1 INTRODUÇÃO
O que é verdadeiro sobre todos os males do mundo
também é verdadeiro em relação a peste.
Ajudar os Homens a se superar
(Camus, 1990, p. 84).
O presente ensaio tem como objetivo refletir, a partir de um prisma psicossocial, a respeito dos desafios sociais impostos e agudizados pela pandemia da Covid-19, tendo em vista a possibilidade de desenvolvimento da Cultura da Paz (CP) 1 nos contextos educacionais, bem como, paralelamente, apontar possíveis caminhos reflexivos para ampliação da citada cultura, à luz do aporte psicossocial dos estudos em representações sociais2 principiados por Serge Moscovici.
Reconhecendo a complexidade que jaz no citado objetivo, este manuscrito foi estruturado em três momentos complementares. Inicialmente, são apresentadas as prerrogativas que motivam meditar sobre a CP articulada com o prisma psicossocial no contexto (Ben Alaya, 2020) da pandemia. Posteriormente, são expostos desafios educacionais agudizados pela Covid-19; e, por fim, são indicados possíveis caminhos que os estudos psicossociais em representações sociais podem seguir para o desenvolvimento da CP em uma realidade (pós) pandêmica.
2 CULTURA DA PAZ: UM OLHAR PARA O CENÁRIO PANDÊMICO
No momento em que escrevemos - janeiro de 2023 -, o cenário pandêmico mundial registrava seis milhões e oitenta e três mil óbitos pela Covid-19, dos quais seiscentos e noventa e sete mil mortos são brasileiros. Assim, mesmo com um processo de vacinação mais célere, auxiliando a diminuir o número de óbitos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda não declarou o fim da pandemia e manteve o estado de emergência global (OMS, 2023). Nesse pensamento, assinalamos que as análises que se seguem são parciais e ainda turvas em face da complexidade e da perplexidade de uma situação dessa magnitude e das consequências dos fenômenos sociais agudizados e produzidos a partir da pandemia da Covid-19.
Não obstante, julgamos pertinente contribuir para a reflexão em torno da CP no contexto da pandemia, amparando-nos em três prerrogativas complementares - de natureza social, legal e teórica - necessárias para o desenvolvimento de investigações que retratam o cenário mundial atual.
A primeira prerrogativa de natureza social parte do entendimento de que a Covid-19 foi caracterizada pela OMS como uma das pandemias mais perigosas e de difícil controle dos últimos séculos. Para além dos abalos na saúde coletiva, na economia e na política mundial, essa pandemia fomentou, como fenômeno social, o agravamento de históricas barreiras sociais para o desenvolvimento da paz3.
Conforme avaliam organismos supranacionais (ONU, 1999; World Bank, 2021), especificamente no tocante aos impactos socioculturais, verificou-se que a pandemia contribuiu para que se agravasse e se sofisticasse a constituição de um ambiente coletivo em que a lógica da sobrevivência e da busca por recursos fundamentais se sobrepusesse à frágil e desgastada lógica da solidariedade e cooperação coletiva. Nota-se que, apesar de a egolatria sempre ter se manifestado como um dos elementos socioculturais nocivos que perfilam no processo civilizatório (Elias, 1994), atualmente, tal traço foi acentuado e a delicada relação ego - alter (outro) 4 assumiu um patamar concorrencial e de competitividade, no qual o alter é representado e revestido simbolicamente como um agente social que disputa, rivaliza e batalha comigo/ou com meu agrupamento na busca ávida por recursos escassos que têm sido administrados de maneira desigual.
Nesse mesmo pensamento, para a Anistia Internacional (2021), os impactos sociais gerados pela pandemia, majoritariamente, centraram-se na violação dos direitos humanos (ONU, 1948) e fundamentais. Para essa organização, a pandemia tanto deixou transparentes as abissais desigualdades sociais quanto escancarou o silencioso vilipêndio do acesso e cumprimento dos direitos à saúde, à educação, à moradia, às condições laborais, à segurança social e, sobretudo, ao direito à vida. Nutrindo ainda mais o que os estudiosos (Souza, 2009; Chauí; Rocha, 2013) nomeiam como constituição de uma cidadania perversa, na qual há a tácita configuração de cidadãos de primeira classe - privilegiados - e de segunda classe - preteridos/sujeitados/periféricos, foram exatamente as minorias sociais o segmento social que mais teve os direitos fundamentais e humanos asfixiados (Anistia Internacional, 2021). Como criticamente reforça Chizzotti (2020, p. 218):
Tais desigualdades estavam naturalizadas pela visão do senso comum e foram tratadas como se fossem normais. Distribuição injusta das riquezas sociais e econômicas, discriminação social de grupos, falta de redes de saneamento, descontrole das queimadas de grandes florestas não podem ser vistos como normais. [...]. A pandemia modificou as atividades cotidianas, os hábitos, os modos de viver e sentir, o convívio e as interações sociais, interrompeu trabalhos e projetos de tal modo que a vida não será mais, no futuro, o que foi antes do surto epidêmico. Pelo menos para as nossas gerações (grifo nosso).
De forma ilustrativa, estritamente ao atentarmo-nos ao contexto brasileiro, averiguamos, a partir do Relatório do Índice Global da Paz, desenvolvido pelo Institute for Economics & Peace (IEP, 2020; 2021), que a instalação da pandemia contribuiu para a deterioração dos processos de pacificação em nosso país. De acordo com esse relatório, além de uma drástica redução da democracia no Brasil, em razão da diminuição da liberdade de pensamento e expressão, do emprego desmesurado das forças de segurança pública, do endividamento do Estado e do desmantelamento de tradicionais direitos sociais adquiridos, a pandemia potencializou o aumento da pobreza e a dificuldade de mobilidade social. O binômio irenista galtuniano (Galtung, 1985) paz/desenvolvimento5 econômico socialmente justo, portanto, foi se esfacelando de forma ainda mais acelerada no decurso da pandemia no Brasil.
Ademais, o referido relatório (IEP, 2020; 2021) revelou que, dos 163 países avaliados, o Brasil, que no ano de 2020 ocupava a posição de 126.º, no ano de 2021, a partir do colapso social provocado majoritariamente pela pandemia e pela frágil administração do Estado na coordenação dessa situação, passou a ocupar a posição de 128.º, ou seja, o Brasil ficou atrás de países como Azerbaijão e Belarus, que vivem conflitos políticos e tentativas de ruptura institucionais. É interessante salientar que no cômputo global a situação da paz entre os anos de 2020 e 2021 manteve-se estável, apesar de serem apontadas como fatores de risco que podem agravar o cenário internacional as sucessivas instabilidades políticas e as revoltas civis agudizadas pela pandemia.
