INTRODUÇÃO
A violência contra as mulheres é um fenômeno multidimensional que afeta todas as classes sociais, raças, etnias e orientações sexuais. Além disso, é uma das principais formas de violação dos direitos humanos, pois atinge as mulheres no seu direito à vida, à saúde e à integridade física1. Trata-se de problema de proporções epidêmicas com várias formas de expressão, como a sexual. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), define-se violência sexual como
[...] qualquer ato sexual ou tentativas de obtê-lo, comentários ou insinuações sexuais não desejados, atos de tráfico ou dirigidos contra a sexualidade de uma pessoa, em que o agressor se utiliza da coerção, independentemente de sua relação com a vítima, para obter aquilo que deseja da vítima. A violência sexual não se limita à penetração da vulva ou do ânus com o pênis, outra parte do corpo ou objeto. A definição de estupro pode variar de acordo com cada país (p. 11)2.
Tanto ambientes públicos como privados podem ser cenários de violência sexual, e um dos lugares apontados como de alto risco é a universidade3),(4. Apesar de ser um espaço privilegiado para aprendizagem, esse tipo de instituição de ensino nem sempre representa ambiente seguro para as mulheres5),(6. Sabe-se que a violência sexual na universidade acarreta impacto negativo no desempenho acadêmico das mulheres e na saúde, com maior frequência de depressão, tentativas de suicídio, abuso de álcool e substâncias ilícitas, e problemas de saúde reprodutiva6. Salas de aula, laboratórios, festas, trotes, clubes esportivos e repúblicas são alguns dos diversos cenários dessa particular expressão de violência de gênero5.
A maior exposição ao toque e o aumento do contato físico na maioria dos ambientes acadêmicos tornam o ensino médico um cenário que coloca as estudantes em situações mais suscetíveis a uma maior proporção de violência sexual7. Além disso, o trabalho acadêmico desenvolvido em pequenos grupos e durante longas horas pode contribuir para a quebra de barreiras sociais7),(8. Nos últimos anos, sobretudo em decorrência de ampla cobertura na mídia por movimentos como o #MeToo, a questão da violência sexual contra mulheres nas universidades tem merecido renovada atenção9. Evidências recentes mostram que de 30% a 50% das estudantes já relataram alguma experiência de violência sexual durante o treinamento médico7),(10),(11. Apesar desses dados, há a expectativa de que esse fenômeno ainda seja subnotificado por vergonha, culpa ou medo de retaliação por parte dos assediadores12.
Caracterizado pela lei brasileira como o ato de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”12, o assédio sexual é a forma predominante de violência sexual no contexto universitário6)-(8),(13. Nesse tipo de discriminação de gênero, há a supremacia de uma pessoa em posição de poder, como empregadores e professores homens, que assedia um subordinado, comumente mulheres3),(14. Na maioria dos países, é ilegal em todos os ambientes educacionais e de trabalho15, mas, por se apresentar por meio de comentários, verbalizações e toques com conotação sexual obscena ou ofensiva geralmente difíceis de ser provados, existe ainda insuficiência de dados palpáveis, o que pode levar ao descrédito da denúncia5),(14.
No Brasil, a visibilidade da violência sexual no contexto universitário é escassa. Dados de um estudo que estimou a prevalência de abusos e maus-tratos entre estudantes de Medicina durante a graduação em São Paulo, em 2013, mostraram que 92,3% deles relataram ter sofrido pelo menos um tipo de agressão, com destaque para humilhação/depreciação (73,1%) e agressão verbal (59,7%). A prevalência de violência sexual também foi alta (43,3%), tendo como principais perpetradores outros estudantes (37,8%) e professores (23,8%)16. Levando em consideração o risco elevado de as estudantes de Medicina serem vítimas de violência sexual no ambiente universitário, são necessárias pesquisas continuadas para avaliar o contexto em que esse fato acontece e fomentar ações para evitar sua ocorrência. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi caracterizar a prevalência da violência sexual contra mulheres estudantes de Medicina no ambiente universitário e os fatores associados.
MÉTODO
Trata-se de estudo transversal e analítico, do qual participaram mulheres estudantes das oito escolas médicas do estado do Piauí, quatro públicas e quatro privadas, distribuídas em três cidades (Teresina, Parnaíba e Picos). Os critérios de inclusão foram ser mulher matriculada no curso de Medicina do Piauí e possuir idade igual ou superior a 18 anos. Excluíram-se do estudo as alunas que responderam a menos de 50% das questões autoaplicadas.
