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Revista Educação Especial (Online)

On-line version ISSN 1984-686X

Rev. Educ. Espec. vol.36  Santa Maria  2023  Epub Dec 04, 2023

https://doi.org/10.5902/1984686x66812 

Relato de pesquisa

Uma reflexão sobre práticas violentas no processo de escolarização de surdos oralizados usuários de aparelho auditivo de amplificação sonora

A reflection on violent practices in the schooling process of oral deaf users of hearing aids for sound amplification

Una reflexión sobre las prácticas violentas en el proceso escolar de los usuarios sordos orales de audífonos para amplificación de sonido

Débora Brizon Braga1  , Professora mestra
http://orcid.org/0000-0001-7053-1542

Simone Chabudee Pylro2  , Professora doutora
http://orcid.org/0000-0002-8911-0980

1Professora mestra da Universidade Vila Velha, Vila Velha, ES, Brasil. dbrizon@gmail.com

2Professora doutora da Universidade Vila Velha, Vila Velha, ES, Brasil. simone.pylro@uvv.br


RESUMO

O fenômeno bullying é uma subespécie de violência entre pares, complexo e multidimensional. Dentre os tipos específicos de violência, destaca-se neste estudo a violência praticada contra a pessoa deficiente, em contexto escolar, como uma das possibilidades a dificuldade da sociedade lidar com os diferentes. Assim como outros estudantes, os surdos são sujeitos passíveis de sofrerem bullying. Dessa forma, a presente pesquisa tem como objetivo geral verificar se o fenômeno bullying fez ou faz parte do cotidiano escolar de adolescentes surdos oralizados e usuários de aparelho auditivo de amplificação sonora individual, pacientes de um Serviço de Saúde Auditiva do Espírito Santo- ES. A amostra era composta de adolescentes com idades entre 12 e 18 anos. Estes responderam um formulário desenvolvido no Google Forms, composto por 40 questões, 1 aberta e 39 fechadas, organizadas em 3 sessões. Após a coleta, no que se refere aos aspectos quantitativos, os dados foram analisados por meio do software Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 25 para Windows. A análise qualitativa foi encaminhada a partir dos três temas apresentados no formulário de coleta de dados. Estudos sobre a incidência de bullying indicam uma alta prevalência desse fenômeno em contexto escolar, porém, essa tendência não foi verificada no presente trabalho cuja amostra contemplou estudantes surdos. Acredita-se que a baixa incidência de bullying junto a amostra investigada pode ser devido ao número relativamente baixo de participantes surdos que aceitaram participar da pesquisa. Quando a prática de bullying foi mencionada, as formas de agressão mais frequentes foram a verbal, seguida da física e material, psicológica e o cyberbullying.

Palavras-chave: escola; surdez

ABSTRACT

The bullying phenomenon is a complex and multidimensional subspecies of peer violence. Among the specific types of violence, this study highlights the violence practiced against the disabled person, in the school context, as one of the possibilities for society’s difficulty in dealing with the different.Like other students, deaf people are likely to be bullied. Thus, the present research has as general objective to verify if the bullying phenomenon was or is part of the daily school life of oralized deaf adolescents and users of hearing aids for individual sound amplification, patients of a Hearing Health Service in the State of Espirito Santo-ES. The sample consisted of adolescents aged between 12 and 18 years old. They answered a form developed on Google Forms, consisting of 40 questions, 1 open and 39 closed, organized into 3 sessions. After collection, regarding quantitative aspects, the data were analyzed using the Statistical Package for Social Science (SPSS) version 25 for Windows. Qualitative analysis was forwarded from the three themes presented in the data collection form. Studies on the incidence of bullying indicate a high prevalence of this phenomenon in the school context however, this trend was not verified in the present study whose sample included deaf students. It is believed that the low incidence of bullying in the investigated sample may be due to the relatively low number of deaf participants who agreed to participate in the research. When bullying was mentioned, the most frequent forms of aggression were verbal, followed by physical and material, psychological and cyberbullying.

Keywords: bullying; school; deafness

RESUMEN

El fenómeno del acoso escolar es una subespecie de la violencia entre iguales compleja y multidimensional. Entre los tipos específicos de violencia, este estudio destaca la violencia practicada contra la persona discapacitada, en el contexto escolar, como una de las posibilidades de la sociedad para hacer frente a las diferentes. Al igual que otros estudiantes, es probable que las personas sordas están sujetas a la intimidación. Así, la presente investigación tiene como objetivo general verificar si el fenómeno del bullying fue o es parte de la vida escolar diaria de adolescentes sordos oralizados y usuarios de audífonos para amplificación individual de sonido, pacientes de un Servicio de Salud Auditiva en el Estado de Espirito Santo-ES. La muestra estuvo constituida por adolescentes com edades compreendidas entre los 12 y 18 años. Estos respondieron un formulario desarrollado en Google Forms, compuesto por 40 preguntas, 1 abierta y 39 cerrada, organizadas en 3 sesiones. Después de la recolección, en lo que respecta a los aspectos cuantitativos, los datos fueron analizados utilizando el Paquete Estadístico para Ciencias Sociales (SPSS) versión 25 para Windows. El análisis cualitativo se remitió a partir de los tres temas presentados en el formulario de recopilación de datos. Los estudios sobre la incidencia del bullying indican una alta prevalencia de este fenómeno en el contexto escolar, sin embargo, esa tendencia no fue verificada en el presente estudio cuya muestra incluyó a estudiantes sordos. Se cree que la baja incidencia de bullying en la muestra investigada pude deberse al número bajo de participantes sordos que aceptaran a participar en la investigación. Cuando se mencionó, el acoso escolar, las formas de agresión más frecuentes fueron la verbal, seguida del acoso físico y material, psicológico y cibernético.

