INTRODUÇÃO
As concepções sobre pessoas com deficiência (PCD) modificam-se de acordo com os valores sociais, morais, filosóficos, éticos e religiosos adotados pelas diferentes culturas, em distintos momentos históricos1. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em torno de 15% da população global e pelo menos 10% das crianças no mundo nascem com algum tipo de deficiência física, mental ou sensorial, ou o adquirem, com repercussão negativa no seu desenvolvimento2),(3.
No Brasil, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 estimou em 17,3 milhões o número de PCD, representando 8,4% da população. Destas, 1,5% era crianças de 2 a 9 anos, e 3,3% eram adolescentes de 10 a 17 anos. Entre as grandes regiões brasileiras, o percentual na Região Nordeste foi o maior, correspondendo a 9,9% da população, com todas as suas unidades federativas apresentando percentual acima da média nacional4)-(6.
Problemas na atenção às necessidades de saúde desse público ou população/segmento populacional são observados em praticamente todo o mundo e indicam falhas na atenção e no cuidado de qualidade, na garantia da segurança, na eficácia, na espera, na eficiência e na equidade7.
Nesse cenário, a Europa lançou para o decênio 2010-2020 o documento Estratégia europeia para a deficiência 2010-2020, que busca promover, na formação médica e nos currículos da saúde, uma conscientização sobre a PCD8. Com essa abertura em 2021, a Comissão Europeia lançou a Estratégia sobre os direitos das pessoas com deficiência 2021-2030, documento que se sustenta em três grandes pilares: cidadania, direito à vida digna e vida independente, e eliminação da discriminação9.
O arcabouço jurídico brasileiro reconhece a saúde como direito de todos e dever do Estado10, sendo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) enfático ao indicar a necessidade de atendimento especializado para essa parcela da população. Está bem estabelecido que é incumbência do poder público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem todos os recursos relativos ao tratamento ou à reabilitação, sem qualquer exclusão11.
A Lei Brasileira da Inclusão de 2015 veio reforçar a necessária atenção integral à saúde para todos os cidadãos, além de uma assistência específica com atendimentos e serviços dedicados às crianças e aos adolescentes com deficiência. Essa lei, com base na concepção do direito e da diversidade humana, visa ao desenvolvimento das potencialidades da PCD7, superando o paradigma da caridade e do assistencialismo12.
Em 2002, a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência já previa como prioritária e urgente a capacitação de recursos humanos em saúde para o cuidado destinado a esse público e, assim, sinaliza para o desenvolvimento de ações conjuntas com o Ministério da Educação (MEC) e as instituições de ensino superior (IES)13),(14.
Fundamentada na ideia de autonomia do saber, a universidade tem a sociedade como seu princípio e sua referência de valor15, devendo comprometer-se com a relevância acadêmico-científica e social, e, assim, buscar solução para os problemas dessa sociedade16. Dessa forma, deve o ensino superior garantir em seus currículos uma formação voltada para a atuação efetiva, responsável, ética e direcionada ao contexto social17),(18. Entretanto, apesar de compor um dos subgrupos maiores e de mais rápido crescimento, as questões referentes à deficiência e à reabilitação não estão bem contempladas na maioria dos currículos das escolas médicas19.
Além da incorporação de disciplinas e conteúdo de reabilitação e atenção à saúde das PCD nos currículos de graduação na área da saúde, é também importante sensibilizar e comprometer professores e gestores das escolas médicas, assim como o MEC e o Ministério da Saúde, contribuindo para a qualidade do cuidado prestado20.
O cenário educacional brasileiro vivencia significativas reformas organizacionais, curriculares e no processo de ensino-aprendizagem, buscando uma formação generalista, humanista e crítico-reflexiva que contemple, além das dimensões técnicas do trabalho, as dimensões políticas e éticas21.