O tamanho amostral foi calculado pela técnica de amostragem aleatória simples sem reposição, considerando-se população de 3.786 estudantes de Medicina no estado, dos quais 46,6% são do sexo feminino (1.765). Assim, após a adoção de intervalo de confiança (IC) de 95%, variância com base na prevalência de 34% de violência sexual17 e erro de 5% nos parâmetros, estabeleceu-se amostra de 210 participantes.
Entre maio e novembro de 2021, as estudantes foram contactadas com a ajuda de intermediárias (alunas dos centros acadêmicos) para o convite à participação no estudo por meio de telefone, e-mail e redes sociais como WhatsApp de todas as turmas dos cursos de Medicina em cada escola médica. Ofereceu-se o endereço eletrônico para permitir o acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e ao questionário. Foi solicitado que aquelas que respondessem ao questionário indicassem outras para participar da pesquisa, caracterizando a técnica de bola de neve (snowball sampling). Além disso, outra forma de divulgação consistiu em chamadas para a participação no estudo, publicizadas pelas coordenações dos cursos de Medicina.
O instrumento de pesquisa foi desenvolvido pelos pesquisadores, tendo como base estudos prévios sobre o tema3),(8),(10),(11),(13. Realizou-se pré-teste do instrumento (com especialistas no tema e mulheres estudantes de Medicina), com o intuito de verificar a clareza dos enunciados, a pertinência das perguntas e a adequação aos objetivos. O questionário anônimo e estruturado foi disponibilizado em endereço eletrônico específico (enviado por e-mail ou por aplicativo de mensagens - WhatsApp), composto por perguntas fechadas (incluindo perguntas de múltipla resposta) sobre: 1. características sociodemográficas (faixa etária; cor da pele; ocupação profissional; parceria conjugal; moradia; identidade de gênero; orientação sexual); 2. dados de identificação do curso (tipo de instituição de ensino; período da graduação); 3. informações sobre a violência sexual (ocorrência da violência; recidiva da violência; local da ocorrência; disciplina de ocorrência; tipo de agressor; gênero do agressor; faixa etária do agressor; consequências da violência; denúncia).
A ocorrência de violência sexual foi baseada na definição da OMS1, com a seguinte classificação: 1. comentários sexistas ou sexualmente degradantes (abuso verbal ou comentário sexista sobre a aparência física; frases ofensivas ou de duplo sentido; elogios atrevidos); 2. gestos sexuais degradantes (alusões grosseiras, humilhantes ou embaraçosas; insinuações sexuais inconvenientes e ofensivas); 3. toque ou contato físico sexuais indesejados (toque sexualizado sem penetração; tentativa de agressão penetrativa; execução de ato penetrativo, seja oral, vaginal, anal ou outro tipo de penetração); 4. exibição de material pornográfico (envio de e-mail, mensagens telefônicas ou uso de redes sociais para condução de imagens de cunho pornográfico); 5. suborno sexual (solicitação de relações íntimas ou outro tipo de conduta de natureza sexual, mediante promessas de benefícios e recompensas; pedidos de favores sexuais com promessa de tratamento diferenciado em caso de aceitação); 6. agressão sexual (apalpadelas, fricções ou beliscões deliberados e ofensivos).
Os dados foram organizados em planilhas do programa Microsoft Excel e, posteriormente, analisados pelo Statistical Package for the Social Sciences (SPSS/versão 20.0) e R-Project (versão 3.6.0). Para a análise univariada, utilizou-se estatística descritiva com frequências absolutas e percentuais. Na análise bivariada, empregou-se o teste do qui-quadrado de Pearson para associar as variáveis independentes com a violência sexual. Realizou-se regressão logística múltipla para a análise multivariada, tendo como critério para inclusão de variáveis no modelo logístico a associação de 5% (p < 0,05) na análise bivariada. O critério de significância ou permanência das variáveis no modelo de regressão logística, por sua vez, foi a associação em nível de 5% (p < 0,05).
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí (CAAE nº 38711420.9.0000.5214/Parecer nº 4.380.276).
RESULTADOS
Foram entrevistadas 211 mulheres estudantes de Medicina. A Tabela 1 mostra que a maioria delas se autoidentificou como mulher cisgênero (98,6%) e heterossexual (85,8%), na faixa etária de 21 a 25 anos (60,2%), sem vínculo trabalhista (81,0%) e que reside com os pais (61,6%). Houve predominância de estudantes de cor da pele branca (50,2%), com renda familiar acima de dez salários mínimos (45,5%) e com parceria conjugal (52,1%). A maior parte estudava em instituições públicas (55,5%) e estava entre o quinto e o oitavo período da graduação (56,9%).
