INTRODUÇÃO
A humanização na saúde alcança diversas definições, reflexões e atitudes tanto na atenção ao usuário do serviço de saúde quanto na prática profissional. Os conceitos mais discutidos nessa temática incluem respeito, empatia, cuidado integral, acolhimento, ações e práticas do cuidado, educação em saúde, artes e escuta1.
Sendo assim, na ótica da humanização, há a valorização da essência profissional, de modo a realçar o campo das humanidades e subjetividades, e ampliar a perspectiva de atuação na saúde para além da biomédico centrada2),(3.
Conceitualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define o termo saúde como uma concepção que vai além da biológica, sendo o completo “bem-estar físico, mental e social” do indivíduo4. Por essa premissa, é possível perceber que as dimensões humanas devem estar presentes dentro das áreas de abrangência médica.
No Brasil, a humanização está contemplada como Política Nacional de Humanização (PNH) desde 20035.
Historicamente, parece haver uma tentativa de ampliar as práticas profissionais humanizadas com mudanças de grades curriculares para a formação de profissionais de saúde, por meio da incorporação de disciplinas na área médica que expressem a temática em questão6)-(9.
Sousa et al.10, ao analisarem 34 artigos sobre a tendência mundial em educação médica, referem que, a partir da década de 1950, as disciplinas de humanidades médicas passaram a fazer parte das ementas nas graduações em Medicina do Reino Unido.
No nosso país, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) vem integrando ao currículo as disciplinas de humanidades médicas desde 198811),(12.
Apesar de alguns avanços, ainda predomina uma baixa humanização na prática médica. Um estudo realizado pelas universidades de Harvard e Northwestern, nos Estados Unidos, caracteriza a prática médica como desumanizada e permeada por falta de empatia e por mecanização do serviço13.
Uma revisão sistemática mais recente, publicada em 2018, que analisou artigos sobre o ensino da humanização nas escolas médicas, referiu que a abordagem da humanização na medicina ainda é pequena considerando a imensidão da área. O artigo ressalta a necessidade de alteração dos currículos visando acrescentar e/ou ampliar espaços voltados à apresentação e discussão do humanismo na medicina14.
Mesmo com o reconhecimento da relevância da humanização na medicina e seu ainda incipiente crescimento nas grades curriculares das faculdades, a categoria médica ainda é alvo constante de críticas a respeito da desumanização na assistência. Questiona-se inclusive se médicos seriam menos sensíveis ao tema do que outros profissionais de saúde14)-(16.
Outras profissões na área da saúde expressam a humanização nas grades curriculares e/ou nas suas práxis. Em uma pesquisa com cursos de graduações na área de enfermagem, em São Paulo, observou-se que, em 59% deles, houve algum termo ligado à humanização em suas disciplinas7.
Outro estudo, realizado na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), constatou que o curso de Enfermagem oferta 13 disciplinas envolvendo humanização, enquanto o curso de Medicina também da UFPB não contempla especificamente o tema17.
Uma pesquisa realizada no Paraná encontrou, em pelo menos cinco instituições de ensino superior, a presença de disciplinas obrigatórias sobre humanização no curso de Enfermagem. A graduação em Psicologia apresentava disciplina optativa em uma universidade18.
Há poucos estudos que mostram avanços nas grades de humanização em cursos como Psicologia e Serviço Social, porém algumas pesquisas evidenciam que a psicologia participou ativamente na fundamentação da humanização no Brasil com a criação da PNH8. Além disso, a enfermagem, o serviço social e a psicologia tendem a executar a humanização em suas práxis cotidianas, muitas vezes de maneira empírica, mas faltando o embasamento teórico6), (19)-(21.
Como exemplo de tentativa de aprimoramento da prática de humanização na área de psicologia, foi testado um protocolo em estagiários desse curso para aperfeiçoar o atendimento hospitalar dessa categoria, tornando-o mais humanizado22.
Apesar de tais iniciativas, na área de saúde mental, o cenário da humanização ainda carece de estudos quantitativos, e há a necessidade de desenvolvimento de treinamentos, visando ampliar o conhecimento e a prática entre os profissionais11),(12),(14),(23.