Nesse contexto, destaca-se a importância da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) como tema a ser incluído nos currículos de ciências da saúde, uma vez que ela traz em seu arcabouço as diretrizes do modelo biopsicossocial, buscando estabelecer linguagem, percepção e produção de cuidado integral, centrado na universalidade do conhecimento e na equidade do cuidado22),(23.
Entretanto, poucos estudos analisam o ensino sobre PCD na formação médica, seja do ponto de vista quantitativo, seja em relação às políticas e concepções abordadas. Dada a dimensão social da deficiência, a forma como é conceituada e vivida, bem como sua prevalência dos estados da Região Nordeste, justifica-se a realização desta pesquisa, com o objetivo de descrever a abordagem e as concepções sobre crianças e adolescentes com deficiência nos cursos de Medicina de universidades federais do Nordeste brasileiro.
MÉTODO
Tipo de estudo
Trata-se de estudo exploratório, transversal e de abordagem qualitativa que incluiu análise documental e entrevistas.
Cenário da pesquisa
O Nordeste brasileiro concentra 86 cursos de Medicina, dos quais 37 são públicos, e, destes, 23 são de instituições federais, segundo o cadastro do e-MEC, base de dados oficial sobre as IES e cursos de graduação do Sistema Federal de Ensino do Brasil24. Foram selecionadas as escolas de Medicina das instituições federais de ensino superior (Ifes) da Região Nordeste, com cursos reconhecidos pelo MEC, instituídos antes das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de 2001 e instalados nas capitais federativas, resultando em nove cursos estudados.
Para a realização da entrevista, incluiu-se uma das faculdades de Medicina participantes da etapa anterior.
Análise documental
O mapeamento das instituições foi realizado por meio das páginas virtuais das instituições federais e pelo Cadastro e-MEC. Pesquisaram-se também os documentos utilizados para ementas dos cursos de Medicina e as informações das universidades contidas em páginas oficiais das instituições até o primeiro semestre de 2021.
Foi realizada a análise dos projetos pedagógicos do curso (PPC) à luz da legislação vigente, das DCN e das políticas de atenção à PCD.
Entrevista
Foram convidados a participar os docentes da disciplina/unidade curricular de pediatria da instituição selecionada. Optou-se pela realização de entrevista, com questões norteadoras25.
O teste-piloto foi realizado com três docentes de pediatria não pertencentes ao quadro ativo das instituições pesquisadas durante os meses de maio e junho de 2019. A partir das considerações dos participantes, realizaram-se os ajustes necessários para a melhor compreensão do instrumento de coleta de dados. As entrevistas utilizadas no teste-piloto não fizeram parte da pesquisa.
O roteiro de entrevista foi constituído por 12 perguntas norteadoras, descritas no Quadro 1.
• Para você, o SUS tem influenciado a maneira de formar médicos? Como? |
• Você conhece as DCN para os cursos médicos? Quais pontos acha mais relevantes? |
• Você conhece o PPC do seu curso? O que aponta de mais relevante? |
• O que você entende por crianças e adolescentes com deficiência? |
• Como foi sua formação (acadêmico-profissional) no que se refere a crianças e adolescentes com deficiência? |
• Você desenvolve alguma atividade docente relacionada à temática da criança e do adolescente com deficiência? Quais? |
• Você conhece alguma recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) ou das DCN quanto a crianças e aos adolescentes com deficiência? Quais? |
• O que você acha da inserção da temática sobre crianças e adolescentes com deficiência no currículo dos cursos médicos? |
• Você detecta alguma mudança, nos últimos cinco anos, na formação médica em direção a essa temática? |
• Na sua opinião, qual a melhor forma de trabalhar essa temática durante a graduação em Medicina? |
• O que você entende por comitê de acessibilidade? Conhece algum? |
• Você gostaria de dizer mais alguma coisa? |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Sujeitos da pesquisa
Como sujeitos da pesquisa, foram definidos todos os docentes do curso de Medicina da instituição selecionada, com mais de um ano de docência na IES, ligados à disciplina/unidade curricular de pediatria e que estavam em atividade acadêmica no período da pesquisa.
