1 Introdução
A retenção ou reprovação escolar refere-se à prática pedagógica utilizada para dar resposta às dificuldades de aprendizagem dos alunos em que o aluno repete um ano escolar em vez de progredir para o ano seguinte (GOOS; PIPA; PEIXOTO, 2021; OECD, 2020). A retenção escolar é, na maioria dos casos, uma decisão irreversível, uma vez que o aluno retido permanecerá num ano escolar inferior ao dos outros alunos da mesma idade ao longo do seu percurso escolar (OECD, 2016). É uma decisão realizada ao nível da escola, pelos professores e diretores, por vezes com a participação dos encarregados de Educação, de acordo com os regulamentos definidos ao nível nacional ou escolar (EUROPEAN COMMISSION – EC, 2011; 2020).
No entanto, existe pouca evidência empírica que suporte os benefícios da retenção escolar e a maioria das meta-análises sugere que esta apresenta benefícios nulos ou negativos (GOOS et al., 2021; VALBUENA et al ., 2020). De forma geral, as investigações sugerem que a retenção não melhora, a longo prazo, o desempenho académico dos alunos ou o seu funcionamento social e/ou emocional, podendo ainda contribuir para novas retenções nos anos seguintes e para o abandono da escola antes de finalizar o percurso escolar obrigatório (GOOS; PIPA; PEIXOTO, 2021; VALBUENA et al ., 2020). A evidência existente sugere que outras intervenções, nomeadamente a diferenciação pedagógica, o apoio tutorial e a intervenção em pequeno grupo poderão ser mais efetivas na promoção do sucesso escolar dos alunos com dificuldades (EDUCATION ENDOWMENT FOUNDATION, 2021).
Além de ser ineficaz, a prática de retenção é desproporcionalmente aplicada a alunos em situação de desvantagem (BASTOS; FERRÃO, 2019; EUROPEAN COMMISSION, 2020; NUNES; REIS; SEABRA, 2018), ameaçando a equidade no direito à Educação. Em Portugal, por exemplo, os alunos do sexo masculino, com baixo nível socioeconómico, nacionais ou descendentes de mães de outro país de língua portuguesa ou com baixas habilitações têm mais probabilidades de serem retidos, mesmo apresentando um nível de desempenho semelhante (BASTOS; FERRÃO, 2019; NUNES; REIS; SEABRA, 2018).
Apesar destas evidências empíricas e dos esforços das políticas educativas para reduzir o seu uso, em alguns países o recurso à retenção escolar é bastante comum. Em Portugal, de acordo com dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) de 2018, cerca de 27% dos estudantes de 15 anos foram retidos pelo menos uma vez durante a sua carreira escolar, o que é muito superior à média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OECD (11%, OECD, 2020). Estas altas taxas de retenção prevalecem apesar de que, desde 1992, os documentos legisladores aconselham o uso excecional desta prática (GRILO, 2019).
Alguns autores sugerem que as altas taxas de retenção observadas em países como Portugal se devem a uma crença generalizada nos benefícios desta prática (EUROPEAN COMMISSION, 2011; GOOS et al ., 2013). Os estudos realizados em Portugal indicam que os professores apresentam crenças positivas face à retenção (RODRIGUES et al ., 2017; SANTANA, 2019; SANTOS; PIPA; MONTEIRO, 2023). A presença de crenças positivas face à retenção é relevante uma vez que guiam a tomada de decisão dos professores (BUEHL; BECK, 2015; SHAVELSON; STERN, 1981), especialmente quando não existem outras informações externas que orientem as suas práticas (SHAVELSON; STERN, 1981). Contudo, pouca investigação tem examinado o papel das políticas educativas das escolas na tomada de decisão sobre a retenção. As escolas podem definir políticas educativas nos seus instrumentos de autonomia (ou nos seus documentos orientadores) com informações, procedimentos e critérios para guiar os professores na tomada de decisão da retenção escolar (SCHWAGER et al ., 1992). Neste estudo procurámos compreender a relação entre as políticas educativas das escolas primárias da Região Autónoma da Madeira, Portugal, e as crenças e práticas de retenção utilizadas pelos professores no 2º ano de escolaridade. Mais especificamente, pretendemos compreender o efeito moderador que as políticas educativas das escolas sobre a retenção têm na relação entre crenças e práticas de retenção.
