INTRODUÇÃO
A história da luta por direitos é uma história que se repete no Brasil. Começa com comunidades indígenas sendo ludibriadas, saqueadas, violadas e exterminadas. Passa por comunidades africanas objetificadas, sequestradas, compradas, vendidas, violentadas e podadas. Chega em comunidades empobrecidas, exploradas, torturadas e renegadas. Todas elas guardam em comum, a despeito do fato de terem sido sistematicamente predadas, o elemento do coletivo como potência: gente que se reúne para fazer a vida junto.
Em meio a realidades forjadas na desigualdade estão as crianças, vivendo conosco a complexidade da vida e para ela tendo os olhos abertos desde a mais tenra idade - como é possível observar, por exemplo, ao longo da obra do artista plástico Candido Portinari, que nos traz não só a criança retirante da figura acima, mas também a que brinca, corre, estuda, dorme, trabalha e, a despeito do que desejamos, a que morre. Isso significa dizer que a dinâmica social toca a criança, de forma que não há redoma de vidro capaz de isolá-la do que é, e faz, a sociedade na qual ela vive. É justamente essa perspectiva de atrelamento entre infância, sociedade e história que esse artigo busca rastrear. Assim, são mobilizados alguns recortes como forma de fertilizar a compreensão quanto à dimensão política da presença da criança em diferentes processos, como a Conjuração Baiana no período colonial, a Guerra de Canudos no início da República brasileira, a ditadura civilmilitar que durou 21 anos e o contexto atual da cidade do Rio de Janeiro. Para isso, parte-se de duas premissas elaboradas pelo filósofo Walter Benjamin (2015; 2012) que fundamentam a análise aqui proposta: 1) a de que é preciso recolocar os cacos que são propositadamente deixados de fora da narrativa oficial sobre nossa história e, também, sobre grupos específicos, nesse caso, as crianças; 2) e a de que, para fazer isso, é necessário construir uma perspectiva metodológica outra, por ele formulada sob a ideia de constelação.
Quanto à primeira premissa, Benjamin (2015) dava ênfase ao fato de que a história oficial, aquela que figurava em letras maiúsculas nos livros e da qual se falava nas escolas, era uma história contada pela ótica do vencedor, uma história de grandes nomes e seus grandes feitos. A ela, Benjamin contrapunha a história de caracteres pequenos, feita de narrativas do cotidiano e das gentes, história que, para ele, guardava como potência a reconexão do homem à coletividade por meio da narrativa e do compartilhamento das experiências, movimentos que permitem que nos enxerguemos uns nas histórias dos outros.
O convite para escovar a história a contrapelo tem, na obra do filósofo, o sentido de trazer aqueles dos quais não se fala ao protagonismo, bem como as contradições ignoradas ou silenciadas ao debate, pois se nos contam a história aos cacos, precisamos recolocar os pedaços que, como afirmei acima, foram deixados de fora da narrativa oficial - quase como num exercício de montagem. É dessa forma que, para ele, mudamos o passado - conformado porque construído com base na tradição dos vencedores - e transformamos o sentido da própria história, trazendo no presente um passado vivo que nela se (re)insere.
Em relação à segunda premissa, que sustenta metodologicamente a discussão proposta nesse artigo, Benjamin (2012) fala sobre a potência da constelação como estratégia que permite produzir novas visadas a partir da mobilização de diferentes elementos em composições que vão se desenhando justamente a partir do movimento de quem os mira. Isso porque a constelação, ou seja, o conjunto formado pela relação entre as estrelas, é construída pelo olhar de quem as observa, posto que o que existe são apenas estrelas espalhadas na imensidão do universo. Esse todo é uma forma construída por nós, pelo nosso olhar. Do mesmo modo, na vida, o que nos toca muitas vezes nos chega pelo fragmento, pelo miúdo. A criação da constelação na perspectiva analítica é uma maneira que encontramos de dar acabamento a esses fragmentos.
A inspiração benjaminiana da constelação é apropriada nesse artigo como modo de apresentar os recortes e as fontes mobilizadas, a partir dos quais se formulam as problematizações e discussões aqui trazidas. Esse modo é marcado pela estética do fragmento, da parte, que permite acentuar as nuances de cada contexto, ainda que não se possa isolá-lo da relação com o todo que o constitui.
