1 INTRODUÇÃO
O Pensamento Computacional é definido por Wing (2006, p. 33) como um “… conjunto de atitudes e habilidades universalmente aplicáveis que todos, não apenas cientistas da computação, deveriam estar ansiosos para aprender e usar”. Em muitos países, o desenvolvimento de atividades do Pensamento Computacional em sala de aula já é uma realidade, como apontado por diversos autores que descrevem modelos para sua implementação nas escolas (Bower et al., 2017; Brackmann, 2017; Morais; Basso; Fagundes, 2017).
No Brasil, as discussões sobre o Pensamento Computacional (PC) se intensificaram devido a sua inclusão nas diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). No entanto, ainda não há no país indicações específicas de como o PC pode ser integrado ao currículo escolar. A maior parte das citações ao termo “Pensamento Computacional” na BNCC se encontra na área da Matemática. Porém, a Informática também é citada frequentemente entre as áreas que podem trabalhar com o PC em um contexto formal de ensino (Leite et al., 2017). Nesse sentido, é possível observar que, apesar da necessidade premente da introdução dos conceitos do PC no currículo escolar, ainda não há uma definição clara sobre o tipo de formação que deveria ser oferecida aos professores responsáveis por esta tarefa.
O ensino do PC nas escolas busca desenvolver habilidades de resolução de problemas que não estão necessariamente ligadas ao contexto das tecnologias digitais. Não obstante, é também inegável que o desenvolvimento de tais habilidades prepara os estudantes para um mundo permeado pela tecnologia (Grover; Pea, 2013). Nesse sentido, muitas vezes a introdução do PC em sala de aula enfrenta a resistência do professor em função da sua própria falta de familiaridade com a tecnologia. Com frequência, esses professores alegam que não tiveram formação apropriada enquanto se preparavam para a carreira docente, o que lhes traz insegurança (Tallvid, 2016; Zanella; Lima, 2017).
Dada a relevância dos debates sobre a introdução do PC no currículo escolar e sobre a necessidade de formação de professores para esse fim, definiu-se a seguinte questão norteadora para esta pesquisa: Em um contexto de formação de professores do ensino básico para o desenvolvimento do pensamento computacional, de que maneira esses educadores se apropriam e mobilizam os conhecimentos trabalhados no curso?
Cabe destacar que o ensino do PC não está necessariamente relacionado à aprendizagem com uso de recursos tecnológicos, tais como computadores e linguagens de programação. Brackmann (2017), por exemplo, fez uma extensa proposta para trabalhar com o PC em contexto escolar exclusivamente a partir de atividades “desplugadas”, isto é, atividades que não requerem o uso de tecnologias digitais. Neste sentido, a introdução do PC de modo interdisciplinar, permeando diferentes campos de conhecimento do currículo escolar, pode ampliar seu desenvolvimento e possibilidades de aplicação (Settle et al., 2012).
Para responder a pergunta norteadora da pesquisa, um curso de formação de professores para trabalhar com o PC foi estruturado e ministrado para um grupo de 49 professores do ensino básico, das áreas de Informática e de Matemática. Este artigo apresenta a pesquisa realizada a partir do curso de formação oferecido, trazendo uma análise sobre os conceitos do PC mais trabalhados pelos professores e discutindo o alinhamento do modelo de formação desenvolvido às necessidades definidas na BNCC.
2 PENSAMENTO COMPUTACIONAL
Seymour Papert (1980) introduziu ideias relacionadas ao PC na década de 1980, mas somente 26 anos mais tarde o termo começou a ter destaque a partir do trabalho da pesquisadora Jeannette Wing (2006). Para a autora, o PC é um tipo de raciocínio analítico que compartilha elementos com o pensamento matemático de resolução de problemas, ou com o pensamento das engenharias na concepção de soluções e análise de sistemas complexos. Em uma sociedade permeada pela tecnologia, tais habilidades de raciocínio são fundamentais e afetam as pessoas em todas as áreas do conhecimento (Wing, 2008). Essa visão impõe novos desafios educacionais que exigem respostas rápidas sobre quando, quem e como deve-se trabalhar com o desenvolvimento desse novo repertório de habilidades de raciocínio.
A literatura aponta duas maneiras de trabalhar com os conceitos do PC. A primeira delas é baseada no desenvolvimento de atividades plugadas (plugged), isto é, atividades realizadas com a utilização de um computador ou de outro equipamento equivalente, tal como tablet ou smartphone. A segunda delas faz referência ao desenvolvimento de atividades desplugadas (unplugged), isto é, atividades realizadas sem o uso de um computador ou equipamento similar.