1.1 Crenças sobre retenção
Na maioria dos estudos realizados em países com altas taxas de retenção observa-se que os profissionais acreditam que a retenção é uma prática válida e necessária (BONVIN, 2003; CRAHAY; MARBAISE; ISSAIEVA, 2013; RIBEIRO et al ., 2018). Em Portugal, uma entrevista realizada a nível nacional sobre este tema indicou que 87% dos professores dos 1º e 2º anos consideram que a retenção tem mais vantagens do que desvantagens (RODRIGUES et al ., 2017). Inclusivamente aqueles que estavam preocupados com os riscos desta prática para o autoconceito e a autoestima do aluno consideram a retenção benéfica. Estes resultados foram reforçados no estudo realizado por Santana (2019) em que 75,1% dos professores da região do Alentejo consideraram a retenção benéfica para os alunos.
A literatura refere que as crenças dos professores podem guiar as suas práticas dentro da sala de aula (BUEHL; BECK, 2015; SHAVELSON; STERN, 1981). Especificamente no que se refere à retenção, Bonvin (2003) observou que a probabilidade de um aluno ser retido no 2º ano de escolaridade estava significativamente relacionada com as atitudes dos professores sobre a efetividade da retenção. Numa outra pesquisa realizada em Portugal, Santos et al. (2023) observaram que os professores que acreditavam na efetividade da retenção tendiam a reter mais alunos, especialmente quando as suas crenças eram expressas com um elevado grau de convicção.
Todavia, a revisão de literatura realizada por Buehl e Beck (2015) revelou a existência de estudos em que as crenças expressas pelos professores nem sempre estiveram associadas às suas práticas e observaram que alguns professores se envolvem em práticas que não apoiam. Relativamente à retenção, Santos, Pipa e Monteiro (2023) observaram que a relação entre crenças e práticas só existia em certas condições, especificamente, quando os professores sentiam que as suas crenças eram partilhadas por outros membros da comunidade educativa. Buehl e Beck (2015) sugerem que existe de facto uma relação entre as crenças e as práticas dos professores, mas estas são complexas, e a força desta relação varia em função do contexto. Fatores externos (o contexto da sala de aula, da escola ou fatores regionais ou nacionais) podem funcionar como facilitadores ou como obstáculos da expressão das crenças dos professores nas suas práticas.
Autores como Schwager et al . (1992) mostraram que, além das crenças dos professores sobre a retenção, as políticas educativas que definem os critérios e procedimentos a serem seguidos na implementação de tal prática pedagógica também podem influenciar as práticas de retenção utilizadas pelos professores, podendo ainda influenciar a relação entre as crenças e práticas de retenção dos professores. De acordo com a teoria da tomada de decisão de Shavelson e Stern (1981) a quantidade e qualidade de informações que os professores possuem no momento da tomada de decisão poderá determinar aquilo que orienta esse processo. Assim, se os professores detêm informações que são relevantes para a tomada de decisão (e.g., políticas educativas com procedimentos claros e critérios específicos), eles irão utilizar essas informações, e as suas crenças não desempenharão um papel significativo neste processo, pelo que a relação entre as crenças e práticas será mais fraca. Contudo, quando não existe essa informação relevante, as crenças serão a principal orientação dos professores para a sua tomada de decisão, sendo a relação entre crenças e práticas mais forte. O modelo de tomada de decisão de McMillan (2003) também sugere que o fator interno mais importante que influencia a tomada de decisão são as crenças do professor, mas que estas crenças estão constantemente em tensão com os fatores externos, incluindo as políticas ao nível do Governo e ao nível da escola. Logo, o papel das políticas educativas das escolas não pode ser negligenciado quando analisados os altos índices de retenção escolar observados em Portugal.
1.2 Políticas educativas sobre retenção
As decisões sobre a retenção escolar são usualmente tomadas ao nível de escola, pelos diretores e professores, estando enquadradas pelas políticas educativas do país e da escola (SCHWAGER et al ., 1992). Estas políticas definem de forma mais geral ou mais específica os critérios que indicam se uma criança é ou não elegível para ser retida (i.e., fatores a considerar na tomada de decisão), e os requisitos necessários para proceder com essa retenção ao nível dos procedimentos para a realizar (e.g., quem está envolvido no processo decisório, quais os relatórios que são necessários apresentar, entre outros) (SCHWAGER et al., 1992).
