O feminicídio é a expressão máxima do ódio às mulheres. Seu reconhecimento somente foi registrado no Brasil em 2015, a partir da alteração no Código Penal, por meio da Lei nº 13.104/2015, que tipifica o feminicídio como circunstância qualificadora em crimes de homicídio, além de colocá-lo no rol de crimes hediondos. A referida lei define feminicídio como o crime cometido contra mulher “por razões da condição de sexo feminino” (BRASIL, 2015, inciso VI). Como se trata de algo relativamente novo e, sabemos, os operadores do direito são majoritariamente homens, em sua maioria atravessados por valores machistas e conservadores, nem sempre a interpretação de um homicídio de mulher, mesmo em condições que o qualificariam como tal, é feita corretamente como feminicídio.
Denúncias de feminicídios e silenciamentos: olhares descoloniais do sistema de justiça criminal, escrito por Ana Cláudia da Silva Abreu (2022)1, aborda o tema a partir da análise de denúncias de feminicídio (peça escrita pelo Ministério Público) do estado do Paraná, entre os anos de 2015 a 2020. As 467 páginas do volume estão organizadas, além do prefácio, com uma Introdução, quatro capítulos e as considerações finais. O prefácio é assinado por Soraia Mendes, conhecida pesquisadora e advogada criminalista especialista em direito das mulheres que publicou, também pela editora Blimunda, o livro Feminicídio de Estado: a misoginia bolsonarista e a morte de mulheres por Covid-19 (Soraia MENDES, 2021), obra que aborda o fenômeno de mortes violentas de mulheres como resultado de ações ou omissões do Estado. O título que Mendes dá ao prefácio - “Uma palavra sobre a obra de uma pesquisadora encarnada” (Soraia MENDES, 2022, p. 9) - já nos coloca algumas pistas acerca do que encontraremos na obra.
O primeiro capítulo - “A Categoria Feminicídio” - explora o histórico e percurso da tipificação no Brasil, indo além da simples caracterização e descrição, mas trazendo elementos para uma teoria do feminicídio com base em uma perspectiva de gênero, necessária, segundo a autora, diante do silenciamento das questões de gênero nas ciências criminais, majoritária e historicamente produzidas por homens. No segundo capítulo - “Feminicídio sob o olhar do Ministério Público” - a autora vai apresentar a análise inicial das denúncias elaboradas pelo Ministério Público do estado do Paraná. Analisa 531 casos de feminicídios tentados e consumados, ocorridos entre 2015 a 2020. Divide a análise estatística e conteudística em “cenários e o palco da violência” (ABREU, 2022, p. 152) (onde ocorrem); “protagonistas de uma tragédia anunciada” (ABREU, 2022, p. 175) (quem mata e quem são as mulheres mortas); e “o enredo e a mensagem dos assassinatos” (ABREU, 2022, p. 207). Nessa análise, salienta a presunção da categoria feminicídio estar ligada à violência doméstica, o que se desdobra em modos de caracterizar a vítima como esposa, companheira e mãe. Destaca também o fato de, apesar de obrigatório (BRASIL, 2017), o quesito raça-cor não ser preenchido em documentos oficiais como laudos de necropsia.
No terceiro capítulo - “Vestindo as lentes descoloniais” - a autora apresenta um excelente panorama dos feminismos do Norte Global, passando pela importância das análises interseccionais até chegar ao Giro Decolonial latino-americano2, que possibilitou pensar uma leitura descolonial do direito e do próprio feminismo. Trata-se de um percurso teórico profundo e crítico que perpassa a história dos feminismos e dos modelos epistemológicos eurocêntricos e androcêntricos. A construção do capítulo permite aos/às leitores/as o acompanhamento de um percurso teórico-metodológico que faz um giro, passando-se a uma outra fase da análise dos dados. Por fim, o quarto capítulo - “O que as denúncias ocultam: a contribuição de um olhar descolonial sobre a atuação do sistema de justiça criminal” - é resultado dessa outra fase da análise dos dados feita pela pesquisadora. A autora apresenta uma leitura descolonial da violência de gênero, destacando o caráter universalizante e colonial que perpassa as leituras hegemônicas do fenômeno. Com isso, chega a um ponto em que é possível acessar, para além da análise conteudística apresentada na primeira parte do livro, o caráter colonizador das denúncias emitidas pelo Ministério Público. Isso é feito a partir de dois procedimentos: a reanálise dos dados já analisados, detendo-se agora para o que as denúncias ocultam, ou seja, para aquilo que não é dito; e também a partir do levantamento de outros dados: casos de homicídio doloso contra mulheres que não foram classificados como feminicídio. A análise conclui que há um modelo padrão de denúncia, que tem como protagonistas personagens de uma cena colonial, o que deixa de lado qualquer elemento que esteja fora do eixo cisheteronormativo, doméstico, a partir de uma leitura universalizante de mulher e das relações entre homens e mulheres.
