Notaria apenas que, em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes.
Michel Foucault
No final de 2016, ano do impeachment da presidenta Dilma Roussef, o governo Temer apresentou uma medida provisória de Reforma do Ensino Médio Nacional. Controversa tanto no conteúdo quanto na forma, a Reforma vem sendo analisada criticamente por pesquisadores, entidades educacionais, educadores e estudantes,1 apesar de contar com apoio majoritário do Conselho Estadual dos Secretários Estaduais de Educação (Consed).
A proposição desta Reforma não é iniciativa episódica ou isolada: notamos uma presença constante de Reformas Educacionais nas agendas governamentais brasileiras. Diante dos desafios e da falência dos sistemas oficiais de ensino, seus modelos burocratizados, precarizados e desregulamentados, e sob a égide de uma política neoliberal que esvazia crescentemente o papel do Estado, a importância de Reformas como agenda e como discurso parecem estar desempenhando um papel central no jogo político.
Os discursos sobre as Reformas educacionais ocupam frequentemente os meios de comunicação, seja na forma das opiniões de intelectuais, gestores e empresários a respeito das causas de nossas mazelas educacionais, seja como debate em torno das proposições reformistas emanadas pelo Estado. Os governos, por meios de suas assessorias de imprensa, conseguem inserir suas pautas e ações reformistas na mídia, sendo um forte indutor da cobertura jornalística e dos debates que se constroem na sociedade civil.
O caráter estratégico da Reforma como pauta governamental no jogo político pode ser observado tanto em governos de direita quanto de esquerda, já que ambos defendem Reformas Educacionais e buscam realizá-las, como ocorreu recentemente no Brasil no que tange ao Ensino Médio. Assim, neste artigo, queremos desenvolver a ideia de que a promessa da Reforma do Ensino Médio como superação dos problemas da educação tem ocupado um papel central no jogo político democrático brasileiro nos últimos anos.
A intensificação de Reformas educacionais, a partir dos anos 1950,2 em todo o mundo, multiplicou experiências que se tornaram cada vez mais internacionalizadas e, ao mesmo tempo, colaborou para difundir uma crítica crescente sobre os limites dos resultados alcançados. Juan Carlos Tedesco qualifica de “efeitos perversos de mudanças educativas permanentes” os resultados de reformas educacionais sucessivas, afirmando que, na maior parte dos países, as reformas têm, paradoxalmente, fortalecido a rigidez e o imobilismo dos sistemas de ensino (TEDESCO, 1995).
Em artigo recente, Leão levanta diversos questionamentos a respeito da suposta urgência da atual Reforma do Ensino Médio. “Considero importante iniciar uma análise sobre o tema explorando um pouco essa imagem da urgência, já que ela também foi usada como argumento central para a edição da MP 746/2016 recentemente aprovada como Lei 13.415/17. Porque é urgente reestruturar o ensino médio?” (LEÃO, 2018, p. 2) Para o autor, embora exista um traço histórico na escola pública brasileira que pode justificar melhorias urgentes, já que ela foi tardia, desigual e insuficiente (MOLL, GARCIA, 2014) caberia questionar se as reformas são realmente ferramentas para as mudanças almejadas (ibid.).
Arroyo questiona a relação entre reforma curricular e inovação educacional afirmando que: “[...] todo projeto de reestruturação curricular no Ensino Médio que pretenda definir expectativas e normas ´do alto´ não restaura currículos tampouco inova o ensino. (ARROYO, 2014, p. 57). Para o autor, o currículo já é constantemente reinventado na prática das escolas por professores e alunos, e caberia ao estado reconhecer e apoiar essas inovações uma vez que “Este processo inovador dos currículos exige apoio das políticas públicas” (ibid., p. 54).
Antecedentes da Reforma do Ensino Médio: PL 6.840/13
A Reforma do Ensino Médio foi apresentada pelo governo Temer, como medida provisória, no final de 2016. O texto da Reforma logo chamou atenção por trazer diversas proposições já conhecidas desde 2013, ano em que foi apresentado o Projeto de Lei 6.840/13 na Câmara dos Deputados. Assim, surgiu a dúvida se se tratava de uma nova política ou se estaríamos diante de um retorno do PL, agora na forma de medida provisória. Esta será uma das questões a serem examinadas por este trabalho.
