Introdução
Este artigo analisa a relação entre a equidade educacional, em escolas públicas municipais do ensino fundamental 1 (EF1) do Ceará e de Fortaleza (mais de 70% das matrículas do Estado) e a vulnerabilidade social nos seus territórios 5 . Esse recorte territorial se justifica pelo desempenho educacional do Ceará nesta etapa da escolaridade em termos de acesso, permanência e aprendizagem, com a matrícula sendo, praticamente toda de responsabilidade dos municípios ( CRUZ; FARAH; RIBEIRO, 2020). Mamede et al. ( 2021) afirmam que o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) cearense do EF1 avançou continuamente desde 2007, chegando, em 2019, a um valor superior ao do país e próximo ao do ensino privado do estado. Resultado que se contrasta com um contexto de maior pobreza que outros estados brasileiros, conforme afirmam Cruz, Farah e Ribeiro ( 2020), sinalizando que esses resultados ocorrem após a implementação do Programa de Aprendizagem na Idade Certa (PAIC). Codes et al. ( 2018) asseveram que esse programa foi implementado em um contexto de baixa capacidade de financiamento, em um estado dependente da complementação dos recursos da União com relação ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), o que eleva a relevância das melhoras dos índices educacionais. Cruz, Ribeiro e Batista ( 2022) ressaltam a presença de dirigentes e agentes implementadores de nível macro que agregaram aos novos recursos do FUNDEB, aspectos políticos e institucionais que foram favoráveis ao PAIC, incluindo o regime de colaboração entre municípios e o estado. Trata-se, ainda, de um contexto em que pesquisas têm indicado a ampliação da equidade (PADILHA et al. ( 2013), em parte devido ao PAIC ( KASMIRSKI; GUSMAO; RIBEIRO, 2017). Leandro Costa e Martin Carnoy ( 2015) notaram, também, que o analfabetismo infantil no Ceará decresceu em ritmo mais elevado que os demais estados do país e relacionaram essa mudança com a atuação do PAIC em leitura e matemática no EF. Embora a Sociologia da Educação aponte correlação entre o nível socioeconômico das localidades e o desempenho dos alunos, Cruz, Farah e Ribeiro ( 2020, p. 1292) afirmam que, “em 2016, 54,76% dos alunos cearenses do 3º ano estavam com aprendizagem suficiente na leitura, apontando para uma similaridade, ou até melhoria, em relação a São Paulo, 58,65%; Espírito Santo, 52,64%; Rio Grande do Sul, 51,06%; e Rio de Janeiro, 40,25%, que são estados com maior poder econômico do que o Ceará”. Ainda segundo essas autoras, no Ceará, as taxas de rendimento no EF1 eram melhores do que a média brasileira em 2017: “a reprovação é de 3,0% nos anos iniciais e 6,1% nos anos finais; o abandono é de 0,5% e 2,2%, respectivamente, e a aprovação, de 96,5% e 91,6%” (p. 1295).
Os resultados de equidade detectados no Ceará se vinculam ao contexto brasileiro de novas institucionalidades pós Constituição de 1988 ( BRASIL, 1988). O art. 205 da Constituição Federal define a educação básica como um direito obrigatório e subjetivo, a ser garantido independentemente de marcadores sociais. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.394 ( BRASIL, 1996) determina, no art. 22, “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” e “garantia de padrão de qualidade”, e estabelece o financiamento da educação básica pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), distribuído de forma equitativa ( BRASIL, 2020). Crahay ( 2000) e Ribeiro ( 2014) são alguns dos autores que defendem, para a educação básica, o princípio de justiça “equidade”, segundo o qual as políticas educacionais devem atuar para que todos, inclusive aqueles com menos recursos ou hierarquizados de forma desvantajosa nas relações sociais, possam galgar o conhecimento que o Estado define como necessário, conceito utilizado neste artigo.
Um dos objetivos perseguidos pela sociologia da educação é a desnaturalização do fracasso escolar e, nas últimas décadas, houve esforço de identificação de fenômenos que geram desigualdades educacionais para além da filiação social e cultural dos alunos. Foram feitos progressos na identificação de fatores intraescolares que produzem desigualdades: no ensino, na formação de professores, na organização das escolas, na infraestrutura escolar e, de modo geral, nos modos de administração dos sistemas educativos ( BROOKE; SOARES, 2008).
Mais recentemente, identificaram-se também variáveis territoriais e socioespaciais que podem ampliar as desigualdades educacionais, fatores que combinam os modos de fazer a ação pública com aqueles de natureza demográfica e social ( RIBEIRO, V.; VÓVIO, 2017). Pesquisadores mostraram que a regulamentação da matrícula nas escolas, a discricionariedade nas decisões tomadas nos níveis descentralizados do sistema educativo e as representações sociais daqueles responsáveis pela execução das políticas no nível local interferem na entrega do serviço público de educação, dependendo dos diferentes níveis de vulnerabilidade social dos territórios ( ALVES et al., 2015 ). E de fatores demográficos como a densidade da população nos territórios, bem como as propriedades econômicas dentro e ao redor das escolas ( ÉRNICA; BATISTA, 2012).
Pesquisas, nacionais e internacionais, têm, nas últimas décadas, se dedicado a estudar a influência da segregação escolar sobre a desigualdade educacional nos territórios das grandes cidades, evidenciando a importância do fenômeno ( BEN AYED, 2012; RIBEIRO, V.; VÓVIO, 2017). Para Broccolichi, Ben Ayed e Trancart ( 2010), a segregação escolar nos territórios urbanos se vincula à distribuição espacial das populações nesses espaços. E é reforçada por práticas de burla das regras de alocação de alunos nas escolas e pelo peso da educação privada. E também ampliada pelo impacto do papel discricionário dos agentes de implementação das políticas em iniciativas no âmbito das escolas e salas de aula. Esses autores destacaram que a segregação escolar no território é reforçada em áreas com alta densidade urbana e escolar e influencia a mobilidade estudantil entre escolas, concentrando alunos com dificuldades nas mesmas escolas, acentuando as dificuldades de aprendizagem. Para eles, onde essa segregação escolar é mais marcante, a desigualdade educacional também é mais acentuada. Broccolichi, Ben Ayed e Trancart ( 2010) e Ben Ayed ( 2012, 2013) contribuíram, na França, para estabelecer a relação entre educação e segregação escolar no território como um problema social, o que gerou introdução de orientações sobre a temática em algumas legislações 6 . Face à problemática, o Ministério da Educação Nacional francês tem publicado, anualmente, o “Estado da escola”, que contém alguns indicadores territorializados; e a “Geografia da escola”, que inclui indicadores focados no ambiente social, econômico e familiar das escolas, considerando as divisões territoriais. São trabalhos descritivos, não necessariamente conduzidos por hipóteses de pesquisa.