Em Portugal o Ensino Básico está organizado em três ciclos: o 1º ciclo com 4 anos de escolaridade, o 2º ciclo com 2 anos, e o 3º ciclo com 3 anos. O Decreto-Lei (DL) n o 55/2018 define de forma geral quando e como a retenção escolar poderá ser utilizada nas escolas. Em Portugal a retenção é possível ao longo de todo o Ensino Básico, exceto no 1.º ano de escolaridade. Nos anos de conclusão de cada ciclo (4º, 6º e 9º) a Portaria n o 233-A/2018 define critérios específicos para a retenção, sendo que para o 1.º ciclo (4.º ano), o aluno não progride e obtém a menção de Não Aprovado, se tiver obtido: “i) Menção Insuficiente em Português ou PLNM [Português Língua Não Materna] ou PL2 [Português Língua Segunda para Alunos Surdos] e em Matemática; ii) Menção Insuficiente em Português ou Matemática e, cumulativamente, menção Insuficiente em duas das restantes disciplinas” (p. 3790-11). Para os anos não terminais de ciclo, como o 2º ano, é indicado como critério geral que o professor pode fazer uso excecional da retenção caso o aluno não desenvolva as aprendizagens definidas, mas apenas se comprometem o desenvolvimento das aprendizagens definidos para o ano de escolaridade subsequente. A legislação portuguesa segue assim uma lógica de ciclo, evitando processos de certificação durante os anos não terminais de ciclo (ALMEIDA; ALVES, 2021).
No que se refere aos requisitos, a legislação portuguesa indica que é o professor quem determina a retenção do aluno (PORTUGAL, 2018a), após ouvir a opinião do conselho de docentes e após o acompanhamento pedagógico do aluno (PORTUGAL, 2018b).
Deste modo, a legislação portuguesa é suficientemente geral para orientar sem direcionar, pois espera-se que cada escola se aproprie destas orientações e expresse a sua autonomia definindo mais especificamente os critérios e requisitos de retenção, da mesma forma que define os critérios de avaliação (CARDOSO; COELHO, 2021). Assim, as escolas devem definir nos seus instrumentos de autonomia (o projeto educativo, o regulamento interno e o plano anual de atividades) os critérios, práticas e procedimentos específicos para a tomada de decisão da retenção com a adesão dos vários atores da comunidade educativa (FERRAZ, 2018).
1.3 Presente estudo
Em Portugal, as taxas de retenção variam largamente entre as escolas de uma mesma região. Na Região Autónoma da Madeira (RAM), no ano 2018/2019, as taxas de retenção no 2º ano de escolaridade variaram entre o 0% e os 26,30% (com uma média de 7% e desvio padrão de 6%) (OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO DA RAM – OERAM, 2020). As crenças dos professores poderão explicar algumas das diferenças encontradas entre as escolas, no entanto, como sugere Schwager et al . (1992) é provável que algumas diferenças estejam relacionadas com as políticas educativas sobre retenção implementadas nas escolas. Assim, cinco questões exploratórias guiaram o presente estudo: As escolas de 1º Ciclo da RAM definem, nos seus instrumentos de autonomia, critérios ou requerimentos adicionais, para além dos sugeridos pela legislação portuguesa, que guiem os professores no processo de tomada de decisão da retenção no 2º ano de escolaridade? Quais são as crenças dos professores sobre a retenção escolar no 2º ano de escolaridade? Quais as práticas de retenção utilizadas pelos professores no 2º ano de escolaridade? Qual a relação entre as crenças e práticas de retenção utilizadas pelos professores e as políticas educativas das escolas? Será que a relação entre crenças e práticas dos professores é moderada pelas políticas educativas das escolas?