O PL 6.840/2013 foi resultado dos trabalhos da Comissão Especial para Reformulação do Ensino Médio (CEENSI),3 que teve início em maio de 2012 e foi presidida pelo deputado Reginaldo Lopes, do Partido dos Trabalhadores (PT-MG). Em documento orientador para a realização de seminários estaduais, a Comissão apresenta sua formulação sobre os problemas do ensino médio:
O ensino médio é hoje o grande desafio global a ser enfrentado em termos de educação básica. De acordo com o relatório Situação mundial da infância 2011 - Adolescência: uma fase de oportunidades, publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef em apoio ao segundo Ano Internacional da Juventude, manter o adolescente no ensino médio e fazer com que o conclua é o obstáculo que se coloca para a educação básica em todo o mundo no século XXI, principalmente nos países menos desenvolvidos e em desenvolvimento. Segundo o relatório do Unicef, apesar de a educação secundária ter um impacto significativo sobre os rendimentos de cada indivíduo e sobre o crescimento econômico da sociedade, contribuindo para o rompimento dos ciclos intergeracionais de pobreza e iniquidade, no mundo, um em cada cinco adolescentes está fora da escola, sendo que, no Brasil, a proporção é de um para sete. (CEENSI, 2013, p. 4)
O texto do PL 6.840/13 propôs alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação-LDB (Lei 9.394/1996) para instituir a jornada de tempo integral no ensino médio, dispor sobre a organização do currículo desta etapa por áreas de conhecimento, entre outras providências. Os principais pontos trazidos pelo PL eram: universalização, em 20 anos, do ensino médio em tempo integral; proibição do ensino médio noturno para jovens menores de 18 anos; ampliação da carga horária do ensino médio noturno para 4.200 horas; organização do currículo em quatro áreas de conhecimento (linguagens, matemática, ciências humanas, ciências naturais); adoção de opções formativas no último ano do ensino médio, a critérios dos alunos (I-ênfase em linguagens, II-ênfase em matemática; III-ênfase em ciências da natureza; IV - ênfase em ciências humanas e V - formação profissional); implantação da base nacional comum para o ensino médio, que compreende, entre componentes e conteúdos, o estudo da Língua Portuguesa, da Matemática, do conhecimento do mundo físico e natural, da Filosofia e da Sociologia, da realidade social e política, especialmente do Brasil, e uma língua estrangeira moderna; obrigatoriedade da realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem ). Na justificativa do PL, encontramos uma formulação já um pouco mais específica a respeito dos problemas do ensino médio:
A partir da constatação, inclusive por meio dos resultados de avaliações nacionais e internacionais das quais participam os alunos brasileiros, de que o atual modelo de ensino médio está desgastado, com altos índices de evasão e distorção idade/série e de que, apesar dos investimentos e do aumento no número de matrículas, não conseguimos avançar qualitativamente nesse nível de ensino, a Comissão Especial buscou realizar a discussão mais ampla e abrangente possível sobre as alternativas de organização do ensino médio e as diferentes possibilidades formativas que contemplem as múltiplas necessidades socioculturais e econômicas do público ao qual se destina este nível de ensino, na perspectiva da universalização do ensino de qualidade. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2013)
O discurso a respeito da baixa performance de alunos em sistemas de avaliação de larga escala é recorrentemente utilizado para justificar a necessidade de reformas educacionais. Trata-se de uma tendência global, fortalecida com a criação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 2000, ao qual o Brasil aderiu desde sua primeira edição. Como diz Ball:
[...] os discursos que estão atualmente em jogo em toda uma variedade de políticas com características diversas, são importantes em dois sentidos. Primeiro, na sua contribuição para a construção da necessidade da reforma, particularmente no caso da competição econômica global e internacional e as necessidades da economia do conhecimento, e, segundo, oferecendo e criando a necessária apropriação das respostas e soluções das políticas. (BALL, 2008, p. 13)
Diversas entidades do campo educacional posicionaram-se contrariamente à proposta, o que fomentou a organização de um grupo da sociedade civil, denominado “Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio”.4 As principais divergências do Movimento em relação ao PL, explicitadas em seu primeiro Manifesto, referem-se ao caráter compulsório do ensino médio em tempo integral, num país em que a concomitância entre escola e trabalho é uma realidade entre os jovens; a proibição do ensino noturno aos menores de 18 anos e sua desvalorização no PL, embora sua oferta seja de enorme importância na garantia do direito ao ensino médio para jovens trabalhadores; a escolha de áreas de ênfase na formação do aluno, retrocedendo a uma formação fragmentada que compromete a formação geral para todos; a transformação da formação profissional numa área de ênfase, minimizando sua importância e desconsiderando o modelo de ensino médio integrado já praticado na rede federal e em algumas redes estaduais.