Com base nos citados estudos (ONU, 1999; WorldBank, 2021; Anistia Internacional, 2021; IEP, 2020; 2021), é possível concluirmos que a vagarosa marcha em prol do desenvolvimento da paz, por intermédio da justiça social e do combate às violências, vem sendo refreada em face de novos obstáculos sociais que a pandemia produziu e tensionou. Nessa perspectiva, refletir sobre a promoção da CP hodiernamente tornou-se um compromisso ético-científico imperioso para buscarmos novas formas de sobrevivência digna da humanidade e primordialmente para a promoção de um futuro diferente da barbárie que acompanha nossa história social (Gros, 2009; Marcuse, 1999; Hobsbawm, 2007).
No que concerne à segunda prerrogativa de natureza legal que apoia a realização de nossa reflexão, é possível observarmos sua emergência em dois planos complementares. No plano internacional, averiguamos que, a partir dos riscos da guerra nuclear estabelecidos no curso da Guerra Fria (1945 - 1989), dos conflitos sociais processados pela descolonização do continente africano, da instalação de uma nova matriz econômica mundial - neoliberalismo (Hobsbawm, 2003; 2007), sobretudo pelo recrudescimento das Pesquisas para a Paz (Galtung, 1985), na transição do século XX para o XXI, um conjunto de organizações supranacionais (ONU, 1999; Unesco, 1981) indicou e recomendou que Estados e Nações se esforçassem em benefício do desenvolvimento de uma CP que permitisse a transformação e a justaposição à cultura beligerante (James, 1963; Žižek, 2009) que emoldura o processo de hominização e a constituição das sociedades.
Nesse pensamento, nota-se que para as organizações supranacionais o desenvolvimento da CP erguia-se como uma proposta e uma defesa de contracultura em prol da tentativa de se confeccionarem elementos simbólicos e materiais na qual os conflitos sociais fossem manejados de forma não violenta e primordialmente fosse firmado um desenvolvimento socioeconômico pautado pela justiça social, pela equidade e pelo respeito e efetivação dos direitos humanos (Santos A, 2021; Santos; Sousa, 2019). Subjacente a esse entendimento, a Educação para a Paz (EPP) e a Educação em e para os Direitos Humanos figuravam como uma das principais estratégias sublinhadas como campos/domínios que possivelmente permitiriam a difusão da CP objetivando o melhor enfrentamento das crises sociais - tal qual a provocada pela pandemia.
No tocante ao plano nacional, influenciado pelas recomendações das citadas organizações supranacionais e considerando que o Brasil é signatário de um conjunto de acordos diplomáticos em proveito do desenvolvimento e defesa dos direitos humanos (ONU, 1948), no ano de 2006, o Estado brasileiro lançou o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) como política pública que trazia em seu escopo uma especial atenção à defesa do desenvolvimento científico brasileiro a respeito da CP. Vejamos:
São princípios norteadores da educação em direitos humanos na educação básica: [como ação programática] [...] Incentivar estudos e pesquisas sobre as violações dos direitos humanos no sistema de ensino e outros temas relevantes para desenvolver uma cultura de paz e cidadania (Brasil, 2006, p. 22, grifo nosso).
Em simetria com o PNEDH, o Estado brasileiro reiterou a defesa da CP na recente inclusão6 de incisos no art. 12 na seção que aborda a organização da educação nacional na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.393, de 20 de dezembro de 1996 - LDB). Como apresenta o fragmento:
Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I - elaborar e executar sua proposta pedagógica; [...]; IX - promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática (bullying), no âmbito das escolas; X - estabelecer ações destinadas a promover a cultura de paz nas escolas (Brasil, 1996, grifo nosso).
Por sua vez, em harmonia com as defesas da CP no PNEDH e na LDB, o Estado brasileiro inseriu a CP na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), tanto como habilidade a ser desenvolvida na disciplina de História do 9.º ano do Ensino Fundamental7 quanto como uma competência específica do Ensino Religioso para todo o Ensino Fundamental8. Assim, apesar de a CP guardar o potencial de perpassar todos os eixos da BNCC como habilidade e competência a ser desenvolvida, nota-se que esse registro demonstra haver um pequeno movimento/germe irenista no pensamento da política pública educacional do Brasil.
Portanto, fica demonstrado que tanto no plano internacional (ONU, 1999a; Unesco, 1995; 1999) quanto no plano nacional (Brasil, 1996, 2006, 2017) há a cristalização de um arcabouço legal amparando e instituindo a importância da promoção da CP no âmbito científico, bem como em seu desenvolvimento, por intermédio da educação. Logo, refletir a respeito da CP, não obstante, de per si, ser basilar para o próprio desenvolvimento de uma educação cujo compromisso social é transformar de modo não violento e pacífico os sujeitos, os coletivos e o social (Freire, 2006; Santos, 2017), paralelamente, efetivar essa meditação no contexto atual é ainda mais importante, pois dada análise guarda a potencialidade de indicarmos como poderá se dar o processo de execução/implementação da CP em uma escola/educação que apresenta um conjunto complexo de fissuras sociais tensionadas pela pandemia.
Por seu turno, a última prerrogativa para a realização dessa reflexão apresenta uma natureza teórica. Em apertada síntese, destacamos os resultados de dois estudos por nós realizados (Santos, 2017, 2021) que visaram mapear as produções científicas que versavam sobre CP/EPP e os estudos em representações sociais (Moscovici, 1961/2012):
1.º Estudo: Visando estabelecer um levantamento bibliográfico de teses e as dissertações produzidas no Brasil dedicadas à articulação da CP/EPP e os estudos em representação social - no período de 2000 a 2016 e alocadas nos repositórios da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) -, constatamos a existência9 de um total de: BDTD - 39 dissertações e 15 teses; Capes - 12 dissertações e 4 teses; PUC-SP - 1 dissertação e 1 tese.