A principal vantagem de se trabalhar com a abordagem desplugada está no fato de que não são necessários laboratórios de informática, internet ou outros artefatos tecnológicos para o desenvolvimento das atividades. Já a abordagem plugada traz a vantagem de possibilitar o trabalho com conceitos mais complexos do PC. Nesta pesquisa, optou-se pelo uso da abordagem plugada por sua possibilidade de trabalhar com elementos de programação, os quais são considerados uma ferramenta chave para o desenvolvimento mais amplo do PC (Grover; Pea, 2013).
No contexto da abordagem plugada, muitas ferramentas têm sido utilizadas, entre elas o Snap (snap.berkeley.edu), Code.org (code.org) e Scratch (scratch.mit.edu). Por sua vasta utilização, versão em português e licença gratuita, optou-se, neste trabalho, pela ferramenta Scratch, desenvolvida no Instituto de Tecnologia de Massachusetts com vistas a oferecer um ambiente de programação no qual é possível criar histórias interativas, jogos e animações. Com o objetivo de sistematizar a avaliação de programas de computador desenvolvidos por estudantes, Moreno-Leon et al. (2015) identificaram sete dimensões do PC: abstração e decomposição de problemas, pensamento/raciocínio lógico, sincronização, paralelismo, algoritmos de controle de fluxo, interatividade e representação de dados. Essas dimensões foram utilizadas na implementação do Dr. Scratch, um aplicativo capaz de analisar programas feitos na ferramenta Scratch e informar seu grau de desenvolvimento no que diz respeito à cada dimensão do PC.
A literatura internacional aponta para uma série de obstáculos para a integração do PC nas grades curriculares (Lockwood; Mooney, 2017), mas propõe alguns modelos de implementação, como a criação de disciplinas específicas ou desenvolvimento de práticas interdisciplinares (Kong; Abelson, 2019).
No Brasil, Valente (2016) destacou que a formação de professores para trabalhar com o PC enfrenta desafios importantes por não haver um consenso sobre habilidades e conteúdo a serem trabalhados. Não obstante, ações pontuais têm sido desenvolvidas nesse sentido, como no trabalho realizado por França et al. (2014). Os pesquisadores relatam experiências de ensino dos fundamentos da Computação na Educação Básica, experiências realizadas pelo curso de Licenciatura em Computação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Já Rocha e Prado (2014) apresentam a análise de um curso de formação continuada sobre programação em Scratch para professores de Matemática, levando os docentes a criar suas próprias ferramentas e refletir sobre suas práticas em sala de aula. França e Tedesco (2015), no entanto, enfatizam que a maior parte da literatura nacional sobre formação em PC traz relatos de projetos de pesquisa ou de extensão, sem discutir de maneira mais contundente como o ensino do PC pode ser formalizado no país. Silva, Silva e França (2017) destacam, ainda, os desafios relacionados à inadequação da infraestrutura nas escolas para trabalhar com o desenvolvimento do PC.
Em 2019, a inclusão do PC no currículo escolar foi um assunto intensamente debatido no país pelo Ministério da Educação, indicando sua relação direta com a área da Matemática no texto da BNCC (2019). No entanto, muitas questões permanecem abertas quanto às disciplinas envolvidas, os conteúdos, a carga horária, a formação de professores, entre outras. Essas indefinições geram, nos educadores, uma sensação de insegurança na medida em que, para ensinar, um professor deve preparar-se formalmente para a tarefa, como orientou Freire (2001) em sua carta aos professores. Este artigo discute algumas dessas questões, principalmente no que diz respeito à percepção dos professores de duas áreas (Matemática e Informática) sobre seu possível envolvimento em atividades para trabalhar com o pensamento computacional nas escolas.
3 METODOLOGIA
A pesquisa aqui apresentada teve como principal objetivo oferecer um curso de formação para desenvolvimento do PC e avaliar de que maneira os professores se apropriam e mobilizam os conhecimentos trabalhados no curso em atividades práticas de sala de aula. Neste trabalho, o conceito de apropriação de saberes é compreendido como o processo por meio do qual os professores transformam os conhecimentos a que tiveram acesso ao longo de um percurso formativo em saberes que são mobilizados no exercício de sua profissão (Zibetti; Souza, 2018).
A pesquisa foi desenvolvida na modalidade de estudo descritivo com abordagem de coleta e análise de dados quanti-qualitativa. A pesquisa foi estruturada em duas etapas subsequentes: (1) Organização e realização do curso de formação para desenvolvimento do Pensamento Computacional; (2) Acompanhamento de atividades realizadas pelos professores nas escolas. Cada uma delas é detalhada nas subseções a seguir.
