Introdução
Na sociologia da educação, a relação entre família-escola se mostra como um debate consolidado e bem estruturado, com vasta produção acadêmica. No caso da sociologia do esporte, o tema da escolarização de atletas e as relações entre esporte e escola também vem avançando nos últimos anos. No entanto, em nenhuma das duas áreas da sociologia, a tríade família, esporte e escola possui estudos de grande fôlego. Nesse sentido, este artigo se constitui como um esforço de análise da interseção entre esses campos.
As relações entre as famílias e as escolas são uma das questões mais debatidas pela sociologia da educação na atualidade, e já se faziam presentes nas obras inaugurais desse subcampo disciplinar. Diversos estudos têm se debruçado sobre os desafios ligados ao papel e à responsabilidade de cada uma dessas instituições na escolarização no Brasil.
Sobre o papel das famílias na escolarização dos seus filhos e na sua relação com a escola, durante muito tempo, a literatura da área privilegiou as análises macrossociais nas quais as famílias e seus comportamentos eram vistos através de determinismos relacionados ao seu pertencimento de classe. Presa a uma abordagem limitada, a atuação das famílias e o desempenho escolar dos indivíduos careciam de explicações mais consistentes que pudessem explicar percursos variados dentro de uma mesma classe social (Nogueira, 1995).
Buscando superar essas limitações, diversas pesquisas realizadas no Brasil a partir da década de 1980 começaram a privilegiar uma abordagem microssociológica muito mais preocupada com a percepção de especificidades existentes nas famílias dentro de uma mesma classe social (Nogueira, 1995; Souza; Silva, 2011). Observando mais atentamente as dinâmicas e as configurações internas, as pesquisas passaram a perceber a relevância da família na escolarização dos filhos, para além de um viés exclusivamente social (Nogueira, 1998).
Diante disso, trabalhos vêm dialogando nas reflexões sobre a relação das famílias com o processo de escolarização dos seus filhos. Entre eles podemos citar: Romanelli (2009a; 2009b; 2011); Nogueira (1998; 2005; 2006); Glória (2005; 2007); Setton (2002); Perez (2000; 2007), Zago (1998; 2000). Esses estudos microssociológicos desnudam o papel das famílias de diversas classes sociais no processo de escolarização dos seus filhos.
Ao apontar estratégias de investimentos materiais e simbólicos das famílias na escolarização dos seus filhos, as pesquisas enfatizam o significado dos estudos e as diversas práticas educativas parentais utilizadas para desenvolver o projeto de escolarização familiar. Os estudos reforçam a compreensão desses processos entre família e escola como provenientes de configurações complexas pontuadas por atravessamentos de vários campos sociais que acabam por instituir uma configuração familiar singular em cada uma delas.
Nesses estudos, quase todos abordam indivíduos e famílias que possuem no projeto educacional sua principal aspiração, percebendo uma forte correlação entre êxito escolar e ascensão social (Nogueira, 1995). Dessa forma, a escolaridade dos filhos constitui elemento central do projeto familiar. No entanto, também existem famílias nos quais o projeto educacional divide espaço com outros projetos profissionais, nos quais a escolarização não é vista como um imperativo. Entre esses projetos, podemos citar aqueles que almejam uma carreira esportiva, artística ou que simplesmente buscam uma inserção no mercado de trabalho em posições não-qualificadas.
Se conhecemos, relativamente bem, as estratégias familiares dos indivíduos que possuem no projeto educacional seu principal foco, como se constroem e executam essas estratégias em famílias nas quais o projeto escolar concorre com outros projetos formativos e concomitantes? Ancorado nessa questão, o objetivo do artigo é compreender como as famílias organizam as práticas de escolarização de seus jovens futebolistas que se encontram em situação de dupla carreira2, e como essas ações influenciam na trajetória escolar desses indivíduos e na sua relação com a escola.
O indivíduo inserido na dupla carreira, necessariamente, frequenta a escola, estuda, realiza provas e vive a realidade escolar. Ao mesmo tempo, a formação futebolística exige treinamento diário, competições e viagens. As demandas das duas instituições precisam ser administradas em concomitância, porque aos olhos da sociedade o período para obtenção dos seus capitais converge para o mesmo momento: a infância e a juventude.
Apesar de certa invisibilidade conferida ao tema da escolarização de jovens atletas por parte do Estado brasileiro (Rocha, 2017; Haas; Carvalho, 2018), o contingente de indivíduos entre 10 e 24 anos atingidos por essa realidade é significativo no Brasil. Os dados são fragmentados e, em alguns casos, lacunares. De acordo com as fontes mais confiáveis do Raio-X do futebol, publicado anualmente pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), e o Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS), publicado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), o país tem aproximadamente 550 clubes com categorias de base no futebol, que abrigam em torno de 240 mil jovens do sexo masculino em formação entre 10 e 24 anos de idade. Se compararmos com os 25 milhões de pessoas da população masculina brasileira dentro dessa faixa etária (IBGE, 2018), vemos que aproximadamente 1% dos jovens brasileiros podem estar inseridos nessa realidade da dupla carreira, somente no futebol.
Os estudos nacionais sobre o tema (Melo, 2010) partem do princípio de que o esporte pode ser um empecilho à escolarização do/a jovem atleta. No Brasil, a formação esportiva é percebida como uma aposta viável que, caso não produza o resultado esperado, pode vir a ser compensada pelo investimento escolar. Nesse cenário nacional, a situação conflitiva entre a formação esportiva e a formação escolar faz com que o custo da conciliação recaia, em geral, sobre o estudante-atleta e sua família. Esses devem negociar diretamente com a escola as demandas geradas pelo clube. Essa condição só tende a agravar o desequilíbrio já existente no contexto brasileiro, que costuma colocar maior peso na responsabilidade da família em detrimento da responsabilidade das escolas e do sistema educacional quanto ao sucesso escolar da criança (Carnoy, 2009).
