INTRODUÇÃO
A autonomia do paciente na tomada de decisões a respeito da sua vida e do seu processo terapêutico tem sido objeto de valorização social crescente. Na América Latina, países como Porto Rico1, Argentina2 e Uruguai3 já têm legislações que concedem autonomia aos pacientes.
No Brasil, não há legislações sobre o assunto, apenas resoluções de conselhos de classe. A Resolução nº 1.805/2006, de 28 de novembro de 20064, permitiu ao médico limitar ou abortar tratamentos que prolonguem a vida de pacientes em fase terminal4. Já a Resolução nº 1.995/2012, de 31 de agosto de 20125, manteve as disposições estabelecidas anteriormente e regulamentou de modo mais completo as diretivas antecipadas de vontade (DAV)5. Nesse contexto, as DAV surgem como uma forma de o paciente expressar sua última vontade, salvaguardando o princípio da autonomia6.
Os estudantes, na maioria das escolas médicas, se comprometem com a vida, e sua capacitação é fundamentada em aspectos técnicos. Apenas uma pequena parte do currículo apresenta conteúdos voltados para a terminalidade, mas que, ainda assim, são insuficientes para lidar com os cenários do fim de vida. Diante dessa escassez de reflexões sobre terminalidade de vida no contexto médico estudante, torna-se necessário entender o quão familiarizados com o assunto os discentes estão7.
É importante avaliar o conhecimento e as atitudes em relação a essas questões entre estudantes de Medicina, pois sabe-se que é um cenário de desconhecimento e insegurança, a fim de identificar possíveis lacunas nos currículos médicos e trabalhar questões éticas fundamentais para um atendimento7. Assim, realizou-se esta pesquisa com o objetivo de analisar o conhecimento sobre a compreensão que estudantes de Medicina de uma instituição de ensino superior (IES) têm sobre as DAV.
MÉTODO
O presente estudo constituiu-se em uma pesquisa de cunho descritivo com abordagem qualitativa, que tem como alvo analisar valores e significados que não se adaptam à abordagem quantitativa. Tal metodologia foi escolhida diante da necessidade de estudos mais aprofundados sobre o tema e a população sob tal visão metodológica8.
A pergunta desencadeadora da pesquisa “Qual é o conhecimento queo estudante de graduação em Medicina tem sobre as diretivas antecipadas de vontade?” teve suas respostas analisadas conforme a base teórica de Minayo9, que permite abordagem das expressões humanas nas relações, nos sujeitos e nas representações.
O foco da metodologia qualitativa está no aprofundamento da compreensão; busca explicar o porquê das coisas, produzindo informações aprofundadas e ilustrativas. Portanto, não há preocupação extensa com representatividade numérica9.
Para estruturar a pesquisa qualitativa, Minayo10 defende a existência de quatro termos: experiência, vivência, senso comum e ação. A partir disso, é realizada a análise por meio de compreensão, interpretação e dialetização10. A compreensão atua como base da metodologia utilizada no presente estudo, sendo exercida pelo ato de se colocar no lugar do outro; vale ressaltar que toda compreensão é parcial e inacabada, tanto pelo entrevistado como pelo pesquisador - somos limitados no que compreendemos e interpretamos10.
No que diz respeito ao contexto de realização da pesquisa, inicialmente foi desenvolvida a proposta de coleta de dados por entrevista semiestruturada, contando com a simulação de cenário realístico. Durante o período de coleta de dados, surgiu a pandemia por Sars-CoV-2, e, por causa da necessidade de isolamento social, a entrevista presencial se tornou inviável. Diante do cenário inesperado, foi encontrada a alternativa de realizar a coleta de dados por meio de plataforma digital. Elaborou-se um questionário pelo Google Forms, com divulgação por meio de plataformas digitais (WhatsApp e e-mail).
