Introdução
Neste artigo, traçamos as trajetórias de dois bebês no espaço da sala de berçário durante seu processo de inserção em uma Escola Municipal de Educação Infantil de Belo Horizonte (EMEI Tupi). Buscamos evidenciar as vivências dos bebês nesse contexto, bem como a importância de um espaço planejado para tal finalidade.
É sabido que os espaços das instituições de educação infantil, quando organizados e planejados para o acolhimento dos/as bebês, possibilitam interações deles/as entre si, com objetos, tempos, lugares e outras pessoas ( ARAÚJO, 2016; GOBBATO, 2011; SILVA, 2018; COCITO, 2017; MARTINS, 2010; ALVES, 2013; MÁXIMO, 2016) revelam as concepções dos professores e gestores sobre a educação de bebês ( MÁXIMO, 2016) e podem contribuir, ou não, para o processo de construção do senso de pertencimento e do bem-estar dos/as bebês ( BROOKER, 2014; SUMSION et al., 2018).
Considerando o espaço institucional como um instrumento pedagógico, como podemos acompanhar a movimentação dos/as bebês nesses lugares? Algumas perspectivas metodológicas, baseadas na cartografia 4 , auxiliaram-nos a apreender as sutilezas dos processos de desenvolvimento dos/as bebês e demais crianças nesses espaços. Niina Rutanen ( 2014), a partir de uma observação da vida cotidiana de bebês e crianças em uma creche na Finlândia, baseando-se na perspectiva espacial do filósofo Henri Lefebvre – a qual também utilizamos aqui –, argumenta que as crianças estão produzindo o espaço durante todo o tempo de permanência na creche, seja no momento das refeições, das brincadeiras seja do sono. Então, como o espaço de uma sala de berçário em Belo Horizonte é produzido pelos/as bebês? Como eles/as vivenciam, exploram e se apropriam do espaço? Um espaço planejado para acolher os/as bebês durante o processo de inserção na instituição é importante?
No decorrer deste artigo, a partir da trajetória de dois bebês, Henrique e Breno 5 , tentaremos dar respostas possíveis a esses questionamentos.
Pensando o espaço
O espaço enquanto conceito e problematização
Em 1889, o filósofo Henri Bergson (França, 1859-1941) lançou seu primeiro grande livro, o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência ( BERGSON, 2013). Em uma primeira visada, não seria absurdo pensar no conteúdo desse livro do final do século XIX como um tratado sobre o espaço. No entanto, é exatamente o contrário. Bergson, naquele momento e no decorrer de toda a sua carreira, intentou se livrar da suposta primazia disso que chamamos, ordinariamente, de espaço em prol de uma duração criadora (ou, simplesmente, do tempo).
Para o filósofo, o que impede que acessemos de verdade os dados imediatos da consciência e, assim, conheçamos o mundo e nosso próprio intelecto de maneira satisfatória, é justamente a mediação espacial, que insiste em nos assediar. Podemos pensar, junto com Bergson, em uma dualidade de princípio: tudo o que for da ordem da espacialidade possuiria como principal característica a simultaneidade e a justaposição; do lado do tempo, está a sucessão. O tempo é o lugar da heterogeneidade e o espaço das coisas homogêneas. Não existe sucessão no espaço, apenas elementos discretos “jogados” no mundo, que não possuem relações entre si e que, dessa feita, sozinhos não querem dizer nada. Podemos inferir disso a necessidade de uma organização dos dados espaciais vinda de fora ou, falando grosseiramente, a necessidade de uma consciência cuja principal característica é, justamente, ser temporal. Todavia, como pensar essa consciência? Como estabelecer de forma categórica que ela é de um tipo e não de outro? Qual é o tipo ou a típica que tal matriz organizadora deve possuir?
Todas essas questões são demasiadamente complexas e, a nosso ver, auxiliam pouco na compreensão do mundo e das relações travadas nele, como é o caso das relações existentes entre os bebês Breno e Henrique com o berçário da EMEI Tupi. Se assumirmos, ao contrário do que defende Bergson, uma produtividade ou uma criatividade do espaço por ele mesmo, ou ainda, se compreendermos que o mundo possui direções privilegiadas, que as coisas não são simplesmente dispostas de maneira simultânea e homogênea na realidade, talvez a questão se apresente de forma mais clara. Mais precisamente, a partir do planejamento e da vivência cotidianos da EMEI Tupi, evidenciaremos como as interações desses/as bebês (entre eles/as e os adultos, com os artefatos disponíveis e, ainda, com o espaço) mudam qualitativamente. O que fica evidente, a nosso ver, – e será mostrado no decorrer deste estudo – é a impossibilidade de se reduzirem os dados espaciais, e mesmo a experiência do espaço, a uma única perspectiva.