Dentre as ações do Movimento Nacional foi oportunizada, pela mediação da ANPED, uma primeira audiência com o Exmo. Sr. Ministro da Educação em 08 de abril de 2014. Nesta audiência o MEC explicita preocupações com o Projeto de Lei e se solidariza com o Movimento Nacional. (MOVIMENTO NACIONAL EM DEFESA DO ENSINO MÉDIO, 2014)
Mesmo que a presidência da Comissão que originou o PL tenha sido ocupada por um deputado do PT, partido à frente da presidência da república, não havia consenso dentro do Ministério da Educação (MEC), órgão do poder executivo, a respeito do PL. Nesse sentido é que o Movimento pelo Ensino Médio buscou explorar essas tensões:
A Reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/17): continuidades e rupturas
No ano de 2015, acentuou-se a crise política que vinha se desenrolando desde a reeleição da presidenta Dilma Roussef, em 2014. O acolhimento do pedido de impeachment de Dilma, pelo então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ) culminou em 2016 no afastamento da mesma e na posse de Michel Temer.
Com uma rapidez surpreendente, Temer apresentou uma Reforma do Ensino Médio Nacional como medida provisória, no mesmo ano de sua posse. Paralelamente, apresentou uma Emenda Constitucional (EC 95-2017), visando congelar os gastos públicos nas áreas sociais, com impactos diretos para o investimento em educação. A articulação evidente entre as duas medidas explicitou que se tratava de um novo momento em que a Reforma do Ensino Médio passava a se configurar como parte de um processo mais amplo de ajuste fiscal do Estado.
A MP 746/16 (que se tornou- a Lei 13.415/17) trazia diversos pontos comuns ao PL 6.840/13, mas também algumas diferenças. No quadroabaixo, podemos ter uma visão comparativa:
Antes de mais nada, é preciso salientar que o quadro acima não esgota todos os pontos tratados no PL e na Lei 13.415/17,6 mas traz os aspectos que considero mais relevantes para efeito de comparação das duas propostas.
Os pontos em comum que mais chamam a atenção são a centralidade das áreas de conhecimento no currículo e a opção por itinerários formativos. Há uma concepção geral de flexibilização curricular, mas o modo como isso ganha concretude em cada uma das propostas apresenta diferenças, das quais gostaria de destacar três: A Lei 13.415/17 enfatiza a Base Nacional Comum (sem apresentá-la), torna os componentes curriculares secundários e, principalmente, opera numa lógica de redução curricular e de carga horária,7 enquanto o PL 6.840/13 tinha uma lógica de ampliação de carga horária com a universalização do tempo integral.
O caráter neoliberal da proposta fica, portanto, bastante evidenciado na Lei 13.415/17, em que a flexibilização é desenhada no sentido de diminuir os gastos públicos com educação. Este aspecto foi ainda mais aprofundado com a proposta, recém-apresentada ao Conselho Nacional de Educação, que possibilita a oferta de 40% do ensino médio à distância, percentual que pode chegar a 100%, no caso da modalidade Educação de Jovens e Adultos (Eja).8
De qualquer modo, nos interessa perceber também os pontos de continuidade entre as duas proposições reformistas que emergem em contextos políticos bem distintos. O ponto mais consensual é o próprio reconhecimento da necessidade e da urgência de uma Reforma do Ensino Médio no Brasil.