Encontramos poucos relatos de intervenções para implementar a humanização em serviços de saúde e alcançar a imersão de profissionais já formados na PNH24)-(27. Dentre esses artigos, um relatou melhoria na percepção dos pacientes em relação aos profissionais após estes terem participado de uma intervenção de 15 minutos em forma de apresentação de slides para funcionários de um hospital. Constatou-se a melhoria da qualidade das relações entre pacientes e funcionários27.
Todavia, não encontramos pesquisas quantitativas que mensurassem os resultados sobre humanização, antes e depois de treinamentos, sob a perspectiva dos próprios profissionais de saúde. Sendo assim, nosso estudo é um dos primeiros que avaliaram a efetividade, pelo menos no curto prazo, de treinamentos nessa área para médicos e não médicos.
Diante disso, realizamos este estudo que teve como objetivo avaliar a eficácia de um treinamento na área de humanização para profissionais médicos em comparação com não médicos que atuam na área de saúde mental.
MÉTODO
Local do estudo e participantes
A pesquisa foi realizada no Grupo de Estudos de Álcool e outras Drogas (GREA), localizado no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP). O grupo desenvolve trabalhos na área de pesquisa, ensino, assistência e prevenção de álcool, tabaco e outras drogas desde 1981.
Seu método se caracteriza por uma abordagem multidisciplinar, com equipe formada por psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeuta ocupacional e educador físico. O grupo é considerado hoje como Centro de Excelência para Tratamento e Prevenção de Drogas pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad).
Pesquisa educacional quantitativa
Respeitaram-se os critérios requeridos em uma pesquisa educacional quantitativa. A amostra foi de 54 sujeitos que responderam a um questionário autoavaliativo assinalando escores para as questões propostas.
Aplicou-se a survey que é um dos métodos propostos para a realização de uma pesquisa quantitativa. A survey envolve a utilização de uma pesquisa de campo, na qual a coleta de dados é feita por meio da aplicação de questionário ou formulário. Escolhemos a survey longitudinal porque ela permite investigar a evolução ou transformações ocorridas em determinadas variáveis durante um espaço de tempo28.
Critérios de inclusão dos sujeitos
Para que pudessem participar deste estudo, os sujeitos deveriam ser profissionais de saúde atuantes no ambulatório e/ou na enfermaria do GREA .
Implementação do estudo
Antes da admissão na pesquisa, foi lido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para os sujeitos selecionados. Aqueles que aceitaram participar da pesquisa assinaram o TCLE e responderam a um questionário. Não houve recusa em participar da pesquisa. Em seguida, submeteram-se a um treinamento relacionado à humanização constituído de duas aulas/discussões, totalizando 135 minutos com 15 a 30 minutos de intervalo. Quinze dias após esse treinamento, os sujeitos responderam novamente ao questionário com as mesmas questões.
A Figura 1 mostra o passo a passo para a implementação do estudo. Foram realizados cinco treinamentos sobre humanização: três no mês de novembro de 2017 e dois em julho de 2018. As aulas ocorreram em dias e horários diversificados para que abrangessem um maior número de profissionais.
Instrumento utilizado no treinamento (autoavaliação)
Os profissionais assinalaram um escore para as sentenças contidas no instrumento de acordo com a intensidade de suas percepções sobre a importância (i), domínio (d) e quantidade de conhecimento (q) que acreditam possuir sobre humanização.
O questionário distribuído em duas vias continha o mesmo número de registro em cada uma delas para ser possível parear os sujeitos da pesquisa. Dessa forma, a ausência de uma identificação por nome garantia o sigilo de cada participante. Na primeira folha, havia algumas perguntas para a caracterização sociodemográfica. Foi explicado que um dos questionários ficaria com eles para que preenchessem 15 dias após o treinamento e entregassem para a pesquisadora.
O instrumento aplicado é composto por 34 itens, sendo: 11 itens sobre conhecimentos (c), 15 sobre habilidades (h) e 8 sobre atitudes (a) de humanização. Nos questionários, os escores de cada item variam de 0 a 4. Zero significa nenhuma importância, nenhum domínio ou nenhum conhecimento apresentado sobre a sentença exposta; 4 significa (valor máximo para uma sentença) total importância, total domínio e total conhecimento; e 2 e 3 são as pontuações intermediárias.
Eis alguns exemplos das sentenças utilizadas para que os sujeitos pudessem avaliar o conhecimento, as habilidades e as atitudes de que dispunham:
Conhecimento: Ter conhecimento dos resultados do atendimento humanizado.