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Faixa etária (anos) | ||
18-20 | 65 | 30,8 |
21-25 | 127 | 60,2 |
26-30 | 12 | 5,7 |
> 30 | 7 | 3,3 |
Cor da pele | ||
Amarela | 3 | 1,4 |
Branca | 106 | 50,2 |
Parda/preta/negra | 102 | 48,4 |
Ocupação profissional | ||
Sim | 40 | 19,0 |
Não | 171 | 81,0 |
Renda familiar (em salários mínimos) | ||
Até 2 | 20 | 9,5 |
> 2-5 | 45 | 21,3 |
> 5-10 | 50 | 23,7 |
> 10 | 96 | 45,5 |
Parceria conjugal | ||
Sim | 114 | 52,1 |
Não | 95 | 47,9 |
Moradia | ||
Pais | 130 | 61,6 |
Parceiro/marido e/ou filhos | 13 | 6,1 |
Sozinha | 32 | 15,2 |
Outrosa | 36 | 17,1 |
Identidade de gênero | ||
Mulher cis | 208 | 98,6 |
Não binária | 3 | 1,4 |
Orientação sexual | ||
Heterossexual | 181 | 85,8 |
Bissexual | 24 | 11,4 |
Lésbica | 5 | 2,4 |
Outra | 1 | 0,4 |
Tipo de instituição de ensino | ||
Privada | 94 | 44,5 |
Pública | 117 | 55,5 |
Período da graduação | ||
1º-4º | 60 | 28,4 |
5º-8º | 120 | 56,9 |
9º-12º | 31 | 14,7 |
Total | 211 | 100,0 |
a Moradia com pessoa não citada nas alternativas anteriores.
Fonte: Elaborada pelos autores.
A Tabela 2 evidencia as características da violência sexual sofrida pelas estudantes. A ocorrência da violência sexual foi relatada por metade delas (55%) como um evento único (69,3%), caracterizado na sua maioria por comentários sexistas ou sexualmente degradantes (87,8%). A violência sexual ocorreu principalmente durante os dois primeiros anos do curso (65,8%), em ambientes de prática, como local de estágio, laboratório, unidade básica de saúde e hospital, (55,3%) e disciplinas do ciclo básico (63,0%). Os agressores foram majoritariamente homens (99%), com idade acima de 40 anos (60,4%) e professores (59,3%). Os eventos de violência sexual resultaram em consequências como sofrimento emocional (47,3%) e queda de produtividade/qualidade do estudo (25,0%). A denúncia foi realizada por uma minoria de estudantes (7,1%).
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Ocorrência da violência sexual (n = 211) | ||
Sim | 116 | 55,0 |
Não | 95 | 45,0 |
Recidiva da violência sexual (n = 114) | ||
Sim | 35 | 30,7 |
Não | 79 | 69,3 |
Tipos de violência sexual (n = 115) a | ||
Comentários sexistas ou sexualmente degradantes | 101 | 87,8 |
Toque ou contato físico sexuais indesejados | 50 | 43,5 |
Gestos sexuais degradantes | 27 | 23,5 |
Agressão sexual | 8 | 6,9 |
Suborno sexual | 5 | 4,3 |
Exibição de material pornográfico | 2 | 1,7 |
Local de ocorrência da violência (n = 114) a | ||
Ambiente de práticab | 63 | 55,3 |
Áreas abertas do campus | 53 | 46,5 |
Sala de aula | 50 | 43,8 |
Período do curso (n = 111) a | ||
1º-4º | 73 | 65,8 |
5º-8º | 50 | 45,0 |
9º-12º | 14 | 12,6 |
Disciplinas do curso (n = 46) a | ||
Disciplinas básicasc | 29 | 63,0 |
Disciplinas clínicas e cirúrgicasd | 17 | 36,9 |
Estágios | 5 | 10,9 |
Tipo de agressor(a) (n = 113) a | ||
Professor(a) | 67 | 59,3 |
Aluno(a) | 51 | 45,1 |
Desconhecido(a) | 31 | 27,4 |
Funcionário(a) | 17 | 15,0 |
Gênero do(a) agressor(a) (n = 111) a | ||
Homem | 110 | 99,0 |
Mulher | 3 | 2,7 |
Faixa etária do(a) agressor(a) (em anos) (n = 111) a | ||
Até 30 | 44 | 39,6 |
31-40 | 35 | 31,5 |
40 ou mais | 67 | 60,4 |
Consequências da violência (n = 112) a | ||
Sofrimento emocionale | 53 | 47,3 |
Queda da produtividade/qualidade do estudo | 28 | 25,0 |
