Introdução
A instituição da Política Nacional de Alfabetização, doravante PNA, em 2019, vem gerando diversos debates em todo o Brasil por pesquisadores que têm se manifestado contrários às propostas nela defendidas, as quais buscam silenciar as vozes resistentes ao projeto neoliberal que prioriza, sobretudo, a economia e o perfil cultural conservador em que a educação, com destaque para a alfabetização, passa a ser vista como mercadoria e/ou formação simplória de sujeitos para dominar o código linguístico pelo método fônico em revelia aos usos sociais da escrita.
Nesse movimento de intensos debates nacionais, manifestações e produções acadêmicas em embates às concepções e encaminhamentos da referida política, emerge o Coletivo Alfabetização em Rede, um grupo de trabalho que reúne pesquisadores das cinco regiões do Brasil, com o propósito de estudar a recepção e (re)significação da PNA pelos docentes que atuam nas redes públicas de ensino. O Coletivo Alfabetização em Rede assume a posição de que a PNA rompe com o que se vinha construindo e realizando no campo da alfabetização e da formação de professores alfabetizadores, no que diz respeito às concepções de ensino e aprendizagem da língua escrita, bem como acerca dos conceitos e processos de alfabetização e letramento.
A partir da coleta de dados em nível nacional, o Coletivo publicou, em dezembro de 2020, o relatório parcial intitulado ‘Alfabetização em Rede: uma investigação sobre o ensino remoto da alfabetização na pandemia covid-19 - relatório técnico (parcial)’ (2020)” que objetivou publicizar os primeiros resultados da pesquisa, realizada com professoras das redes públicas e privadas de ensino, atuantes na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental no Brasil sobre o ensino remoto na alfabetização, que constitui um dos focos da pesquisa.
Este artigo, porém, objetiva discutir o foco “recepção da PNA”, que constitui o objeto de investigação, fazendo o recorte dos dados referentes ao Estado de Alagoas. Busca-se, portanto, compreender como os professores alfabetizadores que lecionam em turmas de 1º ano do ensino fundamental receberam a PNA a partir do seguinte problema: embora de caráter neoliberal, conservador e redutor da alfabetização, a PNA foi bem recebida pelos professores alfabetizadores alagoanos? A(s) resposta(s) a esse problema/questionamento vai(vão) sendo tecida(s) ao longo do texto.
O presente artigo está organizado em quatro seções. Na primeira, discutimos a relação entre ideologia e a proposição de políticas educacionais, trançando uma discussão em interface com o signo ideológico do círculo de Bakhtin e o Ciclo de Política de Ball. Na segunda seção, seguimos o percurso discursivo acerca do contexto da prática em que a PNA vem sendo implementada. Na terceira, apresentamos a metodologia adotada, explicado a natureza da pesquisa, os instrumentos de coleta de dados, delimitação do corpus e os critérios utilizados, assim como o modelo de análise. Na quarta seção, fazemos a análise a partir das categorias emergentes. Por fim, lançamos mão de algumas considerações finais, ainda que provisórias.
Ideologia e política educacional
A Política Nacional de Alfabetização (PNA, 2019) emerge no cenário de instabilidade e incertezas frente à afirmação do (des)Governo do Presidente da República Jair Messias Bolsonaro, eleito pelo povo brasileiro no pleito de 2018. Defendemos os caracterizantes do cenário como instável e incertos por considerar a ruptura com as formas de governo que se tinha, sobretudo, desde 2003, os quais defendiam pautas consideradas de esquerda e que se assentavam no conceito de justiça social (Ball, 2001), enquanto o referido presidente se elegeu pelo discurso conservador, de proteção à família tradicional, à religião cristã e ao livre mercado, dentre outros pontos considerados de extrema direita e neoliberais.
Diferentemente do que rege as políticas educacionais com vistas à promoção de justiça social (Ball, 2001), a PNA surge reafirmando o caráter ideo(metodo)lógico (Mortatti, 2019) de direita, por pensar a alfabetização como um processo tecnicamente direcionado e explícito (o que nunca foi negado pelos pesquisadores brasileiros de outras bandeiras) mas, sobretudo, com limites claros e bem definidos dos processos pós-alfabetização. Não é por acaso, nem ingenuamente, que os defensores da PNA propagam recorrentemente que é preciso, a priori, aprender a ler, para só depois aprender com a leitura. Nesse contexto, o método fônico é posto como a solução/redenção para o analfabetismo e o fracasso escolar das crianças brasileiras.