Como resultados das tessituras aqui produzidas, aponta-se a necessidade de assumir a posição e empreender esforços no sentido de realmente enxergar a criança em sua condição de sujeito, considerando sua existência e ação no mundo de modo responsável. Além disso, destacase a urgência em construir com as crianças relações de proximidade e apoio por meio da Philia aristotélica (Puente, 2020), que permite tomar o outro como um outro si mesmo (Rocha, 2006). Esse movimento que mistura ética e política é defendido aqui como dimensão capaz de potencializar a produção de novas formas de lutar pelos nossos horizontes utópicos a partir do amor e da amizade (hooks, 2006) com as crianças para as quais olhamos em nossas pesquisas e com as quais nos relacionamos em nosso cotidiano.
VER PARA MELHOR ENTENDER
Nossa história nos fornece um vasto repertório de experiências que demarca a presença da criança no tecido social, nos mais diferentes processos históricos e políticos que conhecemos. Desde as indígenas, que foram retiradas do convívio de suas famílias e comunidades por missionários e colonos, responsáveis por incluí-las no projeto civilizatório e financeiro da escravização (Paraiso, 2006), às crianças que foram desterritorializadas e trazidas à colônia em navios - sejam os que transportaram órfãos portugueses para facilitar a evangelização dos indígenas (Ramos, 2008) e para se casar com membros da administração pública (Rezzutti, 2018), sejam os que trouxeram crianças africanas alvo do sistema que visava lhes expropriar de suas almas, corpos, vidas, laços e histórias, para lhes transformar em mão de obra forçada ao limite (Rossini, 2019). Estiveram em voga, nesses casos, projetos de consolidação da conquista de povos, territórios e epistemologias. Projetos que concebiam a criança como ser a ser moldado e, portanto, promessa de um futuro domesticado, como postulava a própria concepção de infância que se estruturou no período posterior, com a ideia lockiana de criança como tábula rasa ou a imagem rousseauniana da criança pura e ingênua (Heywood, 2004).
A história da criança no Brasil pode ser lida como uma história de dor e sofrimento. Uma história que nasce de processos tantas vezes negados, ou retoricamente enfeitados, como o engodo da miscigenação (Gonzalez, 2020), produzida a partir do estupro de crianças indígenas, africanas, órfãs europeias, que gerou crianças brasileiras1. As mesmas depois abandonadas nas rodas dos expostos, vítimas da pobreza, da vergonha e das tantas outras violências sofridas por suas mães (Trindade, 1999) ou tomadas como objeto de políticas ocas, como a que as tornou libertas no ventre das mães escravizadas, mas cativas num contexto socioeconômico excludente (Zero, 2004). Para as crianças pobres, os orfanatos, asilos e companhias de aprendizes, onde se encontravam sob a tutela da Igreja, do Estado e de outros adultos munidos do poder conferido pela hierarquia geracional. Para as herdeiras das elites, os jardins de infância, os cuidados com a saúde e a preparação para um futuro promissor já previamente definido (Kuhlmann Jr., 2011).
O lugar de classe, longe de ser apenas um conceito de análise teórica, sempre delimitou o lugar concreto da criança na experiência da vida. Mas não só isso. No caso do massacre da Guerra de Canudos, por exemplo, perpetrado pelo primeiro governo civil da República brasileira contra a população sertaneja da Bahia, precarizada pelo histórico abandono econômico e político do Nordeste desde o declínio da produção açucareira e as constantes secas que assolavam a região, havia, para além do lugar de classe, outros dois elementos fundamentais em relação às poucas crianças que foram poupadas: a cor, já que a maioria era negra; e a origem, pois se tratava de filhas de jagunços, considerados assassinos impiedosos de soldados republicanos (Monteiro, 2011). Ambas as características implicaram que essas crianças, embora acolhidas e educadas na lógica da ética do trabalho - a nova aposta da República para lidar com os pobres (Chagas, 2021) -, seguiram socialmente entendidas como inferiores, instáveis e perigosas.