Muitas vezes o investimento realizado pelas famílias parte da crença de que o futebol é um espaço de mobilidade social, quando, na verdade, este mercado no Brasil evidencia um número de postos de trabalho muito menor do que a oferta de mão-de-obra para ele. Além de um mercado restrito para os atletas de futebol devemos considerar também que os bons salários dentro dessas vagas são muito pequenos. Na verdade, dentro do mercado futebolístico existem poucos times que pagam bons salários aos jogadores, geralmente aqueles situados nas primeiras e segundas divisões (quantitativo que envolve 40 times). Os outros desembolsam, em sua maioria, salários muito baixos e, muitas vezes, pactuam contratos por um período de três meses, apenas para as disputas dos campeonatos regionais, dispensando os atletas após o término destes Dados divulgados pela CBF em 2018 mostram que dos 18.118 atletas profissionais registrados em 2010, exatos 8.944 ganhavam até um salário mínimo, ou seja, cerca de 50% dos jogadores viviam com menos de R$ 600 mensais. A despeito desses fatos, a grande mídia, muitas vezes, explicita somente os casos de sucesso, dando a falsa noção de que o futebol é um caminho fácil para a ascensão social.
Tendo como base a realidade do futebol nacional e como ponto de partida a compreensão de que a conciliação entre o esporte e a escola pode se configurar através de meandros conflitivos, a intenção do artigo é apontar possíveis caminhos para entender as escolhas feitas por essas famílias na escolarização dos seus jovens, as estratégias utilizadas e as relações que se desenvolvem entre essa instituição e as escolas.
Metodologia
O estudo foi realizado com 5 famílias de jovens atletas do futebol que estavam inseridas no cotidiano da formação de um clube3 do Rio de Janeiro, que à época disputava a principal divisão do campeonato nacional do Brasil. A pesquisa de campo foi realizada entre os anos de 2015 e 2017. Durante o trabalho, todos os atletas selecionados estavam inseridos nesse clube e, consequentemente, seus familiares estavam sujeitos às influências causadas por essa instituição sobre as suas rotinas. O clube foi escolhido porque é um dos três que possuem o certificado de clube formador no Estado do Rio de Janeiro4. Além disso, foi o único que possibilitou as atividades de pesquisa dentro de suas dependências, fornecendo contatos e apoio logístico.
A opção por analisar apenas atletas de um mesmo clube reside no fato de terem condições parecidas de formação esportiva e as mesmas rotinas de treino. Esses dois elementos são variáveis importantes no processo de escolarização dos estudantes-atletas (Melo, 2016). Os atletas selecionados pertenciam à categoria infanto-juvenil (15-16 anos) e juvenil (17-18 anos), pois são nessas categorias, segundo os agentes do campo futebolístico, que se definem as chances de profissionalização, e é quando os jovens e suas respectivas famílias devem decidir entre seguir a carreira futebolística ou outras carreiras fora do esporte. Os estudantes-atletas possuem entre 15 e 18 anos de idade, o que, em tese, os colocaria também nos anos finais da educação básica. Diante disso, a escolha dessa faixa etária se deu por ser o momento no qual poderíamos observar as tensões na formatação das estratégias individuais e familiares entre um maior investimento no esporte ou na escolarização dos atletas (Epiphanio, 2002)
Para compreender como se estabelecem as estratégias de escolarização promovidas pelas famílias e pelos atletas, foram esquadrinhados dados acerca das suas rotinas de treinamento e competições; tempo de permanência e estudos na escola; atividades no tempo livre e trajetórias escolares dos familiares. Apesar do contato cotidiano com diversos atletas e famílias no clube, foram selecionados cinco núcleos familiares. Tal recorte ocorreu pela impossibilidade de acompanhar de forma participante e sistemática mais famílias durante um período prolongado. A escolha das famílias foi realizada a partir dos contatos na fase exploratória no campo de pesquisa.
Isso significa que nossa amostra está circunscrita às famílias que durante as pesquisas no clube estavam mais receptivas a participarem do estudo conosco. Não se tratou, portanto, de uma amostra aleatória ou pré-definida, pois a seleção se deu a partir das negociações do pesquisador com os atores no campo. No interior das famílias, procurou-se entrevistar os parentes de primeira geração (irmãos e pais) e de segunda geração (avós, primos e tios), além daqueles considerados como integrantes do núcleo familiar alargado. Além das entrevistas com os atletas e seus responsáveis, também foram realizadas entrevistas com as assistentes sociais e psicólogas do clube, bem como diretores, coordenadores e professores das escolas onde estudavam esses jovens atletas, de modo a apreender as ações institucionais em relação à escolarização dos investigados.
A seleção das famílias possui limitações que, em certa medida, diminuem a validade externa do estudo. No entanto, tratando-se de um estudo sobre trajetórias familiares e, consequentemente, acompanhamento próximo de suas rotinas, foi necessário trabalhar com núcleos familiares que se mostrassem dispostos a narrar suas biografias e suas rotinas na gestão escolar de seus filhos atletas. Elas aceitaram falar e também permitiram a presença do pesquisador em suas rotinas diárias. Embora esse critério de escolha traga necessariamente alguns vieses, como tínhamos ciência de todos eles de antemão, os controlamos durante toda a pesquisa e temos certeza de que não seria possível chegar a esse nível microssociológico de análise sem a colaboração direta das famílias.
Trajetórias de Escolarização Familiar
A relação das famílias dos atletas com a escola e suas percepções sobre essa instituição configuram-se como um produto das suas experiências de socialização, principalmente no campo educacional, juntamente com a inserção delas no campo futebolístico. Isso significa que as experiências de escolarização desses atletas se estruturam através de um entrecruzamento desses dois campos, no qu al o projeto familiar ancorado no futebol acaba por influenciar na percepção sobre a escola e os objetivos relacionados à escolarização.
Um dos elementos estruturantes encontrados no projeto futebolístico das famílias analisadas é o paulatino desinvestimento nas rotinas e obrigações escolares do filho atleta em benefício das rotinas esportivas com vistas à profissionalização no futebol. As análises mais apressadas poderiam relacionar esse privilégio das rotinas esportivas em detrimento das escolares, como uma consequência de famílias que ao longo de sua história possuíram membros com pouca escolaridade, trajetória escolar acidentada, pouco contato com pessoas com alta escolaridade, entre outros motivos. Contudo, essa não é a situação predominante nas famílias pesquisadas.
Os dados revelam que das 5 famílias, 4 delas possuíam entre seus familiares uma predominância de indivíduos com no mínimo o ensino médio completo, ou seja, 12 anos de escolarização (famílias Marques, Moreira, Torres e Almeida)5. Somente na família Guimarães foi verificada uma predominância de indivíduos com ensino fundamental completo ou que nunca estudaram. Os quadros possibilitam um olhar mais sistemático sobre essa situação.