Essa sensibilidade que se criou na França em relação à importância dos fatores territoriais se refletiu em novas publicações, caso do “Atlas das fraturas escolares na França” ( CARO et al., 2010 ). O Ministério da Educação Nacional aumentou a produção de indicadores, como o Índice de posição social, mais complexo do que os indicadores habituais de origem social; e o Índice de posição social dos alunos ( ROCHER, 2016). Uma tipologia de espacialização da matrícula dos alunos nas escolas foi apresentada ( DUQUET-METAYER; MONSO, 2019) e, finalmente, foi criado um índice para medir a distância dos desempenhos dos alunos de acordo com seu local de residência ( MAUGIS; TOUAHIR, 2019). A criação desses indicadores mostra, no período recente, a busca de uma reflexão prospectiva do Estado em matéria de estratégia escolar territorializada, em especial através da publicação de um relatório ministerial que relaciona “distinções territoriais e sucesso escolar” ( AZÉMA; MATHIOT, 2019). No entanto, apesar das novas ferramentas de conhecimento, particularmente de estatísticas e novos elementos factuais nas políticas públicas, notam-se poucas mudanças nas últimas décadas na configuração das desigualdades socioespaciais e seu impacto sobre a educação. Esta dificuldade de enfrentar o problema advém, dentre outras questões, do fato de que a noção de território é multissetorial e poliforme, por combinar elementos demográficos, econômicos e sociais, e não se limita à escola, mas a todos os serviços do Estado disponíveis ( BEN AYED, 2012; 2013; KAZTMAN et al., 1999 ; KAZTMAN, 2001).
Chama atenção o atual contexto no qual as desigualdades educacionais continuam a crescer na França. Embora as informações acima apresentadas permitam dizer que houve algum avanço na produção de indicadores, pesquisa e orientações educacionais que consideram a relação entre desigualdade educacional e segregação socioespacial, a França não possui atualmente índices sintéticos, como pode ser observado recentemente no Brasil, que lhe permitam compreender a desigualdade territorial em nível amplo, considerando as diferentes dimensões que a constituem, a fim de realizar estudos como o reportado neste artigo.
A operacionalização da noção de vulnerabilidade social no país
Desde os anos 2000, o Brasil conta com experiências de operacionalização de índices sintéticos visando medir níveis de vulnerabilidade social nos territórios, o que incidiu sobre a realização de pesquisas. Segundo Seddon ( 2014, p. 12), “Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Amazonas são exemplos de estados que desenvolveram metodologias para caracterizar essa população e estabelecer diferentes frentes de combate à vulnerabilidade.” Esses índices relacionam situações geradoras de desigualdades de populações que habitam um mesmo território, tentando extrapolar a discussão sobre pobreza ( SEDDON, 2014).
Tais índices estão sustentados em diferentes referências. O de São Paulo, Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), por exemplo, define vulnerabilidade social no território a partir de Kaztman et al. ( 1999) e Kaztman ( 2001). Para esse autor, na América Latina tal fenômeno sociológico se reporta à sobreposição de desigualdades que afetam as grandes cidades, em função da forma como esses espaços urbanos foram construídos, expulsando os mais pobres para as periferias, nas quais a população tem menos escolaridade, acesso a trabalhos e moradias precários, com presença deficitária do Estado e do mercado.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) definiu vulnerabilidade com base em Moser ( 1998) e Castel ( 1998), os quais diferem em alguns pontos de Kaztman ( 2001): este está mais centrado em como os centros urbanos dos países latino-americanos foram constituídos, gerando desigualdades de oportunidades; já Castel ( 1998) se volta para a relação entre divisão social do trabalho e a proteção social propiciada pelo Estado e Sociedade. Castel ( 1998) defendeu que há uma correlação forte entre o lugar ocupado na divisão social do trabalho e a participação na rede de sociabilidade e nos sistemas de proteção que dão segurança aos indivíduos face aos acasos da vida. Apregoou, para explicar a desigualdade social contemporânea, que se pode pensar em “zonas” de coesão social, a saber, 1) a de desfiliação, zona de coesão social que expressa a somatória de duas situações sociais, a não participação de qualquer atividade produtiva somado ao isolamento relacional; 2) e a de vulnerabilidade social, que seria uma zona intermediária entre a inserção social e a desfiliação, caracterizada pela precariedade no trabalho juntamente com a fragilidade na inserção relacional ( CASTEL, 1998). Por sua vez, Moser ( 1998) pesquisou como se configura a questão da pobreza em países em desenvolvimento. Ela conclui que indivíduos podem ter seu bem-estar comprometido pela dificuldade de acesso a “ativos materiais e simbólicos” (tais como emprego e educação).
Apesar das definições de Kaztman et al. ( 1999) e Kaztman ( 2001) e de Moser ( 1998) e Castel ( 1998) não serem idênticas, a operacionalização dos índices têm semelhanças quando se observam os indicadores selecionados para expressar seus conceitos: buscam usar aqueles que expressam um conjunto de situações de pessoas ou grupos sociais que habitam determinado espaço, territorializando sua inserção social, a relação com o Estado e com o mercado e as oportunidades de terem uma vida digna. Observa-se que, tanto Castel ( 1998), como Kaztman et al. ( 1999), Kaztman ( 2001) e Moser ( 1998) trabalham, a despeito de distinções, com a noção de vulnerabilidade social como proveniente da precariedade no acesso às situações que permitem uma inserção social garantidora de vínculos e proteção aos acasos da vida.
O IPEA, de acordo com Marco Costa e Bárbara Marguti ( 2015) e Costa et al. ( 2018), selecionou indicadores para o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) que expressam ausência ou insuficiência de ativos que permitem o bem-estar ou de vínculos sociais garantidores da proteção social (fluxo de renda, moradia adequada, abastecimento de água limpa e saneamento básico; acesso a serviços de saúde, escolas e transporte público de qualidade, entre outros) que podem ser providos pelo Estado e que determinam as condições de bem-estar das sociedades contemporâneas. Por meio do IVS, as populações que experimentam a situação de vulnerabilidade social podem, assim, serem identificadas espacialmente.
Vale observar, pelos objetivos e fundamentos teóricos desses índices, bem como pelas repercussões dos estudos franceses, acima arroladas, a dimensão política da noção de vulnerabilidade social no território. Governos, buscando ampliar sua atuação em políticas sociais, acreditam que, com base em ferramentas que permitem distinguir populações considerando a desigualdade socioespacial, é possível discernir melhor sobre suas necessidades, bem como aportar melhorias às localidades nas quais residem, direcionando, de forma focalizada, suas ações. Há indícios de que os índices criados incidiram no desenho de políticas públicas no Brasil: no âmbito federal, há programas criados considerando os distintos níveis de vulnerabilidade social dos territórios, como o ProInfância e o Brasil Carinhoso, conforme Melo ( 2020). Essa autora, estudando a implementação dessas políticas no Rio Grande do Norte, assevera que a diretriz de atendimento à situação de vulnerabilidade no território encontrou uma série de barreiras, dentre elas, a falta de capacidade técnica nos municípios que se encaixam no critério da vulnerabilidade, a incompatibilidade entre as exigências das legislações e as especificidades de terreno desses territórios, dificultando construções de creches, dados que denotam a relevância de pesquisas sobre a implementação de políticas públicas que consideram a questão da vulnerabilidade social dos territórios para a efetiva distribuição de direitos ( MELO, 2020).