2 Métodos
Num estudo anterior (SANTOS; MONTEIRO, 2023a), foi utilizada uma abordagem qualitativa para descrever os critérios e requisitos exigidos para as decisões de retenção nas escolas da RAM e compreender se as orientações fornecidas pelas escolas refletiam tanto as orientações da administração central como as recomendações sugeridas pela investigação sobre a retenção escolar. Com base nos resultados obtidos nessa pesquisa, no presente estudo procurou-se compreender a relação entre crenças e as práticas de retenção e compreender como as diferentes políticas de retenção em vigor na escola afetam esta relação. Para tal, utilizámos uma abordagem mista para integrar os resultados globais da análise documental referida anteriormente com os dados quantitativos de um questionário utilizado para identificar as crenças e práticas de retenção utilizadas pelos professores.
2.1 Participantes e procedimentos
A população em estudo incluiu todas as escolas e todos os professores de 1º ciclo da RAM. No ano letivo 2020/2021 foram recolhidos os instrumentos de autonomia (regulamento interno, projeto educativo e plano anual de atividades) de 78,2% (n = 68) das escolas de 1º ciclo da RAM, de acordo com os dados da Direção Regional de Estatística da Madeira (2022). No entanto, apenas os professores de 66 das escolas em estudo responderam ao questionário online, sendo esta a amostra final incluída no presente artigo. A distribuição das escolas desta amostra era semelhante à da população, ao nível do tipo de escola (pública ou privada) e do Concelho de pertença (ver Material Suplementar disponível em SANTOS; MONTEIRO, 2023b). A média da taxa de retenção nos últimos quatro anos destas escolas variava entre 0 e 21.3% (M = 7.2, DP = 4.9). O rácio aluno-professor variava entre três e 17 alunos por professor, com uma média 6 alunos por professor (DP = 3).
Após aprovação da Comissão de Ética de Investigação do ISPA–Instituto Universitário (nº D/020/11/2019) e da Direção Regional de Educação da RAM, foi solicitada a partilha junto dos professores de um questionário online aos diretores das escolas. Responderam ao questionário 300 professores, aproximadamente cinco professores por cada escola incluída no estudo (Min = 1, Max = 13, M = 4.6, DP = 2.4). A comparação entre esta amostra e a população objeto de estudo indica padrões semelhantes de distribuição em função da idade e do tipo de escola. No entanto, a população do género masculino está sub-representada (SANTOS; MONTEIRO, 2023b). Na Tabela 1 está a caracterização dos professores e das escolas da amostra.
Características | Professores | Escolas | ||
---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |
Género | ||||
Feminino | 208 | 69.3 | ||
Masculino | 33 | 11.0 | ||
Habilitações | ||||
Licenciatura | 188 | 62.7 | ||
Pós-graduação | 26 | 8.7 | ||
Mestrado | 25 | 8.3 | ||
Doutoramento | 2 | 0.7 | ||
Missing | 59 | 19.7 | ||
Tipo de escola | ||||
Pública | 254 | 84.7 | 54 | 81.8 |
Privada | 46 | 15.3 | 12 | 18.2 |
Tipo de região | ||||
Rural (Aldeia) | 51 | 17.0 | 14 | 21.2 |
Sub-urbano (Vila) | 130 | 43.3 | 24 | 36.4 |
Urbano (Cidade) | 119 | 39.7 | 28 | 42.4 |
Idade | 25 | 68 | 45.69 | 7.917 |
Experiência profissional | 0 | 42 | 20.91 | 9.063 |
Anos de antiguidade na escola | 0 | 41 | 11.15 | 7.882 |
Fonte: Elaborada pelos autores (2022)
2.2 Instrumentos e materiais de recolha de dados
Os professores responderam a um questionário online desenvolvido com base na tradução portuguesa do questionário da equipa DAISS ( Développement Apprentissage et Intervention en Situation Scolaire , RIBEIRO et al ., 2018). O questionário avaliava as crenças dos professores em relação à retenção escolar, ao processo de ensino-aprendizagem, e à avaliação dos alunos no 2º ano de escolaridade. Para este artigo apenas serão apresentados os dados relacionados com as crenças de retenção. Esta escala é composta por 13 afirmações relativas à efetividade da retenção respondidas através de uma escala de tipo Likert de seis pontos (1 = Discordo totalmente a 6 = Concordo totalmente). Os itens avaliam três dimensões. Na dimensão socioafetiva, avaliam-se os riscos da retenção na perceção de competência e na autoestima dos alunos. Na dimensão prevenção do insucesso são avaliadas as crenças sobre a efetividade da retenção na promoção do conhecimento e prevenção de dificuldades no futuro. Finalmente, na dimensão regulação externa analisam-se as crenças sobre a efetividade da retenção na regulação do comportamento e da motivação dos alunos. Na presente amostra a escala apresentou uma boa estrutura fatorial e níveis de fiabilidade adequados (SANTOS; MONTEIRO, 2023b).