A partir da análise desse material, foi revelado um baixo número de investigações nos citados formatos científicos sobre a CP/EPP, se comparado com outros fenômenos/objetos pesquisados nas áreas de conhecimentos10 inventariados. Ademais, não foram encontrados estudos articulando a CP/EPP com a Teoria das Representações Sociais (Moscovici, 1961/2012) (TRS), indicando, consequentemente, uma carência de pesquisas que articulassem esses campos.
2.º Estudo: Analisando as tendências dos artigos científicos - produzidos durante 2008 a 2018 - por grupos de pesquisa registrados e certificados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que dispusessem de Linhas de Pesquisa em CP/EPP11, descobrimos que: havia somente 9 grupos de pesquisas brasileiros - com um montante de 37 pesquisadores - interessados no desenvolvimento de estudos sobre CP/EPP; e entre o citado período foram produzidos 213 artigos científicos.
Analisando parcela desses artigos12, foram constatados: uma preponderância de estudos de natureza teórica (70,7%) sob investigações de cunho empírico (29,2%); as disciplinas científicas da Educação Física e das Relações Internacionais firmam-se com maior predominância de produção científica sobre CP/EPP - ou seja, observa-se uma carência de estudos em CP/EPP a partir da área de conhecimento da educação disponível pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; não foram localizados estudos que adotassem o aporte teórico-metodológico da TRS, tampouco de qualquer outro aporte que oportunize um enfoque interpretativo psicossocial.
Perante esses dois estudos (Santos, 2017; 2021), é demonstrado que, embora haja um crescente movimento científico brasileiro em prol da reflexão da CP e da EPP, nota-se que na área de conhecimento da educação dada temática/campo figura ainda de maneira tímida; por seu turno, averigua-se que no contexto da academia brasileira há a existência de um vácuo investigativo que articula a CP/EPP por um prisma psicossocial. Consequentemente, concluímos que refletir acerca da CP/EPP, articulando-a com o olhar psicossocial - especificamente, da TRS - aplicado ao contexto educacional, possibilita ampliarmos a compreensão dos complexos aspectos simbólicos e materiais que transpassam os elementos sociais que compõem o fenômeno educativo13.
Dessarte, coloca-se luz sobre como os sujeitos e agrupamentos sociais avaliam, julgam, tomam posição, regulam suas condutas, desenvolvem suas práticas/discursos e, primordialmente, elaboram e reelaboram seus conhecimentos/saberes (Ben Alaya, 2020) em uma conjuntura histórica na qual o ambiente de pensamento14 foi drasticamente reestruturado pelas contingências da pandemia (Rateau; Tavani; Delouvée, 2021; Apostolidis; Santos; Kalampalikis, 2020; Páez; Pérez, 2020). De maneira paralela, entendemos que analisar o tecido social pandêmico proporciona expandir as análises psicossociais e irenistas em prol da transformação pacífica dos conflitos tensionados e agudizados nos ambientes de aprendizagem.
Portanto, tendo como base essas três prerrogativas de natureza social, legal e teórica, defendemos aqui que investigar os complexos fenômenos sociais agravados pela pandemia a partir de óticas complementares (Santos, 2017; 2021) - da Cultura da Paz e dos estudos das Representações Sociais (Moscovici, 1961/2012) - permitir-nos-á, como comunidade científica, melhor propor e estruturar possíveis estratégias de ação e intervenção nos distintos contextos educacionais afetados e modificados diferentemente pela Covid-19.
3 DESAFIOS DA PANDEMIA NO CONTEXTO ESCOLAR
Entre a série de desafios sociais impostos e decorrentes da pandemia da Covid-19 que refrataram no universo educacional, fundamentalmente destaca-se o recrudescimento das violências (Unicef, 2021; Graziano et al., 2021; Santos, 2020). Tendo como prisma interpretativo o pensamento irenista de Johan Galtung (Galtung, 1985), constatamos o tensionamento das nomeadas violências direta, estrutural e cultural15 na educação; desse modo, dialogicamente, contribui-se para que fossem reconfirmados os contextos psicossociais dos ambientes de aprendizagem, como igualmente fossem remodelados os históricos obstáculos sociais para o desenvolvimento da CP hodiernamente.
À primeira vista, no que tange às violências diretas (Galtung, 1985) notabilizadas a partir da pandemia e que impactaram diretamente o contexto escolar, é possível destacarmos o agravamento de comunidades escolares marcadas por sofrimentos psíquicos e, especialmente, transpassadas por processos de luto individuais e coletivos.
Conforme demonstra o estudo realizado durante o primeiro semestre de 2020 pela Fundação Carlos Chagas (FCC) (Villas Bôas et al., 2020) com quase 15.000 professores de todos os estados do Brasil a respeito dos impactos psicossociais da pandemia na Educação Básica, concluiu-se que na avaliação desses professores 53,8% de seus alunos tiveram aumento de ansiedade/depressão e 49,7% apresentaram uma diminuição da aprendizagem. Por sua vez, de forma simétrica, no âmbito do Ensino Superior, os estudos de Maia e Dias (2020) e Teodoro et al. (2021) revelam que os estudantes universitários brasileiros desenvolveram no curso do primeiro ano da pandemia depressão, ansiedade, pânico e estresse.
Por outro lado, no que diz respeito à qualidade da saúde mental dos profissionais da educação - em especial dos professores -, denota-se que, em razão dos abalos da pandemia na educação formal, atualmente esses profissionais encontram-se expostos a novos estressores (Rafiq, 2021; Wang; Wang, 2020). Com esse pensamento, as doenças mentais que recorrentemente já acometiam profissionais da educação, como transtorno afetivo bipolar, transtorno depressivo leve, transtorno de adaptação, síndrome de Burnout ou síndrome do esgotamento profissional e ansiedade generalizada, assumiram um novo patamar de nocividade, uma vez que essas enfermidades passaram a ser manifestadas e emolduradas por um novo esteio social de angústias - por exemplo: de ser contaminado - e de compreensões turvas a respeito das expectativas individuais e coletivas (Silva et al., 2020).
Isso posto, esses estudos sugestionam que a pandemia, além de reconfigurar em grande medida a escola, o trabalho docente e principalmente a produção dos saberes/conhecimentos, impactou de forma negativa a vida dos estudantes, como igualmente dos profissionais da educação (Pachiega; Milani, 2020). Logo, fora agudizada e alastrada uma faceta da violência direta, a qual a educação até outrora não havia presenciado de forma tão vigorosa e vertiginosa na comunidade escolar.