O olhar sobre a vulnerabilidade social nos territórios fez avançar a pesquisa da Sociologia da Educação na França, conforme foi denotado acima, e no Brasil. Para Vanda Ribeiro, Hivy Mello e Antonio Batista ( 2015), os estudos brasileiros sobre desigualdade escolar e vulnerabilidade social nos territórios das grandes cidades são recentes e foram desenvolvidos, até então, sobretudo, por pesquisadores do Observatório das Metrópoles, do Centro de Estudos sobre as Metrópoles e, nos últimos anos, pelo Centro de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Ação Comunitária e Cultura (CENPEC).
Vanda Ribeiro e Claudia Vóvio ( 2017) analisaram pesquisas desses centros, encontrados no Scielo, em abril de 2015, e em outras publicações decorrentes. As autoras afirmam que, segundo tais estudos, o desempenho dos alunos nas escolas localizadas nesses territórios tende a níveis mais baixos ( RIBEIRO, L.; KOSLINSKI, 2009; ÉRNICA; BATISTA, 2012; KOSLINSKI; ALVES; LANGE, 2013; TORRES et al., 2008 ; BARBOSA; SANT’ANNA, 2010; ÉRNICA; BATISTA, 2012). Vanda Ribeiro e Claudia Vóvio ( 2017) afirmaram que os estudos analisados denotam que a vulnerabilidade social no território produz desigualdade escolar devido a mecanismos tais como: falta de investimento do Estado na educação infantil ( ÉRNICA; BATISTA, 2012); representações sociais desfavoráveis às populações residentes nessas áreas das cidades ( ALVES et al., 2015 ; TORRES et al., 2008 ; BARBOSA; SANT’ANNA, 2010); falta e escassez de boa infraestrutura de equipamentos públicos nos territórios vulneráveis ( ÉRNICA; BATISTA, 2012; TORRES et al., 2008 ); docentes com mais formação e experiência que migram para territórios menos vulneráveis ( ALVES et al., 2014 ); maior incidência, nas regiões periféricas, de professores substitutos e temporários ( TORRES et al., 2008 ); maior rotatividade dos professores nas escolas ( TORRES et al., 2008 ); problemas de efetividade das políticas de formação continuada de professores ( BRECHES, 2015; MARCUCCI, 2015); relações de interdependência competitiva entre escolas ( TANGERINO-SILVA, 2016; BATISTA; CARVALHO-SILVA, 2013); não cumprimento do currículo prescrito ( MARCUCCI, 2015); legislações que impulsionam práticas que desfavorecem os territórios vulneráveis ( TANGERINO-SILVA; 2016).
Para efeito deste artigo, levantamento no Scielo, complementar ao de Vanda Ribeiro e Claudia Vóvio ( 2020), foi realizado em abril de 2020, com as palavras-chave “vulnerabilidade social and educação”. Sete novos trabalhos foram considerados pertinentes. Almeida ( 2017) analisou dados de escolas de distintos níveis de vulnerabilidade social, em Campinas, e concluiu que a dimensão territorial influencia a possibilidade de trabalho educativo nas escolas. A autora ratificou a existência de interdependência competitiva entre escolas em territórios vulneráveis: “As escolas mais bem avaliadas de modo informal pela população e profissionais são aquelas procuradas pelas famílias com modelo de socialização mais parecido com o da escola. Fato que gera certa segregação escolar pela escolha familiar ( ALMEIDA, 2017, p. 379).
Souza, Panúncio-Pinto e Fiorati ( 2019) aplicaram questionário e técnicas de pesquisa qualitativa junto a famílias da periferia em Ribeirão Preto, atendidas devido à vulnerabilidade social. Afirmam que “os professores não parecem preparados para lidar com o sofrimento e as dificuldades dessas crianças e adolescentes, tampouco para criar um ambiente mais estimulante e acolhedor” ( SOUZA; PANÚNCIO-PINTO; FIORATI, 2019, p. 266). Souza, Panúncio-Pinto e Fiorati ( 2019) asseveram que as famílias estudadas não reconhecem a escola como espaço de formação de seus filhos, ao contrário do que afirmam Batista e Carvalho-Silva ( 2013).
Matheus e Oliveira ( 2018) estudaram as consequências da vulnerabilidade social sobre jovens na periferia de São Paulo. Concluíram que a escola é um equipamento público importante que sofre as tensões vivenciadas pelos jovens e adolescentes devido às características institucionais do território. Essas escolas apresentam, segundo eles, dificuldades na infraestrutura, na gestão e no corpo docente cuja condição de trabalho não permite a presença constante e a construção de vínculos, o que é sentido pelos jovens, tornando-se razão para o descompromisso com a instituição. Apesar dessa problemática, os autores abordam potencialidades, investindo em compreender o trabalho feito por duas escolas que conseguem lidar com tais dificuldades e citam as seguintes práticas como meios de superação e convivência com o conflito: o diálogo, a negociação, a reciprocidade, a confiança, o respeito e as decisões conjuntas para gestão ( MATHEUS; OLIVEIRA, 2018). Esta pesquisa corrobora Torres et al. ( 2008) e Alves et al. ( 2014), no que concerne à dificuldade de fixação de professores nesses territórios, e Torres et al. ( 2008) quanto à problemática de pior infraestrutura.
Villamizar Santamaría ( 2015) investigou a relação entre segregação da população afrodescendente e o acesso a bens públicos em Bogotá, Colômbia. Afirmou que essa cidade tem adotado uma lógica redistributiva que tenta reduzir desigualdades. Entretanto, a localização da oferta de bens públicos ainda se concentrava mais em regiões com maior população branca e mestiça do que em locais com maioria negra. Para o autor, essa configuração da oferta dificulta o acesso da população negra aos bens públicos.
Matheus ( 2019) estudou a juventude em dois bairros paulistanos tidos como territórios vulneráveis. Constatou que as escolas têm dificuldade em dar respostas às expectativas e problemas experimentados pela juventude, contribuindo para a evasão escolar de alunos que menos se adaptam ao sistema de ensino. Para o autor, evadem “jovens que não conseguem se identificar com a proposta de desenvolvimento pedagógico, seja pela dificuldade diante do próprio aprendizado, distante do campo de referências da realidade local, seja pelo conflito entre suas aspirações e as exigências do meio formal e informal, aspectos que frequentemente interligados”. Afirmou ser frágil a articulação entre as escolas, “o que vem limitar o potencial de ação de cada equipamento em sua realidade específica e do conjunto de organizações, com um todo, no território” ( MATHEUS, 2019, p. 8).