Espaço como relação social
Na perspectiva de Henri Lefebvre (França, 1901-1991), o espaço não é passivo, vazio, “mas um conjunto de relações” entre as coisas (objetos e produtos) “que implica, contém e dissimula relações sociais” ( RUTANEN, 2014, p. 18). O espaço é produzido tanto pelo que se refere à sua materialidade quanto pelas relações ali estabelecidas: “o espaço social manifesta sua polivalência, sua ‘realidade’ ao mesmo tempo formal e material. Produto que se utiliza, que se consome, ele é também meio de produção; redes de trocas, fluxo de matérias-primas e de energias que recortam o espaço e são por ele determinados” ( LEFEBVRE, [1974] 2000, p. 127). O espaço, portanto, não é composto apenas pelo que é concreto, palpável, ele contém relações sociais, relações de poder, interações micro e macro. Ele é a unidade entre as “forças produtivas e seus componentes (natureza, trabalho, técnica, conhecimento), as estruturas (relações de propriedade) e as superestruturas (as instituições e o próprio Estado)” (p. 128). Por isso, pensar o espaço por ele mesmo, “ in itself”, é inconcebível ( SCHMID, 2008), uma vez que ele é um produto e também um meio de produção, histórico, “social”, “experimentalmente construído” ( HARRISON; SUMSION, 2014, p. 3), dinâmico e complexo ( SUMSION et al., 2018).
Quando um/a pesquisador/a analisa algum espaço, como uma sala de aula, ele/a faz o que Lefebvre chama de recortes no espaço social. Segundo Lefebvre ( [1974] 2000 p. 129), “não há um espaço social, mas vários espaços sociais” que possuem como característica primeira a interdependência e a implicação; dessa forma, toda análise de uma “parte” desse espaço representa uma abstração.
Para o autor francês, o processo de produção do espaço acontece de forma dialética pela tríade: representações do espaço, espaços de representação e prática espacial. As representações do espaço possuem um caráter alegadamente objetivo – ou concebido –, são aquelas planejadas pelos “cientistas, planificadores, urbanistas” etc. ( LEFEBVRE, [1974] 2000, p. 66). Esses espaços concebidos “são penetrados de saber (conhecimento e ideologia misturados) sempre relativo e em transformação” (p. 69). O espaço é, segundo Alves ( 2019, p. 556), aparentemente “apolítico”, “neutro”, feito com o objetivo de normatizar “o que os cidadãos podem ou não fazer”. Nessas representações, a intenção é identificar “o vivido e o percebido ao concebido”, ainda que cada uma dessas esferas espaciais possua suas próprias características.
Os espaços de representação – ou espaço vivido – é o que ”se vê, se fala”, é afetivo, implica lugares de “paixão e ação, de situações vividas, [...] ele é essencialmente qualitativo, fluido, dinamizado” ( LEFEBVRE, [1974] 2000, p. 70). Ele “subverte a lógica do espaço concebido”, revelando como a ação social também produz espaço “a partir das expressões/ações de radicalidade” ( ALVES, 2019, p. 559). A passeata de crianças no Dia Nacional da Educação Infantil 6 ( Figura 1), em algumas escolas do nosso País, pode ser considerada uma subversão do espaço concebido, uma vez que as ruas, as calçadas, a esfera pública, de uma maneira geral, em nossa cultura, não são pensadas nem concebidas para crianças pequenas.
Nesse sentido, a prática do espaço (espaço percebido), em que as crianças ocupam as ruas como no caso acima, supõe a articulação das dimensões concebida e vivida. Tal prática esclarece, de maneira imediata, a interdependência necessária existente entre as pessoas e o espaço em que elas estão inseridas, o qual elas modificam a partir das mais diversas intencionalidades 7 . Para Vigotski ( [1933] 1933), assim como para Lefebvre, não há uma cisão entre pessoas e espaço, entre pessoas e meio. Essas duas dimensões, [pessoa/meio], são compreendidas como uma unidade de análise, nomeada pelo autor bielorrusso como perejivânie (vivência). A vivência é a maneira singular como cada pessoa vivencia uma determinada situação, ou seja, ela é tanto parte da pessoa quanto do meio no qual essa pessoa está inserida. Nesse sentido, Veresov e Fleer ( 2016, p. 330) argumentam que “o conceito perejivânie é uma ferramenta analítica para o exame da dialética dos aspectos evolutivos e revolucionários do desenvolvimento, assim como da dialética do social e do individual”. Ao focalizar a unidade dialética [pessoa/meio], Vigotski compreende, consequentemente, que o “meio não é algo estático, composto apenas da materialidade, mas é psíquico e cultural” ( VIGOTSKI, [1933] 1933, p. 683). Nesse sentido, o meio também se transforma, assim como a pessoa que o vivencia.
Portanto, tanto para Lefebvre quanto para Vigotski, só é possível falar em espaço, ou até mesmo em produção do espaço (concebido/percebido/vivido), porque existem pessoas que o compõem e o produzem. Quaisquer que sejam esses espaços, “os seres humanos não podem se ausentar, não se deixam excluir” ( 2LEFEBVRE, [1974] 000, p. 189). Nesse sentido, vale ressaltar, mais uma vez, o espaço por ele mesmo não existe, ele é produto e meio de produção da vida cotidiana, é histórico e, portanto, também é movimento, experiência, vivência, meio, incluindo a própria pessoa.
Por conseguinte, torna-se fundamental pensar nas relações entre o espaço concebido da creche (o projeto arquitetônico, as políticas para a educação infantil de todo o país, as legislações vigentes, os currículos, o plano político pedagógico da escola etc.); o espaço vivenciado afetivamente pelos/as bebês e suas professoras, que recobre simbolicamente o espaço físico e possibilita a criação, a subversão ( LEFEBVRE, [1974] 2000) e o desenvolvimento das pessoas ( VIGOTSKI, [1933] 1933; e o espaço percebido (articulação entre as dimensões do vivido e do concebido).
