizagem efetiva e dialógica66),(67.
Metade dos professores conseguiu continuar com seu papel na educação por metodologia ativa durante o ensino emergencial. O docente é um facilitador da aprendizagem, deve desafiar e promover condições de construção, reflexão e transformação, sendo colaborativo e dando significância ao conhecimento14),(15. Ele acredita na capacidade do discente em ambiente de liberdade e apoio, orientando na tomada de decisões e na definição de prioridade24. A dedicação do professor, em relato de Kawakami et al.59, foi essencial para manter o aprendizado mediado por metodologias ativas durante as aulas remotas.
Metade dos professores considerou a qualidade do ensino remoto semelhante, pois os estudantes estavam preparados e cumpriram as atividades. A tecnologia está ampliando as formas de construção de ensino-aprendizagem e trilha novos caminhos para a educação pós-pandemia12),(68),(69. Isso leva à reflexão do filósofo Pierre Lévy70 sobre modernidade: “atualização é a criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e finalidades” (p. 16).
CONCLUSÃO
A rápida transição das aulas presenciais para o ensino digital constituiu um desafio para os professores atuantes em metodologias ativas. Esta pesquisa constatou que os docentes exibiram desconfiança na educação emergencial e observaram adversidades que comprometeram o processo de ensino-aprendizagem quanto aos seus meios e fins. Porém, perceberam a necessidade da instauração do ensino remoto para a continuidade dos estudos e reconheceram benefícios e potencialidades para o desenvolvimento de habilidades e a superação de obstáculos. Constatou-se que o comprometimento do estudante influencia na qualidade de ensino e que a mudança de comportamento de alunos e professores modificou a interação entre eles.
Os resultados do estudo são importantes para entender a experiência de professores na educação emergencial em uma faculdade médica mediada por metodologias ativas e suas repercussões. Ao fornecer subsídios para discussões acerca dessa temática, contribui-se para consolidar os aspectos positivos e auxiliar para superar falhas.
Como limite da pesquisa, evidenciam-se a regionalização da amostra e seu contexto específico, podendo diferir da situação de outras universidades. Ademais, o questionário era extenso, e obtiveram-se muitos resultados para serem interpretados, restringindo sua exploração e discussão. Observam-se lacunas para produção de novas pesquisas relativas à educação médica mediada por tecnologias digitais para expandir o conhecimento, sendo também necessário obter a visão dos alunos sobre as aulas remotas.
Situações disruptivas como a pandemia Covid-19 forçam a transformação, de modo a reconfigurar a sociedade. Mudanças estão sendo consolidadas na educação com inovações da tecnologia, estabelecendo-se o digital como um aliado na construção do conhecimento. São essenciais mais capacitações e investimentos para melhor apoiar as atividades pedagógicas a distância e consolidar as metodologias ativas e seus fundamentos nesse processo.