Se pensarmos a aquisição da língua escrita pelo viés do letramento (Soares, 2016), conceito/processo de uso da língua escrita em práticas sociais, sistematicamente combatido pela PNA, observamos que a criança, antes e durante o processo de alfabetização pelos dispositivos formais, vive concomitantemente o processo de aprender a leitura do sistema de escrita alfabética, bem como aprende com a leitura, ainda que não saiba ler com fluência, ela faz leituras logográficas (Soares, 2016): reconhece a escrita de palavras comuns em seu cotidiano, nas práticas sociais que vive/vivencia. Portanto, soa equivocado pensar o processo a partir da segregação das partes constitutivas das palavras, mas especificamente pela correspondência fonema-grafema, princípio básico da instrução fônica.
É notório que a ideologia que implanta a PNA, via decreto presidencial em abril de 2019, é a mesma que deixou transparecer o uníssono grito das camadas e movimentos de direita que vinham se afirmando desde 20131, o que valida o silenciamento das múltiplas vozes divergentes e justifica a imposição do Decreto nº 9.765 (2019). Não se fez ouvir a sociedade civil, os educadores e alfabetizadores brasileiros, tampouco os pesquisadores e universidades de tradição científica no país para a criação e implementação da PNA enquanto política nacional de alfabetização.
Sobre essa questão (a formulação de políticas educacionais), Steffen Ball (1994, 2001, 2002) propõe a teoria do Ciclo de Políticas, de modo a enfatizar que as políticas educacionais são perpassadas por três contextos, quais sejam: contexto de influência que corresponde à política proposta carregada de ideologias e interesses de quem a propõe; contexto de produção que rompe com a simples ideia/proposta, configurando-se na política de fato, e o; contexto da prática, o qual diz respeito à política em uso, sua implementação.
A recorrer-se ao Círculo de Bakhtin (Faraco, 2009) para conceituar ideologia em interface com o Ciclo de Políticas de Ball, entendamo-la por dois vieses: a ideologia oficial e a ideologia do cotidiano. Para Volóchinov (2017) a ideologia do cotidiano emerge dos encontros casuais com os demais sujeitos, em situações reais, recorrentes e inesperadas, nas/para as referências que construímos. É a vida em pauta nas suas pluralidades discursivas. Já a ideologia oficial compreende uma relativa dominação a partir da concepção de mundo (única) que procura se disseminar para (re)produção de discursos da classe econômica e politicamente dominante.
Para o Círculo de Bakhtin, as fronteiras entre as modalidades ideológicas não são tão bem demarcadas, haja vista que elas se tocam, misturam-se em determinados pontos por considerar os sujeitos que as significam nas interações e trocas simbólicas desenvolvidas nos/pelos grupos sociais. As fronteiras acabam por borrarem-se. A própria superestrutura existe apenas em coexistência com a estrutura. Isso confirma que o ato de (querer) fazer calar vozes outras é interativo em sentido estrito, pois se reconhece, ainda que se negue, outros dizeres, outros signos. O fazer calar não é neutro e prevê dominação e hegemonia ideológica de uma classe. Miotello (2005, p. 173), a esse respeito, afirma.
Nesse sinal de renovação também está presente o sinal de refração da ideologia, pois que a classe dominante confere ao signo ideológico um caráter intangível, imutável e supra-classes sociais, abafando ou ocultando a luta dos índices sociais de valor, e divulgando o discurso da monovolência. A manutenção da divisão social e a perpetuação da hegemonia da classe dominante exige que os sinais contraditórios ocultos em todo o signo ideológico sejam mantidos apagados.
O autor segue explicando que as diversas vozes que dos/nos signos ecoam deixam transparecer as contradições ideológico-sociais entre passado e presente, entre outras épocas passadas, entre grupos diversos, entre possibilidades futuras. A ideologia, seja oficial ou do cotidiano, é produzida e produz no movimento de refletir e refratar do/pelo signo ideológico. A arena de disputa entre os muitos sentidos vivencia embates constantes. É nessa acepção que Faraco (2009, p. 56), a partir dos pressupostos do Círculo, conceitua a refração como “[...] o emaranhado dos milhares de fios dialógicos tecidos pela consciência sociológica (isto é, pelo todo da criação ideológica) em torno de cada objeto [...] como a torre de Babel que cerca todo e qualquer objeto”.
As políticas educacionais, enquanto objeto simbólico e sígnico, são carregadas de vozes convergentes (que se quer fazer ouvir) e divergentes (que se pretende calar), o que lhes asseguram a essência dialógica, pois como afirma o Círculo de Bakhtin, todo dizer se orienta pelo já dito, assim como todo dizer é orientado para a resposta e é internamente dialogizado (Faraco, 2009). Se pensarmos a PNA pelo caráter dialógico que apresenta, percebemos a presença marcante das vozes do grupo social/político que a propõe, mas em diálogo com os grupos/teorias que se pretende calar. Afinal, o dialogismo internalizado que perpassa todo dizer, e por extensão a PNA, reforça as vozes silenciadas. Vozes estas que vão de encontro às demais por hora ecoadas no documento e em toda a sua proposta.