A EMEI Tupi e os espaços do berçário
Antes da criação das EMEIs 8 de Belo Horizonte, o atendimento educacional às crianças entre zero e cinco anos era feito, prioritariamente, em creches conveniadas ou filantrópicas. O município era um dos únicos do País que não possuía creches municipais com espaços planejados para tal finalidade. Em 2002, teve início o planejamento das EMEIs. Durante esse período, escolheram-se locais adequados, espalhados pelas regionais da cidade, de maneira que os prédios não ficassem concentrados em uma única regional ( AMORIM, 2010). De acordo com Amorim ( 2010), a construção dos prédios das EMEIs levou em consideração as orientações do Grupo Gerencial de Escolas Infantis (GGEI), elaboradas a partir das sugestões da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, das resoluções do Conselho Municipal de Educação – CME/BH no 01/2000 – “que fixa normas para a educação infantil e, em seus artigos 14 e 15, e dos parâmetros nacionais de qualidade para a educação infantil” ( AMORIM, 2010, p. 76). Observamos, assim, que, desde o início, as EMEIs foram concebidas para funcionar como uma instituição de educação infantil que atende crianças de zero a cinco anos. Portanto, seus espaços foram planejados e organizados com essa finalidade.
Assim, a EMEI pesquisada é uma escola de grande porte, projetada para atender às demandas de 440 crianças, construída em um terreno levemente acidentado com um declive acentuado na parte de trás. Passando pela rua, é possível ver toda sua extensão e fachada, pois não possui muros de concreto que impossibilitariam a vista e/ou contato com o interior e/ou exterior da escola, aspecto importante comentado por Barbosa ( 2006).
O portão de entrada da EMEI Tupi fica ao lado de um parquinho completamente aberto ( Figura 2), com grama verde, uma grande árvore (que faz sombra nos dois balanços), alguns brinquedos de plástico (duas casinhas e um escorregador) e dois balanços de madeira. As crianças, quando ali estão, têm contato com os transeuntes que passam na rua e podem observar o espaço a seu redor. Essa relação entre as crianças e o mundo externo, possibilitado pela opção arquitetônica de cerca, ao invés de muro, representa, em certa medida, uma novidade, pois, usualmente, as crianças pequenas são relegadas basicamente aos espaços privados, sendo a elas vedado quase que completamente, o contato com a vida pública.
O prédio da instituição possui dois andares e uma área externa grande. Ao adentrarmos, ao lado esquerdo, há dois banheiros com acessibilidade para crianças com deficiência, como solicitado pelos órgãos competentes durante a concepção das EMEIs. Após os banheiros, em frente à porta de entrada, fica o refeitório da instituição. Nele, há uma porta grande, de metal, transparente, que, em época de festa, reunião etc., é aberta em toda a sua dimensão e as pessoas têm fácil acesso e visualização de todo o refeitório. Nesse hall de entrada, está localizada a secretaria e, nele, há colagens feitas pelas crianças e informativos destinados à comunidade escolar. No corredor localizado no térreo, ficam as salas da direção e coordenação, algumas salas de atividades, a sala do berçário, a biblioteca e mais dois banheiros. Estes possuem vasos sanitários, pias e espelhos adequados à altura das crianças, o que corrobora a concepção de um espaço pensado para o atendimento de crianças pequenas.
As salas da instituição são bem arejadas e têm bastante iluminação natural. No primeiro andar, elas possuem portas envidraçadas, com o comprimento de uma parede inteira, onde as crianças têm acessibilidade para visualizarem o solário (parte exterior das salas do térreo). Já as salas do segundo andar, possuem janelas grandes, baixas, por onde as crianças veem o exterior da escola. A sala do berçário pesquisado ( Figura 3) é dividida em quatro espaços: a sala de banho e de troca de fraldas (1), a sala de atividades (2), a sala do sono (3) e o solário (4).
A sala de banho e de troca de fraldas (1) é o espaço onde é feita a higiene dos/as bebês. O local possui dois chuveiros e duas banheiras de tamanho médio, acopladas a uma bancada grande. Nessa bancada há, também, um trocador de fraldas. A sala de atividades (2) é o local onde as crianças passam a maior parte da rotina na EMEI Tupi. Possui um armário grande onde são guardados os pertences das crianças e os materiais de trabalho das professoras. Nele, há alguns nichos e, cada um deles, pertence a um/uma bebê. Ao lado desse armário, estão localizados o tatame (tapete emborrachado) e o almofadão em formato de serpente. Em cima do tatame, está um pêndulo de fitas coloridas. À frente do pêndulo, fica a pia da sala. Nela há um armário embutido, localizado tanto na parte superior quanto inferior do lavatório. Ao lado da pia, está a porta envidraçada de acesso ao solário (4). Esse espaço fica na parte exterior da sala do berçário. Ele é arborizado e possui dois bancos de alvenaria cobertos com azulejos amarelos. Seu piso é quase todo coberto de cimento. Por fim, há a sala do sono (3), que está localizada em frente à sala de atividades e ao lado da sala de banho e do solário. O acesso a ela só é possível pela sala de atividades. Nela, há berços pequenos cujas altura e profundidade facilitam a autonomia dos/as bebês para entrarem e saírem quando desejarem. Na Figura 4, estão representados os espaços do berçário.