3.1 O Curso de Formação para Desenvolvimento do Pensamento Computacional
O curso de formação foi estruturado para dar aos professores subsídios para que pudessem trabalhar, com seus estudantes, conceitos do PC, relacionando esses conceitos a suas respectivas disciplinas. O curso, ministrado em parceria com a Secretaria de Educação de um município do interior do Rio Grande do Sul (RS), teve participação de 49 professores do ensino básico, 37 deles da área de Matemática e 12 de Informática. Esses professores faziam parte de 25 escolas da rede municipal de ensino. Em cada encontro, um ou mais conceitos do PC foram trabalhados, associando-os a conteúdos da Matemática e/ou Informática. Assim, foi utilizado um modelo Pedagógico Relacional similar ao proposto por Becker (1999), buscando facilitar a construção de conhecimento a partir do estabelecimento de relações entre os conceitos do PC e o conhecimento dos professores sobre suas áreas. Do ponto de vista ferramental, optou-se pelo uso da Scratch na condução das atividades do curso, dada sua abrangência com relação às sete dimensões do PC (Moreno-Leon; Robles; Roman-Gonzalez, 2017) e sua disponibilidade, sem nenhum custo.
Foram realizados seis encontros presenciais com os professores em um período que se estendeu por três semestres escolares: de setembro de 2017 a outubro de 2018. Em cada semestre, foram realizados dois encontros presenciais de 4h cada, com proposta de atividades e acompanhamento a distância. Os encontros foram realizados no laboratório de informática do Centro de Formação Profissional que colaborou com o desenvolvimento da pesquisa.
Os trabalhos realizados pelos professores durante a formação foram avaliados quanto ao emprego adequado de conceitos do PC nas tarefas propostas. Ainda no primeiro semestre escolar em que foi iniciado o curso, foi realizada uma entrevista coletiva com 32 dos 39 participantes da pesquisa. A entrevista foi realizada em dois momentos distintos com o grupo de professores dividido em dois, tendo como objetivo conhecer a percepção dos professores quanto às possíveis contribuições da formação para sua atividade docente bem como para o desenvolvimento dos estudantes. As sessões da entrevista com os dois grupos foram gravadas em áudio e transcritas para posterior análise. Foi utilizada a análise de conteúdo com codificação a posteriori (Stemler, 2001). O processo de codificação foi realizado a partir de método estruturado por Saldana (2009), com contabilização do número de ocorrência dos códigos para sistematização do processo de análise.
3.2 Acompanhamento das atividades realizadas pelos professores nas escolas
Das 25 escolas inicialmente envolvidas na primeira fase da pesquisa, cinco delas participaram da etapa subsequente do estudo, aqui comentada. Cada uma das escolas foi visitada para que se pudesse conhecer e avaliar as atividades desenvolvidas pelos professores para trabalhar conceitos do PC. Um protocolo de visitação, observação e entrevista similar ao trabalho de outros autores (Eloy et al., 2017; Curzon et al., 2014) foi utilizado. Dez professores participaram dessa etapa da pesquisa, seis deles da área de Matemática e quatro da área de Informática. Nesta etapa, os programas produzidos pelos professores foram avaliados, assim como os programas de seus estudantes. Para realizar essa avaliação, foi utilizada a ferramenta Dr. Scratch (http://www.drscratch.org/), um aplicativo Web que faz a análise automática de projetos criados no Scratch, indicando o grau de desenvolvimento de cada conceito do PC.
A pontuação gerada, de 0 a 21 pontos, avalia a competência demonstrada pelo desenvolvedor do projeto com relação aos conceitos de: abstração e decomposição de problemas; raciocínio lógico; sincronização; paralelismo; controle de fluxo; interatividade do usuário; e representação de dados. O aplicativo é disponível gratuitamente e vem sendo utilizado em muitos projetos de pesquisa e ações educativas de desenvolvimento e avaliação dos conceitos do PC (Rich; Browning, 2020). Mais uma vez, os professores foram entrevistados para contrastar sua opinião sobre a formação realizada com sua percepção inicial informada na primeira fase da pesquisa.
As entrevistas foram gravadas e transcritas para posterior análise, seguindo o protocolo de análise de conteúdo similar àquele empregado na primeira etapa da pesquisa. A principal diferença, nesta etapa, se refere à utilização, na análise, dos mesmos códigos já identificados na primeira etapa da pesquisa (codificação a priori).