Palabras clave: bullying; escuela; sordera

Introdução

A violência nas escolas sempre existiu, sendo considerada tão antiga quanto a própria escola, mas, somente nas últimas décadas foi reconhecida sua importância em amplas discussões e estudos mais aprofundados devido ao prejuízo no desenvolvimento e qualidade de vida dos estudantes e comunidade escolar. É um problema social grave e complexo, e engloba todos os comportamentos agressivos e antissocial, que inclui conflitos interpessoais, danos ao patrimônio e atos criminosos (FANTE, 2008).

Em alguns contextos, as escolas deixaram de ser ambientes seguros, modulados pela disciplina, amizade e cooperação e se transformaram em violência, sofrimento e medo para alguns alunos. O comportamento violento resulta da relação entre as características individuais e os ciclos sociais, como família, escola e comunidade (FANTE, 2005).

Reconhecido como um dos tipos de violência escolar, seja em escolas públicas ou privadas, o fenômeno bullying é complexo, multidimensional e, em geral, ocorre entre pares. É estudado em diversas áreas de conhecimento devido a sua alta prevalência, seus prejuízos pessoais, familiares, sociais, morais e profissionais (PEREIRA, 2009).

Trata-se de um comportamento agressivo, de violência gratuita, que ocorre ao longo do tempo em uma relação desigual de poder em que a vítima sofre abusos de forma cíclica e intencional, sem estímulo evidente que ocasiona dor, sofrimento e se manifesta de diversas formas (FANTE, 2005; OLWES, 2013 apud ABADIO DE OLIVEIRA, et al, 2015).

Pode ser confundido com indisciplina ou brincadeiras entre colegas, por vezes de caráter físico, que envolve discussões ou brigas corriqueiras, contato pessoal em pares de igual força e poder, conflitos, desacato ao professor, incivilidades, depredações e pichações de prédios (LOPES NETO, 2005).

Na década de 1970, iniciaram-se estudos na Suécia, na tentativa de reverter as situações de bullying; mas, somente após o suicídio de três crianças na Noruega, com fortes indícios de serem decorrentes de agressões por alunos da escola, iniciou-se uma grande campanha nacional de combate ao fenômeno. A partir de então foram desenvolvidos os primeiros estudos com objetivo de detecção e intervenção para resolver o problema (GUISSO, 2016).

No Brasil, os estudos iniciaram-se na década de 90 e no início do ano 2000, no entanto,somente em 2005, os artigos científicos foram publicados. Pesquisadores em todo o mundo confirmam crescimento do fenômeno, atingindo desde os primeiros anos de escolarização, variando em torno de 5 a 35%, o percentual de crianças em idade escolar envolvidas em condutas agressivas na escola (FANTE, 2005).

Segundo estudiosos do tema, o uso da terminologia generalizou-se por dificuldade de tradução em várias línguas, adotando-se, universalmente, a palavra bullying, que deriva do adjetivo inglês ’bully’ designação de pessoa agressiva, valentão, intimidadora, cruel e como verbo, brutalizar, tiranizar ou amedrontar. Desse modo, o bullying é caracterizado a partir de três critérios principais: desequilíbrio de poder, repetitividade e intencionalidade (FANTE, 2005 apud SOUZA, 2011; LOPES NETO, 2005 apud ZENTARSKI, SILVA, 2016).

O bullying é difícil de ser identificado entre alunos, pois trata-se de violência muito específica e, por vezes, sem a devida atenção da escola. A fim de identificar o fenômeno é necessário reconhecer os critérios que o definem e diferenciá-lo das ações de socialização ou de processos naturais da infância e da adolescência. Muitas vezes, os ataques não são visualizados pelas autoridades escolares, e as vítimas não têm como comprová-los, o que gera angústia, incompreensões e inconformismos (SLOBODZIAN, HUBNER, 2016).

A classificação mais aceita a respeito do bullying é que o ato em si, pode ser considerado direto ou indireto. O direto é aquele em que as vítimas são atacadas com agressões físicas e materiais como bater, chutar, empurrar, abusar sexualmente, assediar, fazer gestos, estragar e roubar pertences; assim, como, agressões verbais, que envolvem ações, tais como, apelidar, importunar, xingar. Já o bullying indireto está relacionado a atos de exclusão, isolamento da vítima ou disseminação de boatos.

Com o advento das redes sociais, outra modalidade de prática desse tipo de violência é o ’cyberbullying’, também conhecido por bullying virtual. Trata-se de um tipo de bullying em que a violência entre pares ocorre no espaço virtual através de ligação de celulares, correio eletrônico, redes sociais e ‘internet’. Dada a contemporaneidade desse fenômeno, os estudos desse tipo de violência são mais recentes. (MARTINS, 2005 apud SOUZA, 2011; LOPES NETO, 2005; SILVA 2010).

Os meninos são os maiores praticantes do bullying, e empregam mais da agressão direta, física e verbal; enquanto as meninas usam as formas de agressão indireta, através de ofensas morais e exclusão social. Outra diferença no que se refere ao quesito sexo é que meninos costumam agredir sozinhos enquanto as meninas agridem em grupos (SILVA, 2010; ZENTARSKI, DA SILVA 2016).

Os principais fatores de risco para crianças e adolescentes praticarem o bullying entre colegas está no primeiro ambiente de socialização, que é o seio familiar. Exemplos violentos, maus-tratos parentais, educação omissa e sem limites, falta de afeto, famílias monoparentais e baixas condições socioeconômicas resultam em maior envolvimento nas agressões. Já famílias cujos membros são tratados com afeto e estabilizados emocional e economicamente são consideradas protetivas. (DUE, 2009 apud ABADIO DE OLIVEIRA, 2015).