É interessante perceber como este aspecto foi explorado no jogo político, como por exemplo, na ocasião em que Mendonça Filho, ministro de Temer, foi entrevistado no programa Roda-Viva, antes da aprovação da Reforma:
Quem foi a pessoa que mais divulgou e defendeu a Reforma do Ensino Médio, com teses de flexibilização? A própria ex-presidente Dilma Rousseff. Os ex-ministros da educação, todos eles falaram sobre a necessidade de Reforma do Ensino Médio. A Ubes que é um braço hoje muito vinculado ao PC do B e talvez ao PT também, no seu site se você entrar você vai ver no site a mobilização da Ubes em defesa do Ensino Médio, até o início do governo Temer. (TV CULTURA, 2018)
Aloísio Mercadante, que foi ministro da educação no governo Dilma, manifesta seu posicionamento sobre a Reforma em reportagem no site do MEC:
Com relação a essa etapa do ensino, em que os dados do Ideb apontam quadro de estabilidade, Mercadante diz que as ações devem passar pela ampliação das escolas de tempo integral e pela reformulação do currículo. “Precisamos de um novo currículo, mais flexível, menos fragmentado, tirando um pouco dessa sobrecarga de disciplinas”, afirmou o ministro, no programa de rádio Hora da Educação, nesta sexta-feira, 17. O ensino médio da rede pública tem hoje 13 disciplinas obrigatórias, mas pode chegar a 19, com as opcionais. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2018)
Como podemos perceber, havia, antes do governo Temer, um anseio reformista em setores da sociedade insatisfeitos com os atuais rumos do Ensino Médio.9 Após o golpe institucional, foram criadas as condições para que uma parte dos setores insatisfeitos pudesse aprovar com mais celeridade a reforma e desenhá-la de forma mais compatível com a nova concepção de Estado mínimo, professada pelos grupos que chegaram ao poder- operando uma ruptura em relação ao governo anterior.
Assim, argumentamos que a noção de “Reforma Educacional” é um elemento essencial no jogo político democrático e opera como um significante vazio, conceito desenvolvido pelo filósofo político argentino Ernesto Laclau.
Significante vazio, política e hegemonia
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe formulam sua teoria a partir de uma abordagem pós-estruturalista e pós-marxista que implica considerar os limites explicativos do Estrututuralismo e do Marxismo no que tange à conflitividade social contemporânea, mas também envolve o reconhecimento de que os avanços só são possíveis a partir dos conhecimentos por eles produzidos (LACLAU, 2001). Nesse sentido, os autores buscam uma teoria que propõe uma radicalização da democracia moderna, sem a crença num sujeito histórico universal (a classe operária) e compreendendo a sociedade como uma construção aberta e fragmentada, que impossibilita sínteses históricas totais, o que implica abandonar a ideia de uma completude ou fechamento (a revolução).
Em sua teoria do discurso, Laclau e Mouffe partem da noção de sistema linguístico de Saussure. A noção de relação é central nesta teoria, pois é por meio dela que as identidades dos vários elementos do sistema são constituídas. Nesse sentido, a identidade de um elemento não tem anterioridade ou essencialidade, mas é constituída na relação com outros elementos. Ao mesmo tempo, Laclau considera o sistema social como um sistema discursivo em que todos os objetos, sejam humanos, materiais ou naturais, assumem uma forma discursiva. Nesse sentido, o autor nega a dicotomia dicursivo x extra-discursivo ou pensamento x realidade, afirmando que há uma interpenetração entre eles de modo que, mesmo os objetos cuja existência seja externa ao pensamento, só podem adquirir algum significado dentro de contextos discursivos (ibid.).
Nossa análise rechaça a distinção entre práticas discursivas e não-discursivas e afirma: 1) que todo objeto se constitui como objeto de discurso, na medida em que nenhum objeto se dá à margem de toda a superfície discursiva na qual emerge; b) que toda distinção entre o que usualmente denominamos aspectos linguísticos e práticos (de ação) de uma prática social, ou bem são distinções incorretas, ou bem têm lugar como diferenciações internas à produção social de sentido, que se estrutura por meio de totalidades discursivas. (LACLAU, MOUFFE, 2001, p. 107, tradução nossa).
O mundo social, para Laclau, não possui uma essência, mas é construído de maneira precária e contingente a partir de práticas de articulação, que buscam continuamente preencher os vazios que o constituem como uma unidade incompleta, inatingível, mas sempre perseguida. A articulação consiste na construção de pontos nodais que fixam parcial e provisoriamente o sentido, constituindo-se como arranjos discursivos provisórios.