Ouve-se no dizer não-dito da PNA as vozes que defendem o letramento, por exemplo. Pois, enquanto signo ideológico de professores brasileiros, o letramento continua presente na ideologia cotidiana dos alfabetizadores pela sua tradição de décadas em nossas escolas. Miotello (2005, p. 174) afirma que “[...] a durabilidade da ideologia oficial não é maior que o tempo de duração da ideologia do cotidiano”.
Nessa esteira discursivo-dialógica sobre a PNA, e considerando o Ciclo de Políticas de Ball (2001), a proposição e implementação de políticas educacionais têm estreita ligação com a ideologia oficial em que pese os contextos de influência e de produção. Aquele encontra-se embebido na ideologia que se pretende validar enquanto discurso da classe dominante. Pretender que os professores engajem-se na ideia de que é a PNA a política educacional redentora do fracasso na alfabetização brasileira, explicita a posição político-ideológica bem marcada de seus propositores: “A ciência cognitiva da linguagem afirma que, ao contrário do que supõem certas teorias, a aprendizagem da leitura e da escrita não é natural nem espontânea” (PNA, 2019, p. 21). Já este (o contexto de produção) valida o discurso por meio dos documentos oficiais, que passam a ser signos ideológicos de seu dizer.
Os signos ideológicos no contexto de produção da PNA se efetivam com o Decreto nº 9.765/2019, no Caderno PNA - Política Nacional de Alfabetização (PNA, 2019) e, mais recentemente, pelo Relatório Nacional de Alfabetização Baseado em Evidências [Renabe] (Secretaria de Alfabetização, 2020) que resultou da Conferência Nacional de Alfabetização Baseadas em Evidências (Conabe)2.
Emerge como artifício de persuasão acerca da validade da PNA, o discurso reiterado sobre evidências científicas para a adoção do método fônico com base nas ciências cognitivas da leitura. Esse artifício apresenta-se bastante explicito no Renabe (Secretaria de Alfabetização, 2020), quando da seção que trata das evidências. No documento, tem-se que: “O termo ‘evidências’ diz respeito a achados que resultam de pesquisas científicas. Uma alfabetização baseada em evidências é aquela que emprega procedimentos e recursos cujos efeitos foram testados e se mostraram eficazes” (Secretaria de Alfabetização, 2020, p. 28). Por outro lado, Gontijo e Antunes (2019), ao discutir o olhar dos especialistas e colaboradores do MEC na proposição da PNA, elencam contrapalavras no que diz respeito às definições das metodologias de pesquisas que subsidiam a PNA com o objetivo de fortalecer o discurso das evidências científicas nela adotadas.
Gontijo e Antunes (2019) apontam que a PNA descredibiliza estudos que não partem de metodologias experimentais, o que é questionável por sobrepor-se a pesquisas de natureza qualitativa. Frade (2019, p. 17), sobre essa questão, afirma: “[...] podemos dizer que, independentemente de serem pesquisas experimentais com grupos de controle ou intervenção controlada em sala de aula, essas pesquisas acabam por fugir do contexto mais amplo em que todos os fatores intervêm ao mesmo tempo”. Em outras palavras, as pesquisas experimentais, como defende a PNA e seus propositores, configuram a tentativa de validação de um discurso político-ideológico, como mencionado.
É nesse sentido que Frade (2019, p. 17) completa ao dizer que as pesquisas em prol de evidências que validem tal discurso como o da PNA “[...] fazem recortes de um aspecto específico para construir sua lente de leitura da realidade”. Corroborando com esse pensamento, Mainardes (2006, p. 52) aponta que “[...] os textos políticos são resultados de disputas e acordos, pois os grupos que atuam dentro dos diferentes lugares da produção de textos competem para controlar as representações políticas”.
Para além das influências e da produção de políticas, tem-se a implementação que se efetiva no contexto da prática. Esta se inicia com a disseminação da política por instrumentos de formação de professores e produção de materiais que auxiliem o engajamento dos alfabetizadores na recepção da política e, posteriormente, de sua prática pedagógica. É nesse contexto que se depreende como se dar a recepção da política pelos alfabetizadores, a exemplo da PNA.