As formas de envolvimento dos estudantes no fenômeno são identificadas como vítimas ou alvos, agressores ou autores, bullies ou testemunhas. Estes últimos podem participar ativamente da agressão, como incentivadores ou observadores de acordo com a atitude diante das situações de bullying (PIGOZI, MACHADO 2015).

As vítimas típicas não reagem às agressões, são mais inseguras, têm poucos amigos e temem a rejeição. Quando reagem são consideradas vítimas agressoras, reproduzem os maus-tratos sofridos em outra vítima mais frágil, mantendo ciclo vicioso de violência. Já os agressores são descritos como líderes de grupos, populares e tendem a provocar os colegas (LEÃO, 2010 apud ZENTARSKI, DA SILVA, 2016).

Existem várias consequências físicas e emocionais a curto e a longo prazo nas vítimas, agressores e testemunhas, tais como, dificuldades acadêmicas, sociais, emocionais e legais que demonstram sinais e sintomas na escola e em casa. E quando adultos, podem desenvolver dificuldades nas relações interpessoais (FANTE, 2005; SILVA, 2010; ZENTARSKI, DA SILVA, 2016).

Os estudiosos dessa problemática sugerem a necessidade de intervenção, com a criação e manutenção de políticas públicas de ações antibullying, como capacitação e amparo de educadores e identificação dos alunos envolvidos cuidando da saúde mental e intelectual, evitando as inúmeras consequências do fenômeno. Nesse sentindo, quanto maior a rede de interdisciplinaridade (educação, saúde, família e comunidade), maiores melhorias efetivas no comportamento de crianças e adolescentes (LOPES NETO, 2005).

Um grande marco para regularizar os atos de violência que ocorrem no ambiente escolar, foi através da criação da Lei Federal 13.185, de 06 de novembro de 2015, com oito artigos, direcionada ao combate específico ao bullying. Trata-se de uma Lei com propósito de desencorajar atos de violência no âmbito escolar, e que por meio desta, instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistêmica.

A referida lei regede forma específica os aspectos relacionados ao bullying, garante segurança contra qualquer tipo de violência, seja ela moral física ou psicológica, como atitudes agressivas praticadas por um indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, propositadas e repetitivas, sem nenhuma motivação, causando dor e angústia, sempre dentro de uma relação desigual de força e poder, e reforça a importância do combate a essa intimidação sistemática em todo território nacional (FERREIRA, NEVES, 2017).

Conforme exposto, o fenômeno do bullying é reconhecido e estudado em diferentes países e pode comprometer o processo de escolarização e desenvolvimento de crianças e adolescentes. Mas e no caso de crianças e adolescentes que já se encontram em uma condição de maior vulnerabilidade, tais como aquelas que apresentam alguma deficiência? Existem pesquisas que tratem das especificidades para essas vítimas desse tipo de violência?

Em sua classificação sobre os tipos de naturezas das violências, Minayo (2007) indica um tipo específico de violência contra a pessoa deficiente. Trata-se de uma discriminação que pode ocorrer dentro do seio familiar, na escola, nas comunidades e no ambiente de trabalho pela dificuldade da sociedade de lidar com os diferentes. Com o crescente processo de inclusão, reforçada pela Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), fruto da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais, que ocorreu entre os dias 7 e 10 de junho de 1994, na Espanha, as escolas foram pressionadas a integrar a seu corpo discente, os alunos com deficiências, tendo em vista que esta declaração prevê a inclusão dos alunos com necessidades especiais no sistema regular de ensino. Se por um lado, esse foi um grande avanço, por outro, esses alunos passaram a estar expostos a fenômenos como o bulliying em contexto escolar (REIS, OMODEI, 2015).

Se por um lado, a lei da inclusão da pessoa com deficiência, possibilita um acesso mais amplo à escola regular, por outro, demanda um maior preparo para lidar com as dificuldades desses alunos. Dificuldades essas das mais variadas. Dentre elas, as do campo da linguagem, que se apresentam, por exemplo, junto aos estudantes surdos. A audição é um dos sentidos fundamentais para o desenvolvimento da fala, dos processos de linguagem (receptiva e expressiva) e da alfabetização (leitura e escrita), uma vez quedependem do funcionamento adequado dos processos auditivos de detecção e interpretação dos sons. A detecção precoce de alterações auditivas e a intervenção imediata em crianças com perda auditiva favorecem o desempenho acadêmico, emocional e social (BENTO, 1998). Além disso, também um olhar atento da escola frente a possíveis comportamentos de bullying dirigido ao surdo.

No caso da violência contra pessoas com surdez, esse problema é complexo, em razão de especificidades, como o fato de representarem um grupo social muito diverso, com necessidades e reivindicações diferentes no que diz respeito ao acesso à comunicação e à informação formando a cultura surda (MELLO, 2014).

Segundo Perlin (2000, p.24), a denominação cultura surda é:

O jeito do sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-os com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas e das “almas” das comunidades surdas. Isto significa que abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos de povo surdo.

As especificidades pessoais, conhecidas como identidades surdas, ocorrem pelo fato de que “nem toda pessoa surda se comunica em línguas de sinais” (TORRES, MAZZONI, MELLO, 2007). Existem pessoas surdas cuja primeira língua é a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e são chamados de surdos sinalizados ou não oralizados.Já os surdos oralizados se identificam com o português como primeira língua e desenvolveram mais habilidades em linguagem oral (MELLO, 2014).