O estigma relacionado aos pais marcou também as crianças filhas de perseguidos pela ditadura civil-empresarial-militar brasileira. Crianças que, como as de Canudos, conheceram a violência do Estado antes mesmo de aprender a soletrar suas letras - ou até mesmo antes de nascer, violentadas ainda no ventre de suas mães. É o caso de João Carlos Grabois, filho de Crimeia Schmidt de Almeida, ex-guerrilheira do Araguaia2, que foi presa com sete meses de gravidez, levando choques elétricos e sendo espancada em diversas partes do corpo. Segundo a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, “[...] sempre que os carcereiros pegavam as chaves para abrir a porta da cela e levá-la à sala de tortura, o seu bebê ainda na barriga começava a soluçar” (São Paulo, 2014, p. 17). Tendo nascido na prisão, nessas condições, e mesmo anos depois, “[...] quando ouvia o barulho de chaves, voltava a ter soluços” (São Paulo, 2014, p. 17).
Quando o medo de um suposto golpe comunista se apossou, mais uma vez3, de boa parte da sociedade, sendo mobilizado como discurso legitimador do autoritarismo, instalou-se por meio de outro golpe - por paradoxal que pareça - uma ditadura lida pela historiografia como civilempresarial-militar justamente como forma de chamar atenção à responsabilidade de cada setor da sociedade que apoiou ou agiu com indiferença quanto à tomada do poder por parte dos militares (Reis, 2012).
Crianças que nasceram em cativeiros, que foram torturadas com seus pais, ou usadas como objeto de tortura contra eles, que vagaram pelo país e pelo mundo fugindo da repressão ou que tiveram de se separar de seus pais, crianças que desapareceram sem deixar vestígios ou que tiveram encobertos os vestígios da violência que sofreram pela nossa falaciosa justiça, crianças que viram seus pais sendo assassinados ou que nunca chegaram a conhecê-los, crianças que foram arrancadas de suas mães, impedidas de serem amamentadas, abraçadas, acolhidas, crianças que sofreram por serem filhas e filhos de mulheres e homens militantes políticos (Teles, 2014).
Ainda hoje é possível observar contextos de violações, como os de Canudos e da ditadura, porque a história do pobre no Brasil segue constituída de uma mesma trinca: miséria, fome, violência. Uma trinca que, para o cineasta baiano Glauber Rocha (1965) não é somente um sintoma alarmante, mas o nervo de nossa sociedade. “Nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida” (Rocha, 1965, s. p.).
Independentemente de haver legislação consolidada, ou de o sistema em voga se querer democrático, para o pobre nada está garantido! E se ele for negro, nordestino, morador de favela, ou pessoa em situação de rua, menos ainda… É exatamente na interseção dessas várias marcas que crianças seguem sendo vítimas de chacinas, como a da Candelária4, que resultou na morte de oito pessoas entre oito e dezenove anos de idade em 1993, e aquelas perpetradas no próprio cotidiano, que não ganham contornos narrativos de massacre, mas que, na prática, condensam o número de crianças que perdemos por guerras que não as pertencem, mas das quais elas fazem parte. Esse número aponta que, desde 1980, mais de 265 mil crianças e adolescentes morreram vítimas de homicídio no país5.
Embora essa leitura dê a impressão de que a posição da criança nesses contextos é de passividade diante da violência de uma sociedade racista, classista, machista, punitivista e de um Estado autoritário, repressivo e excludente, é preciso olhar mais uma vez. Em cada um desses processos a criança empreende uma luta por se fazer ouvir - quando fala e, também, quando se recusam a ouvi-la, como no caso de Rachel de Souza, a menina que se recusou a apertar a mão do presidente Figueiredo porque queria dizer algo para ele mas, em vez disso, mandaram que lhe desse a mão para fazer uma foto (Assis, 2019). É sobre essa luta, travada no miúdo do cotidiano e nos detalhes, que precisamos estar atentos se quisermos recuperar uma história da infância que faça jus à dimensão política da agência da criança no mundo. É preciso politizar nosso olhar para as crianças (Castro, 2007), a fim de que as enxerguemos como sujeitos de desejos, interesses e paixões legítimos.