Dentre os 19 docentes elegíveis no início da coleta de dados, um não se identificou com o público-alvo, pois se encontrava ausente de atividades clínicas de pediatria; outro não respondeu às quatro tentativas de contato; dois responderam ao primeiro contato, mas não deram continuidade ao agendamento da entrevista; um estava em afastamento por adoecimento; um faleceu por Covid-19; e um era professor substituto com seu contrato finalizado no decorrer da pesquisa.
Assim, participaram efetivamente da pesquisa 12 docentes, sendo dez mulheres, com a mediana de idade de 46,5 anos. Dos participantes, oito relataram ter PCD na família. O tempo de carreira docente variou de quatro a 32 anos. Todos eram pediatras, atuando na área por seis a 41 anos, sendo cinco (41,66%) doutores e três (25%) mestres.
Procedimentos de coleta e análise de dados
Para a análise documental, realizou-se levantamento dos documentos elegíveis - PPC, matrizes curriculares, ementas e informações de páginas oficiais das universidades -, com busca das palavras e expressões pessoas com deficiência, deficiência, diversidade, respeito à diferença, criança e adolescente com deficiência, e menções à legislação, às políticas públicas e à formação docente relacionadas direta ou indiretamente aos objetivos pedagógicos que favorecessem a abordagem dessa temática. Para garantir e preservar o anonimato das IES, os documentos foram codificados.
Para a realização da entrevista, foi feito contato, por e-mail, com a coordenadora do curso médico selecionado. Em seguida, enviou-se uma carta-convite com os esclarecimentos da pesquisa, o que resultou em anuência da proposta. As entrevistas foram agendadas e ocorreram de abril a outubro de 2020, de forma remota, em dia e horário convenientes para o participante.
Informações sobre idade, sexo, tempo de formação na especialidade, presença de deficiências e presença de PCD na família foram coletadas por meio de questionário padronizado enviado aos docentes que concordaram em participar do estudo. As falas foram gravadas com o consentimento dos participantes, assegurando a privacidade, o anonimato e o sigilo sobre as declarações prestadas.
Procedimentos de análise de dados
Para a entrevista, adotaram-se as etapas propostas por Bardin25: leitura flutuante e pré-análise para conhecer o texto e registrar as primeiras impressões; tratamento do material por meio da análise temática, definindo-se categorias e subcategorias segundo os marcos referenciais e a temática de interesse estabelecidos no estudo25.
Os dados coletados foram tabulados segundo conjuntos de categorias descritivas25.
RESULTADOS
Os resultados estão apresentados segundo os dois componentes da pesquisa: análise documental e entrevista.
Análise documental
Os PPC utilizados para este estudo foram implantados entre os anos de 2010 e 2021. Por esse motivo, quatro cursos pesquisados ainda têm como referência projetos pedagógicos baseados nas DCN 2001, e cinco já adequaram seus projetos às DCN de 2014.
A carga horária de pediatria dos cursos analisados variou de 640 a 880 horas, com uma média de 9,8% do total. No Quadro 2, são apresentados os módulos ou as disciplinas de cada IES que abordam diretamente a temática sobre a PCD, afecções que cursam com deficiência ou temas que expressam intencionalidades ou contêm elementos que favoreçam a abordagem sobre a criança com deficiência.