A PNA no contexto da prática
No contexto da prática as políticas educacionais se efetivam (ou não), com recontextualizações a partir dos saberes-fazeres dos professores e da formação ideológica deles. É neste contexto que a política fica sujeita a interpretações e recriações que podem resultar transformações significativas na proposta original. Nessa direção, Bowe, Ball e Gold (1992, p. 22, grifo nosso) afirmam:
Os profissionais que atuam no contexto da prática não enfrentam os textos políticos como leitores ingênuos, eles vêm com suas histórias, experiências, valores e propósitos [...]. Políticas serão interpretadas diferentemente, uma vez que as histórias, experiências, valores, propósitos e interesses são diversos. ‘A questão é que os autores dos textos políticos não podem controlar o significado dos seus textos’. Partes podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas, deliberadamente mal-entendidas, réplicas podem ser superficiais etc. Além disso, interpretação é uma questão de disputa. Interpretações diferentes serão contestadas, uma vez que se relacionam com interesses diversos, uma ou outra interpretação predominará, embora desvios ou interpretações minoritárias possam ser importantes.
Concorda-se com os autores supramencionados no que diz respeito ao papel responsivo-ativo (Bakhtin, 2011) que os professores assumem no processo de implementação de políticas educacionais. Há, portanto, a produção de sentidos outros e diversos por parte desses profissionais em que pese a política carregada de ideologia, mas reconfigurada a partir dos signos ideológicos que constituem tais sujeitos. Entram em cena os saberes ordinários imersos no contexto da prática, os quais Chartier (2007) afirma serem construídos na ação, dado o conjunto de variáveis que impactam a ação, gerando a experiência.
Nesse sentido, não é um conjunto de procedimentos previamente definidos e nem um material estruturado que vai determinar o que ocorre no contexto da sala de aula, pois este contexto é dinâmico e tanto os alunos como os professores interpretam o que ocorre e reagem para fazer avançar o ensino [...] (Frade, 2019, p. 16).
Os professores possuem saberes-fazeres atrelados à prática bem como à teoria que lhes conferem know-how para atuarem frente às políticas (im)postas. Dessa maneira, “[...] se servem de um número considerável de ‘saberes científicos’ em suas salas de aula, mas eles nem sempre têm consciência disso, porque certos saberes já pertencem tanto a suas categorias de pensamento e de sua cultura escolar que eles os utilizam como se fossem realidades naturais” (Chartier, 2010, p. 13, grifo do autor).
Corroborando com Chartier (2007, 2010) e Frade (2019), Ball (1994) propõe a distinção da ‘política como texto’ e da ‘política como discurso’ para o melhor entendimento do contexto da prática. O autor esclarece que a política como texto tem base na teoria literária (de cunho ideológico do grupo que a propõe), de modo que apenas algumas influências, vozes e agendas são reconhecidas, ouvidas e legitimadas. No que tange a política como discurso, há a possibilidade de construção de certas significações, porém busca distribuir vozes, uma vez que se pretende que somente as vozes recrutadas sejam ouvidas, o que lhes revestem de autoridade. É o caso, por exemplo, do discurso de evidências científicas que visam legitimar a PNA e do método fônico, disseminado como algo novo na educação/alfabetização brasileira. Depreende-se que a política como discurso tem caráter eminentemente persuasivo, e ocorre, sobretudo, no contexto da prática.
No caso da PNA, as vozes legitimadas para sua implementação no contexto da prática vêm acontecendo desde 2019 através de programas e ações que integram a referida política, tais como os programas Tempo de Aprender, Conta pra Mim, Alfabetização Baseada na Ciência (ABC) e, mais recentemente, por meio do aplicativo GraphoGame Brasil3.
Conforme consta na página virtual do MEC, a Portaria n° 280 (2020) “Institui o Programa Tempo de Aprender, com a finalidade de melhorar a qualidade da alfabetização em todas as escolas públicas do Brasil” (Art. 1°). O programa apresenta quatro eixos organizacionais: I - Formação continuada para profissionais da alfabetização; II- Apoio pedagógico para a alfabetização; III - Aprimoramento das avaliações de alfabetização e; IV - Valorização dos profissionais da alfabetização, por meio da instituição de premiação para professores alfabetizadores (Art. 2º). Nesses moldes, o MEC, no intuito persuasivo, conceitua o referido programa de alfabetização como abrangente, de modo a promover ações que visem aprimorar a formação pedagógica e gerencial de professores e gestores, ofertando formação on-line/prática com o foco voltado ao método fônico/ciências cognitivas da leitura.