Afinal, se tem algo que a história nos ensina é que, junto da opressão, nasce a luta. Em relação à criança, a lógica não muda. Uma rápida busca possibilita acessar trabalhos que sinalizam a presença de crianças em movimentos revolucionários, tanto como agentes, quanto como alvos de políticas específicas, como a Comuna de Paris (Coggiola, 2001), a Revolução Russa (Fulfaro, Souza, Sila, 2020) e a Revolução Cubana (Duarte, Jacomeli, 2020), e movimentos de resistência, como as fugas pelas matas na Segunda Guerra Mundial (Brecht, 2014; Fletcher, 2019), por exemplo6. Para além desses contextos, é necessário que se faça referência a outras experiências, como forma de resgatar a memória de histórias ainda pouco visitadas na discussão sobre crianças, como a da Conjuração Baiana (Valim, 2007), por exemplo. Acontecida na capital baiana em 1798, a Conjuração teve seu início marcado pela condução das elites, que reclamavam dos altos impostos, mas logo se tornou um movimento popular que defendia a independência e os valores republicanos, contando com ampla participação de pobres, negros, escravizados e libertos, dentre os quais certamente encontrava-se crianças7.
A referência a um movimento que envolve população escravizada se justifica, pois a presença das crianças em seu meio é lugar comum na historiografia e pode ser constatada na análise de documentos de compra e venda de pessoas escravizadas, bem como em obituários (Gutiérrez, 1989; Mott, 1979; Neves, 1992; Silva, 2013). A própria estratégia de alijação identitária, empreendida no processo de captura e tráfico de pessoas para o mercado da escravização, que compreendia o ato de despersonalização e uniformização, advoga a favor dessa premissa que é possível de ser comprovada em documentação a partir da distinção entre crias de pé e crias de peito nas embarcações clandestinas, bem como por meio de relatos de viajantes (Gutiérrez, 1989; Graham, 1956). Assim, é possível acreditar na ampla participação de crianças em movimentos mobilizados por pessoas empobrecidas e escravizadas, sobretudo devido ao fato de a própria concepção de infância ter sido redesenhada historicamente, respeitando não só questões de classe, como também de raça. Apesar de ter sido uma invenção da modernidade, a infância chegou tardiamente para as crianças pobres e negras.
Para além desses, houve e há movimentos que se levantam especificamente pelas crianças, como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que se organizava para interferir na política nacional na década de 19808 e o Movimento Sem Terrinha, composto pelas crianças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra9, que colocam adultos ao lado de crianças para reivindicar interesses comuns. Aqui é importante enfatizar a existência de tensões nas relações políticas que unem adultos e crianças, calcadas sobretudo na desigualdade estrutural (Castro, 2008) que demarca os lugares sociais de cada um - bem como os próprios interesses, que nem sempre convergem.
A luta por direitos figura, portanto, como mais uma das contradições que a criança experiencia na carne de sua infância. Para algumas delas, essa nem chega a ser uma questão, de garantidos que estão na história de sua vida - diametralmente entrelaçada ao lugar de sua classe, raça, gênero etc. Para outras, no entanto, essa se apresenta como disputa, uma luta na qual a criança é inserida ao nascer e da qual vai aprendendo a tomar parte da única maneira possível: tomando nas próprias mãos.
CONSIDERAR PARA MELHOR VER
A partir da discussão proposta, o que se sobressai é a percepção de que, para politizar a infância, é necessário não apenas o movimento de educar as crianças em si, mas principalmente educar o nosso olhar para elas. Para isso é preciso desconstruir a visão da criança como sujeitopadrão quase sempre idealizado, sobre o qual se fundamentam discursos e práticas nem sempre coerentes com a pluralidade das realidades em que elas vivem. Enxergar e entender a criança como sujeito de sua história é assumir o necessário trabalho de conhecer e reconhecer os lugares históricos e sociais ocupados por ela, delineados na composição com outros recortes que, ao lado do geracional, vão contextualizando experiências de infância específicas e bastante diferentes entre si.