IES1 | IES2 | IES3 | IES4 | IES5 | IES6 | IES7 | IES8 | IES9 | ||
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Módulo/disciplina optativo(a)/eletivo(a) de Libras | PPC | X | X | X | X | X | X | X | X | |
Site institucional | X | |||||||||
Módulo/disciplina optativo(a)/eletivo(a) relacionado(a) à PCD | - | - | - | - | X | - | - | - | - | |
Módulo/disciplina optativo(a)/eletivo(a) relacionado(a) aos direitos humanos | X | |||||||||
Conteúdo sobre deficiência em pediatria | - | - | - | - | - | - | - | - | - | |
Conteúdos curriculares com abordagem biomédica da deficiência dentro de módulos/disciplinas | X | X | X | X | ||||||
Conteúdos curriculares com abordagem social da deficiência dentro de módulos/disciplinas | - | - | - | - | - | - | - | - | - | |
Conteúdo relacionado a síndromes genéticas e malformação congênita nos módulos de pediatria | X | X | ||||||||
Conteúdo relacionado a síndromes genéticas e malformação congênita em outros módulos | X | X | X | X | X | X | X | X | X | |
Formação docente para a abordagem da deficiência | PPC | X | ||||||||
Site institucional | X | X | ||||||||
Respeito à deficiência | X | x | ||||||||
Respeito às diferenças e à diversidade humana | X | X | X | X | X | X | X | X |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Todas as instituições estudadas apresentam em seus PPC o direcionamento para uma formação humanística voltada para as necessidades da comunidade e da sociedade em conformidade com as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro e buscando uma abordagem generalista, transversal e interdisciplinar.
Em relação à deficiência, os conteúdos encontrados são voltados principalmente para as ciências biológicas e foram identificados pela presença de palavras/expressões como: raciocínio clínico, diagnóstico, conduta terapêutica e abordagem das doenças; e pouco ou nenhum aspecto relacionado a direitos, respeito, acolhimento, o que suscita algumas ressalvas em relação à formação médica pelo foco na doença e não no sentido ampliado de saúde. Essa observação é reforçada pelos achados dos ementários, em que as síndromes genéticas e as malformações congênitas são conteúdos encontrados em disciplinas/módulos de todos os cursos pesquisados, mesmo que, em sua maioria, fora dos módulos de pediatria.
Na descrição geral do PPC, da seção de fundamentos e justificativas, sete dos nove documentos analisados apresentam menção ao respeito a diferenças e diversidade humana, e dois deles também trazem diretamente o respeito à PCD. Entretanto, apenas um dos cursos pesquisados apresenta em seu currículo módulo diretamente relacionado a PCD, sendo este optativo.
Outro achado da análise documental foi a presença do componente Língua Brasileira de Sinais (Libras) em todos os cursos analisados, de forma optativa.
Entrevista
O olhar do docente para o ensino da deficiência
Com base nas entrevistas, foram definidas categorias referentes aos seguintes eixos temáticos:
A importância do SUS como espaço de formação médica: A partir das falas dos docentes, foi possível identificar uma única categoria: reconhecimento e valorização do SUS como importante cenário de práticas para o ensino e formação profissional. Nessa categoria, consideraram-se as falas sobre o SUS como agregador das condições para proporcionar uma formação generalista e para preparar os estudantes para atuação profissional futura nesse sistema, segundo as necessidades e demandas prioritárias da população. As falas foram complementares e associaram a atuação no SUS à possibilidade de trabalho em equipe e à formação do médico generalista, próximo à realidade das pessoas e com possibilidade de troca de experiências com os serviços. Algumas falas apontaram, também, para dificuldades na concretização desse ensino, com destaque ao papel do docente.
[...] que sejam pessoas mais generalistas [...] a formação, a pessoa seja mais [...] tenha um poder de articulação maior, trabalhar em equipe e que a gente possa ter conhecimento mais amplo da sociedade que a gente atende.
[...] a formação médica, a gente já está pautada para formar o profissional para o SUS [...] o médico generalista, que seja capaz de lidar com os problemas enfrentados pela sociedade [...] e não pra especialistas, pra generalistas.
Eles participam do serviço, dão a contrapartida pra população, melhora esse serviço, esse serviço, também, se estrutura pra dar o melhor do ponto de vista de infraestrutura voltada para o ensino [...].
Mas na prática, na formação, isso vai depender e ainda depende muito do envolvimento do docente. O sentido é formar para o SUS, mas não consigo precisar se isso vem de fato acontecendo como deveria acontecer, pois depende muito do docente [...].