Gadea et al. ( 2017) discutiram a situação de jovens que residem em bairros vulneráveis da cidade de Porto Alegre. Os autores notaram que o abandono da escola na idade de 14/15 anos, somado a situações mais extremas de vulnerabilidade familiar, acaba “empurrando” jovens para redes de sociabilidade que podem levar ao conflito com a lei. Consideram, ainda, que há indicativos de que “a maior carência desses jovens é de”capital social”, para ingressar numa rede de relações sociais que lhes permita sair de “situações adversas” ( GADEA et al., 2017 , p. 295). Com base em Matheus ( 2019) e Gadea et al. ( 2017) pode-se inferir que as escolas dos territórios vulneráveis têm dificuldade em oferecer as oportunidades necessárias para que jovens que experimentam a sobreposição de situações de desigualdade típica do fenômeno de vulnerabilidade social possam ter uma trajetória escolar e oportunidades socioculturais, conforme o esperado pela legislação no país.
Kelen Ribeiro et al. ( 2018) visaram compreender relações entre educação e saúde num bairro classificado como de alta vulnerabilidade social em Fortaleza, no Ceará, o Bom Jardim. Afirmam que houve, nos últimos anos, ampliação do acesso à educação no referido bairro, o que repercutiu positivamente sobre noções e comportamentos que incidem positivamente sobre a saúde. O estudo corrobora Érnica e Batista ( 2012), pois, no Bom Jardim, faltam creches e isso é fator que influencia, segundo os autores, negativamente na educação da população. Apontam ainda a precariedade da infraestrutura dos serviços públicos, inclusive educacionais, corroborando os achados de Torres et al. ( 2008).
Observam-se novidades neste levantamento de 2020, comparado aos textos analisados por Vanda Ribeiro e Claudia Vóvio ( 2017): 1) surgimento, como objeto de estudo, da relação entre juventude, sociabilidade e educação escolar em territórios vulneráveis; 2) busca de compreender a interface entre questão racial, acesso a bens sociais e vulnerabilidade social no território; 3) estudos para fora do eixo Rio-São Paulo e do país, pois nota-se uma pesquisa realizada em Porto Alegre, outra realizada em Fortaleza, e uma na Colômbia; 4) investimento na identificação de fatores relacionados à superação das dificuldades nos territórios vulneráveis. 5) novos centros acadêmicos de pesquisa voltados a essa temática. Em Vanda Ribeiro e Claudia Vóvio ( 2017), tampouco no levantamento de 2020, não foram detectadas pesquisas quantitativas que visam compreender a relação entre equidade educacional e vulnerabilidade social nos territórios. O presente artigo oferece uma contribuição ao conhecimento, tecendo a relação entre esses dois fenômenos, no Ceará e em Fortaleza, considerando que estas localidades têm se tornado casos estudados pela forte evolução do desempenho educacional dos alunos no EF1 e de diminuição da desigualdade escolar, quando se avalia dados da Prova Brasil ( KASMIRSKI; GUSMÃO; RIBEIRO, 2017; MAMEDE et al., 2021 ).
Procedimentos metodológicos
A presente pesquisa faz uso de abordagem quantitativa. De acordo com Gatti ( 2004), apesar de seus limites, essa abordagem é relevante por permitir visões macro de questões sociais. Para operacionalizar uma medida que expresse o conceito de equidade acima mencionado, fizemos as seguintes escolhas metodológicas: usamos dados da Prova Brasil para alunos do 5º ano do ensino fundamental providos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira ( INEP, 2011, 2017). Especificamente, adotou-se o desempenho em leitura como medida de conhecimento 7 . Como marcadores sociais, usou-se gênero, raça e poder de compra das famílias dos estudantes. Ainda que reconheçamos limitações da avaliação externa, por não expressar todo o aprendizado que um aluno de educação básica precisaria desenvolver na escola, este artigo utiliza os resultados da Prova Brasil como indicador de distribuição de parte do conhecimento previsto para ser ensinado, em língua portuguesa, considerando que seus critérios de avaliação expressam importantes bases de conhecimento, necessárias a um aprendizado adequado. Segundo Crahay ( 2000), medidas de desempenho de alunos advindas de testes em larga escala são um meio de verificar o alcance da equidade num sistema educacional quando se focaliza a relevância da distribuição do conhecimento – foco desta pesquisa.
O poder de compra (proxy para capital econômico) foi expresso por uma versão adaptada do Critério de classificação econômica Brasil ( ABEP, 2011): um sistema que pontua o número de itens de conforto, como televisão e geladeira, e a escolaridade do chefe do domicílio e, com base na soma dos pontos, classifica domicílios em uma das oito classes econômicas do Critério (A1, A2, B1, B2, C1, C2, D e E). O Critério foi adaptado para lidar com diferenças entre as informações requeridas e aquelas presentes nos questionários contextuais da Prova Brasil, que variam ao longo das edições ou apresentam alto percentual de não resposta. A escolha do Critério Brasil se deve à sua simplicidade de cálculo e interpretação.
A vulnerabilidade do território foi mensurada pelo IVS do IPEA, que usa dados do Censo demográfico de 2010 ( IPEA, 2020). Trata-se de iniciativa voltada a georreferenciar indicadores, de modo a visualizar as condições de vida nas diversas localidades do país. ( COSTA et al., 2018 ). O IVS tem cinco faixas de vulnerabilidade: muito baixa, baixa, média, alta e muito alta; foi elaborado com base em indicadores reunidos em três dimensões: infraestrutura urbana, capital humano e renda e trabalho, que expressam as dificuldades de acesso aos seguintes ativos materiais e simbólicos, respectivamente, (i) saneamento básico e mobilidade urbana, (ii) saúde e educação, e (iii) renda presente e insegurança de renda. O índice é calculado para municípios e para Unidades de Desenvolvimento Humano (UDH). As UDHs são recortes territoriais localizados dentro de áreas metropolitanas que agregam setores censitários do IBGE com base em sua homogeneidade socioeconômica ( COSTA; MARGUTI, 2015).
O cruzamento da Prova Brasil com o IVS das UDHs se deu por meio de georreferenciamento das escolas. As coordenadas geográficas das escolas foram obtidas no Google Cloud Platform com o software R. Os parâmetros de busca foram o nome da escola, município e estado de localização do Censo Escolar e, para as escolas da Região Metropolitana de Fortaleza, os endereços fornecidos pela Secretaria da Educação do Estado do Ceará. Usamos o Stata/MP 13.1 e os shapes do IPEA para posicionar as coordenadas das escolas nas UDHs.