Parentesco Escolaridade | Pai Rufus | Mãe Bianca | Avô Materno | Avó Materna | Avô paterrno | Avó Paterno | Tio Celso | Tio Humberto | Tia Regina | Tia Edna |
Ensino Fundamental incompleto | Ensino superior completo | Ensino médio completo | Ensino Fundamental completo | --- | --- | Ensino superior completo | Ensino médio completo | Ensino médio completo | Ensino médio completo |
Fonte: Correia (2018, p. 291).
Parentesco escolaridade |
Pai Marcos | Mãe Carolina | Avô Materno | Avó Materna | Avô paterno | Avó paterno | Padrasto | Madrinha | Madrasta |
Ensino Médio completo | Ensino médio completo | Ensino médio completo | Ensino Fundamental completo | Ensino Médio completo | Ensino superior completo | Ensino médio completo | Ensino médio completo | Ensino médio completo |
Fonte: Correia (2018, p. 292).
Parentesco escolaridade |
Pai Roberto | Mãe Marta | Avô Materno | Avó Materna | Avô paterno | Avó paterno | Tio Mauro | Tio Sebastião | Tia Mônica |
Ensino superior completo | Ensino médio completo | Ensino superior completo | Ensino médio completo | Ensino superior completo | Ensino superior completo | Ensino superior completo | Ensino superior completo | Ensino superior completo |
Fonte: Correia (2018, p. 292).
Parentesco escolaridade |
Pai Tomaz | Mãe Elisa | Avô Materno | Avó Materna | Avô paterno | Avó Paterno | Tio Adão | Tio Claudio |
Ensino médio completo | Ensino médio completo | Ensino fundamental incompleto | Ensino fundamental incompleto | --- | --- | Ensino médio completo | Ensino médio completo |
Nota: Os outros 6 irmãos de Elisa possuíam ensino superior completo.
Fonte: Correia (2018, p. 291).
Parentesco escolaridade |
Pai Henrique | Mãe Suzana | Avô Materno | Avó materna | Avô paterno | Avó Paterno | Tio José | Tia Magda |
Ensino fundamental incompleto | Ensino médio completo | Ensino fundamental completo | Ensino fundamental completo | Nunca estudou | Ensino fundamental completo | Ensino médio completo | Ensino médio completo |
Nota: Henrique possuía mais dois irmãos (1 com ensino médio completo e outro com ensino fundamental completo).
Fonte: Correia (2018, p. 291).
Ainda que as famílias analisadas se desenhem como núcleos com realidades específicas e diversificadas, no que tange à educação, quase a totalidade (excluindo os Guimarães) apresenta membros com mais escolaridade do que a média da população brasileira e também da fluminense. Segundo o PNAD (2018), a escolaridade média da população brasileira era de aproximadamente 9 anos de estudo, isso significa, em tese, o ensino fundamental completo. No caso da população fluminense, a escolaridade média era de aproximadamente 10 anos para o mesmo período. Tendo esses dados como base e comparando-os com a trajetória de escolarização das famílias dos atletas, como já dito, 4 delas possuem escolaridade média superior à verificada no Brasil e no Rio de Janeiro. Os dados analisados permitem afirmar que as famílias Marques, Torres, Almeida e Moreira não possuem uma trajetória escolar pontuada pelo fracasso e pela repetência6.
Apesar de algumas variações existentes em decorrência da trajetória específica da família e de suas condições materiais, essencialmente, em todas as famílias pudemos verificar que: a) a escola e a escolarização são vistas como um caminho longo e com retorno incerto; b) as rotinas escolares são flexibilizadas em benefício do futebol; c) a escolha do estabelecimento de ensino se adequa ao futebol; d) as cobranças e expectativas sobre os resultados escolares são diminuídas; e) as famílias e os atletas não se sentem confortáveis no espaço escolar.
Escolarização de Atletas e Práticas Educativas
Na relação das famílias com a escolarização dos seus filhos atletas, podemos verificar que, a partir da observação dos seus campos de possibilidades no futebol e na escola, elas passaram a elaborar estratégias e ações que acabam por secundarizar os objetivos escolares em benefício dos objetivos esportivos. Isso não quer dizer que o projeto educacional desses jovens e suas famílias tenha sido abandonado. Na verdade, mesmo não sendo considerado como investimento prioritário no momento em que se encontram, a escolarização segue paralelamente ao projeto de profissionalização no futebol, com as devidas adequações ao projeto principal.
As famílias sabem que a escolarização básica é um imperativo legal para todos os indivíduos entre os 4 e os 17 anos de idade, por isso, mesmo que quisessem abandonar as obrigações escolares, precisariam arcar com as responsabilidades legais desses atos. Além disso, os clubes de futebol, amparados na lei, exigem a regularidade da matrícula para que esses jovens possam integrar as categorias de base. Todavia, o Estado que impõe a obrigatoriedade de matrícula é o mesmo que não disponibiliza através de políticas públicas as condições diferenciadas para escolarização de determinados grupos de jovens, entre eles os atletas7.
Para conseguir conciliar as duas atividades, todas as famílias utilizam estratégias de flexibilização das rotinas escolares tanto no espaço escolar quanto no doméstico. Um dos mecanismos dessa flexibilização identificados na pesquisa foi a matrícula do filho atleta em uma instituição escolar que possuía parceria com o clube de futebol no qual os jovens treinavam. As famílias analisadas disseram que a escolha da escola parceira do clube estava relacionada às pretensões eminentemente esportivas e não a fatores ligados ao desempenho acadêmico dessas instituições. Ao serem perguntadas sobre os motivos pela escolha daquelas escolas todos foram unânimes.
E: O seu filho estuda nessa escola por quê? Qual foi o critério usado para matricular ele nela?
Bianca: Eu matriculei o Bernardo nesta escola porque ela atende muitos atletas. É uma escola parceira do clube e que entende a realidade dos meninos. Saber que estão lidando com atletas os ajuda nessa relação com o futebol8.