A contribuição das Diretrizes Curriculares Nacionais na orientação das atividades dos docentes e destaque a pontos relevantes: Em relação a essa questão, identificaram-se duas categorias: 1. reconhecimento e apropriação de pontos relevantes das DCN para orientação e organização dos cursos de Medicina e citação de pontos relevantes 2. reconhecimento e ciência das DCN como orientadoras da organização do curso, porém desconhecimento de seu conteúdo. Na primeira categoria, as falas dos docentes revelaram maior proximidade com o tema, destacaram a importância das DCN e seus pontos relevantes, principalmente quanto à formação generalista em todos os níveis de atenção à saúde do SUS e às competências, habilidades e atitudes a serem adquiridas com o objetivo de o futuro profissional estar mais preparado para as demandas da sociedade. Na segunda categoria, embora os docentes demonstrassem conhecimento das DCN como norteadoras do curso de Medicina, verificou-se um distanciamento dessa discussão no seu cotidiano, como dificuldades em apontar seus pontos de relevância, indicando que essa questão está mais presente para os gestores do curso.
Se é pra destacar algum, seria esse que contempla todas as profissões e que... exige que a gente tenha uma atenção na formação a todos os níveis de atenção à saúde.
Eu acho que todas são importantes, mas o que eu acho que chama mais atenção é o tópico que tem a ver com comunicação. Aprender a se comunicar, se relacionar com as pessoas [...].
Lembro muito bem das questões éticas.
2) Reconhecimento e ciência das DCN como orientadoras da organização do curso, porém desconhecimento de seu conteúdo:
[...] acompanhei alguma coisa assim dessas reuniões, mas não sou daquela que tá mais à frente, não [...] mas, assim, eu tenho algum conhecimento sim.
Eu sei que eu li... mas... assim eu não lembro, assim eu não sei dizer exatamente.
Não conheço todas, não... não consigo falar agora.
Pra universidade precisa montar um plano de atividades... aí eu tive acesso [...] Não... Não que eu tenha lembrança.
Desenvolvimento de atividades de ensino voltadas à criança e ao adolescente com deficiência, com base nas experiências dos docentes: Identificou-se uma única categoria: reconhecimento da importância do tema e da necessária inclusão no currículo médico. Nessa categoria, estão incluídas falas de docentes que reconhecem a importância atual do tema. Entretanto, há a percepção de que a formação atual está limitada às situações que surgem nos diferentes serviços (genética, neurologia, assistência ao prematuro), centrada nas questões biológicas e insuficiente ante a demanda e a atual concepção de PCD, que deve incluir legislação, direitos, abordagem integral da pessoa. Em relação à forma de inserção no curso, as falas dos docentes apontaram para diferentes possibilidades, predominando a abordagem transversal e, ao mesmo tempo, ante a importância do tema, inserção no currículo como tema específico, ressaltando o papel de projetos de extensão para aprofundamento do tema.
[...] acho que a gente acaba tendo essa visão mais global da atenção integral à criança. Mas a criança com deficiência precisa ter um olhar mais especial de todos, porque essa é uma realidade concreta.
Porque, na prática, é algo que a gente encontra. Então, assim, deveria ter... não existe no currículo.
[...] eu não vejo no currículo uma... uma ênfase, né?, nessa questão. Então, a gente não tem, assim, uma... uma... digamos, uma... um momento específico para tratar desse tema, não.
Com relação a crianças e adolescentes com deficiência, eu acho que nós estamos muito aquém do que poderia ser feito, infelizmente.
Elas são tratadas à medida que vão aparecendo com os sintomas.
[...] por mais que você divida a pediatria em vários momentos durante o curso, mas ela ainda acaba sendo muito centrada. Digamos, mais biológica, do que... do ponto de vista da atenção integral.