A proficiência adequada em leitura para o 5º ano foi entendida como a aquisição de competências necessárias de leitura, indispensáveis para aprender os conteúdos das demais etapas da educação básica sem os quais os alunos são relegados a uma trajetória escolar conturbada e ao não respeito, reconhecimento e conhecimento necessário para inserção escolar e na vida social de forma digna ( RIBEIRO, V., 2014). Neste artigo, considera-se adequado o desempenho em leitura de, no mínimo, 200 pontos na escala do Saeb estabelecido pelo Todos Pela Educação ( 2007).
Selecionou-se como indicador de equidade o índice FGT(3) de Foster, Greer e Thorbecke ( 1984) 8 . Estes autores desenvolveram e aplicaram uma classe de indicadores FGT à distribuição de renda para mensurar a pobreza. Nós propomos a aplicação de um dos indicadores da classe, o de parâmetro , a distribuições de proficiência para mensurar equidade.
A classe de índices FGT é definida pela equação abaixo. A proficiência foi tratada de modo análogo à renda e o nível adequado de desempenho como uma linha de pobreza.
Onde z é o desempenho adequado, T i é a nota do aluno i, n é o tamanho da população em análise e q é o número de alunos com nota inferior a z. Para um dado valor de α, o índice de equidade permite comparar quaisquer distribuições de notas e ordená-las da mais equitativa (menor valor) para a menos equitativa (maior valor). Pode-se comparar diferentes escolas (ou turmas, redes etc.) em um mesmo período ou a mesma escola em diferentes momentos do tempo. Quando α=3, FGT(3) assume valores entre 0 e 1, com zero denotando a melhor situação de equidade.
Medidas de pobreza são mais adequadas para lidar com equidade do que as de desigualdade de renda. Os indicadores de desigualdade mais usados, como o índice de Gini, se baseiam na proporção da renda que os indivíduos possuem. Como a variável de interesse é a proficiência, avaliou-se fazer pouco sentido analisar a parcela da aprendizagem total que os alunos têm, pois o conhecimento é um bem não-rival.
Quanto maior α mais propriedades desejáveis o indicador atende. Particularmente, os índices FGT com α>2 são extrassensíveis ao que ocorre na cauda inferior da distribuição de notas 9 , instituindo uma relação com a noção apresentada na fundamentação teórica de atenção especial aos que têm mais dificuldades escolares. Outra vantagem é que os índices FGT são decomponíveis em subgrupos e o indicador de uma dada população é uma média ponderada dos indicadores para subgrupos. Por exemplo, o indicador de uma determinada rede de ensino pode ser decomposto em indicadores por IVS da escola, tornando possível identificar como escolas em diferentes faixas de vulnerabilidade contribuem para o índice geral da rede. Essa propriedade é relevante tendo em vista que os menos favorecidos nas distribuições de bens sociais tendem a aprender menos ( BROOKE; SOARES, 2008).
O erro padrão dos indicadores foi calculado por meio do comando bootstrap do Stata MP 17 com 400 repetições. Davidson e Flachaire ( 2007) mostram que o uso de bootstrap tem um bom desempenho para realizar inferência para medidas de pobreza FGT desde que o número de observações abaixo da linha de pobreza seja superior a dez e a linha de pobreza seja exógena ou estimada em função de algum quartil. Ambas as condições são atendidas na aplicação.
Apresentação e discussão dos resultados
Para verificar a evolução da equidade, apresenta-se a seguir o FGT(3) calculado para os seguintes recortes: faixas de vulnerabilidade do território da escola sozinhas e combinadas com grupos sociais, definidos com base em raça/cor, gênero e classe econômica dos alunos.
Os indicadores de equidade por faixas de vulnerabilidade e geral para o Ceará, Nordeste e Brasil estão na Figura 1. Observa-se na referida figura que, entre 2011 e 2017, os índices de todos os níveis geográficos e de vulnerabilidade melhoraram. Os indicadores do Ceará atingiram níveis mais baixos (estatisticamente diferentes dos das demais regiões) e reduziram drasticamente, em termos comparativos, as diferenças entre alunos de escolas municipais de territórios de vulnerabilidade média a muito alta.
Fonte: Elaboração própria com dados da Prova Brasil/INEP, IPEA, GeoSampa e Google Cloud Platform. Notas: I.C. denota intervalo de confiança; o coeficiente de confiança dos intervalos é de 95%. Os percentuais de alunos sem IVS são 0.2% e 0.3%, respectivamente, para Nordeste e Brasil em 2017.
Fonte: Elaboração própria com dados da Prova Brasil/Inep, IPEA e Google Cloud Platform. Notas: I.C. denota intervalo de confiança; o coeficiente de confiança dos intervalos é de 95%.
Devido às propriedades discutidas na seção anterior, uma melhoria ou, equivalentemente, uma redução do índice FGT(3) pode expressar não só um aumento no percentual de alunos com nota adequada, mas também o fato de que as crianças com notas menores que 200 pontos, especialmente as mais distantes desse valor, avançaram ou, pelo menos, não pioraram. Essa é a principal vantagem dos índices FGT com α>2 em relação a, por exemplo, o percentual de alunos nota menor que 200 pontos, a proficiência média ou o gap de aprendizagem entre diferentes grupos sociais.
Em 2011, o Ceará era mais equitativo que o Nordeste e o Brasil em todos os níveis de IVS e, na média geral, quando comparado à sua região. O indicador geral brasileiro é inferior ao do Ceará por causa das diferenças nos pesos de cada nível de vulnerabilidade. O Ceará tem mais alunos em regiões de IVS médio e alto e menos alunos naquelas com IVS baixo e muito baixo relativamente ao Brasil. Vale lembrar que o indicador geral pode ser expresso como uma média ponderada dos indicadores por IVS.
Os resultados, segundo os marcadores de desigualdades do Ceará - IVS e grupos sociais - estão nas Figura 2 e Figura 3. O que mais chama a atenção, em ambas as figuras, é a melhoria de equidade em todos os grupos sociais, em todas as faixas de vulnerabilidade, de 2011 a 2017. A melhoria de equidade favoreceu todos tipos de territórios e grupos sociais.
Em 2011, mantendo constantes classe econômica e gênero, praticamente não detectamos diferenças de equidade significantes em termos estatísticos entre raças. Entre meninos de classes mais altas, isso pode ser visto quando comparamos as quatro primeiras colunas do painel (a) com as quatro primeiras colunas do painel (b) da Figura 2. O mesmo ocorre com os meninos de classes mais baixas (ver Figura 3, adiante). Entre meninas de classes mais altas, isso pode ser visto quando contrastamos as quatro primeiras colunas do painel (c) com as quatro primeiras colunas do painel (d) da Figura 2. Na Figura 3, que traz os alunos de classe mais baixa, há uma diferença pequena, porém estatisticamente significante, que beneficia alunas negras quando o IVS é 4 ou 5 (que indica maiores níveis de vulnerabilidade social) ou quando consideramos o indicador geral.