Breve descrição da rotina no berçário
Os/as bebês permaneciam no berçário em tempo integral, das 7h às 17h. Eram doze bebês matriculados/as e sete professoras que se revezavam entre os turnos matutino e vespertino. No momento da chegada dos/as bebês na sala, as professoras os/as deixavam nos carrinhos sobre o tatame e os/as alimentavam com a mamadeira de leite. Em seguida, as professoras distribuíam brinquedos variados sobre o tatame e permitiam e/ou incentivavam que as/os bebês se movimentassem por sua própria iniciativa no espaço da sala. Em alguns momentos, elas abriam a sala do sono, ampliando o espaço de movimentação das/os bebês. Uma professora e a auxiliar 9 ficavam responsáveis pelo cuidado das/os bebês durante este período da manhã, para que a outra professora pudesse se ocupar das agendas. Após esse momento, por volta das 8h20min, as professoras ofereciam alguma fruta como lanche. Nesse momento, geralmente as/os bebês iam para o solário, onde eram dispostos brinquedos variados e um tapete. Durante o período no solário, as professoras, que haviam acolhido as crianças, em geral, saíam da sala para o cumprimento do horário de planejamento coletivo e outras duas professoras chegavam e iniciavam o momento do banho dos/as bebês 10 .
Finalizados os banhos, por volta das 10h30min, as professoras começavam a organizar a sala de atividade e as/os bebês para o almoço, que se iniciava às 10h50min. Quando todas/os bebês já haviam se alimentado, começavam os preparativos para a hora do sono: as professoras conferiam se havia alguma necessidade de troca de fraldas, ofertavam água para todos/as, fechavam parcialmente a janela da sala do sono e se silenciavam, para que as/os bebês adormecessem. Assim que as crianças começavam a dormir, apenas uma professora permanecia na sala até a chegada das professoras do turno da tarde, às 13h. Durante o turno da tarde, a rotina se repetia, o que a diferenciava era a frequência de idas ao solário (superior, se comparadas às da manhã) em função da temperatura e da sombra da árvore presente nesse espaço.
Após essa breve explanação da rotina do berçário pesquisado, vemos como a organização e o planejamento temporal da instituição é algo indispensável e complexo. A tríade espacial (concebido/vivido/percebido) é tensionada pela dimensão temporal marcada pelo ritmo da rotina e apresenta várias possibilidades, bem como limites, às/aos bebês e suas professoras. Nesse sentido, “pensar o corpo em movimento das crianças [e dos/as bebês]” ( SILVA, 2012, p. 219) é um dos desafios dos/as educadores/as e pesquisadores/as que atuam em escolas de educação infantil. Na próxima seção, analisaremos as diferentes vivências de dois bebês ao explorarem o espaço do berçário.
Trajetórias de exploração do espaço da sala do berçário
Com o intuito de compreendermos como os/as bebês vivenciam o espaço no berçário da EMEI Tupi, contrastamos diferentes instrumentos de pesquisa, dispondo-nos da etnografia em educação como perspectiva teórico-metodológica. Segundo Judith Green e colaboradoras ( 2005), a etnografia em educação envolve um processo dinâmico baseado em uma atitude responsiva e reflexiva do pesquisador durante todo o tempo em campo. Além disso, demanda (i) contraste das informações, (ii) busca por uma perspectiva êmica (do ponto de vista dos próprios membros) com as pessoas da pesquisa e (iii) uma postura ética ( GREEN et al., 2005, p. 31). Para Green et al., 2005), o contraste das informações da pesquisa é fundamental para dar visibilidade às práticas, muitas vezes invisíveis, que norteiam as ações das pessoas em seu dia a dia. Além disso, “a justaposição de perspectivas dentro de um contexto propicia informações que o estudo a partir de uma única perspectiva não pode revelar” ( GREEN et al., 2005, p. 35). Ou seja, o uso de diferentes tipos de dados, métodos ou teorias permite que o/a pesquisador/a construa uma interpretação bem fundamentada.
No momento de construção do material empírico, permanecemos em campo durante todo o ano 2017 11 , fizemos o uso de videogravações da rotina do berçário, anotações em diário de campo e entrevistas semiestruturadas com as professoras, equipe pedagógica e familiares dos/as bebês. Realizamos uma análise microgenética e contrastiva das filmagens, das anotações no diário de campo e das entrevistas, bem como um cotejamento com estudos teóricos, o que nos possibilitou a elaboração de mapas das trajetórias de exploração do espaço pelos/as bebês.
Nossa postura ética permeia todo o processo de pesquisa, com base em um respeito incondicional à alteridade e à inteireza dos/as bebês e a demais participantes da pesquisa, professoras e famílias ( NEVES; MÜLLER, 2021). Tal postura foi concretizada por meio de diversas ações que, talvez, não estivessem diretamente relacionadas ao nosso objetivo, mas que se fizeram absolutamente necessárias, tais como acalentar ou dar mamadeira para algum/a bebê, conversar com as professoras etc. Em determinados momentos, foi essencial sermos sensíveis aos movimentos de afastamento dos/as bebês e de suas professoras. Assim, ocasionalmente, desligamos a câmera ou desviamos o foco de filmagem ao percebermos algum incômodo das professoras ou dos/as bebês.