Por seu turno, agravando essa faceta da violência direta, conforme a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura - FAO (Graziano et al., 2021), a pandemia, ao provocar o fechamento temporário das escolas, especificamente contribuiu para que na América Latina e Caribe fossem interrompidos programas de alimentação escolar que beneficiavam mais de 85 milhões de crianças - desse universo, dada organização estima que 10 milhões de crianças têm somente a merenda escolar como a principal fonte diária de nutrição. Consequentemente, alerta a organização, as populações mais pobres acabam sendo o nicho social que mais tem padecido não só pela pandemia per se, mas também pela fome e pelo não acesso a alimentos nutricionais por ela potencializado (Graziano et al., 2021).
Portanto, apesar de a FAO (Graziano et al., 2021) reconhecer que a desnutrição infantil e a crônica crise de distribuição alimentar não igualitária são problemáticas sociais históricas nos países em desenvolvimento, o que se materializa de forma subjacente nesse alerta é a compreensão de que o fechamento temporário das escolas interrompeu, cerceou ou mesmo dificultou que determinados estudantes tivessem acesso por intermédio do aparelho escolar à possibilidade de ter um dos direitos fundamentais - alimentação (Ferraz; Leite, 2011) - assegurado, ainda que de forma incipiente, pelo Estado.
Por sua vez, no que diz respeito às violências estruturais (Galtung, 1985) escancaradas a partir da instalação da pandemia no contexto escolar, de forma patente nota-se a fissura/fenda no desenvolvimento da aprendizagem que os estudantes sofreram em razão do fechamento temporário das escolas.
Conforme investigação da Unesco (2021), um ano após o início da pandemia, aproximadamente mais de 800 milhões de estudantes ainda sofriam interrupções significativas em sua educação. A organização calculava que no âmbito mundial as escolas estiveram totalmente fechadas em média 3,5 meses (14 semanas); não obstante, esse número varia ao contrastarmos o caso dos países latino-americanos e caribenhos que apresentaram uma média de até 5 meses (20 semanas) com escolas completamente fechadas16, com os países europeus - 2,5 meses (10 semanas) - e da Oceania - apenas 1 mês (Unesco, 2021). Em outras palavras, esses dados explicitam de forma cabotina que novamente os estudantes de países em desenvolvimento foram os mais comprometidos em seu desenvolvimento educacional no citado período.
Interligado a essa conjuntura macro, no âmbito brasileiro, o estudo da Unicef (2021) expôs que no decurso do ano de 2020 a exceção eram as crianças e os adolescentes brasileiros que estavam ainda frequentando a escola. O estudo revelou que, se no ano de 2019, quase 1,1 milhão de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória já se encontravam fora da escola, até novembro de 2020 estimava-se que mais de 5 milhões entre 6 a 17 anos não tinham acesso à educação no Brasil. Logo, a pandemia contribui vertiginosamente para mostrar de forma patente as mazelas do difícil acesso, permanência e desigualdade social que os estudantes brasileiros enfrentam para terem efetivado o direito à educação/aprendizagem formal.
Complementando esse pensamento, pode-se salientar que no contexto brasileiro essa perversa exclusão educacional tem cor, classe, sexo e território (Unicef, 2021).
Combinando as variáveis cor e classe social, esse estudo da Unicef (2021) revelou que os estudantes negros, indígenas e pardos, oriundos de famílias com renda per capita de até meio salário mínimo (61,9%), constituem-se como um estrato social que mais padeceu com o impacto direto ou indireto da pandemia. Por sua vez, no que tange ao sexo, se comparados os motivos pelos quais meninas e meninos brasileiros sublinharam o fato de a pandemia ter atrapalhado seus estudos, constata-se que as meninas indicaram ter menos tempo de estudo - ou mesmo abandonaram a escola - em virtude de terem que cuidar dos afazeres domésticos, idosos, pessoas com deficiência ou mesmo por estarem grávidas (Unicef, 2021). Em outras palavras, o toque da pandemia na população estudantil do sexo feminino foi mais agravado, possivelmente em face da refração de um esteio histórico-social sedimentado de forma simbólica pelo machismo e pelo patriarcalismo.
Por seu turno, ainda com relação ao referido estudo, no que diz respeito ao território, foi averiguado que, comparando-se as regiões do Brasil, nota-se que os estudantes residentes nas regiões Norte e Nordeste foram os que encontraram maior dificuldade de acesso à educação no período da pandemia. Ademais, comparando-se a população estudantil brasileira que habita em áreas rurais e urbanas, concluiu-se que os estudantes oriundos de áreas rurais - principalmente os das regiões Centro Oeste e Sul - foram os que apresentaram maior dificuldade de permanência e acesso à educação formal durante a pandemia (Unicef, 2021). De outro modo, a pandemia contribuiu significativamente para que a população estudantil rural, que historicamente foi e é marginalizada e invisibilizada pelo poder público, tivesse não um fracasso escolar, mas diretamente sofresse a piora de um processo sociocultural de fracasso escolar (Charlot, 2000), no qual uma estrutura social destitui deles o reconhecimento (Honneth, 2003) e, especialmente, não oferta condições materiais concretas para o desenvolvimento de qualidade de sua educação.
Mediante o estudo da Unicef (2021), podemos concluir que não é correto apontar que os impactos sociais da pandemia na educação brasileira sejam resultantes de uma crise nova, um fato isolado ou uma ocorrência social casuística, mas, sobretudo, que, à medida que a pandemia se instalou em um contexto político-social que historicamente foi e é emoldurado segundo o privilégio de alguns em detrimento do sofrimento de muitos, a pandemia como fenômeno social permitiu visualizar de forma patente uma cotidianidade estruturalmente violenta, perversa e excludente, a qual os estudantes brasileiros enfrentam amiúde na busca de terem o direito à aprendizagem (Ponce et al., 2020). Como interpretam Chauí e Rocha (2013, p. 267) ao salientarem como o poder público e a elite dominante brasileira tortamente representam e minimizam as crises sociais:
Esse horror à realidade das contradições se expressa no modo como a classe dominante brasileira elabora as situações de crise. Uma crise nunca é entendida como resultado de contradições latentes que se tornaram manifestas pelo processo histórico e que precisam ser trabalhadas social e politicamente. A crise é sempre convertida no fantasma da crise, interrupção inexplicável e repentina de irracionalidade ameaçando a ordem social e política. Caos. Perigo.