Se em 2011 praticamente não detectamos diferenças entre raças, independentemente de classe econômica ou gênero, os dados de 2017 indicam algo distinto. Conforme denotam as Figura 2 e Figura 3, os alunos e alunas da raça/cor preta, de classe econômica mais alta e mais baixa, apresentam um indicador de equidade geral ligeiramente melhor em relação aos brancos, amarelos e indígenas. Quando observamos os distintos níveis de vulnerabilidade social, em 2017, observa-se mais equidade entre meninos negros de classes mais altas de escolas de baixa e média vulnerabilidade, também entre meninos negros de classes mais baixas estudando em territórios de alta vulnerabilidade, e entre meninas negras de classes mais baixas e em territórios com IVS 3 a 5.
Pode-se afirmar que, nos anos considerados, houve avanço na equidade quando se observa meninas negras nos territórios mais vulneráveis. E quando se observa meninos negros tanto em condições mais favoráveis materialmente quanto em situações mais adversas.
Quando cotejados alunos de diferentes classes econômicas, porém de mesmo gênero e raça, nota-se uma vantagem para alunos de classes mais altas tanto em 2011 quanto em 2017, exceto quando a escola se localiza em territórios de baixa vulnerabilidade (compare os mesmos painéis entre as Figura 2 e Figura 3). Essa vantagem se fortaleceu em 2017, pois, por exemplo, não havia diferença entre os índices de meninas brancas, amarelas ou indígenas, de qualquer IVS, em 2011 de diferentes classes econômicas. Porém, surge uma diferença que beneficia essas alunas em 2017 em territórios de vulnerabilidade média a alta.
Fonte: Elaboração própria com dados da Prova Brasil/Inep, IPEA e Google Cloud Platform. Notas: I.C. denota intervalo de confiança; o coeficiente de confiança dos intervalos é de 95%.
Quando comparamos os painéis (a) com o (c) ou o (b) com o (d) de cada figura (mantendo a classe e a raça/cor fixas e mudando somente o gênero), verifica-se maior equidade entre as meninas do que entre os meninos. Isso só não ocorre em escolas situadas em áreas de baixa vulnerabilidade.
Em suma, o Estado do Ceará avançou em termos de equidade, atingindo indicadores melhores do que a região Nordeste e o Brasil em praticamente todos os grupos sociais e níveis de vulnerabilidade. Ainda persistem diferenças entre gêneros e classes e surgiram diferenças entre raças em 2017 que não existiam em 2011, especialmente em escolas de vulnerabilidade média a muito alta.
A Figura 4 mostra os indicadores FGT(3) para parte das capitais nordestinas 10 , geral e por faixas de IVS das UDHs. Como as UDHs são territórios intramunicipais e, portanto, com menos alunos, os erros padrão dos indicadores são maiores do que aqueles que tratam do Ceará.
Fonte: Elaboração própria com dados da Prova Brasil/Inep, IPEA e Google Cloud Platform. Notas: I.C. denota intervalo de confiança; o coeficiente de confiança dos intervalos é de 95%.
Fortaleza teve melhoras em todos os grupos de vulnerabilidade social ( Figura 4) e nos recortes socioeconômicos ( Figura 5 e Figura 6). Em 2017, essa capital teve um melhor resultado geral e por IVS em equidade comparado com as demais capitais nordestinas analisadas, exceto Teresina, capital do Piauí. Fortaleza não só aumentou a média dos alunos após iniciar a efetiva implementação das estratégias previstas no PAIC ( MAMEDE et al., 2021 ), como também conseguiu melhorar a equidade em todas as faixas de vulnerabilidade social do território e grupos sociais aqui usados entre 2011 e 2017. Não detectamos diferenças entre grupos sociais em Fortaleza ( Figura 5 e Figura 6), porque o erro padrão dos índices é alto devido ao pequeno número de alunos em cada recorte.
Fonte: Elaboração própria com dados da Prova Brasil/Inep, IPEA e Google Cloud Platform. Notas: I.C. denota intervalo de confiança; o coeficiente de confiança dos intervalos é de 95%.
Fonte: Elaboração própria com dados da Prova Brasil/Inep, IPEA e Google Cloud Platform. Notas: I.C. denota intervalo de confiança; o coeficiente de confiança dos intervalos é de 95%.
Os resultados do estudo apresentado aqui reforçam Padilha et al. ( 2013), que afirmaram ampliação de equidade no EF1 no Ceará, e Kasmirski, Gusmão e Ribeiro ( 2017), que consideraram que, além dessa ampliação, o PAIC foi responsável por parte desse avanço, ao fazer com que os alunos de escolas de localidades mais pobres alcançassem os resultados educacionais esperados. Esta pesquisa agrega à literatura um resultado importante: essa ampliação da equidade no Ceará favoreceu também os territórios de vulnerabilidade social mais alta e os diferentes grupos sociais (gênero, raça e classes econômicas) residentes nesses territórios. Fortaleza seguiu um percurso parecido no que concerne à ampliação da equidade nos distintos territórios, mas não foi possível, devido à baixa precisão dos índices, neste município, observar o comportamento dos marcadores sociais (raça, gênero e classe econômica) na interface com esses distintos níveis de vulnerabilidade social. Esses resultados são inusitados, considerando a literatura que trata da relação entre educação e vulnerabilidade social no território ( TORRES et al., 2008 ; RIBEIRO, L.; KOSLINSKI, 2009; BARBOSA; SANT’ANNA, 2010; ÉRNICA; BATISTA, 2012; KOSLINSKI; ALVES; LANGE, 2013; MELLO, BATISTA, RIBEIRO, 2015; RIBEIRO, V.; VÓVIO, 2017), que evidenciam menor desempenho dos alunos em localizações de mais alta vulnerabilidade social.
É preciso observar no que se refere à comparação dos resultados de equidade entre Fortaleza e Teresina que, em 2017, Fortaleza teve uma taxa de participação dos alunos do 5º ano do EF1, na Prova Brasil, muito alta, de 98%, enquanto em Teresina essa taxa foi de apenas 81%, conforme aponta a Tabela 1.
Região | % de participação alunos 5º ano EF1 | |||
---|---|---|---|---|
de matrículas municipais nas redes públicas | na Prova Brasil das redes municipais | |||
2011 | 2017 | 2011 | 2017 | |
Brasil | 76 | 82 | 75 | 83 |
Nordeste | 89 | 95 | 63 | 78 |
Maranhão | 91 | 97 | 56 | 72 |
Piauí | 83 | 98 | 52 | 76 |
Ceará | 98 | 99 | 78 | 93 |
Rio G. do Norte | 74 | 79 | 65 | 76 |
Paraíba | 73 | 84 | 54 | 74 |
Pernambuco | 87 | 98 | 63 | 79 |
Alagoas | 90 | 95 | 66 | 79 |
Sergipe | 73 | 78 | 61 | 78 |
Bahia | 96 | 99 | 62 | 75 |
São Luís | 67 | 80 | 88 | 85 |
Teresina | 74 | 91 | 84 | 81 |
Fortaleza | 92 | 99 | 91 | 98 |
Natal | 62 | 69 | 80 | 86 |
João Pessoa | 61 | 71 | 81 | 84 |
Recife | 80 | 98 | 80 | 81 |
Maceió | 67 | 78 | 83 | 79 |
Aracaju | 44 | 54 | 82 | 87 |
Salvador | 85 | 96 | 81 | 80 |
Fonte: Elaboração própria com dados do INEP.