Elisa: Quando o Murilo veio para cá eu procurei várias escolas, mas também vim no clube para saber se eles tinham alguma indicação de escola. Eles me deram 2 opções, dizendo que eram escolas públicas da região que mantinham uma parceria com o clube. Por isso, o clube podia acompanhar eles, e a escola dava um tratamento diferenciado para os atletas, principalmente em faltas. Aí, com essas duas opções, eu fui buscar aquela que me passava mais confiança9.
Henrique: O Paulo sempre estudou em escola pública. Mas quando ele passou a treinar pesado no [nome do clube] eu comecei a ter problema com ele com relação à falta e perda de prova. Mesmo sendo um colégio público, as diretoras pegavam muito no pé do Paulo por causa dessas faltas. Conversando com outros pais e com o clube que começou a ver as notas ruins dele, eles me aconselharam a escola X, que era parceira do clube, e eles faziam um acompanhamento dos meninos lá10.
Em todas as respostas foi possível perceber que a mudança de escola e a escolha pelas instituições em que eles estudavam estavam orientadas por critérios relacionados às necessidades da carreira no futebol, sendo desdobramentos de estratégias realizadas pelas famílias para conciliar melhor a dupla carreira. Nas escolas parceiras do clube era possível aos atletas remarcarem suas provas em função de viagens para competir, terem suas faltas abonadas em razão de treinos ou receberem material complementar devido ao longo período de ausência em razão dos torneios. Além disso, a escola permitia atrasos e saídas precoces desde que o clube enviasse justificativa por escrito.
Como afirmam Ballion (1982), Nogueira (2013) e Fialho (2012), a escolha dos estabelecimentos de ensino pela família e as características buscadas por elas evidenciam os objetivos e práticas de escolarização buscadas. Cada família, influenciada pela estruturação dos capitais disponíveis (cultural, social, econômico e simbólico) e pelas suas crenças decorrentes desses capitais, desenvolverá, segundo Ball, Gewirtz e Bowe (1995), uma motivação distinta de escolha do estabelecimento de ensino. Aquelas famílias mais engajadas no projeto de escolarização e com maiores conhecimentos sobre o sistema de ensino tendem a realizar um processo meticuloso de pesquisa, que passa por critérios como: resultados obtidos, estrutura, público atendido, qualificação do corpo docente e pedagogia utilizada.
Ao identificar esses mecanismos, podemos perceber que a principal preocupação das famílias não estava orientada por critérios estritamente acadêmicos, tais como pedagogia de ensino, corpo docente, currículo ou estrutura da escola, mas nas formas de flexibilização das rotinas escolares para os atletas. Somente a família Torres citou alguma preocupação com questões educacionais no momento da escolha do estabelecimento de ensino, mas, mesmo assim, o critério prioritário residia na conciliação com as atividades futebolísticas. No caso da pesquisa, as escolhas possuíam um caráter mais prático, normalmente verificado em famílias com pouco conhecimento sobre o sistema de ensino e/ou pouco engajadas na escolarização dos filhos.
A decisão sobre a escola era somente um dos elementos que caracterizavam esse conjunto de flexibilizações realizadas pelas famílias. Na unidade doméstica, foi possível constatar outros mecanismos desenvolvidos para que a escolarização não interferisse decisivamente no desenvolvimento das rotinas futebolísticas. Desse modo, os acompanhamentos escolares, tais como deveres de casa, horário de estudos, leitura de livros, entre outras atividades, não se caracterizavam no dia a dia dos atletas como práticas comuns. O investimento doméstico não era considerado pelos membros da família como ações importantes de caráter preventivo, com o fim de evitar dificuldades futuras que pudessem comprometer a conquista dos resultados escolares. Na verdade, o estudo era cobrado apenas em situações em que ele significava um remédio para recuperar notas abaixo da média.
Nas famílias analisadas, não era incomum que os pais, em momentos decisivos da temporada esportiva dos filhos, realizassem os seus deveres de casa. Na intenção de mitigar o cansaço dos treinos e competições, os familiares assumem as responsabilidades das tarefas de casa de seus filhos.
Bianca: Assim... Eu vou falar porque não gosto de mentir. Muitas vezes quando o Bernardo está cansado porque teve um dia muito cheio no clube, eu faço os trabalhos dele de casa. Normalmente não tem muita coisa, mas sempre que posso eu acabo fazendo para ele. Na minha opinião o dever de casa muitas vezes atrapalha11.
Roberto: Nós aqui em casa somos um time. Minha mulher não gosta muito dessa ideia de ficar fazendo os trabalhos de casa do nosso filho, mas tem vezes que não dá. O garoto chega muito cansado em casa. Estuda a tarde, treina de manhã. A noite não aguenta nem levantar12.
Henrique: Eu acho que eles mandam muito dever de casa. Por mim não precisava mandar nada. Faz tudo da escola, na escola. Quando tem alguma coisa a gente usa a internet e ajuda ele a pesquisar. Faz qualquer coisa mesmo para entregar, para o menino não ficar com uma nota ruim. Eu não sei pesquisar muito nesses negócios de internet13.
Essa posição ativa dos pais em relação aos deveres escolares demonstra, assim como nos estudos de Nogueira (1995), que estamos longe de uma omissão parental em relação à escolarização dos filhos, mas são processos de adequação da vida escolar ao projeto priorizado pelas famílias. Todavia, não podemos considerar essas famílias como as classificadas pela sociologia da educação como engajadas na escolarização dos filhos. As famílias educógenas normalmente agem de forma preventiva, para que sejam evitados momentos de dificuldades vindouras que possam comprometer a obtenção dos almejados certificados escolares. Para evitar esse cenário, “[...] o investimento familiar é feito sobretudo com trabalho árduo e dispêndio de energia e tempo, e só secundariamente através de gastos pecuniários” (Nogueira, 1995, p. 17).
Por isso, há uma perspectiva negativa das famílias sobre o dever de casa. Ele diversas vezes é tido como um vilão que drena o tempo e o esforço dos jovens atletas, impedindo-os de descansarem no momento em que estão em casa. Essa posição é diferente daquela vista em famílias engajadas no processo de escolarização, no qual o dever de casa é considerado um fenômeno cotidiano, incorporado como prática tradicional e principal fator de interação família-escola (Carvalho, 2000).