Por fim, no tocante às violências culturais (Galtung, 1985) patentemente potencializadas a partir da pandemia no contexto escolar, nomeadamente há de sublinhar o agravamento do tortuoso processo de inclusão17 escolar das crianças e jovens no período da pandemia.
Tendo em vista o fechamento temporário das escolas, constata-se que uma das principais estratégias emergenciais pedagógicas empregadas fora o ensino remoto, constituindo-se como uma das primeiras soluções à continuidade da educação das crianças e jovens. Entretanto, como lembram Almeida (2020) e Gatti, Santos e Alves (2020), dada ‘solução’/estratégia confrontava-se em dados países - majoritariamente países em desenvolvimento - com uma malha escolar e populacional não incluída digitalmente e sobretudo sem acesso à internet de qualidade, celular, tablet, rádio e televisão.
Especificamente atentando-nos ao caso brasileiro, apesar de 88,3% das crianças e jovens em idade escolar terem acesso à internet no começo da pandemia, aproximadamente 4,3 milhões de estudantes ainda não tinham acesso à internet, e desse universo 4,1 milhões estudavam em instituições de ensino público (IBGE, 2020). Aclarando essa realidade, entre os motivos apontados por esses estudantes da rede pública para não acessarem a internet, 26,1 % sublinharam que o serviço de internet é caro; 19,3% apontam que os equipamentos eletrônicos necessários são caros; 18,5% têm falta de interesse; 16% não sabem usar a internet; 11,2% indicam que serviço de acesso à internet é indisponível em sua localidade; e 8,9% outro motivo (IBGE, 2020).
Compondo esse cenário e demonstrando novamente as fragilidades do Estado brasileiro no cumprimento do direito à aprendizagem/educação, no decurso da pandemia e da instalação do nomeado ‘ensino emergencial’, após o Legislativo debater, aprovar e encaminhar o Projeto de Lei (PL) 3.477, de 2020 - que obrigava o Governo Federal garantir acesso à internet, com fins educacionais, aos alunos e professores da educação básica pública -, para sanção presidencial, o Executivo vetou integralmente dada proposta em virtude de entender que ela ameaçava o equilíbrio fiscal da União.
Seguidamente, impondo uma derrota ao Executivo, o Congresso Nacional rejeitou o citado veto e, como resposta, o Executivo recorreu ao Judiciário contra tal ato. Não obtendo, contudo, sucesso em sua empreitada, compelido tanto pelo Legislativo, Judiciário e pela opinião pública, o Executivo sancionou e publicou o referido PL, convertido na Lei 14.172, de 10 de junho de 202118. Não obstante, tempos depois, ainda contrariado com a norma recém-editada, o Executivo ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.926, argumentando que a referida lei afrontava o processo legislativo, uma vez que feriria as condicionantes fiscais para a aprovação de ações governamentais durante a pandemia e exorbitava o teto de gastos estabelecido pela Emenda Constitucional 95, de 2016. Logo, o Executivo conseguiu como êxito a prorrogação do prazo para encaminhar os valores estabelecidos na Lei aos Estados e Municípios, bem como atrasar a regulamentação desses recursos no conselho gestor do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) do Ministério das Comunicações.
Diante dessa ocorrência, verifica-se de modo ilustrativo que, embora determinados poderes do Estado brasileiro tentassem destinar recursos em benefício da inclusão digital e universalização do acesso à internet nas escolas públicas - especialmente em virtude da pandemia -, nota-se que houve um movimento oscilante e sofisticado do Executivo em tentar dificultar/refrear/embarreirar dada pauta.
Nesse pensamento, em concordância com o olhar psicossocial de Sawaia (2001) e Freitas (2020), observa-se que essa postura do Estado brasileiro tem auxiliado que a escola pública venha se constituindo como uma instituição caracterizada sob a sombra da inclusão perversa dos estudantes no contexto do ensino emergencial. Portanto, ao mesmo tempo que o Estado ressalta que as escolas devem promover a inclusão digital dos estudantes, igualmente reconhece que o acesso à internet é uma das principais ferramentas pedagógicas que, seja no contexto pandêmico ou não, representa também um pré-requisito fundamental para o desenvolvimento do ensino remoto ou do uso de tecnologias educacionais. De forma contraditória, esse mesmo Estado e essa escola pública, historicamente vilipendiada, deixam de ofertar condições materiais e simbólicas para o desenvolvimento integral das potencialidades dos estudantes. Como sintetiza Freitas (2020, p. 324):
A crueldade da má-fé institucional está em garantir a permanência da ralé na escola, sem isso significar, contudo, sua inclusão efetiva no mundo escolar, pois sua condição social e a própria instituição impedem a construção de uma relação afetiva positiva com o conhecimento. [...] A violência simbólica engendrada pela má-fé institucional tornou inviável as chances de sucesso [...].
Por outro lado, produto dessa má-fé institucional, de maneira sorrateira é nutrido na sociedade um discurso público embebido por representações autoritárias, classistas e elitistas, que, em vez de denunciar as ações do Estado e cobrar o direito à educação e à aprendizagem de qualidade aos estudantes de escola pública, culpabiliza os pais/responsáveis por eles supostamente não assistirem/cuidarem ‘corretamente’ de suas crianças/jovens (Pereira; Guareschi, 2014). Logo, é constituído de modo tácito um ambiente de pensamento (Moscovici, 2010) segundo o qual crenças, valores e normas alinham-se de modo a urdir uma violência cultural, a qual não se questiona ou pouco se coloca no debate público o não cumprimento do direito à aprendizagem desses estudantes propriamente dita, como se eclipsa dado debate a partir da naturalização de um entendimento coletivo de que o ensino e a aprendizagem das crianças e jovens são estritamente de responsabilidade dos pais/responsáveis, e não também da sociedade e do Estado.
Dessa forma, é vagarosamente fiado um tecido social no qual a responsabilidade se transmuta em culpabilização e violência simbólica direcionadas às camadas populacionais em vulnerabilidade social em virtude de que tanto no âmbito pessoal quanto no grupal é mais palatável e confortável culpar/apontar o Outro como agente social responsável pelo fracasso escolar de uma gama de estudantes do que reconhecer que a falência da estrutura social é de coautoria/corresponsabilidade de uma coletividade ancorada no autoritarismo, na cólera e no privilégio de um estamento/classe social sobre outro (Dardot; Laval, 2016; Sodré, 2021).