A Tabela 1 denota ainda que o Estado do Ceará, no âmbito do pacto de colaboração, mantém quase todas as matrículas do EF1 nas redes municipais, conforme afirmado no início deste artigo. E que a taxa de participação dos alunos do 5º ano do EF1 na Prova Brasil, em 2017, no Estado do Ceará, é bem maior que em outros estados do Nordeste, que a média dessa região e também do país. Ademais, entre 2011 e 2017, houve um enorme crescimento dessa taxa de participação no Ceará na Prova Brasil.
Considerações finais
Este artigo teve como objetivo estudar a relação entre a equidade educacional em escolas públicas municipais do Estado do Ceará e do município de Fortaleza no EF1 e a vulnerabilidade social no território, entre 2011 e 2017. Para tanto, cruzou-se dois distintos indicadores: um que mede níveis de vulnerabilidade social (por meio do Índice de Vulnerabilidade Social IVS do IPEA) e outro que mensura equidade (indicador FGT(3)), considerando o desempenho de alunos do 5º ano do EF na Prova Brasil e suas características socioeconômicas, que permitiram a constituição de grupos sociais a partir de tradicionais marcadores de desigualdade estabelecidos pela Sociologia – gênero, raça/cor e classe econômica. O conceito de equidade que embasou o índice é o de que todos os alunos, na etapa em que se encontram, devem galgar o nível considerado adequado pelo Estado, independente das situações de origem ( CRAHAY, 2000; RIBEIRO, V., 2014). O conceito de vulnerabilidade social advém de estudos de Moser ( 1998) e Castel ( 1998).
Os resultados indicam ampliação, entre 2011 e 2017, da equidade educacional de forma mais intensa no Ceará do que no país e no Nordeste, expressa pela diminuição da correlação entre vulnerabilidade social do território e nível de aprendizagem considerado adequado, em contexto de diminuição de evasão e repetência. Observando os resultados segundo classe, gênero e raça/cor nota-se que distintos grupos sociais foram favorecidos, incluindo aqueles tradicionalmente mais excluídos dos processos de distribuição do conhecimento, caso das meninas negras nos territórios mais vulneráveis e dos meninos negros, tanto em condições mais favoráveis materialmente quanto em situações mais adversas.
O caso de Fortaleza, estudado por comparação com outras capitais do Nordeste, aponta melhora da equidade em territórios de alta e média vulnerabilidade social. Dentre as capitais com as quais a situação foi comparada, apenas Teresina encontra-se à frente, mas com uma menor participação de alunos na Prova Brasil.
Os resultados aqui apresentados ocorrem em período de vigência do PAIC (programa do governo estadual cearense em colaboração com os municípios), razão pela qual torna-se relevante compreender a implementação desse Programa. Ribeiro, Kasmirski e Gusmão ( 2017), fazendo uso da metodologia dif in dif, mostram que o PAIC é responsável por explicar parte dos resultados de equidade na educação cearense. Analisar as estratégias do Programa, quem são seus agentes implementadores, bem como suas interações, poderá contribuir para o desenho e implementação de políticas públicas educacionais que visam enfrentar a desigualdade.
A literatura sobre o PAIC já aborda diferentes facetas de sua implementação, buscando explicar os resultados educacionais do Ceará. Vanda Ribeiro, Alicia Bonamino e Sergio Martinic ( 2020) buscaram compreender o modelo de regulação do Programa. Perceberam variados instrumentos que levam os agentes implementadores a agirem em torno de objetivos comuns, incidindo positivamente sobre o aspecto relacional entre os agentes, aspecto que, para esses autores, ajudam a explicar a ampliação da equidade educacional no Estado. Afirmam ainda que o modelo de regulação é resultado da existência de padrões e também de vigilância sobre resultados e processos, com foco na correção de rumos, o que, para Crahay ( 2000), é um tipo de política capaz de gerar equidade. No tocante aos aspectos relacionais na implementação do PAIC, Vieira e Vidal ( 2013) afirmam que essa política educacional e seus resultados se devem também à colaboração entre estado e municípios, sustentada pela negociação e a colaboração entre escolas. A colaboração entre escolas foi tratada como aspecto relevante do PAIC por Calderón, Raquel e Cabral ( 2015).
Cruz, Ribeiro e Batista ( 2022) estudaram o contexto de implementação do PAIC. Evidenciam a existência de continuidade política, com herança de ações pós-Constituição de 1988. Afirmam que o governador que criou o PAIC em 2007 ofereceu proteção às decisões dos agentes implementadores de alto e médio escalão frente a demandas políticas contrárias às necessidades do Programa. Os autores avaliam ter havido ampliação da capacidade estatal no Estado, com base em discussão a respeito do tema, presente em Gomide e Boschi ( 2016): ampliação da burocracia, aproveitamento de lideranças e da experiência de agentes implementadores, bem como distribuição do conhecimento adquirido por esses agentes, como meio de incrementar a política. E notificam que, embora o contexto no estado seja de baixa arrecadação, houve bom aproveitamento e negociação para a distribuição dos recursos públicos. Os resultados do artigo em tela evidenciam também ampliação de capacidade estatal no Ceará, ao serem cotejados com outro aspecto tratado em Gomide e Boschi ( 2016): o da incidência sobre desigualdades.
Ribeiro, Cruz e Santos ( 2023), para compreender a implementação do PAIC na produção da equidade em território vulnerável, analisaram entrevistas de professoras, gestores e registros de observações de sala de aula em uma escola de território de alta vulnerabilidade, em Fortaleza. Os autores asseveram apoio em rede por parte dos órgãos dirigentes à escola estudada, para que seus profissionais exerçam seus papéis. Esse apoio ocorre em ”cascata“, tendo início no PAIC, um Programa estadual, passando por distritos regionais e pelas secretarias municipais, até chegar na escala micro, a escola.
Kelen Ribeiro et al. ( 2018), ao buscarem compreender relações entre educação e saúde em Fortaleza, por meio de entrevistas com lideranças locais, em bairros classificados como de alta vulnerabilidade social, afirmam que houve, nos últimos anos, ampliação do acesso à educação nessas localidades, impactando positivamente o comportamento da população no que concerne aos cuidados com a saúde. O estudo de Kelen Ribeiro et al. ( 2018) permite inferir o reforço da relação entre a chegada do PAIC nas regiões vulneráveis e mudanças positivas na educação pública.