Habilidades: Explicar ao paciente o que será feito.
Atitudes: Articular meios resolutivos caso não seja você que possa resolver a questão solicitada pelo paciente.
O questionário utilizado nesse projeto foi baseado em estudo de autoavaliação de um programa em uma empresa, publicado em revista científica nacional29.
É importante ressaltar que, para esta pesquisa, as sentenças originais do questionário foram trocadas para o tema de humanização, mantendo-se os parâmetros de análises: conhecimentos, habilidades e atitudes. Diante dessas dimensões, entende-se que esse questionário possibilita a análise sobre competência em humanização de diversos grupos de profissionais da saúde. Essas variáveis são mensuradas por meio dos escores de importância, conhecimento e domínio.
Com o uso do modelo autoavaliativo, visou-se obter uma imparcialidade no estudo, evitando que um avaliador externo influenciasse nas respostas, especialmente no caso de avaliações por um superior ou colega de serviço. Foi conversado com os profissionais para que colocassem veracidade em cada sentença. Os temas solicitados no instrumento foram todos trabalhados no treinamento e baseados na PNH.
Treinamentos: passo a passo para elaboração e preparação do plano de aula
Não encontramos regulamentos ou informações sobre a quantidade de horas necessárias para que se faça um treinamento em humanização.
Dessa forma, optamos por realizar o treinamento em 135 minutos. Entende-se que, por serem profissionais de saúde, os sujeitos já teriam algumas noções sobre o tema, mas que muitas vezes não são percebidas na prática cotidiana. Por conta disso, houve a necessidade de eles se apoderarem da temática com marco teórico para que pudessem perceber que tinham o domínio, a importância e o conhecimento do assunto nas perspectivas teórica e prática.
Para realizar o plano de aula, adotaram-se as seguintes etapas:
Preparação: Os pesquisadores levantaram materiais teóricos e práticos sobre humanização: artigos, vídeos, livros, conferências etc. Após isso, houve a confecção de conteúdos em slides baseados em modelos para treinamento. O resultado foi enviado para aprovação de membros do Grupo de Trabalho o de Humanização (GTH) antes da implementação. O GTH é um grupo que atua na promoção e no desenvolvimento da humanização no hospital e é coordenado pelo Núcleo Técnico Científico de Humanização. O IPq-HCFMUSP tem seu GTH, assim como os outros Institutos dentro do HCFMUSP1.
Pré-apresentação: Houve uma pré-apresentação das aulas para alguns membros do GTH do IPq-HCFMUSP e algumas adaptações para o hospital foram feitas. Inicialmente, realizou-se a reserva de salas mediante a confirmação de profissionais que compareceriam, atentando-nos para os recursos físicos da sala: projetor, computador, cadeiras, mesas e ambiente protegido de barulhos externos.
Público-alvo: O público-alvo desse treinamento foi composto por profissionais que estavam atuando no GREA (médicos e não médicos).
Divisão e duração: Nem todos os profissionais poderiam comparecer no mesmo dia e horário do estudo. Diante disso, foram ministradas as mesmas aulas em cinco dias e horários diferentes (uma pela manhã, três pela tarde e uma entre tarde e noite). Cada treinamento foi composto de duas aulas consecutivas, todas no mesmo dia, com período total de 135 minutos e intervalo de 15 a 30 minutos entre elas. As datas eram fixadas de acordo com conversas prévias com as chefias de cada categoria profissional. Percebeu-se que duas horas e 15 minutos seriam importantes porque permitiriam que os sujeitos não se ausentassem por muito tempo de cada departamento. Outro fator preestabelecido com as chefias foi a importância de realizar o treinamento em um dia de trabalho normal, para evitar ausências.
No conteúdo programático principal da aula, havia as ações de humanização, com base no Guia técnico-político para o desenvolvimento da humanização das práticas de saúde utilizado na própria instituição1. Esse material facilita a orientação de condutas e valores de humanização adotados pela Rede Humanização do Hospital das Clínicas (FMUSP).
Teve-se como objetivo geral do treinamento ampliar a competência dos sujeitos da pesquisa sobre humanização.
Os objetivos específicos do treinamento foram:
Expor aos sujeitos a conceituação teórica da humanização e mostrar algumas práticas que o IPq já realizava sobre ações de humanização.