4 RESULTADOS
Durante o curso de formação, foram coletados dados sobre os programas de computador produzidos pelos professores participantes. Apesar de o curso ter sido realizado por 49 professores, apenas 36 deles entregaram seus programas para análise. Dois programas de cada professor foram analisados com a ferramenta Dr. Scratch. O histograma da Figura 1 mostra a distribuição de frequência da pontuação somada desses programas para cada professor (pontuação máxima de 21 pontos por programa).
A Figura 1 mostra que a maior parte dos professores que obtiveram pontuação abaixo de 15 (valor da mediana) foram da área de Matemática, representados na cor laranja. Acima da mediana, é possível encontrar pontuações tanto dos professores de Matemática quanto de Informática, os últimos representados em azul. Observa-se, no entanto, que um número maior de professores de Informática foi capaz de alcançar as pontuações mais altas. Não obstante, percebe-se também que alguns professores de Matemática obtiveram pontuações expressivas, com notas alcançando 19 pontos (2 professores), 20 pontos (1 professor) e 23 pontos (1 professor). Esta pontuação mais alta (23) foi alcançada por professores que trabalharam em parceria: um professor de Matemática e dois de Informática. No programa implementado, ficou evidente que o professor de Matemática havia compreendido os conceitos do PC e os trouxe para o contexto de sua disciplina. Os professores de Informática o auxiliaram no desenvolvimento do código, em uma ação notadamente interdisciplinar. Uma análise da pontuação dos programas em relação às dimensões do PC é apresentada na Tabela 1.
Programa 1 | Programa 2 | P2- P1 | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Matemática | Informática | Matemática | Informática | Matemática | Informática | |
Lógica | 1.17 | 1.77 | 0.87 | 1.38 | -0.30 | -0.38 |
Paralelismo | 0.00 | 0.23 | 0.39 | 0.85 | 0.39 | 0.62 |
Interatividade | 1.52 | 1.85 | 1.96 | 1.92 | 0.43 | 0.08 |
Representação de dados | 1.26 | 1.92 | 1.91 | 1.69 | 0.65 | -0.23 |
Controle de fluxo | 1.70 | 1.85 | 2.04 | 1.92 | 0.35 | 0.08 |
Sincronização | 0.43 | 0.69 | 0.78 | 1.00 | 0.35 | 0.31 |
Abstração | 0.09 | 0.31 | 0.39 | 0.69 | 0.30 | 0.38 |
Fonte: Os autores (2020).
Os programas (P1 e P2), citados na Tabela 1, foram desenvolvidos em dois momentos distintos durante a formação dos professores. O P1 permitiu verificar como foi o contato inicial dos professores com o Scratch. Já o P2 permitiu verificar de que forma os professores evoluíram em termos de conhecimento sobre os conceitos do PC. Adicionalmente, o P2 evidenciou a forma como os professores aplicaram os conhecimentos adquiridos para criar uma proposta de atividade sobre o PC com seus alunos em sala de aula.
Ao calcular a média geral de pontuação do Programa 1 e do Programa 2, os valores 7,03 e 8,75 foram obtidos, respectivamente. Esses valores mostram um aumento na pontuação geral, evidenciando influência positiva da formação no que diz respeito às habilidades iniciais e finais desses docentes em elaborar programas de computador com a ferramenta Scratch. As médias foram calculadas considerando a pontuação obtida por cada professor que entregou os programas. Apesar de os professores de ambas as formações terem obtido pontuação mais alta após a realização do curso, a maior familiaridade dos professores de Informática com conceitos de programação, já no início do curso, explica o menor percentual relativo de sua pontuação. Ou seja, os professores de Informática obtiveram melhoria em sua pontuação de 9,8% entre os programas P1 e P2, enquanto os professores de Matemática obtiveram melhoria de 35,2%. A análise da Tabela 1 também permite observar que, com exceção da dimensão da Lógica, todas as demais dimensões tiveram um aumento de pontuação entre o P1 e o P2. A explicação para que a dimensão da Lógica não tenha obtido um aumento significativo foi que, já no primeiro programa, tanto os professores de Informática quanto de Matemática utilizaram extensivamente a estrutura SE-ENTÃO-SENÃO, obtendo, desde o início, alta pontuação na dimensão da Lógica.
