Apresentação
A circulação de ideias pedagógicas que contribuíram para edificar projetos de escolarização da infância, acompanhando a consolidação dos Estados-nação, teve alguns sustentáculos. Destacamos aqui o aparato legislativo, que compreende um conjunto de prescrições que apoiaram o desenho da composição administrativa, entre elas a obrigatoriedade escolar; as Exposições Universais como espaços de difusão de modelos, ideias, circulação de mercadorias direcionadas ao provimento da escola - especialmente a primária - e à promoção de um nicho de mercado; e a organização de Museus Pedagógicos, os quais assumem, neste Dossiê, lugar central.
Numa caracterização mais ampla, os Museus Pedagógicos2 podem ser descritos “como um centro de formação para professores, onde seriam desenvolvidos, testados, apresentados e difundidos novos métodos, mobiliários e instrumentos didáticos” (Petry; Gaspar da Silva, 2013, p. 82). Ou, como o propunha Bartolomé Cossío (1886), um órgão que serviria para a introdução dos avanços referentes à educação primária presentes em países considerados referência (in: García del Dujo, 1985). Para Pedro Moreno Martínez,
el Museo se caracterizó por ser un organismo vivo y dinámico, un centro de investigación y enseñanza, una puerta abierta a la recepción, estudio y difusión de las innovaciones educativas internacionales, que contribuyeron a la renovación y la modernización de la educación primaria y la pedagogía española. (Moreno Martínez, 2022, p.7)
Embora a reflexão do autor se dirija ao museu instalado Madri, ela expressa a configuração de muitos outros. María Cristina Linares destaca que
Creados en pleno auge de la constitución de los Estados naciones, la idea de renovar los aspectos pedagógicos de la educación se asoció al objetivo de construcción de la nacionalidad y al desarrollo de la ciencia y la técnica para favorecer el desarrollo industrial. (Linares, 2022, p.3)
Em dicionários de Pedagogia, como as edições3 organizadas por Ferdinand Buisson (1878-1887 e 1911), encontramos elementos que ajudam a compreender em termos conceituais muitos dos aspectos que compõem a história da educação; entre os verbetes encontram-se informações sobre Museus Pedagógicos. Aliás, na edição de 1911, o verbete traz um conjunto de informações que permitiram a recomposição de quadros que registram a presença destas instituições4 em vários países. Para fazê-lo, o autor do verbete, Maurice Pellisson, se apoia especialmente na obra de Max Hübner, intitulada Die Ausländischen Schulmuseen , que traz dados sobre vários Museus Pedagógicos existentes em diferentes países.
M. Max Hübner, directeur du Musée pédagogique de Breslau, en a fait très soigneusement le relevé, dans un ouvrage paru en 1906 (Die ausländischen Schulmuseen, Breslau). Ce relevé comprend 76 établissements ; nous ne saurions ici, faute de place, parler en détail de chacun d'eux; il en est, d'ailleurs, qui sont à l'état embryonnaire ou qui n'ont pris qu'un développement médiocre. Nous nous bornerons donc à reproduire d'abord la liste dressée par M. Max Hübner, et à donner ensuite des renseignements sommaires sur ceux de ces « musées » qui ont acquis une importance véritable5. (Pellisson In.: Buisson, 1911, p. 1373)
Já sabemos6 que Max Hübner fez da obra um negócio, seja cobrando para apresentar os Museus ou comercializando para os próprios museus o produto de seu trabalho. Este é um aspecto importante que nos alerta sobre a possibilidade de imprecisão dos dados ali apresentados; é bem possível que o autor tenha feito uma seleção entre um conjunto de Museus para compor o livro. O fato é que os dados por ele apresentados, assim como foram reproduzidos na edição de 1911 do Dicionário organizado por Buisson, têm servido de referência para a composição de narrativas históricas sobre Museus Pedagógicos7. No quadro abaixo, com base nas informações que constam no verbete de Maurice Pellisson, destacamos o primeiro criado em cada país ali registrado, com o intuito de apresentar um desenho que retrate a ocorrência deste tipo de instituição “pelo mundo”.