Se o social não consegue se fixar nas formas inteligíveis e instituídas de uma sociedade, o social só existe, contudo, como um esforço para construir esse objeto impossível. Qualquer discurso é constituído como uma tentativa de dominar o campo da discursividade, para deter o fluxo das diferenças, para construir um centro. Chamaremos os pontos discursivos privilegiados dessa fixação parcial, de pontos nodais (ibid., p. 112 tradução nossa).
Outro ponto importante para os autores refere-se à construção das identidades. Para eles, as identidades são constituídas por meio de uma dupla lógica: das equivalências e das diferenças. Na relação com outros elementos é que se afirma a identidade10 que, nesse caso, é sinônimo de diferença. O significado não precede a relação entre os elementos, não é um dado a priori. Mas todo elemento possui também uma equivalência (de um elemento com outro), uma vez que todos se deparam com uma fronteira de exclusão. De um lado, cada diferença expressa a si mesma como particularidade, de outro lado, cada diferença cancela a si mesma enquanto particularidade para entrar numa relação de equivalência com outros elementos do sistema. A lógica da diferença conduz ao antagonismo, e a lógica da equivalência leva ao enfraquecimento da diferença e à necessária simplificação do terreno político. A negociação entre as duas lógicas (diferença e equivalência) é o que constitui “o político”, ou seja, o campo discursivo que permite que elementos particulares convertam-se em elementos gerais-universais.
Em termos políticos, o campo da falta é que permite seu preenchimento com os conteúdos concretos da política, por meio das articulações ou atos de identificação, sempre provisórios, e que constituem uma aposta de completude temporária, uma vez que não há um conteúdo ontológico específico a unificar a sociedade como um todo. Como afirmam Mendonça e Rodrigues: “Falta constitutiva significa justamente que, sendo impossível alcançar o sentido da democracia, a consequência é a eterna tentativa de cobrir esta falta a partir do preenchimento contingente de sentidos parciais” (MENDONCA, RODRIGUES, 2014, p. 43).
Nesse sentido, o reconhecimento da natureza constitutiva da “lacuna” e sua institucionalização é que constitui, para Laclau e Mouffe, o ponto crucial da democracia moderna (MACIEL, 2010). Trata-se de condição para aquilo que denominam de construção da hegemonia.
Em Hegemony and Socialist Strategy, Laclau e Mouffe examinam o conceito de hegemonia desde as formulações da social-democracia, passando por Lênin e demais vertentes do marxismo, até chegar a Gramsci, que inovou o conceito, possibilitando uma nova compreensão da luta de classes no interior da teoria marxista, em que hegemonia não se restringiria a um aspecto tático ou estratégico (LACLAU, MOUFFE, 2001; ALVES, 2010). Gramsci confere um novo dinamismo à relação entre estrutura e superestrutura, superando as análises marxistas mais ortodoxas e lineares e concedendo importância às disputas ideológicas no âmbito da sociedade civil. Entretanto, para Laclau e Mouffe, Gramsci manteve-se ligado ao projeto revolucionário marxista que entende o socialismo como a síntese histórica na qual as próprias lutas por hegemonia desapareceriam. Na concepção de hegemonia formulada por Laclau e Mouffe, não há possibilidade de um destino final que elimine as lutas sociais, pois o social é aberto e incompleto, e a constituição de uma hegemonia requer a criação de novas fronteiras políticas, ao invés de seu desaparecimento. Nesse sentido, o conceito de hegemonia formulado pelos autores consiste numa tentativa de apropriar-se do legado gramsciano, levando adiante suas potencialidades e, ao mesmo tempo, superando seus limites, tendo em vista que o capitalismo contemporâneo não logrou realizar a esperada unificação do sujeito histórico do socialismo (a classe operária), mas, ao invés disso, diferenciou e multiplicou os sujeitos históricos da conflitividade social, que trouxeram novas pautas para o campo político, tais como o feminismo, as relações raciais, as questões de sexualidade e do meio-ambiente, entre outras.