O convite para a pesquisa foi encaminhado a um total de 608 estudantes do curso de Medicina devidamente matriculados na IES. Obtiveram-se, depois de várias tentativas nos meses de abril a julho de 2020, época em que a pandemia estava na sua fase ascendente, 14 respostas. Uma delas foi excluída porque o estudante já tinha uma graduação prévia. Após 90 dias de espera e buscas infrutíferas por novos participantes, os autores decidiram fazer o fechamento por exaustão da amostra11.
Para analisar o material qualitativo, Minayo9 defende a existência de três modalidades: análise de conteúdo, análise de discurso e análise hermenêutico-dialética. No estudo em questão, optou-se pelo uso da análise de discurso, que envolve materialismo histórico, linguística e teoria do discurso9.
A primeira etapa de análise consiste na disposição pré-analítica dos dados, na qual realiza-se a transcrição literal das entrevistas. A partir disso, é possível uma organização classificatória conforme palavras-chave e núcleos de sentido evidentes nas falas dos entrevistados12.
Já na segunda etapa, também chamada de etapa pré-analítica final, inicia-se a organização temática baseada nas ideias centrais das respostas e nos temas mais relevantes identificados13.
Por último, é feita a análise final que interpreta os conteúdos organizados nas primeiras duas etapas. Como resultado, sempre devem ser geradas novas questões, respeitando o processo espiral do ciclo de pesquisa - parte do empírico e retorna novamente ao empírico9.
Em relação aos aspectos éticos, a pesquisa fundamentou-se nas Resoluções nºs 466/2012 e 510/2016. O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa e devidamente aprovado - CAAE nº 26695919.7.0000.5580. Apenas depois da aprovação, realizou-se a coleta de dados para a pesquisa.
O risco de constrangimento direto deixou de existir no novo formato de coleta de dados, mas mantiveram-se os riscos de perda de anonimato dos participantes, de perda do sigilo de informações coletadas e de desencadeamento de sentimentos ao serem realizadas questões de ordem emocional.
Como forma de minimizar os riscos, retiraram-se as respostas do ambiente digital, mantiveram-se o sigilo e o anonimato dos participantes por parte da pesquisadora, e disponibilizou-se acesso direto à pesquisadora por meio de e-mail pessoal para todos os participantes.
A pesquisa traz como benefício a possibilidade de análise e compreensão dos estudantes sobre as DAV.
As simulações utilizadas para coleta de dados foram gravadas em laboratório de simulação da instituição, contando com a participação de integrantes do grupo de Iniciação Científica em Cuidados Paliativos.
Nessas simulações, havia um paciente simulado com doença terminal que relata ao seu médico assistente que tem dúvidas sobre a continuação do tratamento e a qualidade de vida que isso tem lhe trazido. Num segundo momento, o paciente simulado informa ao seu médico assistente, durante uma consulta ambulatorial, que não quer mais manter o seu tratamento. E a terceira parte dessa simulação ocorre em ambiente de pronto atendimento, com o paciente simulado em franco sofrimento, relatando desejo de cuidados paliativos e a familiar solicitando que seja realizado todo o esforço possível para a sobrevivência do paciente.
RESULTADOS
A análise das informações coletadas nas entrevistas dos 13 participantes foi realizada após a leitura detalhada e cuidadosa de todo o material, transcrito na íntegra. Isso possibilitou evidenciar os conteúdos que respondiam às perguntas iniciais da pesquisa.
Após a leitura, seguiu-se a organização do material por categorias. De acordo com os elementos, passos e critérios metodológicos mencionados anteriormente, as informações obtidas foram classificadas e dispostas em duas categorias e oito subcategorias. A primeira diz respeito à dignidade da pessoa humana e autonomia do paciente, envolvendo termos e expressões bastante empregados nas respostas, como respeito aos valores éticos e profissionais, cuidados paliativos, qualidade de vida e ortotanásia. Na segunda categoria, conhecimento sobre diretivas antecipadas de vontade, observa-se a periodicidade das expressões terminalidade da vida, qualidade de vida, direito e escolhas do paciente, e decisão terapêutica.