A seguir, apresentaremos dois eventos 12 em que focalizamos como dois bebês vivenciaram e exploraram a sala do berçário. Henrique (12m, 22d) 13 e Breno (9m, 12d) ingressaram na EMEI Tupi em momentos distintos. Breno começou a frequentar a creche no primeiro dia letivo do ano, 02 de fevereiro de 2017, e Henrique ingressou no dia 22 de maio do mesmo ano. Os eventos selecionados nos ajudaram a observar e contrastar a exploração na sala do berçário de duas maneiras distintas de locomoção – engatinhar e andar – marcadas pela unidade dialética [percepção/ação]. De acordo com Vigotski:
O caráter estrutural e integral, que é próprio tanto dos processos sensoriais quanto dos motores, nos ajuda a explicar a relação que une os processos sensoriais e motores. Eles estão unidos uns aos outros por uma estrutura. O que foi dito deve ser entendido da seguinte forma: a percepção e a ação constituem inicialmente um processo único, indivisível, onde a ação é a continuação dinâmica da percepção; ambos constituem uma estrutura geral. Tanto a percepção quanto a ação se manifestam como duas partes, dependentes das leis de formação geral de uma única estrutura. Existe, entre esses dois processos, uma conexão estrutural interna que é essencial e atribuída de sentido. [...] A percepção e a ação estão unidas pelo afeto. ( [1932] 1932, p. 297).
Assim, argumentamos que a percepção afetiva e a ação psicomotora constituem uma unidade dialética que marca as trajetórias de Breno e Henrique. Eles [percebem/agem] sobre o espaço, os artefatos e sobre as pessoas em busca de se familiarizarem com esse novo espaço no qual estão inseridos. Por meio dessas vivências, os/as bebês produzem processos de significação e constituem suas subjetividades.
Breno explorando o ambiente
Breno, no começo do fevereiro de 2017, locomovia-se em espaços curtos, com bastante dificuldade, arrastando-se. Ele colocava um braço à frente do corpo e se inclinava, se movimentando para a frente com a ajuda de uma das pernas. O evento “Breno explorando o ambiente” aconteceu três meses depois de seu primeiro dia na instituição.
Esse evento teve a duração de 22 minutos e foi a primeira vez que a pesquisadora percebeu Breno (11m, 18) explorando diferentes espaços da sala, pois, frequentemente, ele demonstrava interesse em ficar no carrinho e/ou sentado no tatame da sala, brincando com artefatos distintos dispostos pelas professoras. No dia 03 de abril de 2017, o bebê chegou à sala acompanhado de sua mãe, foi colocado no carrinho pela professora e, por volta de 7h20min, a professora Soraia perguntou a ele: “quer descer/ Breno:::?”. Assim que Soraia o colocou no chão, ele começou sua trajetória de exploração do espaço da sala ( Figura 5 e Figura 6).z
O bebê engatinhou até o móbile de fitas, tocando-o e provocando um movimento pendular, foi até um carrinho, foi até uma cadeira, tocou os pés da cadeira, foi até um carrinho novamente e tentou girar a rodinha do carrinho com as mãos ( Figura 6). A coordenadora Amália, que estava presente na sala nesse momento, chamou pelo bebê: “Breno::/ ô Breno:::”. O bebê respondeu ao seu chamado engatinhando até ela. Em seguida, ele foi até o armário e a professora Soraia disse sorrindo “Breno:::/ tá explorando o ambiente mesmo::/ hein?:::”. O bebê se sentou, pegou a cadeira que estava próxima e a puxou para o seu lado. A cadeira fez barulho e o bebê continuou a puxá-la. Breno voltou para o armário e colocou a cabeça sobre a porta, repetidas vezes, como se quisesse abri-la. Ele tentou mexer novamente no armário e a professora o retirou dali, possivelmente temendo que ele se machucasse. O bebê engatinhou novamente até o carrinho onde Maria estava deitada, girou a sua rodinha e permaneceu ali, girando a rodinha do carrinho, por 4 minutos (Quadro 4 - Figura 6). Torna-se visível que Breno [percebeu/agiu] sobre os artefatos de acordo com o que mobilizava afetivamente sua atenção.
Breno, como mencionado, já frequentava a EMEI Tupi há três meses e as professoras o conheciam e começavam a estabelecer com ele uma relação afetuosa que lhe propiciava segurança para explorar o espaço. A fala da professora Soraia, ”tá explorando o ambiente mesmo::/ hein?:::“, indica reconhecimento do movimento do bebê, bem como sinaliza uma diferença em relação aos dias anteriores, em que Breno se movimentou menos pelo berçário. Assim, tal exploração foi sustentada afetiva e cognitivamente pela presença, pelas falas e pelas ações das professoras.