O conceito de interseccionalidade, cunhado pela professora Kimberlé Crenshaw (1989) a partir da busca por um olhar metodológico que contemplasse as especificidades das demandas de mulheres negras, no interior do feminismo e do movimento negro, pode nos ajudar na construção dessa perspectiva sobre a infância. O conceito nos permite compreender a existência de uma convergência dos diferentes sistemas de dominação, tais como raça, classe e gênero, na estruturação das desigualdades sociais. É justamente na convergência que esses sistemas se fortalecem, partilhando entre si os meios de subjugação.
Como a disputa de poder é sistêmica, ocorre que os movimentos que se organizam para fazer frente às opressões, seja na ciência ou mesmo no campo da mobilização coletiva, acabam lutando apenas contra um dos tipos de dominação, negligenciando a potência e o alcance dos outros na manutenção dos mecanismos de poder e controle. Assim, pretende-se combater o capitalismo sem levar em consideração questões estruturantes do patriarcalismo, que enxerga a mulher sob a ótica da propriedade. Ou então, opta-se pela luta antirracista, sem pensar propostas de produção que permitam emancipar a exploração da mão de obra, que ainda hoje se sustenta na servidão do outro. É dessas escolhas, operadas em desarticulação, que emerge o fracasso de uma oposição às estruturas opressoras.
A questão da infância encontra a interseccionalidade não apenas no que se refere à necessidade de pensar as estruturas de opressão que incidem sobre a vida de cada criança, mas da mesma forma, no sentido de compreender a própria questão geracional como mais uma dessas estruturas que pesam sobre o sujeito que vive sua infância. Afinal, é a banalização da infância que permite ao adulto desvalorizar o que advém da criança, seja como escolha, desejo ou mesmo opinião diante do mundo. A aproximação das discussões tecidas nesse texto com o conceito de interseccionalidade se constitui como uma tentativa de tornar visíveis os atravessamentos existentes nas experiências de vida das crianças, dimensões cuja subtração acaba por produzir uma leitura incompleta e discriminatória sobre a infância.
A história da cidade do Rio de Janeiro guarda passagens que tornam explícito o sucesso da aplicabilidade desse conceito, cenas que permitem materializar o plano teórico das ideias aqui discutidas, produzindo invisibilidades palpáveis e dilacerantes, ao mesmo tempo que praticamente ordinárias de tão corriqueiras. A imagem da criança que vende bala no sinal é uma delas. A da criança que morre baleada, outra10. Nenhuma dessas imagens se captura num passeio pelos bairros de IDH igual ou maior que 0,811. Em contraponto, ambas as imagens possuem cor12. E a necessidade de expor essa, que talvez seja uma das facetas mais tristes do cotidiano carioca, passa justamente pela urgência de viabilizar às crianças aquele que talvez seja seu primeiro direito: a vida.
Os casos de violência em nossa cidade e o modo como essa violência é abordada, justificada e indenizada dão concretude à prerrogativa conceitual da interseccionalidade na experiência da infância, na medida em que a maior parte das 100 crianças vitimadas nos últimos cinco anos pela falácia da guerra ao tráfico é negra13, afinal, apesar de muitas reportagens não fazerem referência à raça, as localidades onde se registram crianças baleadas se tratam de bairros nos quais parte expressiva da população é negra, como Bangu, Complexo do Alemão, Campo Grande, Vila Santo Antônio e Maré, regiões que lideram esse ranking.
Junto disso, cabe lembrar que o lugar do menor foi criado, em nosso país, justamente para fazer caber a criança negra e pobre. Alvo de políticas diversas, a existência e cisão discursiva estabelecida pelo menor produziu, na história da criança no Brasil (Priore, 2013), uma concepção maniqueísta que dividiu as experiências de infância de acordo com os lugares de classe - conferindo a elas tratamento médico, sanitarista, pedagógico e jurídico diferenciados na virada do século XIX para o XX. Essa concepção não foi culturalmente superada, sendo possível ainda hoje encontrar, em diversos espaços, contextos em que o adjetivo é usado pejorativamente para designar a criança que não cabe na infância idealizada.
