Este artigo analisa o impacto da alocação de alunos nos diferentes turnos escolares sobre os níveis de segregação na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. A política em questão ocorre na maioria das cidades brasileiras e em outros países em desenvolvimento. O desenho do estudo possibilita medir o efeito líquido dessa política e estabelecer uma comparação entre os níveis de segregação existentes e um cenário hipotético onde tais políticas estivessem ausentes. Os testes podem conduzir a dois resultados: 1) ausência de impacto e; 2) aumento no nível de segregação. Dada a inexistência de uma legislação específica que regule a alocação de estudantes entre os turnos, o modelo hipotético supõe alocação aleatória. É isso o que ocorre?
O conceito de segregação aqui adotado refere-se à distribuição desigual de estudantes que compartilham uma característica específica em um conjunto de escolas. A mensuração foi feita com base no Índice de Segregação (Segregation Index) - GS. Foram adotados quatro diferentes indicadores de desvantagem potencial de estudantes e, a partir deles, calculados seus respectivos índices de segregação: pobreza, educação dos pais, cor1 e distorção idade/série (atraso escolar). O conceito de segregação não deve ser tomado como sinônimo de discriminação ou injustiça. Pode-se afirmar, com base nesse cálculo, que a segregação é quase inevitável. Entretanto, deve-se destacar também a importância de reconhecer a ocorrência do fenômeno, a fim de distinguir entre o que seria uma segregação "razoável" ou esperada e o que pode ser caracterizado como desigualdade e políticas e práticas que a favorecem.
Evidências de diferentes países sugerem que a segregação escolar é um fenômeno universal, decorrente de fatores como segregação residencial, políticas educacionais e escolha parental. Esses fatores, por sua vez, estão reconhecidamente relacionados ao isolamento social, econômico e cultural (HARRIS, 2011). Este artigo focaliza apenas um fator de segregação, uma prática ou política educacional específica. Assim, boa parte da variação nos níveis de segregação não será explicada nos nossos modelos. Questões como o impacto da segregação residencial, da escolha parental e de outros elementos da política educacional devem ser consideradas em trabalhos futuros para que se possa conhecer melhor as causas da segregação em redes escolares públicas no Brasil.
No debate internacional sobre segregação escolar duas questões cruciais se destacam. A primeira se refere ao impacto do agrupamento de estudantes com características semelhantes. Haveria potencialmente mais benefícios ou efeitos nocivos no ato intencional de agrupar estudantes que compartilham determinadas características? As evidências coletadas em diferentes sistemas educacionais indicam efeitos distintos para a segregação. De um lado, é razoável supor que agrupar estudantes com características/necessidades específicas pode ser eficaz quando se pretende aplicar políticas direcionadas a ajudar tais grupos. De outro lado, há fortes indícios de que agrupar alunos com características específicas pode impactar a forma como eles são tratados nas escolas, assim como a qualidade do ensino, os níveis gerais de desempenho e as probabilidades de acesso ao ensino superior; observa-se ainda uma associação cada vez mais direta entre desempenho acadêmico e nível socioeconômico (HAAHR et al., 2005; EGGRES, 2005; BRITO; COSTA, 2010; ROSENTHAL; JACOBSON, 1968).
A segunda questão diz respeito ao papel das políticas educacionais nos níveis de segregação. Será que as políticas educacionais têm impacto no nível geral de segregação? É razoável presumir que políticas que deliberadamente separam estudantes baseadas, na cor, por exemplo, perderam legitimidade ao longo do tempo, como o sistema do apartheid na África do Sul, que tende a ser considerado injusto e ilegal nos países democráticos.
Todavia, a decisão de agrupar intencionalmente estudantes com características similares também pode ser vista como justa e desejável, quando dirigida a tornar sistemas educacionais menos estratificados, ao menos em termos de desempenho dos estudantes.
Procedimentos diferenciadores podem ser aplicados com a intenção de reduzir desigualdades sociais. A nova compreensão do que seria justo em termos de oportunidades educacionais cria também uma nova oposição entre sistemas educacionais mais unitários ou mais segmentados, com diferentes tipos de escolas, currículos e incentivos. De qualquer forma, novas políticas que objetivam enfrentar desigualdades sociais pré-existentes podem inadvertidamente ampliar a segregação. Esse efeito adverso deveria ser considerado seriamente por pesquisadores e gestores, dado que pode interferir nos potenciais benefícios da política.
Há muitos exemplos de políticas que podem, de forma não intencional, impactar os níveis de segregação. As escolas charter, nos Estados Unidos, são exemplo de uma tentativa de tornar o sistema educacional mais diverso e atraente. Outro exemplo é o sistema de tracking na Alemanha ou Hungria. Há fortes evidências de que a seleção de estudantes em sistemas formais de tracking está altamente correlacionada com seu nível socioeconômico. A iniciativa de direcionar estudantes a um caminho pode, ao menos em alguns casos, resultar não muito diferente de selecioná-los por nível socioeconômico. Um terceiro e derradeiro exemplo é a política de escolha escolar que, dentre outros objetivos, busca incrementar a escolha parental. Não há consenso entre pesquisadores sobre os impactos das políticas de incentivo à escolha escolar na segregação escolar (GORARD; TAYLOR; FITZ, 2003).
Essas políticas se propõem a assegurar a qualidade e a equidade dos sistemas educacionais, apesar de haver evidências de que tais objetivos são difíceis de conciliar. Para resolver essa equação, há projetos de pesquisa desenhados de modo a permitir estimar não somente os efeitos intencionais, mas também os não intencionais de tais políticas, e que podem ser de grande utilidade para os gestores.
Este artigo se divide em seis seções, incluída esta introdução. A próxima seção contextualiza o sistema educacional municipal do Rio de Janeiro, trazendo dados sobre a política de alocação de alunos nos turnos escolares. Na sequência, descreve-se o desenho do estudo, apresenta-se o Índice de Segregação e as principais variáveis utilizadas para descrever os alunos em desvantagem potencial. A quarta seção descreve os padrões de segregação escolar na rede municipal. A quinta traz os resultados do impacto da alocação de alunos nos turnos escolares sobre a segregação. A sexta e última parte retoma e discute os resultados, tratando de seus possíveis usos futuros para políticas educacionais.
Texto na íntegra em PDF