Além de avaliar os programas realizados pelos professores, nesta etapa da pesquisa também foi realizada uma entrevista com os 39 professores participantes. Para analisar as falas dos professores, utilizou-se a análise de conteúdo a partir do processo de codificação proposto por Saldana (2009). Dois professores com experiência em pesquisa na área, de modo independente, identificaram códigos e categorias de temas tratados nas entrevistas e discussões. O nível de concordância entre os dois codificadores foi verificado por meio do cálculo do coeficiente Kappa de Cohen, classificando-os em categorias desde “Pequeno” (0.00) a “Quase Perfeito” (1.00) (Stemler, 2001). A primeira análise de concordância entre os códigos definidos por cada codificador apresentou 28.13% dos valores de coeficiente com classificação acima de “Moderado” (0.41 - 0.60). Após processo de conciliação proposto por Garrison et al. (2006), a totalidade da codificação atingiu classificação igual ou superior a “Significativa”, validando assim o processo. Os códigos consolidados foram categorizados em cinco classes, apresentando os principais temas abordados pelos professores, bem como suas reações, o que é ilustrado no Quadro 1.
Categoria | Código | Descrição |
---|---|---|
DIRETRIZES | GRADE | Grade curricular da escola e/ou currículo implementado. |
CNTDS | Para cumprir os conteúdos obrigatórios, não há tempo disponível para trabalhar o Scratch. | |
LEGIS | Falta documentação/ legislação que oriente a implementação da informática nas escolas. | |
HABILIDADES | HABAL | Habilidade dos alunos no contexto da informática: facilidade de prooramar, looica, etc. |
HABIP | Professor referenciou precisar de habilidades no Scratch para aplicar com os alunos. | |
DIFIC | Comentários dos professores sobre sua dificuldade com relação à informática. | |
INTEGRAÇÃO CURRICULAR | INTER | Qualquer referência à interdisciplinaridade. |
IMPLE | Como implementar o Scratch: jogos, projetos, oficina, etc. | |
RECURSOS DISPONÍVEIS | PRFAX | Necessidade de um profissional que auxilie com questões de informática na escola. |
ADEQO | Infraestrutura da escola está adequada para desenvolvimento de atividades. | |
DEFIC | Infraestrutura da escola não está adequada para desenvolvimento de atividades. | |
HORAP | Carga horária disponível dos professores para trabalhar com informática. | |
HORAL | Horários dispon iveis para utilizar os laboratórios de informática da escola. | |
NUMAL | Referência ao número de alunos em uma turma. | |
REAÇÃO DOS PARTICIPANTES | ACETA | Aceitação dos alunos com relação ao Scratch. |
ACETP | Aceitação dos professores com relação ao Scratch. | |
REJEA | Rejeição dos alunos com relação ao Scratch. | |
REJEP | Rejeicão dos professores com relação ao Scratch. | |
RESPP | Professor reconhece que deve estudar para compreender como utilizar o Scratch. |
Fonte: Os autores (2020).
A Figura 2 mostra um gráfico com o número de ocorrências dos códigos relacionados aos temas abordados pelos professores, bem como sua reação de aceitação/rejeição com relação ao curso de formação.
No que diz respeito à aceitação e rejeição dos professores ao curso de formação, foram observadas 20 ocorrências do código ACETP, 70% deles relativos às falas dos professores de Matemática, como ilustrado nos excertos abaixo:
P30 (Matemática): “... hoje saio daqui mais segura para começar o trabalho com os alunos”.
P37 (Informática): “Enxergo muito positivo este trabalho ... formação”.
Tais falas mostram que os professores estavam cientes da necessidade de a escola realizar atividades para trabalhar o PC e estavam satisfeitos com as atividades do curso. As oito ocorrências do código ACETA ratificam a aceitação da formação proposta no que diz respeito ao interesse dos alunos em trabalhar com a tecnologia e conhecer os conceitos do PC. Contudo, também foram registrados alguns sinais de rejeição ao curso, evidenciados pelas ocorrências dos códigos REJEA, REJEP e RESPP. Neste sentido, percebe-se que os professores, apesar de saberem da importância do PC, mostraram apreensão quanto à necessidade de trabalhar com estes conteúdos nas escolas. A fala de um professor de Matemática mostra sua preocupação quanto ao encaixe das aulas sobre PC no seu cronograma:
A análise dos temas tratados nas falas dos professores permite melhor compreender seu posicionamento quanto às necessidades e dificuldades de eles mesmos trabalharem o PC em sala de aula. No topo da lista, encontra-se o código PRFAX, com 19 ocorrências, evidenciando a preocupação dos professores em ter de trabalhar com o PC e o Scratch sem o apoio de um professor de Informática (79% dessas falas foram feitas pelos professores de Matemática). A presença recorrente desse tema evidenciou uma percepção de dependência dos professores de Matemática em relação aos professores de Informática, como ilustrado em algumas de suas falas:
P30 (Matemática): “... desde que a gente tenha sempre esta ajuda no laboratório de informática onde eu [...] possa levar meus alunos, minha turma, e tenha alguém me assessorando”.