Na Figura 5, é possível visualizar que o fluxo de movimento de Breno esteve restrito à sala de atividades, uma vez que a porta da sala do sono estava fechada, o que se diferencia da trajetória de Henrique, que veremos na próxima seção. Percebe-se que o bebê transitou engatinhando pelos espaços vazios e sem obstáculos. Suas possibilidades de exploração estavam, portanto, marcadas por sua forma de deslocamento e pelos sons e movimentos que esse se mover pela sala permitia e produzia. Assim, o balanço do móbile, o girar da rodinha e o barulho da cadeira, por exemplo, foram percebidos pelo bebê, provocando-o a agir sobre os artefatos. Argumentamos que o ato de movimentar de um/a bebê não intervém apenas no seu desenvolvimento psíquico, mas também nas suas relações com os outros ( WALLON, [1954] 1954, p. 81). Nesse sentido, podemos citar como exemplo o momento em que a coordenadora Amália chamou pelo bebê e a pronta resposta dele.
Breno explorou a sala em seu próprio ritmo, por meio do engatinhar, marcado pela intencionalidade de vivenciar diferentes artefatos (móbile, cadeira, roda do carrinho). Por já conhecer o espaço da sala há algum tempo, o bebê escolheu agir sobre diferentes artefatos, despendendo um tempo significativo nas paradas durante o seu deslocamento (por exemplo, quatro minutos girando a roda do carrinho), fazendo com que os objetos começassem a lhe pertencer.
O espaço percebido/vivenciado por Breno inclui diferentes possibilidades que, talvez, não estivessem concebidas no momento de planejamento das EMEIs. À guisa de exemplo, podemos citar os carrinhos, que estavam no berçário com uma função definida (oferecer repouso aos/às bebês), mas Breno se concentrou em girar suas rodinhas, percebendo um movimento que lhe chamou a atenção. Dessa forma, fica claro que, além da finalidade para a qual um artefato foi concebido, os/as bebês encontravam diversas outras finalidades nos artefatos que lhes foram oferecidos. A mesma situação ocorreu com a cadeira, cujo uso foi pensado para que as professoras pudessem oferecer mamadeira aos/às bebês, e que foi arrastada pelo bebê, servindo, então, a outro propósito, completamente diverso daquele originalmente pensado para ela.
Portanto, o movimento de Breno, ao vivenciar o espaço, foi marcado pela tensão dialética [percepção/ação]. Ao mesmo tempo em que ele estava familiarizado com o ambiente, sentindo-se afetiva e cognitivamente seguro por já frequentá-lo há três meses, ele “estranhava” e buscava se familiarizar com os artefatos presentes, percebendo afetivamente suas diferentes possibilidades, agindo sobre esses objetos (fazendo-os balançar ou girar, arrastando-os). Ou seja, os atos de [perceber/agir] sobre os artefatos, bem como de se familiarizar com as pessoas ao seu redor, constroem um “senso de pertencimento” do/a bebê naquele espaço ( SUMSION, 2018; BROOKER, 2014). O movimento de [percepção/ação] também esteve presente na trajetória de Henrique, como veremos a seguir.
Henrique explorando o ambiente
O processo de inserção de Henrique na EMEI Tupi foi distinto dos/as seus colegas de sala. O bebê já começou a frequentar a sala do berçário andando e com 12 meses de idade completos. Em seu primeiro dia na creche, demonstrou bastante interesse nos objetos dispostos no tatame e nos novos/as colegas de sala. Também evidenciou ser um bebê bastante curioso com o espaço: subia nos objetos da sala, nos nichos do armário, carrinhos vazios, berços e cadeirões.
O segundo dia de Henrique (12m, 27d) na instituição (24/05/2017) também foi marcado por sua curiosidade com a sala do berçário durante o turno da manhã. O bebê chegou à sala às 7h e rapidamente já estava no chão, andando e explorando o espaço. Durante esse tempo, uma das professoras ficara responsável pelo banho dos/as bebês junto com a auxiliar e a outra professora se encontrava na sala com os/as demais bebês. Apenas sete bebês estavam presentes nessa manhã. O evento de exploração de Henrique tem 40 minutos de duração ( Figura 7 e Figura 8).
O bebê começou a sua exploração subindo nos nichos dos armários. A seguir, brincou com um urso de pelúcia disposto no tatame. A professora Telma, que estava próxima, interagiu com ele, dizendo “aperta::: ele::: (o ursinho) dá um abraço apertado nele:::/ ê::: que delícia:::”. Henrique, por sua vez, aceitou o convite da professora e apertou o urso de pelúcia com um abraço. Em seguida, ele o deixou no tatame e se interessou pelo livro de tecido que sua colega Valéria segurava e os dois tocaram juntos o livro. Valéria pegou de um lado do livro e Henrique de outro. O bebê olhou para a colega, soltou o livro e foi até o pêndulo de fitas. Nesse momento, a professora comentou “ ê:::/ (o Henrique) tá reconhecendo tudo:::!”. Em seguida, o bebê caminhou até o armário da sala, foi até o pêndulo novamente e acabou se encontrando com Larissa, que estava com um brinquedo: dois chocalhos envoltos em uma fita de barbante verde. Henrique, então, puxou um dos chocalhos para o seu lado e Larissa puxou o chocalho para o lado dela, balbuciando “ ba:::/ba/ba:::”. Henrique soltou o chocalho e voltou engatinhando até o urso de pelúcia.