A hegemonia em Laclau e Mouffe não envolve a criação de um novo centro no social, tampouco uma unicidade: “Em uma dada formação social pode haver uma variedade de pontos nodais hegemônicos” (LACLAU, MOUFFE, p. 139, 2001). Assim, para os autores, a hegemonia é uma forma, um tipo de relação política, e não uma essência capaz de preencher substancialmente o social.
Nenhuma lógica hegemônica pode dar conta da totalidade do social e constituir seu centro, pois nesse caso uma nova sutura teria sido produzida e o conceito de hegemonia teria sido eliminado. A abertura do social é, então, a precondição de toda prática hegemônica. (ibid., p. 142, tradução nossa)
Outro ponto é que a hegemonia envolve deslocamento das identidades de atores políticos que tomam para si funções organizacionais adicionais,11 e nesse sentido, implica alguma mudança tanto no agente hegemonizador quanto nos agentes hegemonizados. Segue-se daí, que é no curso da prática articuladora que as identidades se redefinem, e não podem ser fixadas de uma vez por todas, pois na dinâmica social, podem se mover transformando o que era equivalência e oposição a uma fronteira antagonista, numa diferença absorvida pelo interior do sistema. É isso o que acontece quando temos uma articulação hegemônica em que os agentes posicionam-se contrariamente a certos aspectos desta, mas mantêm suas críticas subordinadas ao campo interno da própria formação: foi isso que ocorreu, a nosso ver, com os posicionamentos no PL 6.840/13. As críticas ao PL por setores da esquerda não se deram de modo a romper com a articulação hegemônica do governo Dilma, mas foram absorvidas por ela. A ruptura veio posteriormente, com a construção de um novo campo antagonista no governo Temer. Este ponto será retomado adiante.
Como vemos, na formulação de Laclau e Mouffe, hegemonizar significa preencher uma “falta de”, um significante vazio, por meio de um discurso aglutinador que tenta conferir unidade em meio às diferenças. Por isso, nesta teoria, os significantes vazios ocupam lugar central: “A política é possível porque a impossibilidade constitutiva da sociedade pode apenas representar a si mesma através da produção de significantes vazios” (LACLAU, 2007, p. 44). Se a sociedade fosse um sistema fechado de diferenças, sem significantes flutuantes, não haveria possibilidade de uma articulação entre os elementos do sistema, inviabilizando qualquer prática hegemônica. Isso porque a articulação implica justamente a existência de elementos separados que possam ser recompostos numa lógica de equivalência (LACLAU, MOUFFE, 2001).
O significante vazio pode ser ocupado por significados variados, que passam a representar a completude almejada e atuam no cancelamento das diferenças em nome do universal. Nesse sentido é que podemos entender a “Reforma educacional”, como um significante vazio, um campo de articulação de equivalências que enfraquece as particularidades e que, por isso mesmo, é estratégico no jogo político dos governos brasileiros, sejam eles de direita ou de esquerda, pois possibilita a construção de hegemonia.
O “reformismo educacional” como significante vazio
O discurso sobre a Reforma do Ensino Médio se constrói sobre a constatação de que esta etapa escolar está em crise. Esse discurso pode ser considerado hegemônico, pois tem conseguido articular discursos provenientes de grupos diversificados e, até mesmo, antagônicos (no que diz respeito a posições políticas e outras identidades), mas que compartilham algo comum: a compreensão de que existe uma situação crítica e insatisfatória na oferta de ensino médio no país. Como afirma Leão: Os atores envolvidos manifestam diferentes pontos de vistas em relação ao tema, dependendo do lugar de onde se fala, mas, apesar disso, “parece haver um consenso construído socialmente em torno da ideia de que “reformar o ensino médio é urgente” (LEÃO, 2018, p. 2). Na teoria laclauniana, podemos considerar que este é um ponto nodal, um significante vazio.
A constituição deste discurso hegemônico com apoio do sistema político institucional é anterior ao governo Temer, uma vez que existia um Projeto de Lei (PL) elaborado pelo Poder Legislativo e apoiado pelo partido político da então Presidenta da República. É preciso que se diga que esse PL enfrentou críticas, que se deram num campo institucionalizado por meio de audiências públicas realizadas na Câmara dos Deputados e que, de algum modo, incorporou mudanças com o substitutivo apresentado em 2014. Muitos atores sociais do campo educacional, ainda que compartilhando identidades políticas com o partido que estava no poder, divergiam em relação a pontos-chave do PL. No âmbito de um governo de esquerda, havia uma perspectiva de disputa interna no sentido de reverter o PL, uma vez que o campo político institucionalizado possuía suas fissuras internas, como por exemplo, divergências em relação ao PL dentro do Poder Executivo, no interior do Ministério da Educação. Ainda não se havia configurado um campo de antagonismo político, tal como ocorreu após o golpe institucional que levou Michel Temer à presidência.