Por sua vez, o Programa Conta pra Mim foi instituído pela Portaria n° 421 (2020), “[...] com a finalidade de orientar, estimular e promover práticas de literacia familiar em todo o território nacional” (Art. 1º). O Programa é direcionado às famílias brasileiras, tendo prioridade aquelas em vulnerabilidade socioeconômica, de acordo com a mesma portaria. Em notícia vinculada na página virtual do MEC, em 27 de agosto de 2020, com o título ‘MEC lança coleção Conta pra Mim’ discorre-se sobre a disponibilização de 40 livros em formato digital, os quais devem ser lidos pelas famílias, impressos e pintados pelas crianças, se possível. A ação contou ainda com a disponibilização de uma série de vídeos contendo cantigas e fábulas animadas.
Esta segunda ação de implementação da PNA é contraditória ao discurso de priorização das famílias em situação de vulnerabilidade, considerando os dispositivos de caráter meramente virtual, o que pode configurar uma barreira para o acesso ao acervo pelo público tido como prioritário. Ambas as ações buscam fortalecimento na política como discurso para que não sofram réplicas discursivas de caráter contraditório. Vale ressaltar que o contexto da prática é, portanto, revelador da aceitação/recepção da política proposta. Porém, ainda que convencidos da validade da política, na prática os professores deixam emergir as ações de recontextualização.
No contexto de recontextualização, [...] os textos, assinados ou não pela esfera oficial, são fragmentados ao circularem no corpo social da educação, alguns fragmentos são mais valorizados em detrimento de outros e são associados a outros fragmentos de textos capazes de ressignificá-los e refocalizá-los. As regras de recontextualização regulam a formação do discurso pedagógico específico de um dado contexto (Lopes, 2005, p. 54).
A recontextualização, para além da política proposta e em processo de implementação, considera o contexto no qual os sujeitos se inserem, as ideologias que os constituem e os saberes-fazeres construídos na prática pedagógica. É o contexto da prática “[...] um micro processo político. Neste contexto, pode-se identificar a existência de um contexto de influência, de um contexto de produção de texto (escrito ou não) e de um contexto da prática” (Mainardes, 2006, p. 59).
O processo de implementação/recepção de uma política educacional de alfabetização como a PNA é cíclico e recontextual. À medida que os professores alfabetizadores se apropriam da proposta, colocam em prática nas salas de alfabetização, acrescentam, suprimem, adaptam, recontextualizam orientações, métodos e direcionamentos (im)postos pela proposta original.
Percurso metodológico
A curiosidade epistemológica em entender como vem ocorrendo a recepção da PNA pelos professores alfabetizadores alagoanos resultou nesta investigação que configura um desdobramento da pesquisa nacional Alfabetização em Rede, a qual conta com a participação de pesquisadores de 28 universidades situadas em diversos Estados da Federação. Possui natureza quanti-qualitativa (Sampieri, Collado & Lucio, 2013) por articular resultados de um survey com os dados produzidos a partir de grupos-focais (Gatti, 2005) com os professores alfabetizadores.
A pesquisa contou, até o momento, com duas fases de coleta de dados: I) por meio de um questionário do Google Forms aplicado on-line entre junho e setembro de 2020. Esse instrumento continha 34 perguntas distribuídas em dois focos: i. A alfabetização durante a pandemia do Covid-19; ii. A recepção da PNA (2019); II) grupos focais de 6 docentes da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, realizados entre outubro e dezembro de 2020, considerando os dois focos separadamente.
Porém, analisaremos neste estudo apenas os dados da primeira fase de coleta de dados, a qual obteve 14.730 respondentes em nível nacional, sendo que no território alagoano participaram 2.454 professores. Dos focos arrolados, consideraremos a ‘recepção da PNA’, sobre o qual os professores responderam a questões relacionadas ao perfil profissional, à formação inicial e continuada e às políticas de alfabetização/documentos oficiais das quais participaram ou têm conhecimento.
No tocante à PNA, os professores foram levados a refletir sobre os seguintes questionamentos: Conhecem a PNA? Conhecem os documentos que a fundamentam e institui? Participam do curso de formação Tempo de Aprender, disponível na plataforma do MEC? Que avaliação fazem do curso, considerando a participação em programas de formação continuada de governos anteriores, tais como Profa, Pro-Letramento e Pnaic?
Ressaltamos que, dos 2.454 professores participantes do Estado de Alagoas, partiu-se para um recorte, analisando-se as questões supracitadas a partir das respostas de 144 sujeitos que compõem a amostra deste artigo. Para isso, utilizamos critérios de inclusão e exclusão conforme os perfis dos professores participantes, quais sejam: ser professor do 1º ano do ensino fundamental, visto que a PNA propõe a redução do ciclo de alfabetização ao primeiro ano, a despeito do que propõe o Plano nacional d Educação (PNE) que institui os três primeiros anos do ensino fundamental como ciclo de alfabetização e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que o reduz para dois anos; ser professor apenas de turmas de 1° ano, excluindo-se os que também atuam nos demais anos/turmas do ensino fundamental e/ou na educação infantil; não ocupar cargos concomitantes à docência em turmas de 1º ano do ensino fundamental, excluindo-se os que estão na gestão, coordenação ou supervisão pedagógica; ter acima de 10 anos de magistério, por considerarmos os saberes-fazeres importantes para esse estudo, sejam eles construídos na prática alfabetizadora, seja pela participação em programas de formação continuada para professores alfabetizadores ofertados nos últimos 15 anos pelos governos anteriores.