Foram incluídos também três itens que avaliavam a perceção do suporte oferecido pelo conselho educativo em relação à retenção, a perceção sobre as crenças dos outros professores, e a pressão social sentida para promover alunos. Os professores também foram questionados em relação ao número de alunos que retiveram no último ano em que lecionaram o 2.º ano de escolaridade (SANTOS; MONTEIRO, 2023b).
2.3 Análise de dados
Para analisar os documentos orientadores das escolas foi realizada uma análise qualitativa de texto avaliativa (KUCKARTZ, 2014) utilizando o software MAXQDA. As categorias resultantes desta análise permitiram classificar as escolas de acordo com os critérios (com ou sem critérios, além dos definidos na legislação portuguesa) e os requerimentos utilizados para a tomar a decisão de retenção (com ou sem requisitos, além dos definidos na legislação). O coeficiente de Kappa (κ = .87) indicou uma adequada consistência entre codificadores (87,98%).
Após validação da estrutura e fiabilidade do questionário para a amostra em estudo (SANTOS; MONTEIRO, 2023b), foram calculados os scores de cada uma das escalas (média dos itens de cada dimensão). Estes scores foram utilizados para realizar uma análise de perfis latentes, seguindo os procedimentos de Ferguson et al . (2020), testando o ajustamento de seis modelos para decidir o número adequado de grupos latentes que partilhavam um padrão significativo e interpretável de crenças sobre retenção escolar (SANTOS; MONTEIRO, 2023b). Uma vez escolhido o melhor modelo, analisámos a relação linear entre as políticas educativas (1 – presença ou 0 – ausência de critérios ou requerimentos além dos definidos pela legislação portuguesa), o perfil de crenças dos professores (organizados num continuum que vai de 1 – uma maior rejeição a 5 – uma maior certeza nos benefícios da retenção) e o número de alunos retidos no último ano (0 – nenhum, 1 – um aluno, 2 – dois ou mais alunos). Recorreu-se ao qui-quadrado (χ 2 ) e o tau-c de Kendall (Τ) do software SPSS (v. 27). Foram considerados valores de p <.050 indicadores de uma associação entre as variáveis em estudo.
3 Resultados
A análise documental revelou que na maioria das escolas existia uma completa ausência de outros critérios ou de indicações além dos definidos na legislação. Assim, nestas escolas a decisão da retenção é deixada ao critério dos decisores (ver Tabela 2 ). Trinta escolas, pelo contrário, sugeriram nos seus documentos: critérios gerais de fatores a considerar na decisão (incluindo aspetos não académicos como empenho, interesse ou competências sociais do aluno) e/ou a utilização nos anos não terminais de ciclo (2º e 3º anos de escolaridades) dos mesmos critérios definidos na legislação para a certificação no final do ciclo (4º ano), i.e., o aluno não progride se tiver obtido menção Insuficiente em Português e em Matemática ou menção Insuficiente em Português ou Matemática e em duas das restantes disciplinas.
Dimensão | Tipo de escola | Escolas | Docentes | ||
---|---|---|---|---|---|
f | % | f | % | ||
Critérios de retenção | Sem critérios | 36 | 54.5 | 135 | 45.0 |
Com critérios | 30 | 45.5 | 165 | 55.0 | |
Requisitos exigidos | Sem requisitos | 48 | 72.7 | 221 | 73.7 |
Com requisitos | 18 | 27.3 | 79 | 26.3 |
Fonte: Elaborada pelos autores (2022)
Na Tabela 2 também pode ser observado que na maioria das escolas não era definido nenhum requisito além do indicado na legislação. Pelo contrário, em 18 escolas eram exigidos algum dos seguintes requisitos: 1) relatórios do professor, seja antes ou após a retenção; 2) que a decisão de retenção fosse tomada por um grupo de professores de forma unânime, ou com maioria absoluta, sem possibilidade de abstenção; ou 3) a participação de outros membros da comunidade educativa além dos professores (encarregado de Educação, aluno, e outros profissionais educativos), numa intenção de responsabilização dos mesmos pela decisão tomada.