Tanto os surdos oralizados quanto os surdos que se comunicam por Libras são passiveis de práticas excludentes, incluindo o bullying, levando ao isolamento e atraso no aprendizado. Devido ao acesso de uma amostra maior e revisão com poucas pesquisas sobre surdos oralizados e protetizados foi decidido incluir especificamente esses sujeitos.

Surdos, usuários de próteses auditivas e oralizados são sujeitos passíveis de sofrerem bullying, devido a algumas dificuldades, entre elas a comunicação levando ao isolamento, atraso no aprendizado e resistência ao uso da prótese.

Dessa forma, a presente pesquisa tem como objetivo geral verificar se o fenômeno bullying fez ou faz parte do cotidiano escolar de adolescentes surdos oralizados e usuários de aparelho auditivo de amplificação sonora individual (AASI), pacientes de um Serviço de Saúde Auditiva do Estado do Espírito Santo-ES.

Método

Local da pesquisa e participantes

Participaram desse estudo adolescentes surdos oralizados e usuários de aparelho auditivo de amplificação sonora individual (AASI), de ambos os sexos, alfabetizados, que frequentaram ambiente escolar, pacientes do Serviço de Saúde Auditiva da Policlínica de Referência da Universidade Vila Velha (UVV), localizada no Estado do Espírito Santo, e que na época da coleta, no ano de 2020, tinham entre 12 e 18 anos de idade.

O Ministério da Saúde, através da Portaria n0 2.073, de 28 de setembro de 2004, instituiu a Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva. A Policlínica de Referência da Universidade Vila Velha (UVV), entre 2006 e 2020, realizou procedimentos de média e alta complexidade, elencados pelo Programa de Saúde Auditiva do Ministério da Saúde. Os pacientes com queixas de surdez, neonatos com fatores de risco e crianças com atraso de linguagem eram triados através de atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e encaminhadas para Policlínica de Referência da UVV. O Serviço foi descontinuado em dezembro de 2020. A clínica atuou na avaliação audiológica e fornecimento de aparelhos auditivos a pacientes infantis e adultos, considerado um serviço de referência no Estado do Espírito Santo, composta por uma equipe multidisciplinar com médicos otorrinolaringologistas, neuropediatra e pediatra além de fonoaudiólogos e psicólogo. Diante da facilidade de acesso da pesquisadora ao surdo, oralizado, usuário de aparelho de amplificação sonora, por fazer parte da referida equipe multidisciplinar, e tendo em vista as dificuldades de contato com as escolas durante o ano de coleta, em razão da pandemia do Coronavirus, decidiu-se realizar a pesquisa com os pacientes da Policlínica de Referência da UVV. Na época da coleta, esse serviço prestava atendimento a 294 pacientes surdos oralizados, usuários de aparelho de amplificação sonora (AASI), com idade entre 12 e 18 anos. Estes usuários foram convidados a participar da pesquisa e todos que aceitaram o convite fizeram parte desse estudo.

Instrumento

O instrumento desenvolvido pela própria pesquisadora foi um formulário, elaborado a partir do aplicativo Google Forms, composto no total de 40 questões, 1 aberta e 39 fechadas, organizado em 3 sessões. As questões fechadas só aceitaram uma resposta, que mais se aproximava da realidade do participante. Já a questão aberta, era resposta curta.

A primeira sessão, na qual buscava coletar os dados sociodemográficos dos participantes, foram abordadas questões sobre idade, sexo, cor, qual Estado reside atualmente, grau de escolaridade completo, grau de deficiência auditiva, outras deficiências além da deficiência auditiva.

Na segunda sessão do formulário foram abordadas questões relacionadas aos sentimentos de vivência escolar, por exemplo:eu me sentia seguro(a)?;eu me sentia como parte da minha escola?; eu tinha um amigo com qual eu contava?. Essa sessão é composta por 10 questões que variavam na pontuação de 0 (discordo fortemente), 1 ponto (discordo), 2 pontos (concordo), até 3 pontos (concordo fortemente). Para fins de análise, é realizado um somatório da pontuação do participante, que poderia variar de 0 a 30 pontos, sendo classificado a partir das seguintes categorizações: 0 a 7,5 uma vivência escolar péssima; 7,6 a 15 pontos vivência escolar insatisfatória; 15,1 a 22, pontos vivência satisfatória; e 22,01 a 30 pontos indicando uma vivência escolar excelente.

Por fim, a terceira sessão tratava sobre vivência de violência escolar sofrida pelo participante. Essa sessão abordava questões como ameaças sofridas pelo participante, se recebia empurrões e puxão de cabelos, se era xingado pelos colegas, se colegas pegavam objetos sem o consentimento, dentre outras perguntas. Esse instrumento possui 22 questões que variavam na pontuação entre 0 (nenhuma vez), 1 ponto (uma única vez), 2 pontos (uma ou duas vezes ao mês) e 3 pontos (várias vezes na semana). Ao final, foi feito um somatório da pontuação dos participantes, possibilitando uma classificação com a seguinte divisão: 0 a 16,5 pontos considerou-se como nenhuma ou quase nenhuma vivência de violência escolar, 16,6 a 33 pontos foi considerado como poucas vivências de violência escolar, 33,1 a 49,50 sendo frequentes vivências de violência escolar, e 49,51 a 66 pontos sendo vivências muito frequentes de violência escolar.

O formulário foi elaborado e adaptado a partir de três questionários: do Questionário Olweus de Agressor e Vítima deBullying(1996), do questionário adaptado “Violência entre Pares” de Isabel Pimenta Freire, Ana M. Veiga Simão e Ana S. Ferreira (2006) e do questionário adaptado por Ernsen (2016).