Nas famílias dos atletas, a organização do tempo e as atividades domésticas não estão atreladas às necessidades e prioridades impostas pela escola. As flexibilizações das rotinas escolares tanto em casa quanto nas escolas eram um elemento estruturante para o desenvolvimento dos projetos futebolísticos. Todas as famílias buscavam essas flexibilizações como meio de conciliar as duas atividades, dando prioridade ao desenvolvimento esportivo. Sobre isso, tanto Bianca (família Marques), quanto Marta (família Almeida) salientaram que em algumas situações deixavam os filhos atletas faltarem aula para que pudessem descansar dos treinos.
Outro fator importante acerca das práticas familiares de escolarização dos atletas é a baixa presença dos familiares no ambiente escolar. Entre os núcleos acompanhados, os Moreira e Guimarães não sabiam dizer ao certo onde se situava a escola dos seus filhos, nem se era estadual ou municipal e muito menos o nome da instituição. Nas outras três, havia alguma relação entre a família e a escola, contudo esta desenvolvia-se principalmente através da iniciativa da instituição de ensino para que fossem resolvidos problemas de disciplina e desempenho. Durante o acompanhamento dessas três famílias, foi possível perceber que elas pouco frequentavam a escola em datas comemorativas (dia das mães, pais, festa junina), sendo que as poucas reuniões de que participaram constituíam-se como a principal ação na relação que travavam com a escola; destaque-se que essa não é uma singularidade dessas famílias no sistema escolar (Nogueira, 1995).
Esse distanciamento dos familiares do espaço escolar foi comentado por gestores e professores das escolas que os atletas estudavam.
Coordenadora da escola Z: As famílias também não ajudam muito. Deixam os meninos muito soltos. Você chama uma vez, duas vezes e elas não vêm. Aí quando chega no final do ano e fica reprovado é aquela surpresa. E ainda perguntam por que não avisaram eles. Assim, eu vejo que as famílias não valorizam a educação, os meninos são muito largados, as famílias só querem saber de futebol14.
Professor da Escola X: O Joel (Família Moreira) é um aluno muito faltoso, e quando vem também não produz muito. As notas dele aqui no colégio vêm caindo bimestre atrás de bimestre.
E: A escola faz o que com relação a isso? O pai dele participa de algo na vida escolar do rapaz?
Professor da Escola X: Nunca vi. Nunca ligou ou procurou saber alguma coisa do Joel. Se passar por mim na rua qualquer pessoa da Família dele, nem sei que é15.
Ao se relacionarem pouco com a escola, essas famílias muitas vezes não tinham o conhecimento por completo do desempenho dos seus filhos e dos problemas de relacionamento enfrentados. Para esses familiares, a relação com a escola ainda se faz sob a visão de uma escola santuário, fechada em si mesma, e que se protege da intromissão dos pais, solicitados somente quando seus filhos saem do padrão esperado de resultados e comportamentos (Migeot-Alvarado, 2000).
Quando comparamos o acompanhamento feito pelas famílias sobre as rotinas futebolísticas, percebemos que os mesmos familiares sistematicamente estão presentes nos treinos e competições dos filhos, mesmo que esses aconteçam em outras cidades. A disposição em conversar com os treinadores do filho, bem como buscar com os psicólogos e os fisiologistas estratégias para melhorar o desempenho deles também foi verificada ao longo da pesquisa. O posicionamento ativo nas atividades dos filhos no futebol, colocando-se como protagonistas no desenvolvimento esportivo deles, se contrapõem a uma postura passiva diante das atividades existentes na escola. Os responsáveis pelos atletas buscam na relação com os profissionais do clube medidas preventivas para o desenvolvimento esportivo, o que não fazem em relação à escola.
A postura dessas famílias, com relação à escolarização dos filhos, não significa desconsiderar a importância da escola ou mesmo a necessidade de obtenção dos certificados escolares. As famílias analisadas entendem, mesmo que de forma difusa, como se estruturam os jogos sociais e como se configuram os tempos requeridos pela escola e pelo futebol. As famílias socializadas nesse campo esportivo percebem que as oportunidades de profissionalização são limitadas temporalmente:
Henrique: O futebol é momento, se você não estiver 100% focado no futebol naquele momento que a oportunidade passa na sua frente, já era! Ela vai bater ali na porta do outro cara. O futebol não abre espaço para erros, a chance passa e foi. Você vai chorar para o resto da vida. Por isso, você tem que agarrar a chance e fazer tudo certo, investir tudo16.
Bianca: A carreira de futebol é muito curta e a chance de virar profissional é muito ali... Na casa dos 18, 19. Passou dos 20 e não virou realidade?! Você vai ficar por ali vagando em clube pequeno e talvez nem profissional vire. Futebol tem prazo de validade, já a escola não17.
Elisa: Eu invisto nas 2 coisas. Escola e Futebol, mas sei que pela educação ele pode fazer faculdade quando quiser. Agora para ser jogador de futebol ele tem só esse tempinho. Se não mostrar serviço ele é colocado para fora da categoria de base18.
Os atletas e suas famílias revelaram que sabiam que estavam sendo constantemente avaliados nos treinamentos e reconheciam que sempre eram obrigados a ter excelente rendimento no futebol. Essa pressão pelo melhor rendimento a todo o momento influenciava diretamente a destinação de tempo e atenção ao projeto do futebol. Isso mostra que a configuração do campo futebolístico não permite se ausentar em determinado momento da formação, buscar novos caminhos e, posteriormente, voltar ao mesmo ponto para continuar. Além disso, é elemento consciente na estratégia dessas famílias que as recompensas materiais e simbólicas de um projeto esportivo de sucesso tendem a ultrapassar, na percepção dos responsáveis, os ganhos de um projeto baseado unicamente na escolarização.
No caso da escola, indivíduos dessas famílias possuem a consciência de que, em última instância, os projetos de escolarização podem ser executados a qualquer momento da vida, sem que haja impedimentos físicos ou intelectuais para concretizá-los, ao contrário do futebol, no qual o desempenho técnico e o desenvolvimento na carreira dependem da idade e do vigor físico. Diante disso, os indivíduos que elaboram esses projetos familiares futebolísticos compreendem que a escola é um projeto que pode ser adiado. De acordo com essas experiências adquiridas pela convivência do campo esportivo, as famílias elaboram estratégias diferenciadas de escolarização dos seus filhos atletas.