[...] essa questão da extensão ser obrigatória, eu acho que se encaixa perfeitamente na extensão universitária.
Concepção sobre a pessoa com deficiência e formação docente
Nesse eixo, foram identificadas duas categorias: concepção abrangente que reconhece a determinação histórico-social e concepção predominantemente biológica.
Concepção abrangente que reconhece a determinação histórico-social: As falas que apontaram para essa concepção foram direcionadas para o papel da sociedade na sua abordagem e no reconhecimento da PCD como sujeito de direitos.
[...] é um termo muito amplo, né!? Acho que ele precisa ser visto em suas especificidades. Acho que, dependendo do olhar, isso pode diferenciar muito, dependendo da cultura, dependendo do que se pretende, e que sempre há de se ter um olhar, é... no caso da atenção à saúde, um olhar crítico pra que você possa ser o facilitador pra que essas crianças ou adolescentes cheguem à vida adulta em todo o máximo de suas potencialidades.
Eu acho que, quando a gente rotula deficiência, quer me dizer algo, como se fosse, no final, negativo, que nem sempre é. Cada um tem seus pontos positivos e às vezes eles podem não... eles podem ter necessidades especiais em alguns sentidos e podem ter potencialidades em outros muito maiores.
[...] que tenham alguma limitação do ponto de vista intelectual, físico.
Não é só a criança que tenha alguma deficiência cognitiva, no caso. Pode ter alguma deficiência motora, algum... qualquer tipo de deficiência, né? Às vezes, até a questão comportamental é um tipo de deficiência também.
Eu acho que são crianças com necessidades especiais. [...] não é algo que me... que me deixa tranquila essa palavra.
Formação docente para o desenvolvimento de atividades de ensino sobre a criança e o adolescente com deficiência e conhecimento sobre as políticas públicas da área
Em relação a esse tema, foi identificada uma única categoria: reconhecimento da ausência de formação docente para a atenção a crianças e adolescentes com deficiência. A falas destacam que a atenção a esse público, quando acontece, é imbuída da experiência de vida e adquirida com a prática profissional. Os participantes afirmam que a IES precisa proporcionar oportunidade para o desenvolvimento docente acerca da temática, para além das questões clínicas e contemplando políticas públicas, abordagem e comunicação.
Específica, não. Eu não me lembro de ter tido. O que a gente tem, assim... na prática, e a gente tem contato com essas crianças e adolescentes, durante a prática, mas uma formação específica voltada pra isso, não.
A gente atende, mas não tem a formação específica pra atender esse tipo de criança e adolescente.
[...] a instituição precisa um treinamento com esses professores, porque como não fomos treinados durante a formação, então pra gente poder trabalhar com isso com nossos alunos, a gente precisa possivelmente passar por capacitações.
DISCUSSÃO
As DCN trazem impacto positivo aos cursos da saúde, contribuindo para transformar o processo de ensino e a formação geral do médico, estreitando a relação entre a formação, o SUS e as necessidades de saúde da população, incluindo a abordagem sobre a PCD.
O desenvolvimento de ações integradas entre o sistema de ensino e o de saúde deve ser a base da formação em saúde, buscando formar profissionais com competências para uma atenção integral e humanizada, com habilidades para o trabalho em equipe; poder de tomada de decisão; e olhar voltado tanto para as necessidades individuais como para o contexto e os recursos disponíveis26),(27.
Nesse contexto, as IES precisam adequar seus projetos político-pedagógicos às necessidades da sociedade a fim de que possam fortalecer os processos educacionais, buscando uma redefinição do formato dos cursos de Medicina de acordo com as DCN.
A análise documental, neste estudo, evidenciou que, na maioria dos documentos analisados, a temática da PCD é pautada e valorizada na descrição geral, entretanto não aparece na intencionalidade das disciplinas, nem nos ementários. Dada a realidade epidemiológica do Nordeste, levanta-se o questionamento sobre os motivos de tal temática não ter expressivo alcance entre os cursos pesquisados.