Dessa forma, foi possível subdividir as categorias em subcategorias de acordo com os termos-chave embasados nas respostas dos estudantes. Das respostas dos estudantes, foram ressaltados os conteúdos observados de forma mais recorrente, a saber:
No caso da categoria 1 - dignidade da pessoa humana e autonomia do paciente -, selecionaram-se as seguintes citações, que permitiram a identificação das subcategorias citadas entre parênteses:
Estudante K: Que a paciente tomou a decisão pela decisão terapêutica que mais lhe deixaria em paz. Independente da sua escolha, meu papel como médica é oferecer conforto e alívio na forma de cuidados paliativos. Se a decisão da paciente é abster-se do tratamento, ainda assim meu dever é fornecer a melhor qualidade de vida, o melhor cuidado paliativo, mesmo nessa situação (valores éticos e profissionais).
Estudante E: Buscar saber sobre o caso da outra paciente com a médica em questão é o serviço referência em que ela acompanhava! Solicitar uma conversa com a familiar em ambiente tranquilo, perguntar o que ela entende sobre cuidados paliativos, sobre a doença da mãe de sua percepção! Perguntar se ela já ouviu falar em diretivas antecipadas de vontade e explicar que para a paciente todo esse processo pode ser muito mais doloroso que para a família que quer mantê-la viva pelo tempo mais prolongado! E respeitar sempre a vontade do paciente, pois lhe é um direito! (cuidados paliativos).
Estudante A: Para mim, definiria isso como liberdade de escolha e qualidade de vida. A paciente, ciente da sua terminalidade da vida, tem total liberdade de escolher o que ela quer para ela, e cabe a nós acatarmos essa decisão. A paciente opta pela qualidade de vida que tanto sente falta, o que, portanto, cabe a nós darmos o suporte para que recupere isso. Após isso a escolha da paciente, em primeiro momento confirmaria com a paciente se é o que ela deseja, se ela não gostaria de alguma ajuda de outros serviços como psicologia. Se é o que ela realmente busca, iria aceitar e buscar trazer toda a qualidade de vida que a paciente deseja. Permitir que ela faça o que quer, com as devidas providências. Liberdade de escolha para a paciente, porém com todas as orientações devidas (qualidade de vida).
Estudante F: Primeiro admitiria a paciente e encaminharia para ser medicada para a dor. Nesse tempo tentaria saber mais da história médica da paciente e conversaria com a filha, explicando o quadro da doença e se há ou não possibilidade de cura, respeitando o desejo da paciente em não mais se submeter ao tratamento (ortotanásia).
Em relação à categoria 2 - conhecimento sobre diretivas antecipadas de vontade -, foram selecionadas as seguintes citações:
Estudante A: A paciente, ciente da sua terminalidade da vida, tem total liberdade de escolher o que ela quer para ela, e cabe a nós acatarmos essa decisão. A paciente opta pela qualidade de vida que tanto sente falta, o que, por tanto, cabe a nós darmos o suporte para que recupere isso. Após isso a escolha da paciente, em primeiro momento confirmaria com a paciente se é o que ela deseja, se ela não gostaria de alguma ajuda de outros serviços como psicologia. Se é o que ela realmente busca, iria aceitar e buscar trazer toda a qualidade de vida que a paciente deseja. Permitir que ela faça o que quer, com a devida prudência. Liberdade de escolha para a paciente, porém com todas as orientações devidas (terminalidade de vida).
Estudante K: Para mim, a decisão do paciente deve ser respeitada, o mesmo reconhece a terminalidade da vida, não cabendo a mim julgamentos e decisões por ele, como obrigá-lo a fazer um tratamento muito invasivo que só diminua sua qualidade de vida e torne o fim de sua vida conturbado e de muito sofrimento; assim, apresentaria a os cuidados paliativos, explicando como funciona, quais os objetivos e aproximação que pode haver com a família (terminalidade de vida).
Estudante L: Sim! Quando ela decidiu que não queria continuar a quimio, nem diálise, nem internação, nem reanimação (qualidade de vida).