O questionário Olweus de Agressor e Vítima deBullying(OLWEUS,1996) para estudantes, versão vítima e versão agressor, foi traduzido do inglês e questões foram reformuladas, focando na vítima de violência escolar e excluindo as perguntas sobre o agressor e telespectador da agressão.

Já o questionário de “Violência entre Pares” (FREIRE, SIMÃO e FERREIRA, 2006) permite identificar agressores, vítimas e observadores de situações de maus-tratos, caracteriza os tipos de agressão que acontecem no ambiente escolar identificando os locais onde ocorrem as situações de agressão e a percepção do aluno quanto a intervenção dos adultos (professores e funcionários da escola) e dos seus pares face às situações de violência escolar. As questões que foram respondidas, focam na vítima e excluem os agressores e observadores dobullying.

O questionário de Ernsen (2016) identifica vítimas, agressores e observadores dobullyingabordando situações específicas de deficiências, especialmente auditiva e identidade surda, além de racismo e orientação sexual. Como o enfoque da pesquisa é sobre surdos e usuários de aparelhos de amplificação sonora, vítimas de agressão escolar, portanto, o formulário foi adaptado com questões mais específicas.

Procedimentos

Para fins de realização da pesquisa foi encaminhado para Coordenação de Policlínica de Referência da Universidade Vila Velha, um termo de autorização visando a coleta de dados de pacientes. Após autorização da Policlínica, por se tratar de pesquisa em seres humanos, o projeto de pesquisa foi enviado ao Comitê de Ética da Universidade Vila Velha, conforme orientações das Resoluções n0 466/2012 e n0 510/2016 do Ministério da Saúde. E posterior a autorização do referido Comitê, foi iniciada a coleta de dados. A primeira etapa da coleta foi o contato, por telefone, com pais e/ou responsáveis pelos pacientes.

Após contato com os pais explicando os objetivos da pesquisa, eles receberam um Termo de Consentimento livre e esclarecido para autorização do filho(a) como participante da pesquisa. Com autorização dos pais ou responsável, o menor recebeu um Termo de Assentimento com as orientações e autorização para responder o formulário. Participaram da pesquisa apenas os adolescentes autorizados por seus responsáveis e cujo assentimento foram favoráveis à sua participação na pesquisa.

O entrevistado, junto com os pais ou responsáveis, respondeu as perguntas feitas pela pesquisadora, com base no formulário da pesquisa, de modo telepresencial, comcâmera e microfone ligados pelo aplicativo Whatsapp. O uso deste recurso se deve ao período de isolamento pela pandemia do Coronavirus, em que não houve possibilidade de encontros presenciais.

Após a coleta, os dados foram analisados por meio do software Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 25 para Windows. Em um primeiro momento foram feitas análises descritivas dos dados sociodemográficos e, em seguida, foram realizadas estatísticas para comparação amostral por meio do teste de Mann-Whitney e Krusal-Wallis, e, também, testes de correlação de Spearman, considerando que as variáveis estudadas apresentam distribuição diferente da normal.

Resultados e discussão

Inicialmente, foram levantados juntos aos registros da Policlínica da Universidade Vila Velha, uma lista com 294 pacientes surdos oralizados, usuários de aparelho de amplificação sonora (AASI), que na época da coleta, ano de 2020, tinham entre 12 e 18 anos de idade, de ambos os sexos.

Foi tentado contato telefônico com todos os pacientes da lista sendo que 92 pais e responsáveis atenderam ao telefonema e ouviram a proposta da entrevista. Destes, 54 aceitaram participar. Sobre a condição e comunicação dos entrevistados: 16 adolescentes se comunicavam somente por libras, 3 eram autistas e não se comunicavam oralmente, 10 adolescentes apresentaram déficit neurológico que impossibilita a comunicação, 6 eram implantados cocleares e 3 adolescentes desistiram de responder as perguntas antes da entrevista.

Amostra

Contou-se com uma amostra de 54 participantes, sendo 59,30% (f = 32) do sexo masculino e 40,70% (f = 22) do sexo feminino, com uma média de 14,85 anos de idade (DP = 1,84); 42,60% (f = 23) brancos, 22,20% (f = 12) pretos e 35,20% (f = 19) pardos. No que se refere ao grau de escolaridade 40,70% (f = 22) finalizaram o ensino fundamental 1, 51,90% (f = 28) o ensino fundamental 2 e 7,40% (f = 4) o ensino médio. Quanto o grau da deficiência auditiva, 40,70% (f = 22) possuem deficiência de grau moderado, 18,50% (f = 10) afirmam deficiência de grau profundo, 16,70% (f = 9) possuem deficiência grau severo, 13,00% (f = 7) deficiência grau leve, 11,10% (f = 6) afirmaram não saber o grau de sua deficiência (ver tabela 3). Acerca de outras deficiências, 35,20% (f = 19) afirmaram ter deficiência visual, 9,30% (f = 5) possuem TDAH, 3,70% (f = 2) possuem deficiência neurológica, 3,70% (f = 2) indicam alguma deficiência intelectual, 1,90% (f = 1) possuem deficiência física e 46,30 (f = 25) afirmaram não possuir outra deficiência além da auditiva.

Tabela 1 Dados sociodemográficos 

f %
Sexo Masculino 32 59,30
Feminino 22 40,70
Raça Branco 23 42,60
Preto 12 22,20
Pardo 19 35,20
Escolaridade Ensino Fundamental 1 22 40,70
Ensino Fundamental 2 28 51,90
Ensino Médio 4 7,40
Grau da deficiência auditiva Leve 4 14,60
Moderado 4 45,80
Profundo 4 20,80
Severo 4 18,80
Outras deficiências Visual 19 35,20
TDAH 5 9,30
Intelectual 2 3,70
Neurológica 2 3,70
Física 1 1,90
Sem outra deficiência 25 46,30

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

Avaliações dos sentimentos das vivências escolares

Acerca das avaliações dos sentimentos das vivências escolares, essa sessão é composta por 10 questões. Pode-se considerar que a pontuação média geral da vivência escolar dos surdos oralizados usuários de aparelhos auditivos é satisfatória.