As estatísticas de tendência central e dispersão das crenças de retenção são apresentadas na Tabela 3 . Dos professores com experiência de docência no 2º ano de escolaridade (n = 212), no último ano em que foram professores desse ano, a maioria não reteve alunos (n = 115, 54,2%). Contudo, mais de um terço dos professores reteve um aluno (n = 48, 22,6%) ou dois ou mais alunos (n = 49, 23,1%).
Crenças sobre retenção | M | DP |
---|---|---|
Riscos socioafetivos | 2.86 | 1.16 |
Prevenção do insucesso | 4.63 | 1.12 |
Regulação externa | 3.07 | 1.18 |
O conselho de docentes usualmente concorda com a minha decisão de reter um aluno | 4.55 | 1.27 |
Os meus colegas têm uma opinião favorável sobre a retenção escolar | 4.08 | 1.25 |
Sinto-me pressionado a promover alunos que ainda não estão preparados | 3.38 | 1.72 |
Fonte: Elaborada pelos autores (2022)
N = 300
Para identificar grupos homogéneos de professores com diferentes perfis de crenças sobre a efetividade da retenção foi realizada uma análise de perfis latentes. Foram avaliados modelos que continham um a seis perfis (Modelos 1 a 6). Os indicadores de ajustamento dos modelos estão descritos em Santos e Monteiro (2023a). Estes indicadores sugeriram a retenção dos modelos com três e cinco perfis. Foi selecionado como mais apropriado o modelo com cinco perfis, por ser teoricamente mais rico que o modelo com três perfis (SANTOS; MONTEIRO, 2023b).
Os perfis identificados podem ser organizados num continuum que vai de uma maior discordância dos benefícios da retenção (Perfil 1) a uma maior concordância com os seus benefícios (Perfil 5) (ver Figura 1 ). Constata-se que quanto mais positivas as crenças de um grupo nos benefícios da retenção, mais acreditam que os colegas têm também crenças positivas e mais apoio sentem por parte do conselho de docentes na retenção dos alunos. Por outro lado, enquanto em três grupos os professores não sentem qualquer pressão para promover alunos com dificuldades (Perfis 1, 2 e 4) existem dois grupos que se sentem muito pressionados para os promover (Perfis 3 e 5). É importante notar que apenas um grupo (Perfil 1) discorda completamente com os benefícios da retenção em todas as dimensões, sendo o grupo menos numeroso. Pelo contrário, os perfis 3, 4 e 5, com um elevado número de participantes, acreditam pelo menos nos seus benefícios na prevenção do insucesso e na ausência de riscos socioafetivos.
Os resultados do teste qui-quadrado de associação linear indicam que não existe uma relação linear significativa entre crenças e práticas – χ 2 (1) = 2.98, p = .147, Τ = .08, p = .143. Igualmente, não parece existir uma relação entre as crenças dos professores e o tipo de políticas da escola a que pertence ou entre as práticas de retenção e as políticas de retenção da escola (Ver Tabela 4 e SANTOS; MONTEIRO, 2023b).
Associações testadas | χ 2 | Τ | ||
---|---|---|---|---|
Valor | p | Valor | p | |
Perfis de crenças de retenção x | ||||
Critérios de retenção | 0.01 | .578 | .01 | .881 |
Requisitos exigidos | 0.07 | .829 | -.02 | .718 |
Práticas de retenção x | ||||
Critérios de retenção | 0.47 | .491 | .05 | .459 |
Requisitos exigidos | 0.86 | .354 | -.07 | .253 |
Fonte: Elaborada pelos autores (2022)
Para avaliar o efeito moderador das políticas de retenção foi ainda testada a associação entre crenças e práticas separadamente em função do tipo de critérios ou requisitos observados nos documentos orientadores das escolas (Ver Tabela 5 ). Observa-se que a relação entre crenças e práticas é significativa apenas nas escolas sem critérios de retenção e sem requisitos.