O livro é permeado por citações e epígrafes, não de escritores, filósofos ou juristas (geralmente brancos e europeus), como poderia se esperar de uma obra oriunda de uma tese da área do direito, mas compõe-se de versos e músicas de mulheres como Preta Rara, Elza Soares, rappers como Sara Donato e Nara Costa, além de fragmentos de obras de autoras mulheres e trechos das próprias denúncias e/ou processos envolvendo feminicídios.
Ana Cláudia da Silva Abreu é professora da área de Direito Penal e atua de uma perspectiva feminista para abordar as violências de gênero. O volume narra também um percurso pessoal de reconhecimento de privilégios e de reprodução de um discurso jurídico colonizado, de modo que, ao final, compreendemos a noção de pesquisadora encarnada (Soely MESSEDER, 2020) abordada por Soraia Mendes no prefácio. Como a própria autora escreve na introdução do livro:
o meu encontro com o feminismo descolonial mudou definitivamente meu olhar: transformou-o em visão situada a partir da diferença colonial, atenta às vidas concretas vividas no cotidiano da colonialidade de gênero e aos pagamentos das experiências de raça/etnia, orientação/identidade sexual e classe social (ABREU, 2022, p. 27).
O livro Denúncias de feminicídios e silenciamentos é um texto jurídico, feminista, descolonial, mas é, principalmente, um texto metodológico. Ana Claudia nos dá pistas precisas de que caminhos seguir para materializar uma pesquisa descolonial, pistas essas ainda tão incipientes no contexto acadêmico brasileiro. Ao final do quarto capítulo, a pesquisadora afirma: “o instrumental do feminismo descolonial é a aposta epistemológica que nos permite desafiar essa lógica binária, branca e heterossexista da violência contra a mulher” (ABREU, 2022, p. 379). A análise trazida nas páginas do livro corrobora essa afirmação, a meu ver, por meio de três aspectos: 1) apresenta uma leitura descolonial da violência contra as mulheres e do feminicídio; 2) coloca em cena o dispositivo descolonial na análise das peças acusatórias, destacando materialmente seu caráter colonial; 3) descreve diretrizes para um modelo de peça acusatória em substituição ao que tem sido utilizado, contribuindo para uma atuação do Ministério Público menos colonizadora, com perspectiva de gênero e raça.
Quero destacar, ainda, um fragmento de análise descrito na seção “Corpos femininos e Feminizados, Vidas Invisibilizadas” (ABREU, 2022, p. 387), na qual são abordadas mortes de mulheres transsexuais e travestis. Ao citar um trecho de uma denúncia de homicídio e tentativa de homicídio a duas travestis, discorre que, no processo, uma delas, que não tem seu nome social retificado, é identificada pelo nome masculino de nascimento. Ou seja, como disserta a autora, ao retomar as discussões propostas por Berenice Bento: “a pessoa viveu a sua vida lutando pelo reconhecimento da sua identidade de gênero, morreu em razão dela e, quando morta, a identidade de gênero é tomada da vítima; toda a sua biografia de luta e resistência é apagada” (ABREU, 2022, p. 397).
O livro já traria muita contribuição apenas ao apresentar uma sistematização do percurso do feminicídio como nomeação dos assassinatos de mulheres em razão de gênero e enquanto uma demanda feminista por judicialização. Para além disso, aponta a incoerência de um aparato judicial que não compreende o que é matar/morrer por “razões da condição de sexo feminino” (BRASIL, 2015, inciso VI) e continua a atuar com base em pressupostos coloniais de gênero. Nesse aspecto, dialoga com outras obras que têm se ocupado do fenômeno da violência de gênero a partir de uma perspectiva de(s)colonial, como as de Rita Segato (2006) e Françoise Vergès (2021). Como mencionado anteriormente, na leitura que faço, entretanto, o ponto fundamental do texto diz respeito à materialização de uma pesquisa empírica no campo do direito que consegue fazer uso não apenas dos princípios teóricos do Giro Decolonial, mas também construir uma metodologia com procedimentos que coloquem em prática o que é ler/analisar dados desde uma perspectiva descolonial. Isso requereu da autora humildade suficiente (e fôlego!) para sair de uma análise mainstream e começar de novo, buscar mais dados, a fim de realizar uma análise, de fato, descolonial. Mostrar esse percurso, as fragilidades, as idas e voltas é, para mim, o ponto alto da obra.