Foi possível verificar que nenhum dos participantes avaliaram sua vivência escolar como péssima, 7,40% (f = 4) dos participantes assinalaram uma vivência insatisfatória. Pode-se constatar que 83,30% (f = 45) dos participantes afirmaram ter uma vivência satisfatória, e 9,30% (f = 5) apresentaram valores que evidenciam uma experiência escolar excelente (ver tabela 2).

Tabela 2 Análise de frequência das avaliações dos sentimentos das vivências escolares  

f %
Avaliação péssima 0 0
Avaliação insatisfatória 4 7,40
Avaliação satisfatória 45 83,30
Avaliação excelente 5 9,30

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

Em uma análise de frequência, avaliando cada questão por vez, que variavam entre discordo fortemente, discordo, concordo e concordo fortemente, pode-se constatar que na questão 1 Eu me sentia seguro (a)? a maioria (77,80%; f = 44) dos participantes marcou “Concordo”. Na questão 2 Os professores me tratavam de forma justa?, a maioria dos participantes marcou “Concordo” (75,90%; f = 41). Na questão 3 Eu me sentia como parte da minha escola?, obteve-se “Concordo” (81,50%; f = 44) como item mais assinalado. Na questão 4 (Eu tinha um amigo com qual eu contava?), a maior parte dos participantes marcou “Concordo” (74,10%; f = 41).

Referente a questão 5 Os professores eram justos com todos os estudantes?, concordo foi a opção mais assinalada (77,80%; f = 44). No tocante a questão 6 Os professores esperavam que os alunos se respeitassem? a maioria dos participantes assinalou concordo (83,30%; f = 45). Na questão 7 Os estudantes se sentiam seguros?, obteve-se “Concordo” (83,30%; f = 45) como item mais assinalado. Na questão 8 Os professores davam atenção de igual modo a todos os estudantes?, a maioria dos participantes marcou “Concordo” (70,40%; f = 38). Na questão 9 Eu fazia atividades interessantes na escola?, “Concordo” (85,20%; f = 46). Por fim, na questão 10 Eu faltava as aulas?, averiguou-se que “Discordo” (88,90%; f = 48) foi o item mais frequente nas respostas (ver tabela 3).

Os dados encontrados na pesquisa contradizem o estudo de Espote, Serralha e Scorsolini-Comim (2013), que seria avaliação escolar insatisfatória, onde foi realizada uma revisão bibliográfica, que analisou 57 trabalhos sobre inclusão escolar, e que para os surdos, contudo, faltam recursos, tanto físicos, como intérprete de Libras e materiais adaptados, quanto falta de preparação dos professores e da possibilidade de um plano de ensino específico.

Uma hipótese explicativa para essa diferença que mesmo com muitas limitações, têm ocorrido avanços nessa área, com tentativas de cumprimento da Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), a qual definiu que qualquer aluno com dificuldades de escolarização seria um aluno especial, e caberia à escola se adequar às necessidades desse aluno.

Na pesquisa de Ernsen (2016), participantes surdos apresentaram tendência a sentir-se menos seguros, pois é possível que permaneça uma ênfase de privilégios a estudantes ouvintes, em detrimento da experiência de estudantes surdos, com repercussões para sua sensação de segurança nesse contexto. Muitos surdos, por não conseguirem se integrar ao contexto escolar, podem apresentar uma percepção de segurança diminuída quando comparada aos seus pares ouvintes. No item relacionado à expectativa dos docentes de respeito entre estudantes, Ernsen (2016) também verificou avaliação insatisfatória entre participantes surdos.

Por que será que os entrevistados da pesquisa responderam a maior parte com avaliação satisfatória sobre sentimentos das vivências escolares? A literatura aponta resultados diferentes, sendo que uma possível explicação seria, atualmente, a inclusão, que é a palavra de ordem no âmbito da escola. Até um tempo atrás, somente a existência de escolas especiais, destinadas a deficientes, bastava para que se acreditasse na igualdade de oportunidade entre deficientes e não deficientes. Com o entendimento de que frequentar escolas especiais não significa inclusão, pelo contrário, reforça ainda mais a exclusão, no sentido de delimitar o espaço destinado aos deficientes, e com a comprovação de que o desenvolvimento da criança com deficiência é ainda maior quando, além de frequentar a escola especial, frequenta em outro período uma escola regular, houve um intenso trabalho para incluir deficientes no ambiente escolar regular (ZORTÉA, 2007; MONTEIRO & MANZINI, 2008; BAPTISTA, 2009; MELO & FERREIRA, 2009; SCORSOLINI-COMIN & AMORIM, 2010; SOUZA, 2011; TAKASE & CHUN, 2010; ZORTÉA, 2007 apud ESPOTE, SERRALHA, SCORSOLINI-COMIN, 2013).

Segundo Quiles (2015), que analisou no período de 2007 a 2010 o mapeamento das matrículas e modalidades de atendimentos em que estão inseridos alunos surdos e deficientes auditivos no Brasil, região Centro-Oeste e estado do Mato Grosso do Sul, houve um crescimento de matrículas no ensino regular durante o período analisado e, consequentemente, uma queda nas matrículas na educação especial.