Anjos ( 2021) investigou interfaces da criança com a escrita durante o ciclo de alfabetização numa escola pública do município de Sobral, no Ceará, em território vulnerável. A autora concluiu que
[...] a) as relações da criança com a escrita se estabelecem mediante a égide de uma escola centrada na aprendizagem da escrita mediante o cuidado com a interação social; b) as narrativas das crianças sinalizam seu envolvimento com práticas de leitura de diversos gêneros textuais; produção textual; uso de caligrafia; cópias; jogos lúdicos e interativos, assim como atividades relacionadas à avaliação externa. [...] Quanto às práticas de gestão e pedagógicas, as análises revelam que a escola caminha, ao longo do ano, na perspectiva da equidade na aprendizagem através de: a) ações educativas que garantam a frequência da criança às aulas; b) atenção coletiva e individualizada, mediante o reforço escolar para crianças com dificuldades de aprendizagem; [...] d) permanente articulação da escola com família; e) monitoramento da aprendizagem das crianças por meio de avaliação externa. Conclui-se que a escrita enquanto ação de linguagem estabelece relações intrínsecas com a atenção e a criatividade da criança, relacionadas ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais tais como a persistência, autoestima, a autoconfiança e a interação com o outro, com o apoio escolar. (ANJOS, 2018, p. 8).
Mamede ( 2011), ao observar sala de aula no EF, em Fortaleza, em período anterior à chegada do PAIC, mostrou um ensino com ausência quase total de produção de textos escritos longos e de materiais didáticos, bem como pouco uso do tempo para atividades com foco na aprendizagem. Importante ressaltar que a sala de aula é o lócus central para o alcance da equidade quando se considera a distribuição do conhecimento. Vóvio, Ribeiro e Martinic ( 2020), ao analisarem o ensino-aprendizagem em três salas de aula do EF1 de uma escola considerada equitativa em território de alta vulnerabilidade em Fortaleza, após 8 anos de PAIC, por meio da aplicação de uma escala padronizada (Stallings), mostram que as professoras fazem bom uso do tempo acadêmico, em proporção maior do que a observada em outros estados brasileiros e países da América Latina.
Vóvio, Ribeiro e Martinic ( 2020) indicam, ainda, que as atividades das professoras são realizadas principalmente com a ajuda de livros didáticos ou textos escolares, resultado que contrasta com o encontrado antes do PAIC por Mamede ( 2011). A melhoria do aprendizado dos alunos na escola estudada, como hipótese, foi associada por Vóvio, Ribeiro e Martinic ( 2020) a um melhor uso do tempo em sala de aula. Os resultados são, para esses autores, consistentes com os objetivos do PAIC, tais como, assegurar mais tempo de ensino, utilizar textos em sala de aula e gerar a aprendizagem esperada.
Lopes ( 2021) afirma que o PAIC disseminou, no Estado do Ceará, a crença da importância da relação entre a formação dos professores, o material didático estruturado (distribuído pelo Programa) e o ensino, no cotidiano da sala de aula, impactando, assim, as práticas escolares.
Mota ( 2018), ao estudar, em quatro escolas “pares” 11 , a influência da premiação às escolas (uma das estratégias usadas pelo PAIC) sobre os estabelecimentos educacionais e seus sujeitos. A autora afirmou haver uma dupla via de consequência: as escolas não premiadas indicadas pelo PAIC como tendo necessidade de apoio pedagógico aumentam seus resultados após esse apoio. Entretanto, para a autora, a premiação, classificada como “componente meritocrático”, “confere prestígio social às escolas premiadas, [causando] impactos negativos nos agentes escolares e, principalmente, nos estudantes das escolas apoiadas, conforme relato dos agentes implementadores” ( MOTA, 2018, p. 7).
Pelas pesquisas sobre o PAIC, acima anunciadas, infere-se que há autores que indicam repercussões negativas de estratégias do Programa e autores que afirmam uma série de benefícios para as redes municipais de ensino, em termos de colaboração, “azeitamento” das interações, responsabilidade pelo ensino e, conforme o estudo em tela, ampliação de equidade.
Ao denotar a ampliação de equidade em território de alta vulnerabilidade no Ceará e em Fortaleza, situação contrária ao que a literatura permite esperar ( RIBEIRO; VOVIO, 2017), este artigo aponta para a relevância de mais estudos qualitativos no Ceará, preferencialmente incluindo municípios e escolas de variados contextos, com observação de sala de aula e investigação dos processos de gestão e implementação, para que seja possível fortalecer a compreensão dos resultados aqui apresentados.
Pesquisas quantitativas que relacionem equidade, vulnerabilidade social e desigualdades educacionais segundo grupos sociais, em várias localidades do país, contemplando também os dados do ensino fundamental II e ensino médio, permitirão identificar outras experiências de ampliação da equidade educacional, originando casos para estudos qualitativos, cujos resultados poderão fortalecer os aportes para o desenho e a implementação de políticas educacionais.
Considerando o avanço das pesquisas sobre educação e vulnerabilidade social nos territórios, evidenciado pelos dois levantamentos de referências realizados no Scielo, acima mencionados, é importante pontuar que a existência de índices de vulnerabilidade social no Brasil tem gerado avanços para o conhecimento, sobretudo se observarmos as dificuldades apontadas por pesquisadores para estudar o fenômeno na França, onde inexistem índices sintéticos que expressem a desigualdade socioespacial. Relevante ainda destacar o início da produção de índices que operacionalizam a noção de equidade, exemplificado por este estudo e por outros ( SOARES; DELGADO, 2021; WALTENBERG; SIMIELLI; SOARES, 2021). Tais estudos abrem janelas para novos olhares sobre a distribuição do conhecimento no país.
O presente estudo projeta luzes sobre pesquisas e centros acadêmicos que se dedicam à temática “educação e vulnerabilidade social nos territórios”. Seus resultados podem favorecer a formulação e a implementação de políticas educacionais que partem das distintas necessidades dos beneficiários que vivem em diferentes territórios, evitando problemas como os reportados por Melo ( 2020) e reforçando os argumentos de Gomes e Melo ( 2021), que defendem a importância de que as políticas públicas considerem as diferenças socioespaciais nos seu desenho e implementação. Para Pereira-Silva ( 2016), as políticas educacionais precisam considerar o impacto, junto a alunos, professores e gestores escolares, da sobreposição das desigualdades socioeconômicas, fenômeno típico dos territórios de alta vulnerabilidade social.
O fortalecimento da discussão, no Brasil, da interface entre equidade educacional e a vulnerabilidade social nos territórios, permitem a elaboração de orientações voltadas a secretarias de educação e a escolas que se encontram em territórios segregados e vulneráveis. A experiência do Ceará, documentos já existentes no MEC, como os citados por Melo ( 2021) no caso do Brasil Carinhoso, e os documentos franceses, acima mencionadas, podem contribuir para a produção de orientações visando nortear o desenho e a implementação de políticas educacionais nos territórios vulneráveis.