Contribuir para a sensibilização de profissionais na prática do cuidado humanizado, reafirmando que o cuidado deve ocorrer de maneira holística.
Valorizar o que os trabalhadores já realizavam de humanização com pacientes e entre os profissionais.
Valorizar os profissionais de saúde e fortalecer a concepção da humanização interprofissional.
Esclarecer eventuais dúvidas sobre o tema.
Justificativa: Muitos profissionais já desenvolvem ações de humanização, porém não conseguem se enxergar no processo por não terem a conceituação da PNH. Essas ações algumas vezes não são realizadas de maneira sistemática e estruturada. Outros profissionais, por sua vez, não executam o atendimento humanizado e, por isso, precisam conhecer e apoderar-se dele para que possam desenvolver atitudes práticas de humanização. Diante disso, treinamentos e difusões de conhecimentos na área de humanização são necessários.
Estratégias de ensino e aprendizagem: As aulas foram conduzidas por uma enfermeira (primeira autora deste manuscrito) com experiência na área, em parceria com componentes do grupo de humanização do hospital. As estratégias de ensino e aprendizagem são apresentadas na Figura 2.
As avaliações da aprendizagem foram realizadas de maneira contínua. Na encenação, avaliou-se o quanto foi absorvido do conteúdo do treinamento. No final, as dúvidas foram trazidas e esclarecidas, remetendo também à importância do lúdico para se expressarem. Além disso, realizou-se a autoavaliação por meio do instrumento já explicado.
Número de sujeitos
Usando como hipótese para esse tipo de proposta um possível resultado com efeito esperado de 0,5, significância de 5% e poder de teste de 80%, a amostra deveria ter no mínimo 34 sujeitos. Para estimar o número de sujeitos da pesquisa, foi utilizada a seguinte fórmula:
Visando atingir o maior número possível de profissionais, a presente pesquisa selecionou 61 profissionais do GREA.
Análises
Dos 61 sujeitos, dois deixaram colunas em branco na primeira fase da pesquisa, e, dessa forma, seus questionários foram excluídos da análise. Cinco sujeitos que participaram do treinamento não devolveram os questionários em datas acordadas 15 dias após seu treinamento e também foram excluídos. Portanto, foram avaliados 54 profissionais.
Análises de acordo com características sociodemográficas
Para as análises sociodemográficas, usaram-se os testes: t de Student, qui-quadrado e Mann-Whitney.
Análises entre as categorias profissionais
Quando verificadas entre as categorias profissionais (médicos e não médicos), os escores dos questionários foram obtidos pela soma (S) dos valores de c+h+a atribuídos por cada sujeito em cada subitem da coluna descrita no questionário e extraída a média. Posteriormente, os escores médios da S de médicos foram comparados com o de não médicos para pré-treinamento, pós- treinamento e para diferença de resultados do pós menos o pré-treinamento por meio dos testes não pareados não paramétricos. Utilizou-se o programa GraphPad Prism 8 para realização dessas análises.
Análises de regressões múltiplas
Foram ajustados modelos de regressões lineares múltiplas para o escore pré-treinamento e para a diferença entre pós versus pré-treinamento para as dimensões de conhecimentos, habilidades e atitudes, com o objetivo de avaliar se há diferença significativa entre gêneros, idades, estados civis, filhos, vínculos, religião, anos de serviço e categorias de trabalho.
As significâncias dos efeitos foram verificadas por meio do teste de Wald, e o processo de seleção de variáveis utilizado foi oforward-backward, considerando um nível de significância de 0,05.
Para isso, utilizou-se o programa R versão 3.6.2.
RESULTADOS
Na Tabela 1, são apresentadas as características sociodemográficas dos sujeitos desta pesquisa. O perfil da amostra deste estudo foi o seguinte: sexo feminino (72,2%), solteiros (61,1%), sem filhos (68,5%), com religião (81,5%), com apenas um vínculo profissional (57,4%) e com menos de seis anos de atuação profissional (66,7%). A idade média ficou próxima a 35 anos. Houve diferenças em algumas variáveis sociodemográficas entre médicos e não médicos. O sexo feminino foi mais comum entre não médicos (p < 0,001). Com relação a vínculos profissionais, a categoria médica apresentou, em sua maioria, mais de um vínculo (p = 0,039). Os não médicos, mais frequentemente, declararam ter alguma religião (p < 0,001).