Vale destacar, ainda, a heterogeneidade dos participantes quanto à apropriação do conteúdo das DCN e dos PPC, o que pode ser um empecilho para sua operacionalização. Entretanto, é marcante o reconhecimento da importância do SUS e das DCN no processo de ensino-aprendizagem, o que aponta para uma formação generalista e que atenda às situações de saúde mais frequentes.
Assim como ocorre com os documentos oficiais, as falas dos docentes ressaltam a importância da temática. Entretanto, muitas vezes, a abordagem relacionada à deficiência é oferecida ao graduando em momentos pontuais e apenas se surgir algo que suscite a discussão, não fazendo parte dos componentes curriculares da maioria dos cursos.
Os docentes participantes desta pesquisa apontaram para a necessidade de formação e sensibilização como desafios a serem superados para que a inclusão da temática da PCD seja plenamente estabelecida nos cursos médicos. Essa necessidade é reforçada nas muitas falas de docentes que apontam a ausência de contato com a temática nas suas formações.
A inconsistência da discussão sobre deficiência na formação docente pode explicar, ao menos em parte, as falas que relacionam a abordagem do tema à experiência, ao interesse e às concepções pessoais, mais do que a uma discussão consistente ao longo do curso. Possibilitar aos docentes uma reflexão sobre como compreendem a deficiência é um passo significativo para que a temática tenha uma capilaridade maior nos currículos28. Para tanto, o apoio institucional é fundamental, pois a graduação é a oportunidade mais democrática para promover essa discussão.
A OMS afirma que as IES são locais privilegiados, encontrando-se em posição única para influenciar mudanças29. A Política Nacional de Saúde das Pessoas com Deficiência13 também reforça como prioritária e necessária a disponibilidade de recursos humanos capacitados para seu desenvolvimento e sua implementação.
O foco na doença e não no conceito ampliado de saúde, observado na análise documental e reforçado na entrevista com os docentes, aponta para um currículo centrado na clínica, com ênfase em diagnóstico e conduta terapêutica. Alguns autores mencionam que a grande quantidade de conteúdos a serem inseridos no currículo pode levar a uma abordagem centrada na doença30. O enfoque interdisciplinar e transdisciplinar, a adoção de currículos abrangentes e o incentivo à cultura institucional inclusiva constituem caminho para uma integração eficaz.
Estratégias de ensino baseadas na individualização e medicalização da deficiência, centradas excessivamente na incapacidade, são muito limitadoras31. Vale salientar a importância do diagnóstico e tratamento precisos, que fazem parte das competências específicas a serem desenvolvidas pelos estudantes de Medicina. Mas os conhecimentos técnicos isolados são insuficientes, e, assim, competências gerais, como integralidade, acessibilidade, responsabilidade, compromisso e considerar as necessidades da população, são fundamentais para uma formação com um olhar para uma saúde de forma ampliada.
Destaca-se aqui a salutogênese como forma de compreender a saúde, vislumbrada em seu contexto ampliado sob a perspectiva da promoção da saúde, do cuidado e do bem-estar, direcionada para a percepção do processo saúde-doença vinculado ao contexto histórico-cultural e individual, apontando estratégias para se manter saudável32),(33.
A associação entre a técnica e o saber que orientam a prática médica deve conduzir o profissional a se inserir como sujeito social em busca de uma atenção voltada à qualidade de vida, em que diagnóstico e tratamento se revestem de outro sentido34. É fundamental desenvolver competências que incluam conhecimentos, habilidades e atitudes capazes de detectar os problemas de saúde da população e considerar os direitos do cidadão e o contexto socioeconômico35.
Superar o modelo biologicista, unicausal, é um desafio permanente. A substituição da cura pelo cuidado em uma perspectiva holística, em que o adoecimento e a morte estão intimamente ligados à qualidade de vida, é um desafio36 que demanda uma abordagem equilibrada, considerando diferentes olhares para necessidades e aspectos distintos da deficiência37.