P06 (Matemática): “... mas com auxílio, como disse né, com auxílio do professor de informática”.
Essa percepção dos professores de Matemática pode estar relacionada às atribuições dos professores de Informática nas escolas do município em que a pesquisa foi realizada. Nessas escolas, era atribuição dos professores de Informática auxiliar os professores das demais disciplinas em atividades realizadas no laboratório de Informática. Leite et al. (2017) observaram aspectos semelhantes em um estudo realizado em escolas municipais no Paraná, nas quais foi estabelecido que os assuntos relativos ao PC seriam de responsabilidade dos professores com Licenciatura em Informática.
Os códigos GRADE, INTER e HORAP também foram frequentes nas falas dos professores, contabilizando 19 ocorrências cada um. Trata-se de temas relacionados às diretrizes curriculares, à integração do PC à grade curricular bem como aos recursos necessários para realização dessa integração. A frequência com que esses termos vieram à tona mostrou a preocupação dos professores com as dificuldades já existentes em implementar a grade curricular usual nas escolas. Também evidenciou posicionamento desses professores quanto à necessidade de desenvolvimento de práticas interdisciplinares para trabalhar com o PC e deixou aparente a pouca disponibilidade de horários para desenvolver atividades relacionadas à Informática nas escolas.
De um modo geral, os códigos observados com mais frequência nas falas dos professores apontaram para uma certa resistência no que poderia representar a formação proposta, ou seja, um futuro comprometimento desses docentes na realização de atividades que envolvessem trabalho com o PC em suas turmas. Um menor número de comentários dessa natureza foi observado pelos professores de Informática, o que parece natural. A entrega dos projetos também evidenciou maior dificuldade e resistência dos professores de Matemática na realização das atividades propostas. Dos 37 professores de Matemática que realizaram a formação, apenas 26 entregaram as atividades propostas. Comparativamente, dos 12 professores de Informática que fizeram o curso, todos entregaram as atividades. Tais resultados podem ser compreendidos pelas 9 ocorrências do código DIFIC nas falas dos professores, 8 delas trazidas pelos professores de Matemática e 1 enunciada por um professor da Informática, como ilustrado abaixo:
P13 (Matemática): “Eu Sou professora de Matemática, não tenho grandes habilidades na área da Informática ...”.
P08 (Matemática): “... tenho grande dificuldade, [...] porque eu não tenho esta parte também inicial da Informática ...”.
P37 (Informática): “... mas eu me considero ainda amadora, eu tenho muitas dúvidas ...”.
Para verificar se problemas de infraestrutura poderiam estar afetando a aceitação dos professores com relação à formação em PC e ao Scratch, relacionou-se o número de ocorrências do código REJEP com o do código DEFIC. Houve apenas uma ocorrência de fala trazendo ambos os códigos (professora de Matemática, P47): “Desmotivada pois falta laboratório”.
Finalizada esta etapa da pesquisa, foi proposto um período de visitação a algumas das escolas participantes, com vistas a observar o eventual desenvolvimento de atividades relacionadas ao PC pelos professores que realizaram a formação.
Cinco escolas foram visitadas nesta etapa da pesquisa, buscando melhor compreender como os professores se apropriaram dos conhecimentos trabalhados no curso e como mobilizaram esses conhecimentos para trabalhar com seus alunos os conceitos do PC. Foram duas visitas em cada escola, com exceção de uma delas em que as atividades foram todas condensadas em um único dia. As visitas foram feitas num período de 3 meses, tendo ocorrido 4 meses após a conclusão do curso de formação. Participaram desta etapa do estudo 10 professores, 6 da área de Matemática e 4 da Informática.
A visita possibilitou coletar dados sobre os programas elaborados pelos professores para trabalhar com seus alunos. Em uma primeira análise, foram verificadas as pontuações médias alcançadas pelos programas elaborados pelos professores utilizando o aplicativo Dr. Scratch, assim como apresentado na Tabela 2.
Escola | Conceito do PC | Médias | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
BJ | Lógica | Paralelismo | Interatividade | Representação de Dados | Controle de fluxo | Sincronização | Abstração | 16 |
DL | 9 | |||||||
LS | 5 | |||||||
ST | 5.5 | |||||||
JR | 13 | |||||||
Pontuação total por conceito | 8 | 7 | 14 | 13 | 14 | 8 | 6 |
Fonte: Os autores (2020).
Sobre esta avaliação, cabe destacar que a pontuação atribuída não está relacionada a erros ou inadequação dos programas. Ela apenas dimensiona o quanto cada conceito do PC foi explorado no programa avaliado pela ferramenta Dr. Scratch.