Perante esses desafios agudizados e impostos pela pandemia da Covid-19 para o desenvolvimento da CP no contexto escolar, de modo simplificado, o que chama a atenção é que, embora o fenômeno da violência - da barbárie (Adorno, 2000; Wieviorka, 2006) - tenha sempre perfilado no âmbito escolar e nas sociedades como um todo, a partir da pandemia, as noções, as ideias, os conhecimentos sociais, as crenças, os valores, as normas e as representações sociais dos agentes sociais potencialmente começaram a ser desenvolvidos em contextos sociais (Ben Alaya, 2020), modulados por um ambiente de pensamento (Moscovici, 2010) proeminentemente enraizado em uma malha cultural, política, econômica e social de sujeitos violentados. Logo, em concordância com Santos (2020) e Krenak (2019), a possibilidade de desenvolvimento de uma CP e da própria construção processual da paz apoiada na igualdade de oportunidades e na justiça social torna-se cada vez mais remota, distanciada e desesperançada coletivamente.
4 CAMINHOS PARA O DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL DA CULTURA PARA PAZ NO (PÓS) PANDEMIA
Tendo ciência da complexidade dos citados desafios sociais que dificultam a constituição de contextos escolares inscritos e circunscritos pela CP, é fundamental sublinharmos que os apontamentos que se seguem a respeito de alguns caminhos para o desenvolvimento psicossocial da CP no contexto escolar pandêmico e pós-pandêmico não são receituários reflexivos, mas, sim, meditações parciais e fragmentadas que objetivam expor a potencialidade das contribuições dos estudos em representações sociais no desenvolvimento processual da referida cultura diante das contingências sociais tensionadas e impostas pela pandemia.
A primeira contribuição que os estudos em representações sociais demonstram está na análise e mapeamento dos elementos psicossociais que compõem o nomeado pensamento social. Partindo do entendimento de que, da mesma maneira que as sociedades são constituídas por sistemas econômicos, políticos e culturais, Moscovici (1988) orienta que é fundamental que os cientistas sociais tenham atenção aos sistemas de pensamentos que urdem os agrupamentos sociais; nessa perspectiva, sinteticamente, os pensamentos sociais têm sido investigados nas pesquisas em representações sociais como uma atmosfera simbólica desenvolvida historicamente por conhecimentos, saberes, imaginários, costumes, crenças, valores, representações, ideologias e normas que dinamicamente são realinhados cotidianamente pelos sujeitos/agrupamentos, em prol de orientar suas condutas, práticas e ações sociais e, especialmente, inteligibilidade do real e se relacionar com o outro (Marková, 2006, 2017).
Com esse raciocínio, de modo inicial, advogamos que a primeira grande contribuição dos estudos em representações sociais para o desenvolvimento da CP no âmbito escolar centra-se na possibilidade reflexiva de serem investigadas as novas contradições do pensamento social instaladas e confeccionadas a partir da conjuntura pandêmica, em benefício de serem avaliadas e sistematizadas novas estratégias individuais e coletivas de intervenção e modificação de uma realidade material e simbólica que historicamente naturalizou a barbárie e as violências (Santos; Sousa, 2018). Desse modo, pode ser lançada luz sobre os complexos conteúdos representacionais inscritos e escritores de nosso processo civilizacional e cultural (Elias, 1994).
Nessa lógica, deve-se registrar que, à medida que a pandemia se ergue como uma crise sanitária com reflexos sociais de proporções ainda incalculáveis, há de entender que desenvolver a CP tendo como preceito a análise psicossocial dos elementos que compõem o pensamento social apresenta-se em nosso momento histórico como uma oportunidade/empreitada teórica e social singular e vital para tentarmos propor outros balizadores culturais que não os historicamente apoiados na barbárie, no embrutecimento do ser e na naturalização das violências (Adorno, 2000; Wieviorka, 2006; Santos, 2020; Krenak, 2019), pois em tempos de crise e de insurreição que especialmente as representações sociais são reveladas, porquanto:
As pessoas estão, então mais dispostas a falar, as imagens e expressões são mais espontâneas. Os indivíduos são motivados por seu desejo de entender um mundo cada vez mais não familiar e perturbador. As representações sociais se mostram transparentes, pois as divisões e barreiras entre mundos privado e público se tornaram confusas (Moscovici, 2010, p. 91).
Nessa linha de pensamento, ao defendermos que um dos caminhos para o desenvolvimento psicossocial da CP no contexto escolar é a análise dos pensamentos sociais, simultaneamente compreendemos que dada meditação oportuniza identificarmos e analisarmos traços contraditórios de um pensamento social nos quais os processos representacionais de objetivação - seleção da informação, esquematização figurativa (imagem) e naturalização - e de ancoragem - nomeação e categorização -, que auxiliam tanto na inteligibilidade dos objetos sociais quanto na construção em si do real (Jodelet, 2017), tornam-se cada dia mais processos litigiosos - Kulturkampf (Moscovici, 1961/2012) -, nos quais são disputados interpretações, discursos, narrativas e legitimações entre os diversos segmentos sociais (Páez; Pérez, 2020).
Dessarte, apesar de reconhecermos que estudar o pensamento social pressupõe refletir sobre os conflitos que o inscrevem (Moscovici, 2010), nota-se que investigar hodiernamente o pensamento social visando extrair dele dados para o desenvolvimento da CP no universo escolar especialmente abriga a capacidade de colocarmos em relevo as contradições/tensões e os conflitos que sorrateiramente modulam as sociedades, como igualmente podemos melhor compreender como dados conhecimentos - principalmente o senso comum e o científico - passam a ser difundidos, propagados, propagandeados, aceitos, valorizados e internalizados no âmbito coletivo e assumem uma vitalidade e plasticidade, os quais podem ser intercambiados drasticamente por esse mesmo coletivo a fim de acomodar e assimilar essa nova realidade que a pandemia impôs (Moscovici, 1961/2012).