Estudante C: Explicaria pra filha da paciente que é direito da mãe e sobre a autonomia da mãe dela sobre a decisão da conduta; explicaria sobre termos que a senhora poderia fazer sobre suas vontades e administrar o medicamento para alívio da dor. (direito e escolhas do paciente).
Estudante D: Respeito a decisão da paciente. E explico ao familiar que essa decisão deve ser respeitada, por mais triste que seja para a família (direito e escolhas do paciente).
Estudante F: Sei que é uma situação difícil, mas eu abordaria a família para um tratamento psicológico, para o convencimento da filha e para uma abordagem de cuidados paliativos (pois eles precisam também desse cuidado) e tentaria cumprir com os desejos da paciente, pois entendo que é um direito de qualquer paciente enquanto apresenta sua consciência (direito e escolhas do paciente).
Estudante E: Buscar saber sobre o caso da outra paciente com a médica em questão é o serviço referência em que ela acompanhava! Solicitar uma conversa com a familiar em ambiente tranquilo, perguntar o que ela entende sobre cuidados paliativos, sobre a doença da mãe de sua percepção! Perguntar se ela já ouviu falar em diretivas antecipadas de vontade e explicar que para a paciente todo esse processo pode ser muito mais doloroso que para a família que quer mantê-la viva pelo tempo mais prolongado! E respeitar sempre a vontade do paciente, pois lhe é um direito! (direito e escolhas do paciente).
Estudante L: Sim! Quando ela decidiu que não queria continuar a quimio, nem diálise, nem internação, nem reanimação (direito e escolhas do paciente).
Estudante B: Eu conversaria com a família tentando demonstrar que ela está em perfeita saúde mental e que essa escolha só pode ser feita por ela. Tentaria mostrar novamente os lados positivos do tratamento e os negativos. Encontraria terapia que dentro das condições de saúde dela permitisse a redução da dor sem causar outros problemas (decisão terapêutica).
Estudante D: Eu iria tratar a dor com medicação e iria respeitar a opção da paciente, conversaria com a filha sobre a decisão da mãe e que é muito importante o apoio de toda a família nesse momento (decisão terapêutica).
DISCUSSÃO
Dignidade humana e cuidados paliativos
Em uma perspectiva conceitual, a dignidade da pessoa humana é, segundo Bonavides et al. (2009)14, um conceito amplo e complexo: “um conjunto de condições sociais, econômicas, culturais e políticas” (p. 21). Um conceito de difícil entendimento, mas de fácil afirmação. Historicamente, o princípio da dignidade da pessoa humana teve sua origem nas Revoluções Americana e Francesa, no século XVIII, cuja base foi a busca da tríade felicidade, liberdade e igualdade15.
No Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana está embutido na Constituição Federal16, no artigo 1º, III, no título I “Dos princípios fundamentais”, como fundamento do Estado Democrático de Direito, ao lado de soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e pluralismo político. Moraes (2015)17, por sua vez, afirma que a dignidade da pessoa humana é um princípio que “concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas” (p. 75). A dignidade seria, segundo ele, “um valor espiritual e moral inerente à pessoa” que se manifesta na “autodeterminação consciente e responsável da própria vida” (p. 21)17.
Nesse sentido, a dignidade está intrinsecamente envolvida com o cuidar do paciente no estágio de fim de vida, por meio dos cuidados paliativos que preservam a dignidade humana. O conceito de cuidados paliativos é definido pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos18 como uma abordagem que melhora a qualidade de vida, com identificação precoce e correta da dor, além do manejo de outros problemas psíquicos, sociais e espirituais do paciente.
Para que se garantam a qualidade de vida, o bem-estar, o conforto e os dignidade humana, os cuidados paliativos devem ser pautados nos cuidados à pessoa, valorizando as necessidades do paciente de forma que ele receba informações adequadas e culturalmente apropriadas sobre seu estado de saúde e seu papel nas tomadas de decisão acerca de seu tratamento19.