Os dados da Tabela 2 mostram que os programas elaborados pelos professores exploraram mais alguns dos conceitos do PC, como por exemplo a Interatividade, a Representação de dados e o controle de fluxo. Também foi possível observar que os melhores resultados foram alcançados pelas equipes que trabalharam de maneira conjunta, professores de Matemática e de Informática. Essas equipes obtiveram pontuações médias mais altas, apontando para um uso mais amplo dos conceitos do PC.
Nas escolas com mais alta pontuação, BJ e JR, os professores se organizaram para trabalhar desta maneira. Os professores de Matemática propunham problemas de suas disciplinas e os professores de Informática participavam da elaboração de soluções, trabalhando colaborativamente na implementação dos programas com a ferramenta Scratch.
Comparando os resultados da pesquisa com o trabalho de Romero, Lepage e Lille (2017) observa-se que o curso de formação aqui proposto foi mais amplo em termos de materiais apresentados e atividades desenvolvidas com os participantes, tanto em relação ao PC como na utilização do Scratch.
Também foi realizada uma entrevista com os 10 professores participantes. A análise de suas falas seguiu protocolo semelhante àquele utilizado na etapa anterior, com exceção de que, neste momento, empregou-se o processo de codificação a priori, utilizando os mesmos códigos já identificados na primeira etapa da pesquisa. A Figura 3 condensa em uma mesma imagem os dados de ocorrência dos códigos identificados na primeira etapa da pesquisa (curso de formação) com seus dados de frequência observados na etapa de visitação às escolas, considerando-se aqui apenas as falas do mesmo grupo de 10 professores.
O número de ocorrências dos códigos ACETA e ACETP teve aumento percentual em relação à etapa anterior do curso de formação, demonstrando maior aceitação da proposta nesta segunda etapa de pesquisa envolvendo visitação às escolas. As seguintes falas dos professores confirmam essa afirmação:
P05 (Matemática): “Gostaram muito, tanto que comentaram constantemente sobre o que aprenderam”.
P23 (Informática): “Essa segunda etapa da formação ajuda na questão de consolidar o que a gente aprendeu na formação”.
Com relação à ocorrência do código DIFIC, é interessante destacar o relato da professora de Matemática P05, apontando dificuldades na elaboração da proposta de atividades para os alunos: “... insegurança, por não dominar boa parte do Pensamento Computacional”. Percebe-se, mais uma vez, a aderência dos professores ao discurso sobre a importância do desenvolvimento do PC nas escolas, mesmo sentindo dificuldade e resistência à ideia de eles próprios terem de trabalhar com este conteúdo. Nesse mesmo contexto, cabe destacar a fala da professora P21: “... os alunos já estão muito mais avançados que eu, não sei se eu estou no nível deles”. Essa insegurança dos professores com relação ao seu desempenho no uso das tecnologias é reportada por muitos autores. Azarfam, Asghar e Jabbari (2012, p. 454), por exemplo, afirmam que esse tipo de situação “... não leva os alunos a pensar que seus professores não estão no controle da sala de aula. Os alunos adoram quando podem compartilhar seus conhecimentos com outras pessoas, especialmente com os professores”. Bingimlas (2009, p. 238) complementa essa ideia apontando que a pouca familiaridade dos professores com a tecnologia, ao invés de levá-los a querer se inteirar mais sobre o assunto, com frequência gera uma resistência à formação tecnológica.
O alto percentual dos códigos CNTDS e DIFIC também mostra que os professores tiveram problemas para encaixar as atividades do PC em relação aos conteúdos já estabelecidos para serem desenvolvidos em sala de aula. A fala da professora P15 ilustra o problema: “... não estava de encontro [sic] com planos de trabalho de ambas disciplinas...”. A professora P09 ratifica a dificuldade encontrada: “... não estamos colocando em prática [o Pensamento Computacional] pois temos muitos conteúdos e trabalhos paralelos para desenvolver ...”.
As falas das professoras, no entanto, ignoram o fato de que a BNCC faz menção explícita a conteúdos do PC na área de Matemática. Neste contexto, percebe-se que as escolas ainda estão em um período de ajuste à BNCC e buscam compreender como integrar o PC às atividades curriculares.