Perda de interesse pelo curso | 6 | 5,3 |
Sem alteração | 40 | 35,7 |
Denúncia (n = 113) | ||
Sim | 8 | 7,1 |
Não | 105 | 92,9 |
a Múltiplas respostas; b local de estágio, laboratório, unidade básica de saúde e hospital; c Anatomia, Estatística, Bioética, Filosofia, Neuroanatomia, Fisiologia, Fundamentos da Prática Médica, Histologia, Farmacologia e Patologia; d Cirurgia, Ortopedia, Ginecologia e Obstetrícia, Cardiologia, Técnica Cirúrgica, Clínica Cirúrgica, Técnica Operatória e saúde mental; e tristeza exagerada, ansiedade, depressão e fobias.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Na análise bivariada, estudantes entre 21 e 25 anos (ORbr = 1,90; IC95% 1,04-3,49) e entre 26 e 30 anos (ORbr = 15,48; IC95% 1,88-127,15) apresentaram maior chance de sofrer violência sexual durante a graduação em Medicina quando comparadas àquelas com 20 anos ou menos. Além disso, houve maior prevalência de violência sexual entre as estudantes de instituições públicas (ORbr = 1,82; IC95% 1,05-3,15), entre as que cursavam entre o nono e o 12º período de graduação (ORbr = 3,76; IC95% 1,45-9,75) e entre as bissexuais (ORbr = 4,89; IC95% 1,61-14,87) (Tabela 3).
Variáveis | Violência sexual | ORbr | IC95% | pa | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Sim | Não | ||||||
n | % | n | % | ||||
Faixa etária (em anos) | |||||||
18-20 | 27 | 41,5 | 38 | 58,5 | 1 | - | - |
21-25 | 73 | 57,5 | 54 | 42,5 | 1,90 | 1,04-3,49 | 0,037 |
26-30 | 11 | 84,6 | 2 | 15,4 | 15,48 | 1,88-127,15 | 0,011 |
> 30 | 5 | 83,3 | 1 | 16,7 | 3,52 | 0,63-19,50 | 0,150 |
Cor da pele/raça | |||||||
Branca | 56 | 52,8 | 50 | 47,2 | 2,24 | 0,20-25,46 | 0,587 |
Amarela | 1 | 33,3 | 2 | 66,7 | 1 | - | - |
Parda/preta/negra | 59 | 57,8 | 43 | 42,2 | 2,74 | 0,24-31,25 | 0,416 |
Ocupação profissional | |||||||
Sim | 26 | 65,0 | 14 | 35,0 | 1,67 | 0,82-3,42 | 0,160 |
Não | 90 | 52,6 | 81 | 47,4 | 1 | - | - |
Renda familiar (em salários mínimos) | |||||||
Até 2 | 15 | 75,0 | 5 | 25,0 | 1 | - | - |
> 2-5 | 27 | 60,0 | 18 | 40,0 | 2,76 | 0,93-8,20 | 0,189 |
> 5-10 | 24 | 48,0 | 26 | 52,0 | 1,38 | 0,67-2,83 | 0,380 |
> 10 | 50 | 52,1 | 46 | 47,9 | 0,85 | 0,43-1,68 | 0,640 |
Parceria conjugal | |||||||
Sim | 68 | 59,6 | 46 | 40,4 | 1,51 | 0,87-2,61 | 0,140 |
Não | 48 | 49,5 | 49 | 50,5 | 1 | - | - |
Moradia | |||||||
Pais | 76 | 58,5 | 54 | 41,5 | 2,06 | 0,94-4,52 | 0,072 |
Parceiro/marido e/ou filhos | 9 | 69,2 | 4 | 30,8 | 3,29 | 0,83-12,98 | 0,089 |
Sozinha | 13 | 40,6 | 19 | 59,4 | 1,46 | 0,56-3,82 | 0,439 |
Outrosb | 18 | 50,0 | 18 | 50,0 | 1 | - | - |
Identidade de gênero | |||||||
Mulher cis | 113 | 54,3 | 95 | 45,7 | - | - | - |
Não binária | 3 | 100 | 0 | 0 | - | - | - |
Orientação sexual | |||||||
Heterossexual | 91 | 50,3 | 90 | 49,7 | 1 | - | - |
Bissexual | 20 | 83,3 | 4 | 16,7 | 4,89 | 1,61-14,87 | 0,005 |
Lésbica | 4 | 80,0 | 1 | 20,0 | 3,91 | 0,43-35,69 | 0,226 |
Instituição de ensino | |||||||
Privada | 44 | 46,8 | 50 | 53,2 | 1 | - | - |
Pública | 72 | 61,5 | 45 | 38,5 | 1,82 | 1,05-3,15 | 0,033 |
Período da graduação | |||||||
1º-4º | 26 | 43,3 | 34 | 56,7 | 1 | - | - |
5º-8º | 67 | 55,8 | 53 | 44,2 | 1,65 | 0,88-3,09 | 0,115 |
9º-12º | 23 | 74,2 | 8 | 25,8 | 3,76 | 1,45-9,75 | 0,006 |
ORbr: odds ratio bruta IC95%: intervalo de confiança de 95%.