Medida | Médico | Multiprofissional | Total | p-valor |
---|---|---|---|---|
Idades | ||||
média ± DP | 33,4 ± 6,8 | 35,7 ± 9,7 | 34,9 ± 8,9 | 0,318a |
mediana [quartis] | 32 [30; 33] | 33 [28; 39] | 32,5 [29; 38] | |
Gênero | ||||
Feminino | 5/17 (29,4%) | 34/37 (91,9%) | 39/54 (72,2%) | < 0,001b |
Masculino | 12/17 (70,6%) | 3/37 (8,1%) | 15/54 (27,8%) | |
Estado Civil | ||||
Casada(o) | 7/17 (41,2%) | 11/37 (29,7%) | 18/54 (33,3%) | 0,603b |
Separada(o) | 0/17 (0%) | 2/37 (5,4%) | 2/54 (3,7%) | |
Solteira(o) | 10/17 (58,8%) | 23/37 (62,2%) | 33/54 (61,1%) | |
Viúva(o) | 0/17 (0%) | 1/37 (2,7%) | 1/54 (1,9%) | |
Filhos | ||||
Não | 11/17 (64,7%) | 26/37 (70,3%) | 37/54 (68,5%) | 0,757 b |
Sim | 6/17 (35,3%) | 11/37 (29,7%) | 17/54 (31,5%) | |
Vínculos | ||||
Com um vÍnculo | 6/17 (35,3%) | 25/37 (67,6%) | 31/54 (57,4%) | 0,039b |
Com mais de um | 11/17 (64,7%) | 12/37 (32,4%) | 23/54 (42,6%) | |
Anos de Serviço | ||||
mediana [quartis] | 1 [1;1] | 1 [1;3] | 1 [1; 2] | 0,311c |
DE 2 a 5 anos | 13/17 (76,5%) | 23/37 (62,2%) | 36/54 (66,7%) | 0,364b |
6 anos ou mais | 4/17 (23,5%) | 14/37 (37,8%) | 18/54 (33,3%) | |
Religião | ||||
Não | 10/17 (58,8%) | 0/37 (0%) | 10/54 (18,5%) | < 0,001b |
Sim | 7/17 (41,2%) | 37/37 (100%) | 44/54 (81,5%) |
a Teste t de Student, b teste qui-quadrado, c teste de Mann-Whitney.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Análises univariadas em diferentes instantes
Na Tabela 2, são apresentadas as médias da soma dos escores em humanização de c+h+a. Esses dados caracterizam a competência em humanização autoavaliada na temática antes e depois do treinamento.
Médicos | Não médicos | p-valor | |
---|---|---|---|
Pré-treinamento | |||
Média | 195,2 | 219,6 | |
Mediana | 196 | 225 | |
Intervalo de confiança | [190,4-200,1] | [208,8-230,5] | |
Erro-padrão | 2,3 | 5,4 | < 0,0001 |
Pós-treinamento | |||
Média | 240 | 242,8 | |
Mediana | 240 | 243 | |
Intervalo de confiança | [234,2-245,8] | [237,4-248,2] | |
Erro-padrão | 2,75 | 2,6 | 0,5702 |
Diferença (pós versus pré-treinamento) | |||
Média | 44,76 | 23,11 | |
Mediana | 48 | 14 | |
Intervalo de confiança | [36,28-53,25] | [15,08-31,14] | |
Erro-padrão | 4 | 3,9 | 0,0002 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Resultados do instante pré-treinamento
No instante pré-treinamento, profissionais médicos apresentaram a média de seus escores (c+h+a) 24,4 pontos menores do que profissionais não médicos (p < 0,0001).
Resultados do pós-treinamento
No instante pós-treinamento, não se observou diferença de médias dos escores c+h+a entre profissionais médicos e não médicos (p = 0,5702).
Resultados das diferenças pós versus pré-treinamento
Quando se compararam as diferenças da média dos escores dos instantes pós menos pré-treinamento, observou-se que os profissionais médicos apresentaram o aumento da média de seus escores c+h+a de 21,65 pontos em relação aos profissionais não médicos (p = 0,0002).