A técnica de análise e organização dos dados se deu à luz da análise de conteúdo4 (Bardin, 2009), levando-nos a construção de categorias emergentes do corpus. Importa evidenciar que a análise de conteúdo começa com a concepção de processo, ou contexto social, e concebe o autor do discurso político como um autor consciente que se dirige a um público determinado em circunstâncias sócio-históricas particulares (Ball, 2002). Essa técnica constitui-se de algumas etapas para a consecução da análise de conteúdo e a emergência das categorias, organizadas em três fases: i) pré-análise, ii) exploração do material e iii) tratamento dos resultados, inferência e interpretação (Bardin, 2009). Da análise dos dados emergiram as categorias de análise: saberes-fazeres docentes; conhecimento da/sobre a PNA e; avaliação da PNA.
Tratamento dos dados, inferência e interpretação
Saberes-fazeres docentes
Os saberes-fazeres que integram esta categoria de análise dizem respeito àqueles construídos na formação docente, inicial e/ou continuada, bem como aqueles construídos na prática, os quais Chartier (2000) nomeia de saberes ordinários. Para tanto, neste estudo, consultamos o tempo de experiência no magistério, o grau de escolaridade e a participação em cursos de formação continuada voltados à alfabetização nos últimos 15 anos como constituintes dos saberes-fazeres dos professores alfabetizadores das turmas de 1º ano do Estado de Alagoas. Tomando por base a resposta dos 144 sujeitos que compõem este corpus de análise, a Figura 1 apresenta o tempo de experiência deles.
Embora todos sejam professores experientes na docência e, especificamente, no processo de alfabetização, constata-se que 76% possuem mais de 16 anos de atuação no magistério, o que lhes confere autoridade enquanto professores alfabetizadores e reforça a possibilidade de conhecimentos construídos na prática: os professores constroem modelos pragmáticos e “[...] não basta que um saber seja teoricamente válido para que ele possa produzir instrumentos de trabalhos eficazes” (Chartier, 2010, p. 2).
Os saberes teóricos, porém, resultam do contato com as teorias, sobretudo nas formações pelas quais os professores passam. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, 1996) dispõe que a formação inicial para professor seja em nível superior (licenciatura plena). No entanto, ainda temos professores formados no curso Normal Médio e até professores sem a formação mínima exigida. A Figura 2 apresenta a formação dos professores da amostra em análise.
Como é possível observar, 96% dos professores possuem graduação, sendo que desses, 56% têm também pós-graduação (especialização e mestrado). Infere-se, portanto, que a quase totalidade desses professores alfabetizadores tiveram contato com saberes científicos por meio de suas formações acadêmicas, as quais podem lhes possibilizar teorizar a prática, a partir de conhecimentos sobre alfabetização e letramento para o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita no ciclo de alfabetização. Sobre o efeito dos saberes teóricos no fazer docente, Chartier (2010, p. 15) afirma que “[...] os termos científicos ajudam a esclarecer ou mesmo redefinir os saberes empíricos dos professores”.
Sobre a formação continuada, considerou-se aquelas ofertadas em nível nacional pelos governos anteriores: Profa (Governo de Fernando Henrique Cardoso), Pró-Letramento (Governo de Lula) e Pnaic (Governo de Dilma Rousseff). Além desses, na coleta de dados havia a opção ‘outras’, dando oportunidade aos professores de marcá-la, caso tivessem participado de outras para além das mencionadas. A Figura 3 apresenta essas informações.
Os dados revelam que, do total de 144 respondentes, 135 (93,75%) professores participaram de pelo menos um dos cursos/programas de formação continuada ofertados nos últimos 15 anos. Tais cursos tinham por base a alfabetização em interface com o letramento.
Em 2008 o MEC, sob os cuidados da Secretaria de Educação Básica, lança o Programa de Formação Continuada de Professores dos Anos/Séries Iniciais do Ensino Fundamental - Pró Letramento. Este programa também se constituiu numa proposta de formação continuada para os professores atuantes nas séries iniciais do ensino fundamental, de modo a promover melhorias na qualidade do ensino e aprendizagem de leitura, escrita e matemática. O programa diferiu do anterior tanto pela conjuntura política em que foi lançado, já que ocorreram nos governos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva, respectivamente, quanto pelo discurso de letramento que se fortalecera, fato estampado no nome do referido programa (Santos, 2019, p. 41).