A Relação Família-Escola-Projeto Futebolístico
Sobre as representações feitas pelas famílias sobre a educação19, em todas elas, os indivíduos foram unânimes em salientar, cada um ao seu modo, a importância da escola como um instrumento de mobilidade social, emancipação social. A valorização daquilo que os familiares chamavam amplamente como educação era, contudo, acompanhada em todas as famílias de discursos ambíguos sobre os prêmios que a escola poderia oferecer aos seus filhos.
Henrique: A escola é muito importante. Eu não pude estudar e sei como isso faz diferença. Eu gostaria que tanto o Pedro quanto o Paulo estudassem, mas cada um deles sabe o caminho que é melhor para eles trilharem. Existem outros caminhos além da escola. Não são fáceis, mas dá para conseguir20.
Elisa: Hoje em dia, da maneira que as coisas estão, eu não sei nem o que dizer para ele quando ele reclama que eu cobro muito na escola. Porque até a escola não é mais segurança de nada21.
Roberto: Eu dou aula e sei que a escola é importante. Eu defendo o que eu faço (risos). Mas, assim, justamente por trabalhar disso e conhecer a educação como eu conheço, eu sei que você tem que se dedicar muito e abrir mão de muita coisa para conseguir alguma coisa na escola. Tenho muitos amigos que fizeram faculdade comigo e estão desempregados22.
Marcos: Eu tenho vários amigos que fizeram faculdade depois que pararam de jogar e eu acho isso muito legal. Sempre tive plano de fazer alguma coisa mais quando eu parasse de jogar, mas não deu. Ficou só no ensino médio. Eu acho que a escola é importante, mas para quem está no futebol como o Joel, eu vejo que a chance de ganhar mais e em menos tempo é maior. Ele tá aí, de repente estoura e vai ganhar mais do que com faculdade a vida toda23.
Bianca: A gente estuda porque precisa, porque sabe que para ter um emprego melhor a faculdade pode ajudar. Mas, assim, muitas vezes você investe muito na faculdade, educação e acaba não usando aquilo que estudou. Eu, por exemplo, fiz faculdade de administração e o que adiantou? Virei vendedora de uma firma24.
Os depoimentos ao mesmo tempo que destacam a importância da escolarização, também apresentam sentimentos de desconfiança sobre o retorno do investimento escolar. Cabe destacar que dentro da educação brasileira, a despeito do aumento no número de vagas e do acesso de muitos jovens aos níveis mais altos de escolarização (ensino médio e superior), ainda existe um grande nível de desigualdade de acesso entre os indivíduos. Ribeiro (2009) mostrou que o sistema educacional brasileiro continua reafirmando há várias gerações a desigualdade de oportunidades educacionais entre as camadas sociais através de seus filhos. Essa constatação ajuda a reforçar a noção de que mesmo com a escalada da valorização da educação com mais mecanismo de difusão, o país ainda encontra contextos de dificuldade de acesso e progressão dentro dele, motivados por inúmeras questões. Nesse ponto, a educação brasileira vem produzindo um processo chamado por Cury (2008) de inclusão excludente, no qual apesar de cada vez mais jovens estarem sendo incluídos no sistema de ensino, essa ação se faz de maneira precária, desigual e irregular. Dessa forma, problemas como evasão e retenção escolar, bem como baixa proficiência nos conteúdos são uma realidade.
Dentro dessa perspectiva pautada pela incerteza, as famílias analisadas podiam ser agrupadas em duas formas de pensar a educação. No primeiro grupo, encontram-se as famílias Moreira, Guimarães e Marques, que dizem considerar a escolarização um elemento importante, mas que ela não necessariamente configurava-se como o único caminho para o sucesso. Nessas famílias predominava uma noção bem difusa dos mecanismos de funcionamento do sistema educacional e das relações estatísticas entre aumento da escolaridade, empregabilidade e renda. Juntamente com isso, no caso dos Marques, a formação escolar obtida pela mãe, pai e avó materna não foram fatores determinantes na profissão que desempenhavam e nem nos ganhos financeiros auferidos por eles. Na situação das famílias Moreira e Guimarães, vimos que o ingresso no mercado de trabalho não dependeu diretamente da formação escolar e, principalmente, no caso da família Guimarães, o ingresso no mercado de trabalho se deu anteriormente à conclusão de qualquer nível de ensino.
O segundo grupo, formado pelas famílias Torres e Almeida, é cético sobre os prêmios conferidos pela escolarização. Essas famílias conseguem estabelecer forte correlação entre escolaridade e renda, mas possuem dúvidas se a escolaridade se traduz efetivamente em empregabilidade e retorno financeiro. São famílias que possuem um número significativo de pessoas que trabalham com atividades ligadas à sua formação acadêmica e conhecem em parte o funcionamento do sistema educacional. Ao reconhecerem esses problemas, tais famílias enxergavam a escolarização como algo importante, mas consideravam que a estrutura de oportunidades da educação brasileira impunha-lhes uma série de incertezas que, em última instância, poderiam significar um diploma sem a garantia de empregabilidade.
Apesar das diferenças de pensamento entre esses dois grupos, ao estabelecerem um tom de desconfiança dos prêmios advindos da escolarização, é possível observar em todas as famílias uma posição na qual os custos dessa escolarização são identificados como altos e os ganhos/benefícios são vistos como duvidosos e, muitas vezes, resgatados somente após um longo tempo de investimento. Por isso, muitos familiares veem o investimento de tempo e recursos financeiros na escola como algo incerto e custoso. Observe-se que essas percepções sobre investimento-risco-retorno vão ao encontro das teses de Raymond Boudon sobre os distintos investimentos educacionais das famílias segundo as diferentes posições sociais que ocupam. Segundo Boudon, como argumenta Nogueira (2013), a sensibilidade ao risco varia de acordo com a posição social dos pais, porque o custo e o benefício (contribuição da escolarização para a manutenção e ou ascensão em relação à posição familiar) também variam em função dessa posição. O custo maior e o benefício comparativamente menor obtido pelas famílias de nível social mais baixo em relação às de nível social mais alto fazem com que aquelas tenham uma tolerância menor ao risco no investimento escolar (Nogueira, 2013). Nesse sentido, a relação custo-benefício associada ao investimento no esporte seria mais promissora que a associada exclusivamente à escolarização para as famílias analisadas.