a Teste do qui-quadrado; b Moradia com pessoa não citada nas alternativas anteriores.
Fonte: Elaborada pelos autores.
A Tabela 4 exibe os resultados da análise multivariada. A chance de sofrer violência sexual foi maior entre alunas que se autoidentificaram como bissexuais (ORaj = 3,87; IC95% 1,20-12,48) e que estudam em instituição de ensino pública (ORaj = 3,12; IC95% 1,67-5,82).
Variáveis | ORaj | IC95% | pa |
---|---|---|---|
Faixa etária (em anos) | |||
18-20 | 1 | - | - |
21-25 | 1,31 | 0,61-2,83 | 0,489 |
26-30 | 6,56 | 0,69-62,13 | 0,101 |
> 30 | 1,17 | 0,16-8,70 | 0,875 |
Orientação sexual | |||
Heterossexual | 1 | - | - |
Bissexual | 3,87 | 1,20-12,48 | 0,024 |
Lésbica | 1,63 | 0,15-17,20 | 0,684 |
Instituição de ensino | |||
Privada | 1 | - | - |
Pública | 3,12 | 1,67-5,82 | <0,001 |
Período da graduação | |||
1º-4º | 1 | - | - |
5º-8º | 1,24 | 0,57-2,69 | 0,587 |
9º-12º | 2,24 | 0,69-7,26 | 0,177 |
ORaj: odds ratio ajustada; IC95%: intervalo de confiança de 95%.
a Teste do qui-quadrado.
Fonte: Elaborada pelos autores.
DISCUSSÃO
O presente estudo é o primeiro a pesquisar no Piauí a violência sexual contra mulheres estudantes de Medicina no ambiente universitário. O estudo evidenciou relatos de violência sexual por mais da metade das estudantes em algum momento do curso médico, com maior chance de ocorrência entre aquelas de instituições públicas e entre pessoas bissexuais. Além disso, a violência se expressou mais comumente com comentários sexistas ou sexualmente degradantes, cometida por homens, professores e durante as aulas. À semelhança de outros estudos3),(4),(11),(13,(14, esses dados demonstram como o fenômeno é frequente e que as estudantes não estão protegidas contra violência sexual no ambiente universitário.
Os resultados do atual estudo são semelhantes aos de uma pesquisa alemã de 2020 realizada com 343 alunos de Medicina que apontou que mais de 50% de estudantes informaram ter experimentado ou ter testemunhado violência sexual do tipo assédio sexual na educação médica18. Já no Brasil, um estudo com 175 estudantes de uma instituição pública revelou que 40% das universitárias já sofreram violência sexual no contexto universitário19. Sabe-se, contudo, que parte das alunas pode mostrar dificuldade na identificação da violência sexual, favorecendo a suposição sobre um número maior de vitimizações sexuais19),(20, o que também pode ter ocorrido na atual pesquisa. Dados de uma revisão sistemática de 2010-2016 sobre a magnitude da violência sexual contra universitários norte-americanos revelaram que a prevalência da agressão sexual contra estudantes do sexo feminino pode variar de 5% a 80,4%20.
A vivência da violência sexual no contexto universitário está associada à recidiva desse evento. Tanto para universitários homens como para mulheres, a exposição à violência sexual aumenta a chance de evento de revitimização sexual, principalmente para aqueles que sofreram a agressão antes da universidade21),(22. Angústia, depressão e sofrimento decorrentes do estresse pós-violência sexual, mediados em geral pelo consumo abusivo de álcool e outras substâncias, explicam em parte a maior vulnerabilidade que favorece a recidiva desse tipo de evento21. Além do imprescindível acolhimento multidisciplinar das vítimas e do processamento das denúncias, tais dados apontam a necessidade de estratégias para prevenção de novas ocorrências. Embora com resultados conflitantes, programas institucionais voltados para a conscientização e o treinamento de toda a comunidade universitária parecem diminuir novas ocorrências13),(21),(22.