Regressões múltiplas: variáveis envolvidas com a diferença das médias dos escores para médicos
A Tabela 3 mostra os resultados obtidos por meio das regressões lineares múltiplas. Foram consideradas as seguintes variáveis médicas: gênero, idade, estado civil, anos de serviço, filhos e religião. Nessa análise, tentou-se avaliar que variáveis estão associadas ao aumento dos escores de humanização entre médicos. Eis as variáveis: 1. estado civil: casados aumentam menos os escores em comparação aos solteiros (p = 0,001); 2. tempo de atuação profissional: profissionais com seis ou mais anos de serviço aumentam mais os escores em comparação aos médicos com até cinco anos de serviço (p = 0,043); 3. filhos: médicos com filhos aumentam mais seus escores quando comparados a médicos sem filhos (p = 0,015).
Estimativa | Limite Inferior | Limite superior | p-valor | |
---|---|---|---|---|
Modelo final (pós versus pré-treinamento) Médicos | ||||
Perfil-base (médicos) | 35,86 | 21,89 | 49,84 | 0,011 |
Estado civil (casado) | -50,98 | -70,17 | -31,79 | 0,001 |
Anos de serviço (seis ou mais anos) | 13,11 | 2,50 | 23,73 | 0,043 |
Filhos (sim) | 38,80 | 18,84 | 58,75 | 0,015 |
Modelo final (pós versus pré- treinamento) Não médicos | ||||
Perfil-base (Não médicos) | -3,91 | -27,71 | 19,89 | 0,111 |
Anos de serviço (seis ou mais anos) | 24,06 | 5,47 | 42,64 | 0,003 |
Filhos (sim) | -20,64 | -40,36 | -0,92 | 0,010 |
Modelo final total (pré- treinamento) Médicos e não médicos | ||||
Perfil-base (não médicos) | 245,67 | 223,15 | 268,19 | < 0,001 |
Anos de serviço (seis ou mais anos) | -18,88 | -34,00 | -3,76 | 0,018 |
Médicos | -27,11 | -42,46 | -11,77 | 0,001 |
Modelo final total (pós versus pré-treinamento) Médicos e Não Médicos | ||||
Perfil-base (Não médicos) | -0,05 | -18,13 | 18,04 | 0,996 |
Anos de serviço (seis ou mais anos) | 20,02 | 6,74 | 33,30 | 0,005 |
Filhos (sim) | -14,93 | -28,30 | -1,57 | 0,033 |
Médicos | 25,35 | 13,31 | 37,40 | < 0,001 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Variáveis envolvidas com a diferença das médias dos escores para não médicos
Entre os não médicos, considerando as variáveis: não médicos, gênero, idade, estado civil, anos de serviço, filhos e vínculos, as variáveis envolvidas nas diferenças (pós versus pré) foram: 1. tempo de atuação profissional: a estimativa de aumento para não médicos com seis ou mais anos de serviço é de 24,06 pontos maior em comparação com aqueles com até cinco anos (p = 0,003); 2. filhos: o escore total de não médicos com filhos tem uma diferença de aproximadamente 20,64 pontos mais baixa do que não médicos sem filhos (p = 0,010).
Regressões lineares envolvendo médicos e não médicos nos mesmos ajustes
Na Tabela 3, podem ser observados os modelos finais dos instantes pré-treinamento e pós- treinamento para todas as variáveis contendo médicos e não médicos nos mesmos ajustes. Percebemos que, no instante pré-treinamento, o fato de se ter seis ou mais anos de serviço influenciou para menores escores em humanização (p = 0,018). No pós-treinamento, entretanto, percebemos que ter seis ou mais anos de serviço contribuiu para maiores escores em humanização (p = 0,005). Observa-se também que o fato de ser médico influenciou negativamente na autoavaliação sobre humanização em comparação a não médicos (p = 0,001). Após o treinamento o fato de estar enquadrado na categoria médica passou a ser fator agregador a humanização (p < 0,001). Ter filhos dificultou a autopercepção em humanização entre médicos e não médicos quando comparado a diferença pós versus pré-treinamento (p= 0,033).
DISCUSSÃO
Os resultados deste estudo sugerem que um treinamento sobre humanização foi eficaz na ampliação da autopercepção sobre conhecimento, habilidades e atitudes em humanização entre médicos (residentes de psiquiatria e psiquiatras), em um serviço especializado de tratamento de pacientes com transtornos relacionados ao uso de álcool e drogas.