A forma como essas famílias enxergam seu campo de possibilidades no processo de escolarização possui estreita correlação com o status de seus filhos no campo futebolístico. A observação sobre os seus campos de possibilidades é sempre construída através de um processo relacional, em que várias estruturas de oportunidades são identificadas, analisadas e classificadas pelos indivíduos a partir das suas experiências sociais e crenças (Velho, 2003). As visões e crenças dessas famílias sobre as oportunidades sociais promovidas pela escolarização são influenciadas diretamente pelas percepções de sucesso de seus filhos no futebol. Essas famílias, no momento da pesquisa, possuíam seus filhos com trajetórias de sucesso no futebol. De fato, a carreira no futebol e a forma como se desenvolve a trajetória escolar desses jovens também fomenta um conjunto de crenças e valores que formam as percepções sobre até onde eles acham que podem chegar por meio da escolarização ou do futebol. As decisões se baseiam na experiência e nas convicções acumuladas por essas famílias.
Das cinco famílias analisadas, em três delas (Torres, Almeida e Marques) os jovens atletas nunca haviam sido reprovados. Os próprios atletas e suas famílias afirmaram também que ao longo da escolarização nunca tiveram problemas disciplinares com as instituições escolares. Nas outras duas famílias (Moreira e Guimarães) os filhos atletas haviam experimentado uma reprovação cada.
Dentro do percurso escolar desses jovens, a despeito de reprovações ou não, podemos verificar que alguns elementos aproximam suas trajetórias escolares. Uma delas é a opção dos pais por trocá-los seguidamente de escolas devido às necessidades e rotinas do futebol. Essas mudanças dificultavam para os atletas a criação de laços afetivos e de pertencimento com as escolas que estudavam (Bruniera, 2016).
Em alguns casos, os atletas comentaram sobre as estruturas das escolas pelas quais passaram, evidenciando que elas eram muito diferentes entre si. Os relatos abaixo permitem entender o impacto dessas mudanças na rotina escolar dos jovens.
Murilo: Quando eu vim para o Rio de Janeiro, eu estava no 6º ano, eu acho. O que eu lembro muito bem era que a matéria que eu passei a dar aqui na escola era muito diferente da matéria lá da Bahia. Em matemática e português eu já tinha visto tudo que eles tinham dado aqui, mas em geografia e história as matérias estavam organizadas de outra maneira. Me enrolei todo no início25.
Bernardo: As escolas daqui do Rio de Janeiro, as públicas, são diferentes das escolas públicas de Ribeirão (Preto). Aqui é bimestre e lá, pelo menos na minha escola, era trimestre. Então quando eu vim no meio do ano, acabei que não tinha nota de 2º bimestre, porque lá isso não tinha. Minha mãe teve que ir no colégio para tentar resolver isso26.
Essas situações acabam por acarretar, em determinados contextos, trajetórias escolares descontínuas, que podem criar uma baixa expectativa nos estudos, ainda mais porque muitas dessas mudanças são feitas com o ano letivo em curso, em função das oportunidades no futebol.
Período de 5 anos | |||||
Família nº de escolas | Marques | Moreira | Almeida | Torres | Guimarães |
Escolas | 5 escolas | 4 escolas | 3 escolas | 3 escolas | 3 escolas |
Fonte: Correia (2018, p. 302).
Aliado a esse problema das trocas de escola e de uma percepção de outros caminhos profissionais alheios à escolarização, há também a construção de um estereótipo sobre os estudantes-atletas. Essa rotulagem marca a imagem desses jovens no ambiente escolar, que pode ser positiva entre os colegas e negativa para professores e outros agentes escolares, como evidenciou Da Conceição (2014) em seu trabalho. A existência de discursos e percepções negativas sobre as atividades desenvolvidas no esporte foram explicitadas em diversos momentos nas entrevistas de agentes escolares dentro das três escolas.
Diretora da escola X: Hoje em dia é muito dinheiro para uma situação que envolve futebol. Os meninos, vêm assim achando que vai dar tudo certo, que vai ser Neymar. Agora a gente sabe que isso é raro. A fama e o dinheiro são muito encantadores, mas, em relação à escola, eles não valorizam. A gente não vê essa valorização. É em um ou outro que se vê essa valorização da escola na vida. [...] O que a gente observa é que o futebol está em primeiro lugar e aí a escola fica numa concorrência desleal27.
Diretora da escola Z: O problema dos atletas aqui na escola é que eles acham que o futebol vai dar certo. Mas a gente sabe que é só uma minoria que vai conseguir. Mas eles não pensam assim. Então, muitos não querem estudar, faltam muito. Fora que alguns acham que só porque estão na base do [nome do clube] já são atletas profissionais, aí chegam aqui numa marra imensa. O Joel é um exemplo desse. Temos casos difíceis aqui, mas ele é sem dúvida o mais difícil28.
Professora (2) da escola Y: Os alunos que chegam do futebol possuem aquele perfil que a gente já conhece né... Querem fazer muito pouco, acham que por serem da base são os donos da escola. Sempre ficam questionando para que precisam estudar aquilo, e alguns são indisciplinados e preguiçosos29.
As falas evidenciam uma série de rótulos construídos pelos agentes escolares sobre os estudantes-atletas. O principal problema é o chamado efeito pigmalião (Rosenthal; Jacobson, 1986), com a criação de um estigma que, dentre outros, cria baixas expectativas em docentes e gestores escolares em relação ao aluno-atleta.
Segundo Goffman (2005), “[...] o termo estigma foi criado pelos gregos para se referir a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava” (p. 5). Baseados nisso, podemos concluir que os indivíduos que fugiam da conduta moral normativa eram tachados negativamente e tornavam-se vítimas do estigma. Nas sociedades contemporâneas, as marcas do estigma ultrapassam a questão física e espraiam-se para os campos simbólicos relacionados aos comportamentos e identidades construídas pelos indivíduos. Com isso, o estigma pode também estar relacionado ao comportamento, à linguagem ou aos modos de se vestir e viver (Castro, 2011).
Sendo a escola, um microcosmos da sociedade, podemos visualizar, nesse espaço, situações análogas, ligadas à construção de mecanismos de classificação, rotulagem e exclusão. Os que não se encaixam nos modelos preconizados pela escola e impostos pelo sistema de ensino adquirem uma marca, passam a ser reconhecidos na instituição escolar por características alheias a esse espaço e diretamente relacionadas com as atividades e trajetórias de vida provenientes de fora da escola.