Constatou-se que a violência sexual ocorreu por meio de comentários sexistas ou sexualmente degradantes na maior parte das vezes. Outros estudos também demostraram que o assédio é o tipo mais frequente de violência sexual7),(11),(13),(18. Pelo fato de esse tipo de assédio ser visto como parte integrante de normas sociais mais amplas3),(15, presume-se que a aceitação ou não identificação desse tipo de violência ocorra porque são eventos sutis, considerados episódios sem importância, que podem passar despercebidos e ser aceitos sem questionamentos11),(14),(20. No entanto, é importante que sua definição seja ampla e clara para que condutas como expressões sexualmente sugestivas, piadas e abuso verbal de natureza sexual sejam identificadas como comportamentos que ameaçam a integridade e os direitos fundamentais das estudantes3),(5),(20.
Nesta pesquisa, a violência sexual apresentou maior prevalência entre alunas do primeiro ao quarto período de Medicina. Esse achado apresentou concordância com a literatura que mostrou que as estudantes recentemente ingressas são as mais afetadas pela violência sexual no âmbito universitário23)-(25. Em um estudo norte-americano de 2015, as alunas do primeiro ano tinham de duas a 4,6 vezes mais probabilidade de sofrer violência sexual, quando comparadas a outras de anos mais avançados na graduação em Medicina23. Conhecido como “zona vermelha”, o período inicial do curso apresenta maior concentração de festas e trotes23),(24, o que favorece, muitas vezes, a agressão sexual relacionada ao consumo de bebidas alcoólicas pela vítima e/ou pelo agressor23),(25. Mesmo entre estudantes de idade mais elevada, o desconhecimento das regras do novo ambiente e a vulnerabilidade social das calouras ou recém-chegadas favorecem uma variedade de formas de vitimização sexual23.
Quanto ao local de ocorrência da violência sexual, as estudantes indicaram os ambientes de prática (locais de estágio, laboratórios, unidades básicas de saúde e hospitais) como aqueles onde os eventos de violência foram mais frequentes. Mesmo que alguns dos cenários descritos, como hospitais e outros serviços de saúde para aquisição de habilidades práticas, por vezes não pertençam ao âmbito da instituição de ensino propriamente dita, são territórios significativos do ponto de vista acadêmico. É importante considerar que a esfera de domínio da universidade não se restringe ao limite geográfico do campus, mas inclui todos os locais em que estudantes, professores e funcionários estejam reunidos em nome da universidade, sejam seminários, palestras, atividades de pesquisa de campo ou viagens em função de atividades da instituição26.
De forma semelhante aos resultados de uma pesquisa com estudantes de medicina canadenses27, as discentes do atual estudo indicaram que os agressores em quase sua totalidade foram homens. Essa revelação com maior proporção de casos cometidos por homens contra estudantes mulheres pode caracterizar violência de gênero, considerada como discriminação sexual e simbolizando sexismo no contexto das escolas médicas. Como em outros espaços sociais, a violência de gênero reproduz as relações históricas e culturais de subjugação da mulher à figura masculina2),(11),(15),(18),(26. A violência de gênero é, sobretudo, uma consequência da desigualdade motivada pelo sexo, da expressão do patriarcado e do machismo, que faz referência às diversas formas de ameaças, imposições ou pretensão de subordinação e controle do gênero feminino pelo masculino. As ações de dominação pertencem a uma construção social expressa pelos homens em múltiplos espaços, incluindo os públicos de educação, trabalho e política2),(18),(26. Dessa forma, na universidade é comum que ocorram replicações de expressões de superioridade do homem diante da mulher nas relações entre professores e alunas18),(28.
Como ocorre em outras formas de violência contra as mulheres, o agressor das estudantes no contexto universitário é comumente alguém conhecido pela vítima7),(8),(11),(18),(25),(27. Os resultados deste estudo identificaram o professor da instituição como o agressor mais prevalente nas escolas médicas, como também observado no Sul do Brasil em 2019, com graduandas de Medicina, Odontologia e Psicologia, que classificaram o docente como o principal infrator de violências emocional, física e sexual29. Provavelmente isso acontece em decorrência de os professores possuírem duplo poder (sexo masculino e maior posição hierárquica) socialmente naturalizado em relação às estudantes, o que lhes confere maior desinibição para a prática de violência sexual5),(19. Assim, o assédio sexual na associação professor-aluna se expressa tanto em uma relação de poder institucionalizada, como entre o indivíduo que avalia e o outro que é avaliado, quanto nas demais que envolvam a internalização dos papéis de gênero, muitas vezes produzidos por padrões repetidos de dominância masculina2),(5),(18),(28.