Em outras palavras, ao salientarmos que um dos caminhos para o desenvolvimento psicossocial da CP no âmbito escolar pandêmico e pós-pandêmico perpassa a análise do pensamento social, sinalizamos que é por intermédio de uma melhor inteligibilidade das contradições que perfazem o pensamento social que possivelmente poderemos melhor escrutinar os processos representacionais, “perceptivos e imaginários do Sujeito, às forças sociais e os conteúdos culturais subjacentes [...], bem como à função mediadora entre indivíduo e sociedade” (Santos, 2005, p. 124), em vista de efetivar criticamente uma anamnese desse mal-estar social e apresentar ações e intervenções em benefício da elaboração processual da CP em harmonia com o diapasão do pensamento social vigente, acompanhado de suas tensões, conflitos e idiossincrasias.
Por outro lado, a segunda contribuição que as pesquisas em representações sociais podem propiciar ao desenvolvimento psicossocial da CP no contexto escolar centra-se na análise do social. De acordo com estudiosos (Marková, 2006; 2017; Guareschi; Roso, 2014), o olhar da TRS ergue-se a partir da década de 1960 no âmbito da Psicologia Social francesa como uma teoria que resgata o social no âmbito dessa disciplina, uma vez que fora estabelecido um giro ontológico no qual o ‘ser’ deixou de ser concebido de ‘forma isolada’ - indivíduo -, determinado por elementos externos e, especialmente, não é analisado de forma binária/dual - tal como defendiam os behavioristas e cognitivistas nesse tempo -, e passou a ser fiado um sujeito social (ego) compreendido em estreita relação dialógica/interação com o alter (outros), os objetos sociais e situado em um contexto vivo.
Com esse raciocínio, ao tempo que os estudos em representações sociais sublinham que o social é evidenciado pela interação ego -alter-objeto e contextos, simultaneamente é indicado que esse social é complexo, dinâmico, contraditório, histórico e marcado por relações de poder, dominação, afetos e projeções (Pombo-de-Barros; Arruda, 2010). Com essa leitura, observa-se que é nessa circunscrição social que ego e alter gozam da potencialidade de estabelecerem encontros, diálogos, reconhecerem-se (Marková, 2017; Honneth, 2003) e fundamentalmente desenvolverem consciências críticas germinadoras de ações criativas e inovadoras - nas esferas material e simbólica de justaposição às normas e valores sociais excludentes, perversos, alienantes, autoritários e que sufragam silenciosamente as condições de emancipação dos sujeitos/coletivos (Moscovici, 2011b).
Diante dessa compreensão do social nos estudos em representações sociais, precipuamente indicamos que o desenvolvimento psicossocial da CP no contexto escolar pandêmico e pós-pandemia pressupõe como caminho um olhar acurado às relações/interações sociais em vista de se promover o diálogo entre os diferentes. Com esse entendimento, influenciados pelos estudos do multiculturalismo (McLaren, 1998; Candau, 2008; Torres, 2001), há de salientar que as relações culturais não são relações românticas ou idílicas, no entanto são compostas por questões atinentes à disputa de poder, dominação, preconceito, discriminação e segregação. Consequentemente, a CP aqui apregoada recusa-se a aceitar a cultura como não conflitiva, mas, sim, que ‘é no’ e ‘por intermédio’ da dinâmica cultural que tanto a ‘consciência crítica’ e o ‘esclarecimento’ (Adorno, 2000) podem ser desenvolvidos e o ‘diálogo com as diferenças’ pode manifestar-se colorindo a vida, insuflando formas de resistências e afirmação (Hooks, 2013) no âmbito de uma reflexão ético-política comprometida com a justiça social. Como lembra Freire (1996, p. 60):
É nesse sentido [...] que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos.
Nessa lógica, estabelecer um olhar psicossocial fundamentado nos estudos em representações sociais, colocando em relevo esse social abruptamente modificado pela pandemia, traz como oportunidade a possibilidade de desenvolvermos interpretações críticas hábeis para melhor construir espaços sociais de dissidência (Moscovici, 2011a), reconhecer a voz e escutar populações e pautas historicamente vilipendiadas/silenciadas (Moscovici, 2010) e fomentar, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, o fortalecimento de táticas e estratégias (Certeau, 1999) de contraposição não violentas a uma cotidianidade circunscrita pela barbárie (Galtung, 1985). Portanto, ter a TRS como subsídio para investigar o social firma-se como uma chave de leitura relevante para sua transformação, ao passo que é nesse processo investigativo que podemos meditar sobre os conflitos e tensões sociais em prol de fornecer bases para o diálogo entre ego-alter (Abdalla; Villas Bôas, 2018).
Por fim, a terceira contribuição que os estudos em representações sociais podem fornecer ao desenvolvimento psicossocial da CP no contexto escolar está na análise das experiências desenvolvidas pelos sujeitos/agrupamentos em um contexto de contingências pandêmicas. Reconhecendo a pluralidade de entendimentos em torno das noções de experiência (Villas Bôas, 2017; Larrosa, 2002), resumidamente a análise psicossocial moscoviciana concebe a experiência como a situação que transpassa e toca o sujeito/agrupamento social, realinhando radicalmente seu existir.
Complementando essa concepção, Jodelet (2017) indica que a experiência de análise no bojo dos estudos das representações sociais pressupõe um olhar acurado sobre o vivido,19 pois é por intermédio desse processo analítico que se possibilita melhor escrutinar as dimensões afetivas20 e cognitivas21 que orientam tanto a contínua construção e modificação das identidades dos sujeitos/agrupamentos quanto os processos de alteridade. Logo, para a autora atentar-se para a experiência é fundamental colocar em relevo as subjetividades e a relação ego-alter situada em um contexto que dialogicamente o afeta e é afetado por dada relação/interação. Como didaticamente sublinha Silva (2011, p. 29):
A reunião de experiência e subjetividade permite, de um lado, conferir à noção de experiência uma dimensão maior do que a relação objetiva com o mundo: experiência significa aquilo que se é, e não apenas aquilo que se faz. Por outro lado, a associação de subjetividade com experiência nos leva a considerar o caráter dinâmico da noção de sujeito: não se trata de uma entidade metafísica, formal ou mesmo psicológica, mas do modo de ser da realidade humana considerada como existência (grifos do autor).