Sendo a deficiência multidimensional, sua abordagem é ampla e pode ser incluída em todos os componentes curriculares e em qualquer curso oferecido por uma IES38. É importante destacar que, em consonância com as DCN, as IES, além de garantirem acesso para alunos e profissionais com deficiência, precisam construir o conhecimento sobre o tema em todas as esferas acadêmicas e, assim, formar graduados com competência de entender as questões da deficiência em sua vida profissional e de lidar com elas30.
A extensão aparece citada por dois docentes como o momento de contato com a temática da criança com deficiência. Esses relatos mostram a importância dos momentos optativos do currículo, particularmente em relação ao aprofundamento da questão. Entretanto, os resultados apresentados sugerem que a temática, em função da realidade apresentada, também precisa compor a matriz curricular obrigatória a fim de proporcionar a oportunidade de contato a todos os estudantes.
Uma importante iniciativa em direção a esse olhar foi a inserção do componente curricular de Libras nos cursos da saúde, estabelecido no Decreto nº 5.626, de 200539. Talvez a oferta na modalidade optativa seja reflexo da flexibilidade apresentada no decreto quanto aos cursos médicos e reflita nos achados das entrevistas em que, entre os docentes participantes, foi percebido o frágil reconhecimento da existência do ensino de Libras no curso.
Nessa perspectiva, reforça-se a necessidade de inserir nos cursos de formação para a área da saúde a discussão sobre a deficiência que inclua a perspectiva da legislação estruturante, do acolhimento, da cidadania e da inclusão. Dessa forma, além de atenderem às necessidades de saúde, os profissionais poderão desenvolver abordagens voltadas aos direitos humanos e à justiça social, e romper com atitudes excludentes e estigmatizantes para com esse público40.
O trato, os estímulos, as atitudes e os direitos devem perpassar por todo o currículo e não ser discutidos em momentos pontuais36) assim, o acadêmico pode aprender a compreender a PCD e suas particularidades, respeitá-las e conviver e lidar com elas41.
E, assim, faz-se oportuno enfrentar o desafio de motivar e oportunizar a formação de professores, e envolver estudantes e gestores na construção de uma educação que prepare os sujeitos para que possam exercer sua cidadania, com capacidade de atender às demandas contemporâneas42.
Aponta-se como limitador deste estudo a ausência do olhar discente, o que permitiria ampliar a triangulação dos achados a partir, também, da perspectiva de quem usufrui do currículo oferecido. Outra possibilidade de ampliar o estudo seria incluir docentes de outros componentes curriculares, bem como outras instituições públicas e privadas de outras regiões do país.
Ainda assim, identifica-se como forças deste estudo o fato de ele ser multidimensional, partir de um tema relevante, urgente, com políticas públicas já definidas e consolidadas, que inter-relaciona as áreas da saúde e da educação e sugere caminhos e ações para o aprimoramento do ensino da saúde, com reflexões e diálogo para o planejamento, visando à atenção integral no cuidado da criança e do adolescente com deficiência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados apontaram para uma fragilidade na inserção da temática da deficiência nos PPC, particularmente quando se busca compatibilidade da importância dos documentos oficiais da instituição como balizadores da formação. Sugere-se um esforço da gestão no sentido de promover sua apropriação entre os docentes, bem como envolvê-los no processo de construção e implementação.
Observou-se uma relativa ausência da discussão sobre deficiência na perspectiva da saúde ampliada. Assim, considera-se necessário que as instituições de ensino se empenhem para incluir a temática de forma transversal, a fim de oportunizarem que seus estudantes alcancem as competências esperadas, superando o paradigma biomédico e centrado na doença.
Essa convergência de olhar para o currículo e para o docente proporciona a base necessária para alavancar uma formação técnica, coadunada com a perspectiva social da deficiência, ancorada nos princípios de dignidade humana e equidade social.