Esta pesquisa demonstrou que as consequências da violência sexual incluíram principalmente sofrimento emocional e queda de produtividade/qualidade do estudo, em consonância com dados que evidenciam que mulheres vítimas de violência sexual em geral têm 2,6 vezes mais propensão de manifestar depressão e ansiedade1),(12. Esses resultados colocam a saúde mental em foco, sobretudo no que concerne a problemas de curto e longo prazos que podem levar a uma maior procura dos serviços de saúde e às queixas feitas pelas universitárias5),(6),(21),(22. Ademais, precaução ainda maior deve ser ofertada quanto aos sintomas de depressão e ansiedade, visto que são transtornos que podem prever a revitimização sexual30 e a suposição de relações causais recíprocas entre sofrimento mental e assédio sexual22. Além disso, o baixo desempenho acadêmico da estudante e a interferência no processo de aprendizagem estão frequentemente associados ao aumento da evasão escolar5. A violência sexual nas universidades tem impacto negativo mais forte sobre o desempenho acadêmico das alunas, com maior taxa de abandono do curso, do que as violências física e verbal31.
Os dados do atual estudo são condizentes com a literatura ao revelarem que apenas uma minoria de estudantes de Medicina denunciou os episódios14),(17. Os motivos para as poucas taxas de delação podem ser diversos e incluem desde a ausência de canais de denúncia, de acolhimento e de adoção de medidas administrativas disciplinares nas universidades até o estigma e o medo, por parte das vítimas, de descrédito e de retaliação26),(28. A não denúncia pode ainda ser justificada pela ausência de definição formal de violência sexual das universidades, pela dificuldade da vítima em reconhecer a violência e pela naturalização dos episódios13),(26. Piadas, cantadas e brincadeiras de cunho sexual são frequentemente consideradas comportamentos sexuais inofensivos, próprios do fenômeno da conquista28. A formalização da denúncia se torna mais difícil quando o agressor é o professor, principalmente quando ocupa cargo de autoridade intelectual e/ou possui carreira acadêmica de destaque5. Espera-se, contudo, que a universidade garanta segurança e bem-estar físico e psicológico das estudantes, além de assegurar a intimidade e a privacidade necessárias em situações de violência, tratando as diligências com discrição e respeito a todos os envolvidos26.
Muitas discentes ainda percebem a universidade como ambiente hostil, seja pela pouca solidariedade para com as vítimas de violência sexual, pela culpabilização da estudante ou por exemplos de denúncias com resultados desfavoráveis às vítimas5),(32. Observou-se essa realidade entre universitários mexicanos, segundo os quais, em 44% dos casos, o responsável não foi punido e não houve medidas para reparar os danos às vítimas, e, em 3% das situações, ocorreu humilhação33. Entretanto, pode haver a existência de uma rede informal de apoio às vítimas, o que inclui parceiros conjugais, mães, pais, irmãos/outros membros da família, colegas do sexo masculino, colegas do sexo feminino, colegas de quarto e amigos/familiares combinados34. Sugere-se que esse amparo por pessoas confiáveis e próximas às vítimas seja imprescindível e as ajude a lidar com os sentimentos e anseios advindos da vitimização33.
Fatores associados à boa percepção da estudante sobre a universidade tendem a aumentar a probabilidade de denúncia da violência sexual às autoridades institucionais. Isso ocorrerá se a estudante se sentir apoiada, cuidada e valorizada, como parte integrante da universidade, com bons relacionamentos com o corpo docente e um vínculo fortalecido com a instituição de ensino35. Mesmo que para muitas vítimas seja árduo denunciar formalmente a violência sexual às autoridades da instituição de ensino, a denunciação e a boa qualidade dos serviços de apoio e acompanhamento têm potencial para evitar consequências negativas no longo prazo6),(14),(33. Além disso, não denunciar permite que os agressores fiquem impunes, reforça a possibilidade de vitimizações futuras e tende a normalizar atos violentos, transformando-os em parte da cultura da universidade26),(32.