Quando a infância dessa criança é interrompida, quase sempre de forma violenta, o fato não costuma causar a mesma indignação que causa a interrupção da vida de uma criança branca dos bairros de classe média, por exemplo. E, quando a comoção é grande, o contraponto jurídico devolve à família a certeza do lugar ocupado pela criança, como acontece com as indenizações pagas pelo Estado do Rio de Janeiro em casos de violência policial. Acórdãos analisados pelo Jornal Extra indicam que os desembargadores apontam a classe social das famílias das vítimas como justificativa para a redução do valor pago, alegando que indenizações altas configurariam “[...] enriquecimento sem causa”14 ou “[...] violação frontal aos princípios de constitucionalidade, razoabilidade e proporcionalidade”15.
Os valores irrisórios pagos pelo Estado, com a conivência da Justiça, acabam por incentivar economicamente a continuidade dessa política de extermínio, já que, segundo o defensor público Daniel Lozoya, não provocam mudanças na atitude do Estado, tornando-se até mesmo interessante,16 dada a perspectiva de uma necropolítica (Mbembe, 2016), que estabelece que vidas importam, balizadas pela perspectiva de quem pode viver e quem deve morrer. Prova disso é o fato de as indenizações pagas a 81 pessoas pelo Estado no ano de 2020 por má conduta policial não chegarem, somadas, nem a 5% do valor pago à família de George Floyd, por exemplo, assassinado por um policial nos EUA. Aparentemente, aos olhos do Estado, vidas negras importam menos nessa América do que na outra.
Se essa produção de invisibilidades é notória quando vamos atrás dos corpos que caem, ela também não faz questão de ser sutil em relação àqueles que busca ainda derrubar. Com estratégias bastante sofisticadas e metodologias muito distintas, é possível identificá-la esteticamente nos mapas oficiais do Rio de Janeiro impressos e distribuídos pela Riotur, por exemplo, que no lugar das favelas cariocas, apresentam aos turistas regiões de floresta inexistentes.
No país que possui a segunda maior concentração de renda no mundo17, a pobreza é aceita enquanto alicerce, ou seja, aquilo que dá sustento a toda uma estrutura, mas que deve permanecer abaixo da superfície, sem que seja visto - ou considerado - por quem contempla a construção18. Para compreender essa produção de invisibilidades é preciso entender que mais do que o ato de tirar do alcance das vistas, esse é um produto coproduzido por quem corrobora a invisibilização, na medida em que opta por não se deixar afetar pelo olhar cuidadoso, mobilizador de estesias, empatias e monções. A produção da invisibilidade, na verdade, diz mais sobre quem vê e decide não enxergar, legitimando esse projeto e a lógica de organização social dele advinda, do que necessariamente sobre quem se esforça a tentar tornar não-visível o que está debaixo de nossos narizes.
E é justamente a existência desse projeto que possibilita estabelecer o que é digno de ser visto e o que deve permanecer como foco do processo de produção de invisibilidade. A professora Marielle Macé (2018), ao abordar a questão das migrações, chama atenção às diferenças semânticas entre siderar e considerar, que se revelam como delimitadores da realidade social justamente ao atuarem como organizadores das experiências, definindo quais delas são consideradas e quais outras podem siderar por aí. Como siderar tem relação direta com o ato de ver e nada fazer - seja por convicção ou mesmo pela paralisia que o horror daquilo que se vê é capaz de gerar -, Macé nos convoca a pensar nas estruturas sociais, culturais e jurídicas que constituem o nós, a fim de torná-lo potente como pronome político e não apenas como elemento de segregação em relação aos outros.
Que infâncias são consideradas em nossas análises, no interior da academia? Que outras infâncias encontram-se siderando ainda hoje, fruto da produção de invisibilidades tantas vezes institucionalmente legitimadas? E na vida cotidiana, que infâncias atraem o nosso olhar e de que outras insistimos em desviar? O que há por trás do ato de se recusar a ver o que convoca o nosso olhar e, com ele, a nossa ação? O que constitui o nós-adultos em oposição aos outros-crianças com quem dividimos a experiência de viver em sociedade? Que linhas bordam o nós da infância e quais crianças são postas nas bordas desses delineados? Quem borda as tais linhas?