Antes do treinamento, os profissionais não médicos apresentaram escores maiores em humanização do que os médicos, reforçando a noção que esses últimos se percebem menos “humanizados” ou têm menos conhecimento sobre o tema do que os outros profissionais da saúde30),(31. Essa diferença passa a não existir na avaliação após o treinamento.
O efeito da intervenção mostrou-se notável para categoria médica, que se mostrou sensível ao tema e apresentou escores semelhantes aos não médicos na segunda avaliação. Os não médicos também melhoraram a autopercepção sobre suas habilidades em humanização, porém os médicos aumentaram mais seus escores que os não médicos. Cabe dizer que não houve dificuldade quanto à aceitação do treinamento em humanização entre os médicos.
Podemos notar que, na amostra do estudo, a quantidade de vínculos empregatícios, o gênero e a religião mostraram diferenças significativas entre médicos e não médicos.
No caso do gênero, possivelmente refletindo um processo de feminização na área da saúde32, essa variável não mostrou influência no aumento das autopercepções em humanização nos instantes pré e pós-treinamentos nos profissionais envolvidos neste estudo quando se realizaram as análises multivariadas por meio de regressões lineares múltiplas.
Um estudo realizado sobre saúde, espiritualidade e religiosidade na visão dos estudantes de Medicina observou que apenas 20,2% deles associam a questão espiritualidade a uma postura de conduta ética e humanista, e 39,9% associam a humanização à medicina33. Estudos e revisões vêm mostrando a relevância da espiritualidade na prática clínica e na humanização. Alguns pesquisadores apontam que esse fator amplia a visão da saúde e da qualidade de vida34)-(36.
Apesar dos dados dos estudos citados, nossos resultados não mostraram a associação entre religião e humanização por meio das análises de regressões múltiplas.
Estudos evidenciam que, para aumentarem os ganhos mensais, os médicos exercem a profissão em diversos locais de trabalho, o que implica a necessidade contínua de locomoção de um lugar para o outro. Há um excesso de demanda no exercício da profissão, número insuficiente de médicos, sobrecarga de trabalho e diminuição do tempo de consulta. Essa situação pode ser, intuitivamente, prejudicial à humanização do atendimento dispensado aos pacientes. Tal rotina poderia prejudicar a qualidade de vida dos médicos e, consequentemente, refletir no exercício profissional37)-(39.
Não foi isso que observamos em nossa pesquisa. Apesar da diferença de número de vínculos profissionais (maior número de vínculos na categoria médica) observada na análise univariada, tal variável não foi fator significativo em relação aos escores de humanização nas regressões lineares múltiplas.
A humanização em saúde tem sido constantemente valorizada e incentivada, mas pouco se discute e se publica sobre como treinar profissionais já formados para que possam atuar de maneira mais humanizada. Assim, estudos que avaliem modelos de formação e ensino são essenciais para promover as mudanças necessárias, de modo a aumentar o conhecimento dos profissionais sobre a humanização, aprimorar o domínio do tema e implementar ações humanizadas na atenção à saúde40),(41.
Uma revisão de 2016 reuniu 23 artigos sobre humanização publicados no Brasil de janeiro de 2000 a junho de 2012. Desses artigos, 11 eram revisões e 12 envolviam pesquisa de campo qualitativa, e nenhuma foi realizada em hospitais psiquiátricos, reforçando ainda mais a necessidade de estudos como o que realizamos41.
Outra revisão em 2019, publicada por pesquisadores das universidades de Verona e Johns Hopkins, afirma que há poucas pesquisas quantitativas a respeito da humanização e que seriam interessantes resultados quantitativos na área psicossocial23. Tendo em vista isso, a nossa pesquisa foi pioneira e inovadora no que se diz respeito a amostras provenientes de um hospital psiquiátrico com profissionais de saúde mental.
Almeida42 afirma, em um artigo sobre a (in)formação científica e humanizada dos profissionais da saúde, que a psiquiatria está entre as áreas que mais reconhecem o potencial literário das humanidades médicas. Ainda assim, no Brasil, há poucos estudos sobre humanização com profissionais de saúde mental e menos ainda com médicos psiquiatras.