Em face dessa compreensão de experiência, apontamos que o desenvolvimento psicossocial da CP no contexto escolar pós-pandemia implica ter como caminho reflexivo tomar em atenção os saberes e os conhecimentos partilhados coletivamente que subsidiam o desenvolvimento de experiências pela comunidade escolar a partir dessa situação radical que foi e tem sido a pandemia. A partir de Santos (2020), embora o coronavírus tenha se manifestado de forma diferente para os estamentos/classes sociais, bem como as respostas institucionais a ele foram diversificadas, de maneira comum a Covid-19 exerceu o papel pedagógico de produzir experiências coletivas em um ambiente de pensamento (Moscovici, 2010) inscrito pela sensação da fragilidade humana, diante da possibilidade de nosso extermínio, pelo declive da crença do sistema capitalista em responder prontamente a crises sociais globais e, fundamentalmente, pela tessitura de uma realidade atravessada pelo desrespeito à pessoa humana. Portanto, desenvolver atualmente a CP perpassa pela ação crítico-investigativa de ter a certeza de que, para além da comunidade escolar, as sociedades como um todo desenvolveram sob a sombra da morte, da finitude prematura, do luto, do desamparo, dos ritos fúnebres, dos projetos realinhados, do amargor sublimatório, do trauma e de violências (Birman, 2021), um conjunto de experiências profundamente delicadas que de forma silenciosa reorientaram e têm orientado o modo de vivermos, de convivermos como outros - humanos e não humanos - e de o sujeito existir no mundo.
Com esse pensamento, advogamos que atualmente desenvolver a CP no universo escolar, tendo como base o aporte psicossocial da TRS, invariavelmente passa por ter como caminho analítico as experiências vividas - positivas e negativas - que floresceram durante o período pandêmico.
Em alinhavo, cabe às escolas acolher e escutar de maneira sensível suas comunidades e realinhar democraticamente seus currículos para que estes estejam em consonância com essa nova realidade social (Casali, 2020; Almeida, 2020), e essa complexa teia simbólica que remonta às contradições do pensamento social, às novas relações sociais e às experiências vividas produzidas pela pandemia. Desse modo, frisamos que o desenvolvimento psicossocial da Cultura da Paz nas escolas hoje passa pela construção de currículos escolares que reconheçam os sujeitos/agrupamento, as subjetividades e primordialmente os contextos sociais (Ben Alaya, 2020) de elaboração e reelaboração das representações sociais e práticas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao meditarmos por intermédio da óptica psicossocial dos estudos em representações sociais (Moscovici, 1961/2012) acerca dos desafios sociais impostos e tensionados pela pandemia da Covid-19 em benefício de aventarmos pontos teóricos para o desenvolvimento da CP no contexto escolar atual, este ensaio defendeu que, apesar de reconhecermos a complexidade das violências (Galtung, 1985) que assolam tanto as escolas como as sociedades, é primordial para contrapormo-nos à Cultura da Barbárie (Adorno, 2000; Elias, 1994) e processualmente desenvolvermos a CP (Guimarães, 2008) meditarmos a respeito das relações sociais e intervirmos no real, tendo como entendimento que o sujeito é um ser histórico de potência, de afetos, de contradição (Jodelet, 2009), de estreita relação com os outros e com os contextos (Marková, 2006; 2017), e que a formação e o aperfeiçoamento de sua consciência crítica requerem uma empreitada educacional pacifista.
Para além dessa defesa, especificamente atendo-nos ao caso brasileiro, há de anotar que atualmente apresentar proposições em prol do desenvolvimento psicossocial da CP no âmbito escolar apresenta-se como uma tarefa caudalosa, haja vista que o contexto pandêmico, ao tempo que abriu fissuras sociais, intensificou históricas contradições, desigualdades, conflitos e tensões perfilados tanto no âmbito simbólico quanto no material/concreto. Logo, levando em consideração as condições materiais e simbólicas que a pandemia produziu ou mesmo complementou na sociedade brasileira, entendemos, em harmonia com estudiosas (Baltieri; Sousa; Gonçalves, 2020; Sousa; Rocha, 2021), que propor quaisquer apontamentos para o desenvolvimento da citada cultura passa pela ação crítica de reconhecermos que, se antes da pandemia da Covid-19 os direitos sociais da comunidade escolar - especialmente, dos alunos e professores - já vinham sendo vagarosamente aviltados (Ponce et al., 2020), durante essa pandemia a dilapidação dos direitos sociais deu-se de forma acelerada e sob o manto de uma égide estatal autoritária (Santos, 2020; Gatti; Shaw; Pereira, 2021).
Em outras palavras, meditar hoje em benefício da promoção da CP no âmbito escolar brasileiro perpassa por ter ciência de que o Estado tem colocado em marcha um silencioso processo político que desampara a comunidade escolar. Assim, de modo sofisticado, aproveitando-se que a pandemia produziu um cenário de excepcionalidade nas sociedades, esse Estado, ao tempo que deixou de efetivar direitos sociais, sorrateiramente vem destituindo/desregulamentando direitos adquiridos a duras penas (Dowbor, 2017; Dardot; Laval, 2016) e primordialmente vem atuando de forma não sensível (Levinas, 2010) e prevaricando com relação ao reconhecimento (Honneth, 2003) do outro - em destaque das minorias sociais e das classes populares. Logo, há de ter a lucidez de que, para melhor propor a CP em um tecido escolar esgarçado por violências históricas e agudizadas pela pandemia, pressupomos desenvolver um olhar acurado nas complexas contradições que inscrevem o poroso pensamento social - tal como os estudos em representações sociais vêm se interessando nos últimos sessenta anos.
Paralelamente, embora compreendamos a tortuosa tarefa de elaboração processual da CP no universo educacional e não educacional, advogamos que a TRS (Moscovici, 1961/2012) aplicada à educação guarda a potencialidade teórico-metodológica de produzir insumos para que a comunidade escolar possa reinventar suas práticas, preponderantemente, tendo como pilares: o compromisso da humanização (Freire, 1996); o desenvolver de uma ética apoiada na responsabilidade com o outro (Levinas, 1993); e ser focada na transformação social e na construção de um mundo com justiça social por intermédio do diálogo (Marková, 2017). Portanto, apesar de entendermos que a pandemia da Covid-19 tenha intensificado um conjunto de barreiras para promoção da paz, interpretamos que tal momento firma-se como uma oportunidade histórica de redirecionar nosso processo civilizacional (Elias, 1994; Santos, 2020) em prol da reconstrução do mundo.