Decisão terapêutica e autonomia do paciente
No que tange à decisão terapêutica, não há obrigação de o profissional médico prolongar a vida do paciente cujas perspectivas de cura já se exauriram, cabendo a este ou a seu representante legal decidir a respeito da continuação do tratamento, contando com todas as informações disponíveis sobre as alternativas terapêuticas. Dessa forma, preservam-se a autonomia individual e a dignidade do paciente, que receberá os cuidados necessários ao alívio de seu sofrimento. Permite-se ainda a possibilidade de o paciente ou seu representante legal solicitar alta hospitalar, de modo que o indivíduo doente possa vivenciar o processo da morte com mais dignidade e humanidade ao lado das pessoas que mais ama19),(20.
A decisão terapêutica só se valida após exaustiva informação acerca do estado de saúde do paciente e possibilidades de cura ou morte. Pode-se evidenciar nas respostas dos estudantes que a escolha terapêutica é uma forma de se respeitar a autonomia de escolha do paciente.
O próprio conceito hipocrático, historicamente conhecido, baseou-se nos princípios de alívio da dor, redução da nocividade da patologia e renúncia a tratamentos quando a medicina não é mais capaz de colaborar para a reversão do quadro. Na atualidade, houve a publicação da Resolução nº 1.995/2012 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que reconhece a validade das DAV e ampara o médico que seguir suas determinações5. Tal resolução, embora tenha força normativa, cujo descumprimento dos atos previstos fere o Código de Ética Médica21, não encontra regulamentação no Código Civil22.
É fundamental manter o equilíbrio entre o conhecimento científico e o humanístico, de modo a recuperar a dignidade da vida e a qualidade da morte. Como a morte é uma evolução gradual do processo vital, do ponto de vista filosófico, e mesmo ontológico, existem vários conceitos que repercutem no campo da ética e do direito de forma complexa.
Diretivas antecipadas de vontade e direitos de escolha do paciente
Com o objetivo de reforçar a importância da autonomia do paciente no fim de vida, cita-se as DAV que, na Resolução nº 1.995/2012 do CFM5, são definidas como os desígnios postos pelo paciente na decisão de tratamentos a que deseja, ou não, ser submetido, especialmente quando incapacitado para se expressar, além de esclarecer questões limítrofes, inclusive quanto à hipótese de manifestação pelo representante designado do paciente5.
Por meio dessa mesma resolução, cabe ressaltar que não é uma faculdade dos médicos escolher se a seguem ou não. Se não fizerem conforme o disposto, serão responsabilizados no mínimo administrativamente, uma vez que as resoluções são atos emanados dos plenários do CFM e de alguns dos Conselhos Regionais de Medicina que regulam temas de competência privativa e dessas entidades em suas áreas de alcance, como os órgãos supervisores, normalizadores, disciplinadores, fiscalizadores e julgadores da atividade profissional médica em todo território nacional23.
Em resposta às condutas adotadas pelo estudante de Medicina na simulação, diante da solicitação do paciente simulado, muito se observa a preservação do direito de decisão do paciente por meio do processo de convencimento e aceitação por parte da filha. É muito comum na prática médica o paciente solicitar que medidas invasivas infrutíferas sejam evitadas, mas os familiares se negarem ou não aceitarem. Percebe-se nas respostas dos estudantes uma maturidade em relação ao princípio bioético da autonomia e ao direito constitucional da dignidade e da liberdade de escolha, sem desamparar as necessidades de cuidados.
Dessa forma, cabe também ao médico o dever de informar ao paciente. Esse dever está garantido na Constituição Federal de198816, em seu artigo 5º, inciso XIV: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo de fonte, quando necessário ao exercício profissional”16. Tal dever de informação também tem previsão no próprio Código de Ética Médica21, segundo o qual, em seu artigo 34, é vedado ao médico “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. Fica claro, portanto, que o médico tem o dever de informar o paciente sobre tratamento a que deverá ser submetido.