Também é importante destacar, nos relatos registrados, evidências de sucesso do curso de formação e do trabalho dos professores. Em uma das escolas, quando foi trabalhado com os alunos o programa sobre potenciação, um estudante fez a seguinte observação: “Agora eu entendi ... tem que pegar o número de baixo e fazer multiplicação quantas vezes tem no número de cima”. Na fala do aluno, o “número de baixo” era a base e o “número de cima” era o expoente da função exponencial. Neste exemplo, percebe-se que a atividade proposta auxiliou o aluno a compreender conceitos matemáticos que não dominava anteriormente.
Outro exemplo semelhante pode ser observado no relato da professora P21: “... [os alunos] conseguiram [...] entender melhor o conceito [...]. Eles conseguiram relacionar as duas coisas e a gente nota muita facilidade neles na Matemática em função disso [sic]”.
No que diz respeito ao código de rejeição dos alunos ao PC, houve apenas uma ocorrência do código REJEA. A professora P23 comenta: “... a maior dificuldade é [...] tirar eles da zona de conforto [...] essa geração de alunos [...] estão muito mais voltados para a questão do entretenimento na computação, na informática, do que para desenvolver pensamento lógico, raciocínio lógico e pensamento computacional [sic]”. Por outro lado, a mesma professora (P23), ressalta que a atividade realizada com os alunos gerou bons resultados: “[...] no fim a gente conseguiu perceber que a maioria teve entendimento do que a gente estava fazendo e os resultados foram bem legais, bem positivos”. Neste sentido, é importante observar que a proposta de atividade colocava os alunos em uma postura ativa de construção de programas, aspecto destacado por Yadav et al. (2014) como fundamental no processo de aprendizagem relacionado ao PC.
5 CONCLUSÃO
Este artigo apresentou um estudo sobre como os professores de Matemática e Informática dos Anos Finais do ensino básico se apropriaram dos conhecimentos de um curso de formação em PC, aplicando estes conhecimentos em atividades de sala de aula. O estudo realizado mostrou como os professores estão cientes da necessidade de trabalhar com os alunos conceitos do PC, aproximando-os do mundo contemporâneo cada vez mais conectado e dependente da tecnologia. Contudo, os resultados da pesquisa deixaram também evidentes as dificuldades que esses professores enfrentam em assumir a responsabilidade de integrar os conceitos do PC nas atividades curriculares que precisam desenvolver. Tais dificuldades deixam aparentes as lacunas existentes entre a teoria e a prática. Por um lado, sabe-se da importância da formação de professores para que possam trabalhar com novos conteúdos e atividades. Por outro lado, a integração desses conteúdos em um modelo já existente exige esforço e investimento financeiro, seja na formação de professores em serviço ou na reestruturação dos cursos de graduação dos futuros professores. No contexto nacional, apesar de o PC já figurar de maneira dispersa em diferentes pontos da BNCC, tais esforços têm sido realizados apenas de maneira pontual.
No estudo realizado, participaram professores de Matemática e de Informática, os primeiros um pouco menos confortáveis com a ideia de terem de trabalhar com os conteúdos do PC, naturalmente. O sentimento de insegurança gerado nesses professores foi observado, sobretudo, por pensarem que não foram efetivamente preparados formalmente para a tarefa. Nesse sentido, observaram-se potencialidades e limitações da capacitação oferecida em modelo híbrido (presencial/a distância), para auxiliar os professores a trabalharem com o PC em suas turmas. A maior parte dos professores de Matemática, apesar de seus esforços, mostrou-se sempre relutante em assumir sozinha o desafio. Já os professores de Informática não foram tão resistentes. Mesmo assim, os melhores resultados foram alcançados nos grupos em que gerou-se uma sinergia espontânea entre os professores de Matemática e de Informática. Neste modelo de interação entre eles, os professores de Matemática se sentiram mais livres para explorar suas ideias e “amparados” por colegas com maior domínio dos conceitos do PC. Já os professores de Informática, sentiram que estavam desenvolvendo plenamente suas funções ao auxiliarem os colegas no desenvolvimento de atividades curriculares que exploravam plenamente os conceitos do PC. Como comentado anteriormente, tais resultados podem estar associados à estrutura organizacional das escolas municipais onde foram realizadas a pesquisa, escolas em que os professores de Informática são contratados para trabalhar nos laboratórios de tecnologia, sobretudo para apoiar as atividades de colegas de outras disciplinas. De qualquer modo, os resultados mostraram que este é um modelo que produziu bons resultados e pode servir de base para o desenvolvimento de ações similares em outros contextos educacionais no país.
Como limitação deste estudo, é importante ressaltar que o grupo de professores que participou da pesquisa envolveu apenas professores das áreas de Matemática e Informática. Em trabalhos futuros, professores de outras áreas também poderiam ser envolvidos, buscando identificar novas oportunidades de integração curricular do PC.