Na presente pesquisa, um modelo de curta duração (135 minutos), baixo custo e facilmente replicável foi desenvolvido pelos autores e mostrou-se efetivo para treinamento na área de humanização para médicos e também para não médicos. Os atributos listados são importantes porque os profissionais dispõem de pouco tempo para treinamentos, e o custo também é sempre um fator limitante43.
O tema do treinamento aqui avaliado também merece destaque. Recentemente, a humanização tem sido vinculada ao profissionalismo médico e cada vez mais é objeto de discussão na educação médica44. Humanizar o atendimento médico é necessário para reduzir a lacuna entre as expectativas e visões dos médicos e dos pacientes. Os médicos tendem a considerar e supervalorizar os aspectos técnicos, o pragmatismo e o poder do conhecimento na relação médico-paciente, em contraste com os pacientes, que esperam que os médicos sejam confiantes, empáticos, humanos, pessoais, francos e respeitosos45)-(47.
Novos modelos curriculares aos poucos vêm sendo apresentados pelas faculdades de Medicina11),(12),(48),(49. Acreditamos que isso pode ter influenciado nos resultados do pré-treinamento, mostrando que os profissionais com cinco anos ou menos de serviço apresentam escores maiores em relação aos profissionais que apresentaram seis ou mais anos de serviço. Entretanto, percebemos que essa diferença desapareceu nos pós-treino, sugerindo que médicos com mais tempo de formados possam se beneficiar desse tipo de treinamento.
Diversos artigos vêm trazendo a relevância da humanização do ponto de vista ético. Quando a ética é transgredida, a humanização precisa ser retomada para que os valores humanos possam ser vivificados por meio de atitudes que demonstrem empatia, respeito e solidariedade50),(51.
Há exemplos de estudos publicados com enfoque nos processos contra médicos em razão das transgressões do código de ética16,52. Nesses achados, são retomadas as dificuldades relatadas nas relações de médicos com pacientes que poderiam ser interpretadas como debilidades no exercício da humanização, haja vista que acolhimento, práticas do cuidado, empatia e ética englobam a humanização. Em um desses artigos, foi realizada uma análise no contexto da psiquiatria, e constatou-se que profissionais homens com mais de 20 anos de carreira estão entre aqueles que mais são processados52. Novamente podemos perceber que quanto maior o tempo de atuação profissional, parece existir mais dificuldade com as práticas ligadas à ética e ao humanismo, havendo então necessidade de treinamentos para retomada desses valores humanizadores.
Uma questão central deste estudo foi a seguinte: “O tempo de treinamento (135 minutos) e a metodologia em geral permitem transmitir informações ou gerar competência em humanização?”. Alguns pesquisadores caracterizam a competência por meio de três elementos fundamentais: o conhecimento é o “saber”, as habilidades são o “saber fazer”, e as atitudes são o “saber agir”53.
Pela sua brevidade e pela ausência de monitoramento dos sujeitos da pesquisa no longo prazo, é difícil, por meio desta pesquisa, avaliar a aquisição de competência. Podemos observar, através da melhora dos escores após o treinamento, que, na percepção dos sujeitos, a transmissão do conhecimento foi eficaz. Nossa metodologia também não previa avaliação do sujeito fazendo ou agindo. Estudos longitudinais se prestariam melhor para avaliar a aquisição de competência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Além de virtudes, o estudo também apresenta limitações:
Esta pesquisa ocorreu em um hospital com características universitárias. Portanto, o público-alvo foi de profissionais que podem estar mais sensibilizados ao ensino e à pesquisa. A generalização para outros modelos de serviços pode ser prejudicada pela nossa especificidade.
Obtivemos resultados favoráveis após 15 dias do treinamento. Não sabemos se esses resultados se manteriam por períodos mais longos.
Não houve um grupo de controle.
Nossa amostra foi de 54 sujeitos. Embora obtida por meio de cálculos estatísticos, os resultados devem ser replicados em amostras maiores.
Finalizando, este estudo promoveu, por meio de um treinamento rápido, de baixo custo e que pode ser realizado em vários contextos na área da saúde, uma alteração positiva na autopercepção dos atributos (conhecimento, habilidades e atitudes) associados à humanização em médicos e não médicos. Os médicos apresentaram uma melhora mais acentuada da autopercepção na área de humanização do que os outros grupos.