Cidade | País | Ano de Criação ou Instalação |
---|---|---|
Stuttgart | Alemania | 1851 |
Toronto | Canadá | 1857 |
Londres | Inglaterra | 1857 |
Saint-Pétersbourg | Rusia | 1864 |
Vienne | Austria-Hungría | 1872 |
Rome | Italia | 1874 |
Zurich | Suiza | 1875 |
Amsterdam | Holanda | 1877 |
Tokio | Japón | 1878 |
Paris | Francia | 1879 |
Brusellles | Bélgica | 1880 |
Washington | EE.UU. | 1881 |
Rio de Janeiro | Brasil | 18838 |
Lisboa | Portugal | 1883 |
Madrid | España | 1884/829 |
Copenhague | Dinamarca | 1887 |
Buenos-Aires | Argentina | 1888 |
Monevideo | Uruguay | 1889 |
Belgrade | Yugoslavia | 1898 |
Christiania | Noruega | 1901 |
Sofía | Bulgaria | 1905 |
Atenas | Grecia | 1905 |
Fonte: Pellisson, Maurice. Musées Pédagogiques. In: F. Buisson, Nouveau dictionnaire de pédagogie et d’Instruction Primaire. Paris: Librairie Hachette et Cie, 1911, pp. 1367-1376.10 (No quadro acima reproduzimos os nomes das cidades como aparecem no original e acrescentamos com grafia atualizada os países.)
O quadro acima, ainda que, conforme já alertado, possa trazer imprecisões, é revelador da força deste tipo de instituição na organização dos projetos de escolarização, particularmente no caso das iniciativas estatais. Tal presença e força nos estimulou a reunir estudos que coloquem em diálogo iniciativas com origem em países da América ibérica11, e que possam ajudar a compreender a constituição, função e influência tanto dentro do próprio país, como no diálogo com seus congêneres. Neste diálogo destacamos alguns aspectos convergentes: a organização dos Museus a partir de acervos herdados de Exposições Universais ou similares12; a função comercial que desempenharam, seja expondo produtos e catálogos, seja muitas vezes servindo de entreposto de comercialização; a missão de renovação de aspectos pedagógicos com divulgação de formas de ensinar, formação de docentes e apresentação de materiais pedagógicos; a elaboração de impressos pedagógicos, em particular revistas destinadas aos professores e às professoras; a realização de conferências pedagógicas... Trata-se de instituições que, como já anunciado por Martin Lawn (2013), ajudaram a colocar escolas, alunos e professores como consumidores sociais e de produtos industrializados, produtos estes muitas vezes portadores, ainda que simbolicamente, de modernidade e expressão de novas tecnologias educacionais.
No texto dedicado ao Museu Pedagógico brasileiro, Camila Marchi da Silva dá especial atenção ao aspecto comercial. Em sua análise,
De acordo com Borges (2011, p. 151, 154), o comissário geral da Exposição Universal de Paris de 1867, Frédéric Le Play, propôs que o espólio das exposições fossem transformados em Museus Comerciais. Isso significa na prática que toda a mercadoria continuaria exposta em museus específicos. Nesse sentido, os museus comerciais estavam associados às grandes exposições visando à atração do público por meio de atividades de publicidade. A ideia era ativar o interesse do público às novidades com o objetivo de vendê-las, ampliando a circulação dos interesses desde o fabricante, o expositor - pensado como um intermediário - e o comprador. (Marchi da Silva, 2022, p.4)
Aspectos como os acima destacados corroboram a tese de Kuhlmann Jr. (2013, p. 36) de que não é possível atribuir a um único país a referência, numa espécie de modelo, para a criação dessas instituições, mas é importante compreendê-las como parte de um amplo processo de difusão de projetos civilizatórios característicos do final do século XIX. Como se pode ler no texto de Pedro Moreno Martínez (2022, p.6), o Museu de Madri, por exemplo, “establecería relaciones con los gobiernos de otros países para propiciar el intercambio de publicaciones y materiales, conocer el estado de las escuelas españolas y las del extranjero recurriendo para ello a las visitas y los viajes de su personal”, atividade que estará presente em muitos outros.
Tal passagem é reveladora de intercâmbios entre os museus, o que se pode ver também na correspondência que trocavam, como apresentado por Gaspar da Silva e Scagliola (2019) com base em correspondências localizadas no acervo do Museu Pedagógico José Pedro Varela. O trabalho de Maria João Mogarro também destacará tal aspecto; para a autora
o Museu Pedagógico Municipal de Lisboa integrava-se na corrente internacional da moderna pedagogia, que considerava os museus pedagógicos como instituições fundamentais para o estudo dos assuntos relacionados com a educação e o ensino e para a formação profissional dos professores. (Mogarro, 2022, p.3)
Outro ponto comum entre os Museus em seus primeiros anos é a instalação em sedes provisórias, como é o caso da Espanha: “Ubicado en sus inicios, provisionalmente, en un corredor y dos salas de la Escuela de Veterinaria de la Universidad Central de Madrid, el Museo recibiría un nuevo impulso tras su ubicación definitiva, en 1886, en la Escuela Normal Central de Maestros.” (Moreno Martínez, 2022, p.9). Portugal viveu situação similar, conforme relata Maria Mogarro (2022, p.6): “‘O museu será aberto ao publico no 1.º do proximo mez de julho, em condições muito modestas e n’uma casa provisoria, pouco adequada, aproveitada na escola municipal n.º 6’ (Coelho, 1883, p. 74), em Santa Isabel.”