Escolas | χ2 | Kendall’s Tau-c | ||
---|---|---|---|---|
Valor | p | Valor | p | |
Sem critérios de retenção | 4.44 | .035 | .19 | .028 |
Com critérios de retenção | 0.00 | .999 | -.01 | .968 |
Sem requisitos de retenção | 4.31 | .038 | .14 | .039 |
Com requisitos de retenção | 0.25 | .618 | -.05 | .603 |
Fonte: Elaborada pelos autores (2022)
Na Figura 2 podemos notar que nas escolas sem critérios os participantes que discordam com a retenção retêm menos alunos enquanto os grupos a favor dos benefícios da retenção retêm significativamente mais alunos, especialmente aqueles que não se sentem pressionados a promover alunos (Perfil 4). Nas escolas com critérios a percentagem de alunos retidos não segue um padrão coerente com as crenças dos professores.
A Figura 3 mostra que, nas escolas sem requisitos, os professores com crenças mais favoráveis em relação à retenção retêm muitos alunos (independentemente de se sentirem ou não pressionados a promover alunos), enquanto os professores que discordam da retenção retêm menos alunos (ver Figura 3 ). Nas escolas com requisitos, apenas os professores do Perfil 3 retiveram significativamente mais alunos.
4 Discussão
O presente estudo procurou compreender a relação entre as crenças e as práticas de retenção dos professores no 2.º ano de escolaridade e tentar perceber qual o efeito que as diferentes políticas de retenção existentes nas escolas têm nesta relação.
São poucas as escolas que desenvolvem nos seus documentos orientadores critérios ou requisitos procedimentais relativos à retenção. Quando existem, estes têm uma função seletiva e de certificação, incompatíveis com a lógica de ciclo, não sendo mencionados critérios sugeridos pela investigação internacional, como por exemplo, considerar a avaliação da evolução do aluno, o sucesso (e execução) do plano de intervenção, ou fatores relacionados com o desenvolvimento socioafetivo dos alunos, que, sendo afetados pela retenção, também são relevantes no processo decisório (GOOS; PIPA; PEIXOTO, 2021; RANGE et al ., 2011). Relativamente aos procedimentos para implementar a retenção, a maioria das escolas não sugere, formalmente, a participação dos pais, ou do aluno, no processo de tomada de decisão, apesar da investigação ressaltar a importância do seu envolvimento neste processo e da existência de consonância entre todos os intervenientes numa avaliação que se quer justa e dialógica (CARLESS, 2009; FERNANDES, 2021). A integração de toda a informação relevante num juízo provê decisões de maior qualidade (KAHNEMAN et al ., 2021). A presença de um conjunto de critérios e requisitos incentivará os professores a considerar todas as diferentes informações (e as suas diferentes fontes) antes de tomar a decisão da retenção. A falta de critérios e requisitos poderá levar a decisões mais emocionais e a uma menor coerência entre as decisões de diferentes atores (SANTOS; MONTEIRO, 2023a).
A propósito das crenças, tal como tem sido observado noutros estudos na população portuguesa (SANTANA, 2019; SANTOS; PIPA; MONTEIRO, 2023) na presente investigação observou-se que a maioria dos professores acredita que a retenção é benéfica na prevenção do insucesso académico, em contradição com os dados empíricos encontrados na meta-análise de Goos, Pipa e Peixoto (2021), que constaram que essa prática pedagógica, pelo menos a longo prazo, não trazia qualquer efeito positivo para o desenvolvimento socioemocional dos alunos e para o seu desempenho académico. Pelo contrário, os autores consideram que esta prática pode contribuir para novas retenções e pode até levar ao abandono escolar. As crenças positivas face à retenção parecem ter um impacto na prática docente, uma vez que o número de professores que utilizou a prática de retenção no 2º ano de escolaridade foi elevado, coerente com as taxas de retenção observadas na região (OERAM, 2020). Estas crenças positivas, se permanecerem estáveis, continuarão a influenciar as decisões dos professores relativamente à retenção dos alunos. É imperioso, durante a formação inicial e contínua dos professores, promover reflexões críticas sobre as suas crenças de retenção, proporcionando um conjunto consistente de experiências para apoiar o seu desenvolvimento como professores.