No que se refere a percepção positiva enquanto relacionamento professor-aluno, na minha escola os professores se importam com todos os estudantes? e eu faço atividadesinteressantes na escola? tem avaliação satisfatória nesse estudo como na pesquisa de Ernsen (2016). Na escola, os surdos são colocados em contato com novas informações e conhecimento do mundo e os conteúdos escolares, assim como têm acesso a atividades no contraturno em escolas participantes. Nesse período complementar, os estudantes surdos desenvolvem atividades extraclasse com reforço de matérias. Parece que essa iniciativa tem mostrado assiduidade da maioria dos surdos já que 48 entrevistados discordam que faltam as aulas.

Tabela 3 Análise de frequência absoluta das respostas das avaliações das vivências escolares dos deficientes auditivos. 

Discordo fortemente Discordo Concordo Concordo fortemente
1 - Eu me sentia seguro (a)? 0 7 42 5
2 - Os professores me tratavam de forma justa 0 5 41 8
3 - Eu me sentia como parte da minha escola? 0 4 44 6
4 - Eu tinha um amigo com qual eu contava 0 7 40 7
5 - Os professores eram justos com todos os estudantes? 0 9 42 3
6 - Os professores esperavam que os alunos se respeitassem 0 4 45 5
7 - Os estudantes se sentiam seguros 0 9 45 0
8 - Os professores davam atenção de igual modo a todos os estudantes? 0 12 38 4
9 - Eu fazia atividades interessantes na escola? 0 5 46 3
10 - Eu faltava as aulas? 2 48 3 1

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

Em seguida, buscou-se verificar se havia diferença estatisticamente significativa nos índices de avaliação da vivência escolar em função do sexo, cor da pele, escolaridade, gravidade da deficiência auditiva, uso do aparelho auditivo. Após verificar as análises, não foi encontrada nenhuma diferença nos índices de vivência escolar em função dos grupos citados.

Avaliação das vivências de violência escolar

Quanto às avaliações do questionário de vivências de violência escolar, esse instrumento possui 22 questões. A partir dessa avaliação, constatou-se que a média geral indica nenhuma ou quase nenhuma vivência de violência escolar como sendo a possibilidade de vivência mais frequente.

Pode-se averiguar que 70,40% (f = 38) vivenciaram quase nenhuma ou nenhuma vivência de violência escolar, 25,90% (f = 14) afirmaram ter poucas vivências de violência escolar, 3,70% (f = 2) asseguraram ter frequentes vivências de violência escolar e nenhum dos participantes afirmou ter vivências muito frequentes de violência escolar (ver tabela 4). Esses dados contradizem o estudo de Ernsen (2016), onde uma proporção de 30,8% dos participantes surdos sofreu atos de bullying, um tipo específico de violência escolar. No mesmo contexto, esse resultado corresponde que estudantes surdos seriam mais suscetíveis a práticas de bullying, devido a diferenças linguísticas e o uso de próteses auditivas, uso de língua de sinais ou fala distinta (KOUWENBERG, RIEFFE e ROOIJ, 2012 apud ERNSEN, 2016).

Uma hipótese para os resultados encontrados sobre vivência de violência escolar pode ser considerada que a amostra possa estar associada ao contexto da educação inclusiva, que pode atuar como fator atenuador. Com as políticas de inclusão, os alunos ouvintes passaram a ter mais informações a respeito da surdez, o que, todavia, não garante por si só a diminuição da violência escolar decorrente da diferença. Esse baixo índice de violência escolar pode ser justificado pelas estratégias de coibição de comportamentos agressivos entre os pares, utilizadas pela gestão da escola, tais como recreios supervisionados, controle na entrada e saída dos alunos pela equipe diretiva, entre outros (SILVA et al, 2012).

Tabela 4 Análise de frequência das avaliações das vivências de violência escolar 

% f
Nenhuma ou quase nenhuma vivência de violência escolar 70,40 38
Poucas vivências de violência escolar 25,90 14
Frequentes vivências de violência escolar 3,70 2
Muito frequentes vivências de violência escolar 0 0

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

Para melhor compreender as experiências de violência escolar quanto a sua frequência, foi realizada uma análise de frequência das possíveis vivências de violência escolar que podem ser observadas na tabela 5 a seguir, onde A é “Nenhuma vez”, B é “Uma única vez”, C é “Uma ou duas vezes ao mês” e D é “Várias vezes na semana”.

Tabela 5 Análise de frequência absoluta das respostas experiências de violência escolar 

A B C D
1. Colegas me ameaçaram. 38 5 4 7
2. Recebia empurrões, socos, beliscões ou chutes de colegas. 29 13 4 8
3. Colegas puxavam meu cabelo ou me arranharam 48 3 1 2
4. Era xingado por colegas 30 9 5 10
5. Colegas pegavam sem meu consentimento meu dinheiro e minhas coisas. 37 6 5 6
6. Era obrigado a entregar dinheiro ou minhas coisas. 50 2 1 1
7. Os colegas estragavam minhas coisas. 41 6 4 3
8. Colegas me excluíam de grupos ou jogos. 38 1 4 11
9. Colegas me apelidavam e eu não gostava. 32 6 5 11
10. Colegas riam e apontavam para mim 35 6 4 9
11. Fui ameaçado ou forçado a fazer coisas que não queria. 50 1 2 1
12. Usavam a internet ou celular para me insultar. 45 6 1 2
13. Sofri perseguição pelo uso do aparelho auditivo. 47 2 3 2
14. Recebia provocações por dificuldade de me comunicar. 32 5 6 11
15. Algum colega quebrou meu aparelho auditivo. 50 3 1 0
16. Recebia provocações de colegas surdos usuários de Libras. 51 1 1 1
17. Professores faziam comentários negativos sobre o meu aparelho auditivo. 52 2 0 0
18. Funcionários da escola faziam comentários negativos sobre o meu aparelho auditivo. 52 2 0 0
19. Algum colega já te defendeu de alguma agressão. 27 14 4 9
20. Você recebeu apoio de professor após sofrer agressão. 29 11 6 8
21. Você recebeu apoio de funcionário após sofrer agressão. 38 7 2 7
22. O apoio que recebi ajudava a melhorar a situação. 27 11 5 11

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

A = “Nenhuma vez”; B = “Uma única vez”; C = “Uma ou duas vezes ao mês”; D = “Várias vezes na semana”.