O novo governo operou uma ruptura (uma fronteira de exclusão, para usar uma expressão laclauniana), possibilitando que uma gama variada e heterogênea de partidos e grupos políticos de esquerda, antes posicionados em campos distintos e opostos, se unificasse, identificando um novo inimigo comum: o governo golpista. Uma nova rede de equivalências pôde então se constituir em torno de uma identidade, que ganhou visibilidade performática na expressão “Fora Temer”.
Então, a mudança de contexto, ou seja, o fato de deslocar um determinado elemento de um sistema de referência para outro, altera significativamente a identidade desse fenômeno. Esses elementos adquirem um outro sentido que não é um sentido simplesmente, um acidente que lhe acontece, mas que altera a identidade do objeto em questão num outro contexto. (BURITY, 2014, p. 71)
Na conjuntura política do governo Temer, houve uma nova articulação das identidades políticas que enfraqueceu a Reforma do Ensino Médio como discurso hegemônico, não só pelo fortalecimento de críticas que já vinham de períodos anteriores, mas sobretudo pela construção de um novo campo antagonista: os apoiadores do golpe institucional e seus críticos. Além disso, houve uma radicalização neoliberal das proposições reformistas, com medidas de desregulamentação, redução curricular, diminuição de carga horária e tendências privatistas, o que colaborou para fortalecer um campo crítico à Reforma. A criação de uma nova fronteira antagonista estabeleceu o campo discursivo central em torno do qual as identidades foram sendo reorganizadas, o que nos ajuda a entender por que o campo da esquerda política, embora em parte estivesse entusiasmado com a Reforma do Ensino Médio em anos anteriores, passou a posicionar-se veementemente contra ela, no âmbito do governo golpista. A constituição de um limite que figure como ameaça para todas as diferenças acaba por reforçar a identidade entre elas, tornando-as equivalentes entre si (MACIEL, 2010).
A ruptura operada pelo golpe institucional e que reorganizou as esquerdas significou, a nosso ver, uma fratura da articulação hegemômica em torno da Reforma do Ensino Médio. Diante da nova fronteira antagonista criada no governo Temer, a possibilidade de preencher o significante vazio (em resposta à crise do ensino médio) fragilizou-se, por razões de ordem política mais geral, em boa medida externas à discussão educacional propriamente dita. Nesse novo quadro, houve a constituição de um bloco de oposição mais coeso e unificado no que tange à Reforma do Ensino Médio. Estaria este bloco em condições de construir uma nova hegemonia, na acepção laclaniana?
Sabemos que, no âmbito estritamente institucional, a Reforma do Ensino Médio já foi aprovada pelo Congresso Nacional e um de seus pilares- a Base Nacional Comum Curricular- foi recentemente apresentada ao Conselho Nacional de Educação, com enormes chances de aprovação. Além disso, a Reforma conta com o apoio do Conselho de Secretários Estaduais de Educação (Consed), agente político central para viabilizar sua implementação. Porém, do ponto de vista das escolas, dos professores e do cotidiano, é possível que a criação de um campo social crítico à Reforma inspire e instigue formas de resistência e de protesto que poderão gerar um campo hegemônico contra a implantação da Reforma.
De maneira geral, as Reformas Nacionais de Educação enfrentam diversos obstáculos para serem implementadas e para alterar, efetivamente, as práticas escolares, dependendo, para isso, da adesão, da apropriação e da tradução feita pelos agentes que estão na base no sistema de ensino. Nesse sentido, resta saber se a fronteira antagonista criada no governo Temer e que possibilitou a emergência deste novo campo de equivalências poderá desencadear movimentos de resistência à Reforma do Ensino Médio, uma vez que, na conjuntura política atual, seus contornos antipopulares parecem ter ficado mais visíveis e acentuados.