Na pesquisa, os professores e agentes educacionais evidenciaram a comparação dos alunos-atletas com um aluno idealizado, que, para eles, independente das circunstâncias, precisa estar dentro do padrão criado por si mesmos. Nesse sentido, o aluno modelo, ao qual, segundo os professores, os atletas se afastavam, valorizava o estudo como principal caminho. Quando os professores e agentes educacionais dão atenção apenas a atributos que estão dentro do padrão que se criou para aquele determinado grupo, destrói-se a possibilidade do sujeito ser visto por atributos que podem não estar dentro de suas expectativas, mas que são atributos igualmente legítimos para o espaço escolar.
Nessa situação, o estudante se vê forçado a dedicar maior esforço para obter um resultado igual aos demais alunos não atletas. Em caso de insucesso, reforça-se o estigma do atleta de futebol, como aquele aluno desinteressado pela educação, educado por uma família desconectada da escola. Na fala das diretoras é possível identificar elementos atrelados à imagem do senso comum sobre o jogador de futebol, tais como marra, desvalorização do espaço escolar, vestuário e linguagem gestual próprias que evidenciam sob quais elementos se constrói esse estigma do aluno desinteressado.
O problema desse estigma é que a relação do atleta e da sua família com a escola fica ainda mais comprometida, como mostram os relatos de alguns atletas.
Joel: Quando eu cheguei aqui nessa escola, eu procurei não dizer que eu era jogador de futebol. Para evitar qualquer coisa. Eu treino lá no [nome do clube] e muitos amigos meus falam que eles pegam no pé dos atletas. Estou querendo fugir disso30.
Bernardo: Alguns professores gostam de expor a gente. Eles falam no meio da turma. Eles gostam de querer se exibir mesmo. De querer falar assim na nossa frente: ‘Ah! Não é porque vocês ganham mais que a gente’, que não sei o quê. Daí a gente fica quieto. A gente deixa eles ficarem falando sozinhos31.
No acompa n ha mento, foi possível verif ica r, pr i nc ipa l mente na escola Z, onde se encontravam matriculados os filhos atletas das famílias Moreira, Guimarães e Torres, uma visão negativa sobre os estudantes atletas. Normalmente, a direção reclamava muito dos atletas, alegando que eles não gostavam de estudar. A questão é: só eles? Os agentes escolares, não percebendo a lógica intrínseca que orienta o comportamento dessas famílias, proferiam frases que desqualificavam os pais perante a escolarização dos atletas.
A manifestação do estigma nos alunos atletas é um problema sério que afeta o desempenho destes e a relação das famílias com a escola. Perez (2000, p. 134) observa que as atitudes dos pais, se contrárias às prescrições da escola, são rotuladas, interpretadas e reforçam o estigma: “[...] os pais não valorizam o estudo dos filhos, não fazem seu acompanhamento escolar, não se interessam”. Do ponto de vista da escola, todo o comportamento que não se conecta com aquilo que a instituição considera como esperado significa a existência de uma família desestruturada e da pouca valorização a educação (Ribeiro; Andrade, 2006).
O acompanhamento das famílias na sua relação com as escolas leva a entender que o diálogo entre as duas instituições é tecido por dissonâncias e tensões entre lógicas divergentes, contraditórias e de confrontação: de um lado, a escola, que enxerga a escolarização como elemento central do desenvolvimento social e das melhores chances de mobilidade social; do outro lado, as famílias de atletas, que enxergam o projeto de escolarização como possível de ser protelado no tempo. Assim, não são criados canais de comunicação, de modo que não há um diálogo que possibilite compreender o sujeito professor/diretor e o sujeito aluno participando de um mesmo processo educativo.
Considerações Finais
As análises feitas procuraram retratar que os investimentos na escolarização dos jovens nas famílias de futebolistas são secundarizados em relação aos investimentos no futebol. Com relação à escola, alguns jovens atletas tinham referências de sucesso relativo dos familiares pelas vias escolares, pois dentro de suas famílias existiam casos positivos de escolarização. Os exemplos positivos incentivavam os jovens atletas e os membros da família a manterem o projeto escolar vivo, no entanto, numa posição secundarizada pelo ponto em que se encontram na carreira do futebol num clube de alto prestígio.
Nessa equação, contribuem para o privilégio dado ao futebol, as estruturas de oportunidades experimentadas na trajetória escolar e esportiva das famílias e dos próprios atletas, que ao longo do tempo vão consolidando um sistema de crenças. Esse sistema, sempre dinâmico, aponta para as famílias que o esporte se constitui como um campo de possibilidades mais alargado e estruturado, segundo seus pontos de vista, e o sucesso que seus filhos apresentam no esporte. Diante disso, realizam escolhas em benefício do esporte, através de um conjunto de estratégias de flexibilização das rotinas escolares.
As escolhas das famílias e dos atletas reforçam as análises feitas por Boudon acerca dos custos e benefícios enxergados pelos indivíduos na construção dos seus projetos. Procurando extrair sempre a maior vantagem a partir dos menores custos possíveis, as famílias operacionalizam práticas que priorizam, cada uma a sua maneira, a conciliação entre o esporte e a escola. Nesse sentido, elementos como origem social e nível socioeconômico constituíam-se como característica importante na compressão dessas escolhas.
Todavia, o foco na carreira voltado para a profissionalização no futebol não exclui a ideia da escolarização básica, que confere certificação mínima para ocupar algum posto de trabalho no mercado ordinário. Todavia, a escolarização é encarada pelas famílias como uma atividade que deve ser levada com baixo nível de dedicação em função do projeto do futebol, pois a escolarização, em caso de insucesso, pode ser postergada. A contrapelo, a temporalidade da formação para a profissionalização no futebol exige dedicação e sucesso de acordo com a idade do atleta na categoria em que se encontra. A máxima que pode ser retirada da percepção dos pais é a de que o futebol não espera. A priorização do projeto futebolístico, muitas vezes, leva os agentes escolares a estigmatizarem os estudantes-atletas e encarar tal prioridade como descaso e omissão de núcleos familiares que seriam deslumbrados com o futebol. Por fim, parece que a escola ainda lida com um aluno abstrato, e a estigmatização sobre os estudantes-atletas parece não ser exclusividade destes alunos.