Ele continuou explorando toda a sala, tocou as cadeiras dispostas em pontos distintos, tocou as maçanetas do armário da pia, aproximou-se da pesquisadora, observou atentamente a câmera, passou pela pesquisadora, entrou na sala do sono, foi até a piscina de bolinhas, saiu da sala do sono, voltou para a sala de atividades, foi até o pêndulo de fitas, voltou para a sala do sono, tentou subir na piscina de bolinhas, caiu, aproximou-se de outra colega, Maria, que estava sentada nos berços empilhados. Assim que a bebê se afastou, Henrique também se assentou nos berços, olhou para a pesquisadora e para a professora, sorriu, saiu engatinhando e, por fim, entrou na piscina de bolinhas e ali permaneceu até a professora levá-lo para tomar banho. Toda essa trajetória, descrita de maneira resumida, evidencia a quantidade de movimentos realizados por Henrique durante o seu segundo dia na EMEI Tupi.
A professora Telma estava o tempo todo presente durante esse evento. Ela ficou sentada no tatame, observando o bebê novato e os/as demais, assumindo uma “posição estável no espaço” ( RUTANEN, 2014, p. 23). Em outras palavras, ela permitiu que o bebê se movimentasse na sala, sem sua intervenção direta. A professora pareceu reconhecer que o bebê precisava se sentir pertencente à sala por meio da [percepção/ação] sobre os artefatos quando celebrou “ ê:::/ (o Henrique) tá reconhecendo tudo:::!”. Sumsion e colaboradoras ( 2018) argumentam que a professora, mesmo em uma postura “neutra”, orquestra, sutilmente, os fluxos de movimentos e interações dos/as bebês, ou seja, mesmo sem uma interferência direta, a pessoa adulta está compondo o espaço corporalmente, por meio do planejamento e da organização do ambiente.
No berçário da EMEI Tupi, os/as bebês, na maioria do tempo de permanência na sala, realizavam movimentos e interações com os/as outros/as bebês, em seu próprio ritmo, de acordo com suas iniciativas ou, ainda, motivados/as por suas professoras ou artefatos disponíveis. No caso de Henrique, a posição de neutralidade e respeito da professora contribuiu para que ele realizasse sua descoberta pelo espaço da sala. Ou seja, ele se sentiu seguro para explorar o espaço da sala de forma autônoma, por sua própria iniciativa e em seu ritmo ( CORTEZZI, 2020). Além disso, naquele dia, estavam dispostos em cima do tatame, variados tipos de artefatos (bicho de pelúcia, livros, brinquedos de plástico, diferentes cadeiras, piscina de bolinhas) que possibilitaram a interação do bebê com seus coetâneos, como pudemos ver no encontro de Henrique com Valéria, Larissa e Maria.
Como mencionado, Henrique demonstrou enorme necessidade de sentir os artefatos: ele tocou as cadeiras, os carrinhos, o chocalho, os nichos do armário e o pêndulo da sala. Vigotski ( [1934] 1934) afirma que a percepção afetiva, nos estágios iniciais da vida da criança, está intimamente ligada às habilidades motoras. Assim, é por meio da atividade sensório-motora que os movimentos “conservam um caráter subjetivo-afetivo” que, por sua vez, tornarão possíveis percepções mais precisas das excitações causadas pelos objetos exteriores ( WALLON, [1954] 1954, p. 78). O bebê, ao tocar os artefatos, está percebendo o espaço, bem como se apropriando das suas significações. Indo além, ao procurar sentir os objetos e as pessoas, ele está se apoiando em sua percepção afetiva e em sua memória, que o auxiliarão na construção de sentidos e significados do espaço que começa a conhecer ( VIGOTSKI, [1934] 1934).
Em outras palavras, o bebê, ao [perceber/agir] sobre o espaço da sala, estava atribuindo sentidos a essa vivência e estava, também, convivendo com novos sentidos e significados característicos desse espaço. Dessa forma, as relações com os artefatos e com os/as outros/as bebês são diferentes das que, possivelmente, Henrique vivenciou em sua casa, pois, sendo filho único, tinha pouco contato com outras crianças 16 . Além disso, o espaço não é algo inerte, ele contém relações sociais e é produzido o tempo todo ( LEFEBVRE, [1974] 2000). Nesse sentido, a partir da frequência do bebê nesse berçário, ocorre uma dupla transformação: tanto o bebê modifica o espaço que passa a habitar, quanto esse mesmo espaço o modifica. Essa transformação ocorre, justamente a partir da [percepção/ação] em um movimento dialético, provocando diferentes processos de significação.
O evento de Henrique demonstra uma busca por um “senso de pertencimento” ( SUMSION, 2018; BROOKER, 2014) que passa por uma necessidade de percepção e por uma investigação cujo empenho está em conhecer/reconhecer o espaço, as pessoas e os artefatos da sala. Isso pode ter acontecido, porque ele ainda não conhecia a sala, os objetos e nem as pessoas ali presentes. Podemos inferir que o bebê parecia querer conhecer todos os espaços ao mesmo tempo, realizando rápidos movimentos de ir e vir explorando as possibilidades dos artefatos disponíveis, bem como se aproximando de outros/as bebês. Percebe-se que Henrique transitou por um espaço mais amplo do que seu colega, Breno, uma vez que as suas possibilidades de locomoção eram irrestritas, pois a sala do sono estava aberta e os berços foram colocados encostados nas paredes, de maneira que não houvesse obstáculos para os/as bebês.