O Pró-Letramento fortaleceu o discurso sobre letramento na formação dos professores alfabetizadores em relação ao Profa que já introduzira, ainda que de forma tímida, essa discussão no processo de formação continuada. Porém, é o Pnaic que, nos moldes do Pró-Letramento, ampliou a discussão sobre letramento e/ou alfabetização na perspectiva do letramento, considerando a teoria e a orientação para a prática do professor nas turmas de alfabetização (1º, 2º e 3º ano do ensino fundamental).
Como o Pnaic foi o programa mais recente, importa ressaltar que 123 (85,4%) professores desta amostra participaram, o que reforça a hipótese de que a maioria deles tiveram acesso às discussões teóricas acerca do letramento e da alfabetização na perspectiva do letramento.
Contribuição dos programas de formação continuada voltados à alfabetização
Embora Chartier (2010) defenda que os professores utilizem os saberes teóricos em suas práticas de forma natural, por estarem impregnados naqueles/daqueles que compõem a ordem do dia, os dados desta investigação revelam que a percepção dos professores que integram este corpus aponta para a relação entre teoria e prática a partir da formação continuada, conforme Figura 4.
Diante do questionamento ‘Os programas de formação dos quais participou contribuíram para sua formação?’ e mesmo havendo opções de respostas tais como ‘Mais ou menos. Acrescentou pouco à minha prática profissional’, ‘Não, a dinâmica de trabalho não favoreceu trocas de experiências’, ‘Não, minha prática tem pressupostos muito diferentes dos defendidos pelo programa’, ‘Não, somente reforçaram o que eu já conhecia’, todos os professores desta amostra reconheceram uma ou mais contribuições dos saberes teóricos nos saberes ordinários, seja no âmbito do Profa, do Pró-Letramento, do Pnaic ou de outros programas voltados à alfabetização.
Evidenciou-se a regularidade das seguintes contribuições: i) reflexão sobre a prática em sala de aula, ii) enriquecimento do repertório de práticas pedagógicas e iii) aprendizagem com a experiência de colegas participantes. Portanto, os dados apontam que os programas de formação dos quais os professores experientes participaram contribuíram para a sua prática profissional. Reforça-se o que defende o Ciclo de Ball: “[...] as políticas não são simplesmente ‘implementadas’ dentro desta arena (contexto da prática), mas estão sujeitas à interpretação e, então, a serem ‘recriadas’” (Mainardes, 2006, p. 53, grifo do autor).
Desta maneira, retomando o conceito de recontextualização, ressalta-se que os professores da amostra que apontam as contribuições dos cursos de formação voltados à alfabetização dos quais participaram, podem ter as recontextualizado a partir de suas interpretações e recriações que se assentam na ideologia que os constituem.
Conhecimento, participação e avaliação da proposta da PNA
A PNA como atual política de governo no Brasil foi lançada em abril de 2019 e vem sendo implementada a partir de então. Sua proposta consiste na utilização do método fônico para a alfabetização das crianças, tendo por base seis componentes defendidos como essenciais para a alfabetização: consciência fonêmica, instrução fônica sistemática, fluência em leitura oral, desenvolvimento de vocabulário, compreensão de textos e produção de escrita (Decreto nº 9.765, 2019).
Embora a PNA afirme propor a adesão voluntária dos municípios, os quais têm por competência a oferta de educação infantil e ensino fundamental, 70 professores disseram ter havido alguma discussão na(s) escola(s)/rede(s) que atuam. Desse modo, os dados revelaram que, do corpus em análise, 90 professores afirmaram conhecer a Política Nacional de Alfabetização do atual governo, perfazendo, portanto, o percentual de 62,5%. Quando inqueridos sobre o que conheciam da PNA, os professores apontaram os documentos/diretrizes que tiveram acesso, de acordo com a Figura 5.
Os dados acima revelam que dos professores que afirmam conhecer a PNA, 69 apontaram conhecer as diretrizes e/ou o material do curso Tempo de Aprender; os demais apenas o Caderno da PNA (11 professores) ou o Decreto que a institui (10 professores). Quando questionados sobre a participação no curso Tempo de Aprender, 64 professores revelaram estar cursando/ terem cursado. Dessa maneira, entende-se que, do total absoluto de participantes desta amostra (64 de 144), tem-se o percentual de 44,44% de participação no Curso Tempo de Aprender. Porém, se consideramos o total relativo (64 de 90), com vistas apenas para os professores que afirmam conhecer a PNA, esse percentual sobe para 71,11%.