Sabe-se que algumas características sociodemográficas podem atuar como fatores de proteção contra a violência sexual na população de estudantes universitários em geral. A cisgeneridade, a heterossexualidade, a raça branca, a vivência de relacionamentos íntimos estáveis ou monogâmicos e morar com a família estão associados à menor probabilidade de sofrer violência25),(30),(36. Contudo, outras características são fatores agravantes que aumentam o risco de agressão sexual no contexto universitário, como a idade menor de 26 anos30 e a precariedade econômica25. No atual estudo, dois aspectos foram associados à violência sexual no âmbito universitário: o fato de a instituição de ensino ser pública e a bissexualidade das estudantes.
Não há consenso sobre o tipo de instituição de ensino influenciar ou não a violência sexual. Existem dados conflitantes evidenciando que não há associação significativa entre perpetração de violência sexual, características de nível institucional37) e maior frequência de relatos entre as públicas38. É possível que as instituições de ensino públicas possam ser cenários mais passíveis a manifestações de atos de violência sexual por aparentemente apresentarem menos segurança e fiscalização37, pela inexistência de documentos que normatizem os procedimentos a serem tomados por elas5) ou, talvez, pela estabilidade dos docentes no emprego. Nos últimos anos, porém, algumas iniciativas de universidades públicas brasileiras, com construção de protocolos contra a violência sexual, têm ganhado corpo e favorecido o enfrentamento da violência5),(26),(39.
A ocorrência de violência sexual foi mais frequente entre estudantes não heterossexuais, com associação significativa entre aquelas que se autoidentificaram como bissexuais. Esse dado está em concordância com outros estudos que evidenciam taxas de violência sexual nas universidades maiores entre lésbicas, gays, bissexuais, transgênero, intersexuais, queer, assexuais e outras identidades de gênero e orientações sexuais (LGBTQIA+), quando comparados aos alunos heterossexuais cisgênero22),(25. Ambientes sociais homofóbicos, bifóbicos, transfóbicos ou sexistas podem criar normas que desvalorizam pessoas LGBTQIA+, resultando em maior violência contra elas40. Por sua vez, alunos de escolas com currículos mais inclusivos relataram menor propensão a testemunhar comentários homofóbicos ou transfóbicos e maior possibilidade de se sentirem seguros41. A criação de ambientes seguros, acolhedores e de apoio para esses indivíduos é considerado ponto central para reduzir a violência sexual nas universidades40),(41.
Este estudo apresenta algumas limitações que merecem ser consideradas. Primeiro, o desenho transversal do estudo não permite o estabelecimento de causalidade entre violência sexual e fatores de risco potenciais. Segundo, o tipo de seleção empregado pode ter contribuído para a participação de estudantes vítimas de violência sexual e que tinham necessidade de falar sobre isso ou, ao contrário, discentes que foram vítimas não responderam à pesquisa porque não queriam reviver o trauma. Por fim, alguns dados ausentes no questionário, como o uso de álcool pela vítima/agressor ou o relato de violência sexual prévia à universidade, poderiam melhor esclarecer o fenômeno. No entanto, tendo em vista a escassez de estudos brasileiros sobre o tema, a atual pesquisa preenche lacunas ao evidenciar taxas inaceitáveis de violência sexual contra mulheres no ensino médico. Torna-se importante, portanto, desenvolver abordagens das práticas de violência em contextos diversos para criar mudanças efetivas e sustentáveis com todos os interessados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os achados encontrados fornecem evidências de que essa violência é de fato um problema substancial a ser enfrentado por todos aqueles envolvidos na educação médica. A violência se caracterizou principalmente como assédio sexual, por meio de comentários sexistas ou sexualmente degradantes em ambientes de prática, nos primeiros anos dos cursos. O professor universitário, homem e com idade acima de 40 anos, foi o autor mais recorrente. Fatores como estudar em instituição de ensino pública e ser bissexual aumentaram as chances de sofrer violência sexual no curso médico. De um lado, as denúncias às autoridades da instituição foram mínimas, de outro, as consequências dos atos violentos parecem ter favorecido sofrimento mental e problemas educacionais significativos.
Tais resultados sustentam a necessidade de políticas e programas institucionais que reconheçam a intersecção dos múltiplos fatores envolvidos na violência sexual contra a mulher e enfatizem discussões na universidade acerca das disparidades de gênero e atitudes sobre sexualidade e sexo, determinando estratégias de prevenção e intervenção. Estudos adicionais são necessários para reforçar a magnitude do problema e esclarecer outras lacunas. É urgente que ocorram mudanças na cultura médica para estabelecer um ambiente de tolerância zero contra o assédio e outras formas de violência sexual durante o ensino médico.