Quanto à relação entre crenças e práticas, esta demonstrou-se significativa nas escolas em que não existiam critérios ou requerimentos de retenção, pelo que as políticas educativas parecem moderar esta relação. Tal como mencionado por Shavelson e Stern (1981) quando os professores não têm informação que os ajudem na tomada de decisão sobre a retenção, os professores fundamentarão esse processo nas suas crenças. Os resultados também são coerentes com o modelo de McMillan (2003). Mesmo quando os professores se sentem pressionados a promover os alunos, as crenças dos professores continuam a guiar as suas práticas se não existirem orientações por parte da escola. As políticas educativas das escolas parecem trazer alguma coerência às ações dos diferentes professores, não se verificando uma relação entre crenças e práticas nas escolas que apresentaram critérios e requisitos para a retenção. Isto não quer dizer que estas escolas tenham conseguido reduzir o uso da retenção através das suas políticas educativas, pois também não se observou qualquer relação entre as políticas e as práticas de retenção. Porém, a definição de políticas de retenção parece encorajar uma cultura coerente em que, como sugere Kahneman et al . (2021), os membros da comunidade olham uns pelos outros ao aproximarem-se de decisões difíceis. Da mesma forma, através da discussão dos critérios e dos processos envolvidos na decisão de reter um aluno, a autonomia das escolas é reforçada, aumentando, como sugere Cardoso e Coelho (2021), a transparência da decisão da retenção.
Estes resultados trazem um conjunto de implicações para investigação e para a definição das políticas educativas das escolas. Para a investigação, este estudo sublinha a importância de se considerar o efeito moderador dos fatores externos quando se estuda a relação entre crenças e práticas. Relativamente às políticas educativas, o estudo salienta que, assim como os critérios e processos de avaliação devem ser definidos ao nível de escola para trazer coerência às ações dos diferentes membros da comunidade educativa (incluindo professores, encarregados de Educação e os próprios alunos) (CARDOSO; COELHO, 2021; FERRAZ, 2018), também devem existir critérios e requisitos que guiem a tomada de decisão da retenção nas escolas. Não se trata de definir regras estandardizadas para a tomada de decisão, mas um conjunto de linhas orientadoras que ajudem os docentes no complexo processo de tomada de decisão da retenção e que promovam o trabalho colaborativo entre os docentes visando a definição de estratégias conjuntas para enfrentar problemas ou dificuldades, em especial aquelas decisões difíceis de tomar individualmente (KAHNEMAN, 2013) como é a de reter um aluno. Os critérios de retenção devem ser uma construção social na qual intervém toda a comunidade educativa e que se baseie na legislação nacional, em primeiro lugar, na investigação sobre a retenção, em segundo lugar e, finalmente, nos contextos concretos da escola. Quanto melhor discutidos forem esses critérios tanto mais adequadamente formulados e definidos (FERNANDES, 2021).
Porém, este estudo apresenta algumas limitações que devem ser consideradas. Em primeiro lugar, a amostra não é representativa, pelo que os resultados poderão não ser generalizáveis à RAM e a outras regiões do país. Adicionalmente, as práticas de retenção usadas pelos professores referiam-se ao último ano em que foram professores do 2º ano. Uma vez que na maioria das escolas da Região o mesmo professor acompanha a mesma turma ao longo dos quatro anos do ciclo, para manter a continuidade pedagógica, as práticas de retenção em estudo poderão referir-se a uma prática realizada até quatro anos antes, durante a vigência de um projeto educativo diferente. Futuros estudos poderão incluir outras formas de operacionalizar e quantificar a prática da retenção, como por exemplo as taxas de retenção por docente, e controlar outros fatores relevantes na tomada de decisão, como a incidência de alunos com necessidades educativas especiais ou o número de alunos cuja língua materna não é a língua portuguesa. Outra limitação prende-se com a possibilidade de que existam critérios e requisitos que são definidos informalmente pelas escolas e que não foram consideradas no presente estudo (SANTOS; MONTEIRO, 2023a). Futuros estudos poderão estudar como estes procedimentos informais e as lideranças das escolas influenciam a relação entre crenças e práticas, assim como considerar outros contextos e níveis de ensino.