Na sequência, foi questionado aos professores que afirmaram participação no curso Tempo de Aprender, como o avaliavam, julgando se atendia as necessidades formativas (Atende às minhas necessidades formativas e contribui com meu trabalho docente / Não atende às minhas necessidades e não contribui com o meu trabalho docente). Embora com proposta divergente dos cursos anteriores dos quais participaram, os professores avaliaram de maneira positiva, visto que 62 (96,9%) apontaram que a proposta do curso Tempo de Aprender atende às necessidades formativas e contribui no trabalho docente em alfabetização. Apenas 2 (3,1%) professores avaliaram que o curso Tempo de aprender não atende às suas necessidades formativas, tampouco contribui com o trabalho docente que desenvolve nas turmas de alfabetização.
Por fim, ao inquirir-se os 90 professores, que atestaram conhecer a PNA, sobre se concordavam com o trabalho preparatório para a alfabetização nos moldes apresentados na política em questão, os percentuais foram semelhantes àqueles da avaliação do Curso Tempo de Aprender: 85 (94,44%) professores concordam e os outros 5 (5,56%) professores disseram não concordar com o trabalho alfabetizador nos moldes da PNA.
Considerando o Ciclo de Políticas de Ball, depreende-se, a partir desses dados, que no contexto da prática, os professores alfabetizadores de turmas do 1º ano do ensino fundamental do Estado de Alagoas, que compõem esse corpus, receberam a PNA de maneira positiva, embora tenham mais de uma década de experiência, possuam formação inicial em nível de graduação e tenham participado dos programas anteriores que propunham a alfabetização na perspectiva do letramento (Soares, 2016).
Infere-se, portanto, que o discurso adotado pela PNA é carregado de vozes convergentes (que se quer fazer ouvir) e vozes divergentes (que se pretende calar), instaurando uma política ideo(metodo)lógica de direita que se apresenta como nova e embasada nas mais recentes evidências científicas, o que pode justificar a recepção positiva pelos professores deste estudo em contato com os signos que estão sendo (im)postos.
Assim, consoante Volóchinov (2017) a respeito da ideologia oficial que compreende uma relativa dominação a partir da concepção de mundo (única) que procura disseminar para (re)produção de discursos da classe econômica e politicamente dominante, infere-se que na perspectiva da PNA tem convencido os professores da amostra de sua validade.
Considerarações finais
Cientes do inacabamento que nos constitui e que perpasse estes escritos, objetivamos no presente artigo refletir sobre a recepção da PNA pelos professores alagoanos, atuantes em turmas do 1º ano do ensino fundamental. Para isso recrutamos, num recorte do corpus, os professores experientes com mais de 10 anos de magistério, os quais vivenciaram/participaram de programas de formação continuada voltados à alfabetização, anteriores à PNA.
Em diálogo com o Círculo de Bakhtin, para discutirmos ideologia a partir do signo ideológico; com o Ciclo de Políticas de Ball, para pensarmos os contextos de influência, produção e prática na proposição e implementação da PNA e; com autores outros como Anne-Marie Chartier, que deram embasamento teórico para fazermos as aproximações e distanciamento entre as categorias emergentes, tecemos esta esteira discursiva que nos levaram a algumas conclusões/considerações, ainda que provisórias:
- Reconhecemos a PNA como uma política de direita que desconsidera os estudos sobre letramento, e por extensão, furta a alfabetização com base na justiça social;
- Consideramos que os professores do corpus analisado possuem saberes-fazeres teóricos e práticos construídos em mais de uma década de magistério e nas formações inicial e continuadas, sobretudo aquelas promovidas pelos governos anteriores (Profa, Pró-Letramento e Pnaic);
- Apontamos que o discurso persuasivo da PNA, buscando silenciar as vozes do letramento e fazer ouvir as vozes sobre literacia, evidências científicas com base nas ciências cognitivas da linguagem e no método fônico tem alcançado os professores alagoanos que atuam em turmas de 1º ano do ensino fundamental;
- Concluímos que, embora os professores alagoanos que atuam em turmas de 1º ano do ensino fundamental sejam experientes e tenham tido contato com a teoria do letramento e da alfabetização na perspectiva do letramento proposta no Profa, no Pró-Letramento e no Pnaic, concordam com o trabalho preparatório para a alfabetização nos moldes apresentados na PNA, recebendo-a de maneira positiva.
Por outro lado, ressaltamos que, mesmo recebendo de maneira positiva a PNA, os professores alfabetizadores alagoanos que atuam em turmas de 1º ano do ensino podem estar a recontextualizar as propostas da política em voga, o que merece ser objeto de estudos futuros.