Ortotanásia
A ortotanásia é definida como a “morte em seu tempo certo”, o que remete à renúncia de tratamentos e procedimentos fúteis e desnecessários, de modo a evitar a distanásia, sendo possível optar ou não pelos métodos paliativos de tratamento para controlar a dor e manter a qualidade de vida. Essa reflexão já era realizada na Antiguidade por Hipócrates, quando pregava que o médico deve curar quando possível, aliviar quando necessário e consolar sempre quando não há mais nada a fazer sob o aspecto curativo24.
A ortotanásia é um procedimento previsto na condição de procedimento ético-médico, por conta da Resolução nº 1.805 do CFM, de 9 de novembro de 20064. Nela o CFM permitiu que o médico interviesse no procedimento que prolongasse a vida do paciente em fim de vida, respeitando a sua vontade ou de seu representante legal4.
Nesse sentido, ao considerar a possibilidade ou não de cura do paciente e a necessidade de medicar para a dor independentemente da conduta seguinte, o estudante, ao assistir à simulação, demonstrou noções básicas ligadas ao conceito de ortotanásia.
Terminalidade e qualidade de vida
A necessidade da compreensão acerca da terminalidade da vida, processo decorrente do exaurimento dos esforços para restaurar a saúde do enfermo, que traz à tona a morte iminente, inexorável e prevista, é fundamental, principalmente porque, nos tempos atuais, a tecnologia e os métodos invasivos não apenas aumentaram a longevidade, mas também retardaram o processo de morte e prolongaram a existência, ainda que não sejam capazes de assegurar a qualidade de vida25.
A terminalidade da vida advém com desconforto e angústia consideráveis principalmente nos doentes oncológicos e vítimas de acidentes neurovasculares degenerativos ou acidentais. Para tanto, dilemas éticos especiais são trazidos à tona, dependentes do meio cultural e das convicções religiosas em que se vive, assim como dos meios econômicos e sociais destinados à saúde26.
Portanto, abordagens destinadas a manter a vida do paciente em terminalidade a qualquer custo são insuficientes, exageradas, desnecessárias e ignoram o sofrimento do doente e de seus familiares. No cenário simulado, apesar de ser um fato fictício, mostra-se o quanto é árduo para a família ter que reconhecer a terminalidade da vida de seu ente querido. Por isso, é imprescindível que o profissional da saúde explique que, por vezes, o paciente é mantido vivo graças a tratamentos que provocam mais dor do que alívio e conforto. Do ponto de vista bioético, essas observações não seriam uma reprovação da medicina tecnológica, e sim um estímulo à reflexão sobre a conduta a ser tomada diante da inevitável mortalidade humana26.
Dentro do conceito cultural de que cabe ao médico preservar a vida a qualquer preço, não deve ser desincumbido do dever de informação, explicando ao paciente e aos familiares o alcance real de uma determinada terapêutica, sem que com isso fira a dignidade de um paciente, cuja cura não mais exista, e os cuidados paliativos são a opção de um conforto ao corpo já muito comprometido. Assim, estando o paciente devidamente informado e esclarecido, cabe a ele a opção de limitar ou suspender o tratamento ineficaz, com respaldo nas garantias constitucionais, que não podem ser descartadas, uma vez que são garantias e não opcionalidades25.
CONCLUSÕES
Por causa da ausência de legislação sobre as DAV, há muita insegurança e desconhecimento tanto de pacientes quanto de médicos.
Com as entrevistas realizadas com os estudantes, pôde-se observar que muitos já têm conhecimento sobre DAV, porém há insegurança em alguns no que concerne a acatar a decisão do paciente quando contrária à da família. Não se deve aplaudir o sobrevivente, nem usar termos como “perdeu” ou “ganhou” uma batalha. Os médicos não estão em guerra com a doença, não há fracasso quando alguém morre.
Essa questão deve ser discutida em vários âmbitos e momentos, em conjunto com vários temas e situações. Deve-se permitir que o estudante sinta a dor ao dar uma notícia de doença ou óbito. Assim, serão formados profissionais mais empáticos e conscientes do seu papel ao mostrarem que não estão lidando somente com o corpo biológico do paciente, mas também com uma vida cheia de histórias, e que, em determinado momento, como médicos, farão parte dessa história também.