AMAR PARA MELHOR CONSIDERAR
Politizar a infância passa, necessariamente, pelo movimento de nos colocarmos ao lado das crianças numa luta que é travada por elas nos microespaços em que circulam, mas cujas repercussões em dimensão ampla precisam do apoio dos adultos, na medida em que vivemos numa sociedade organizada a partir da lógica adultocentrada. Para isso, além do respeito e do cuidado com a infância, é imprescindível que aprendamos a ser amigos das crianças com quem nos relacionamos, tratando-as com a consideração que temos com aqueles a quem reconhecemos como adultos.
A amizade, para além das concepções correntes que a vinculam aos sentimentos de estima e carinho, tinha para os gregos da antiguidade uma função importante na própria vida da pólis, motivo pelo qual o filósofo Aristóteles a considerava uma virtude política. Em sua formulação sobre a philia (Puente, 2020), ele afirmava a amizade como uma virtude, ou seja, uma disposição interior e um hábito que tornava os seres humanos aptos a agir de modo ético. Essa philia era concebida como uma forma de amor “[...] construído na troca e no intercâmbio em que se desenvolve a relação de doação recíproca, e na qual se nutre a relação intersubjetiva e a ‘convivência’ dos amigos” (Rocha, 2006, p. 81).
O amor característico da amizade como philia está estritamente ligado à experiência de viver junto com o outro, num contexto de construção de uma reciprocidade que coloca o amigo como um outro si mesmo, um “outro eu” (Rocha, 2006, p. 77). E é na perspectiva de um outro eu que esse amor revela sua força como potência política, afinal, como o médico Che Guevara (2011) aponta, o amor é uma das verdadeiras forças motrizes das revoluções. Ele é o que, ao mesmo tempo, nos une ao outro e nos move em direção a um mesmo objetivo. O amor conecta e impulsiona. A professora bell hooks (2006), ao abordar o amor como prática de liberdade, chama atenção à necessidade de reconhecer e legitimar seu lugar nas lutas por libertação, na medida em que só com base no amor é possível construir uma configuração social justa, afinal, “[...] uma cultura de dominação é anti-amor. Exige violência para se sustentar. Escolher o amor é ir contra os valores predominantes dessa cultura” (hooks, 2006, p. 245).
Romper com a ideia ética da dominação demanda a tomada de decisão pelo amor, como ensina Martin Luther King Jr. (1957), um dos líderes dos movimentos pelos direitos civis nos EUA, pois é na escolha do amor como fundamento político que passamos da luta individual contra aquilo que nos fere subjetivamente para a dimensão da luta coletiva contra o que nos impede de mudar enquanto sociedade. Esse processo não é romântico, como a ideia primária e simplista do amor pode evocar. Trata-se, antes, de desenvolver uma consciência crítica sobre si, sobre o outro e sobre o mundo, processo que carrega consigo dor, raiva, tristeza, mas que torna possível reacender a esperança e reavivar a força, justamente através da perspectiva do compartilhamento e do reconhecimento de nossas histórias nas histórias dos outros (Benjamin, 2015).
É quando o amor é assumido como escolha que começamos a nos mover para a liberdade de forma sistêmica. Se esse texto tem um objetivo maior, uma convicção sobre a qual se fundamenta cada palavra escrita, e que seja capaz de resumir todas as páginas, esse objetivo certamente se expressa no desejo e na esperança de que possamos olhar e decidir realmente ver as crianças, considerando sua presença nos espaços onde circulamos, e reconhecendo-as como um outro nós mesmos, de modo a assumirmos o compromisso ético e político de ouvir, respeitar e legitimar seus pontos de vista, seus lugares na história e na cultura, e de nos colocarmos ao seu lado na defesa dos interesses que lhes são caros.
Que a infância seja uma questão para nós, que nos tire o sono, que nos convoque a tomar pé das contradições do mundo e que nos obrigue a sair de cima dos muros em que, tantas vezes, escolhemos permanecer na dinâmica de uma vida adulta indiferente à radical experiência da alteridade que a criança pode nos oferecer. Que nos lembremos da nossa infância e que nos disponibilizemos a estar ao lado das crianças que hoje constroem suas próprias lutas.