Para as pessoas que já compunham aquele espaço, Henrique era um fato inédito, um “bebê novato”, alguém que acabara de chegar. Esse status de “bebê novato” marcou seu processo de movimentação pela sala, bem como as interações rápidas com a professora e com as outras bebês. Tanto é que Henrique não disputou os artefatos que lhe interessaram (livro e chocalho) com Valéria e Larissa. Importante mencionar que Henrique buscou interagir com as bebês, mas, curiosamente, não percebemos que houve um interesse por parte dos/as outros/as bebês em iniciar um processo interativo com ele.
Em um mesmo espaço físico, há espaços que não são acessíveis a todos ( RUTANEN, 2014). Argumentamos que tal acessibilidade está intimamente relacionada às possibilidades de locomoção dos/as bebês. Henrique já andava e alcançava os nichos dos armários, tocava os vidros da porta que dá acesso ao solário, subia sozinho na piscina de bolinhas. Já Breno, que ainda engatinhava, não podia fazê-lo. Por outro lado, Breno pôde olhar e perceber a sala a partir de outra perspectiva, mais próximo ao chão, uma vez que avistou e explorou o ralo da sala que estava localizado no piso e as rodas dos carrinhos que estavam bem na altura dos seus olhos ( Figura 6), ações que Henrique, no decorrer de nossas observações, não fizera.
Além disso, Breno, talvez por já conhecer mais o espaço, demorou-se ao [perceber/agir] sobre cada artefato, buscando se familiarizar detidamente com aquilo que lhe afetava e que estava muito próximo do seu campo de visão. Henrique, por sua vez, percebeu e interagiu rapidamente com diversos artefatos e pessoas, também buscando se familiarizar com tudo o que lhe afetava, já que, para ele, tudo era novo e possivelmente incrível. Esse movimento geral só foi possível, porque Henrique já caminhava e seu campo de visão era ampliado por sua locomoção ágil. Ele conseguia rapidamente caminhar por toda a sala, incluindo a sala de sono. Nessa perspectiva, a unidade dialética [percepção/ação] nos evidencia como o corpo é central na produção do espaço, afetando e sendo afetado por situações e coisas presentes nesse espaço ( LEFEVBRE, [1974] 2000; SUMSION, 2018).
Considerações finais
As análises das vivências de Henrique e Breno no espaço da sala do berçário, evidenciadas nos mapas de trajetória de exploração, tornaram visíveis o espaço como um lugar que produz e é produzido nas relações sociais. Diferentes bebês vivenciaram o espaço da EMEI Tupi de maneira distinta, assim como o espaço é produzido de maneiras diferentes por pessoas diferentes. O processo de inserção do/as bebês, nesse berçário, ficou marcado pela exploração do espaço de muitas maneiras: por meio do olhar, do caminhar, do engatinhar, do toque, das disputas por brinquedos, do choro, do aprendizado do cuidado, do sono, dos encontros desses/as bebês com seus/suas colegas e com outras pessoas ali presentes. Houve uma ativa busca, por parte dos/as bebês, de um conhecimento/reconhecimento do espaço, das pessoas, para que, talvez, pudessem se sentir pertencentes a esse meio social.
Isso significa que devemos pensar o espaço não mais como um simples receptáculo de coisas dispostas simultaneamente, mas como um lugar onde distintas vivências podem acontecer e se relacionar. Distintos/as bebês, cada um/a à sua maneira, poderão afetar/produzir/agir e serem afetados/as pelo espaço/tempo de uma instituição.
Dessa forma, partindo de uma abordagem que confere tanto à criança quanto ao espaço um protagonismo, ainda que em níveis e graus diferenciados, pudemos observar a fecundidade da discussão suscitada no que tange, de forma mais particular, às vivências únicas de dois bebês que possuíam possibilidades motoras e interesses igualmente diferentes. Nesse sentido, a única coisa que se manteve como algo constante, repetido, foi o fato de esses bebês estarem em um espaço pensado/planejado para ser vivenciado por eles. Dito de outro modo, a partir dessa discussão sobre o espaço de uma sala de berçário na educação infantil, vemos como um espaço organizado para acolher os/as bebês é importante para que eles/as tenham uma qualidade nos usos do tempo e nas relações estabelecidas nesse contexto coletivo. Talvez por isso, Breno e Henrique, na busca do senso de pertencimento e conhecimento/reconhecimento do espaço e de si mesmos, perceberam tudo a sua volta, tocaram, sentiram, tiveram acesso aos artefatos disponíveis.
Argumentamos, finalmente, que a organização dos tempos e espaços da educação infantil deve, constantemente, guiar-se pela especificidade da área “cuja função sustenta-se no respeito aos direitos fundamentais das crianças e na garantia de uma formação integral orientada para as diferentes dimensões humanas (linguística, intelectual, expressiva, emocional, corporal, social, cultural)” ( ROCHA, 2008, p. 12).