Além disso, os Museus eram organizados em Seções, observando-se a recorrência das dos seguintes itens: mobiliário escolar, plantas e edifícios escolares, material para educação e ensino etc. Via de regra os Museus também dispunham de uma Revista e uma Biblioteca Pedagógica. Há ainda ênfase na educação da infância (ou primeira infância) e escola primária, além das funções e atividades direcionadas à formação de professores e professoras que atuavam nestes níveis de ensino, bem como os gabinetes de física e química. Também é ponto comum dos acervos a guarda de exemplares de Relatórios das Exposições Universais.
Os textos do presente Dossiê também trazem informações sobre circulação de materiais entre os museus, como é o caso abordado por Maria Mogarro, que informa que Augusto dos Reis teria enviado um modelo de fachada e planta “do jardim infantil de Lisboa para o Pedagogium, o museu pedagógico do Rio de Janeiro, assim como alguns trabalhos das crianças que lhe haviam sido oferecidos pela diretora.” (Mogarro, 2022, p.10). É também Mogarro que traz informações sobre visitas:
O Livro de visitantes do Museu (que terá sido também da escola) recebeu a assinatura, na sua primeira página, de Francisco Giner de Los Rios e de Manuel Bartolomé Cossío, quando eles visitaram Adolfo Coelho em setembro de 1883. A partir de então, mantiveram uma colaboração próxima entre eles, envolvendo também Bernardino Machado (Otero Urtaza, 2004, pp. 9-37). (Mogarro, 2022, p.11)
Estas trocas indiciam sobre camaradagens entre os diretores destas instituições, muitos deles bastante envolvidos com os projetos de renovação pedagógica de seus países e na organização do que mais tarde seriam os sistemas de ensino, em particular aquele voltado à escolarização da infância. Figuras de prestígio na área educacional e com projeção política em geral foram seus mentores. Registramos aqui a nominata dos primeiros diretores dos Museus Pedagógicos tratados no presente Dossiê, por ordem cronológica de inauguração do Museu: Manuel Bartolomé Cossío (1857-193513), Madri / Espanha; Francisco Adolfo Coelho (1847-1919), Lisboa / Portugal; Ricardo Torino14 (1883-???), Buenos Aires / Argentina; Alberto Gómez Ruano (1858-1923) Montevidéu / Uruguai; e Joaquim José Menezes Vieira (1848-1897), Rio de Janeiro / Brasil.
Os dados acima apresentados servem de convite à leitura dos textos que se seguem, cuja ordem foi definida pelo ano de criação do Museu. Assim temos os seguintes artigos: El Museo Pedagógico Nacional y la renovación educativa en España (1882-1941), de autoria de Pedro Luis Moreno Martínez (Universidad de Murcia - Espanha); O Museu Pedagógico Municipal de Lisboa (Portugal, 1883-1933): Percurso e significado de uma instituição renovadora, de autoria de Maria João Mogarro (Instituto de Educação, Universidade de Lisboa - Portugal); El Museo Pedagógico en Argentina: nacimiento y avatares de una Institución renovadora (1883-1940), de autoria de María Cristina Linares (Universidad Nacional de Luján - Argentina); Museu e Biblioteca Pedagógicos: um grande gabinete experimental de ciência popular (Montevidéu / Uruguai, 1889...), escrito em parceria por Vera Lucia Gaspar da Silva (Universidade do Estado de Santa Catarina - Brasil) e Gabriel Scagliola (Museo Pedagógico José Pedro Varela e Institutos Normales de Montevideo - Uruguai); e Museu Pedagógico Nacional - Pedagogium, uma vitrine comercial (1890-1919), escrito por Camila Marchi da Silva (Programa de Pós-Graduação em Educação: História, Política e Sociedade - EHPS / Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC / SP - Brasil).