Na tabela 5, são apresentados resultados quanto a incidência de violência escolar. Pode-se ressaltar que a ausência de resultados significativos neste caso pode estar associada ao número relativamente baixo de participantes surdos que aceitaram participar do estudo. Esse é um viés considerável já que na abordagem para os surdos participarem da entrevista, como hipótese, alguns por vergonha de se expor, outros por não querer relembrar fatos desagradáveis, se recusaram a participar.

Nos dados de frequência de avaliações das vivências de violência escolar para evidenciar o bullying de fato, as respostas de “uma ou duas vezes ao mês” e “várias vezes na semana” serão consideradas pela definição de bullying, que é um comportamento agressivo, de violência gratuita, que ocorre ao longo do tempo em uma relação desigual de poder em que a vítima sofre abusos de forma cíclica e intencional, sem estímulo evidente que ocasiona dor, sofrimento e se manifesta em diversas formas (OLWES, 2013 apud ABADIO DE OLIVEIRA, et al, 2015).

A forma verbal de bullying na pesquisa foi questionada nos seguintes itens e somados os resultados de “uma ou duas vezes ao mês” e “várias vezes na semana”: colegas me ameaçaram com 20,37%; era xingado por colegas cujo resultado foi 27,77%; colegas me apelidavam e eu não gostava com 29,62%; colegas riam e apontavam para mim com 24,07%; sofri perseguição pelo uso do aparelho auditivo com 9,25%; recebia provocações por dificuldade de me comunicar com 31,48% e recebia provocações de colegas surdos usuários de libras 3,7%.

Já a forma física e material de bullying apareceu na soma dos seguintes itens: recebia empurrões, socos, beliscões ou chutes de colegas com 22,22%; colegas puxavam meu cabelo e me arranharam com 5,5%; colegas pegavam sem meu consentimento meu dinheiro e minhas coisas com 20,37%; era obrigado a entregar meu dinheiro e minhas coisas com 3,70%; os colegas estragavam minhas coisas com 12,96%; fui ameaçado ou forçado a fazer coisas que não queria com 5,55% e algum colega quebrou meu aparelho com 1,85%. Na forma psicológica, foi indagado o item: colegas me excluíam de grupos ou jogos com 27,77% na soma das respostas. E cyberbullying na pergunta: usavam a internet ou celular para me insultar, cujo resultado foi 5,55%.

Devido à dificuldade de se encontrar na literatura, pesquisas quantitativas sobre bullying em surdos, comparou-se essa pesquisa com o estudo de violência entre pares: um estudo de caso numa escola pública de Esteio/RS de Silva et al de 2012, com alunos ouvintes, onde apenas 14 alunos (8,7% do total da amostra) foram agredidos mais de 3 vezes no ano letivo em que foi realizada a coleta de dados, ou seja, houve uma baixa incidência de bullying. Tais achados são semelhantes aos dados encontrados nesta pesquisa. A agressão mais frequente foi a verbal (47,2%), seguida da física (21,1%) e de outras formas de agressão (13,7%).

Um levantamento realizado pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA, 2003) envolveu 5.482 estudantes de 5ª a 8ª séries de 10 escolas do Município do Rio de Janeiro e revelou que 16,9% dos alunos foram alvos de bullying (SILVA et al, 2012), também confirmando a baixa porcentagem de bullying encontrados nesse estudo.

Nas perguntas você recebeu apoio de professor após a agressão? (25,92%), você recebeu apoio de funcionário após a agressão? (16,66%) e o apoio que recebi ajudou a melhorar a situação? (29,62%), a baixa porcentagem encontrada pode ser devido a vítima do bullying só relatar a violência quando sente que será entendida, ouvida, respeitada e acolhida. Geralmente, a vítima não possui meios de comprovar os ataques, pois não tem como serem visualizados, o que gera incompreensões e inconformismos (ZENTARSKI, DA SILVA, 2016). Alguns professores não entendem que certas brincadeiras repetitivas, geram tanto sofrimento, pois, acreditam que são normais nas relações entre colegas e que irão cessar, banalizando o martírio da vítima, mantendo, assim, a violência nas escolas.

Sobre o local da vivência da violência escolar, constatou-se que o recreio é o momento mais frequente (50,00%; f = 15), seguido da sala de aula (40,00%; f = 12) e outros locais (10,00%; f = 4).

Segundo Silva et al (2012), dos 91 relatos de vitimização, os locais onde ocorreram a violência escolar foram: recreio (34,1%), sala de aula (29,7%), saída ou entrada na escola (25,3%), corredores e escadas (17,6%), espaços de educação física (12,1%), refeitório (2,2%) e banheiro (2,2%). Os locais mais mencionados foram os mesmos nas duas pesquisas, pois esse estudo encontrou locais de violência no recreio (50%), sala de aula (40%) e outros locais (10%).

Buscou-se verificar se havia diferença estatisticamente significativa nos índices de avaliação de vivência de violência escolar em função do sexo, cor da pele, escolaridade, gravidade da deficiência, uso de aparelho auditivo. Após verificar as análises, não foi encontrada nenhuma diferença nos índices de vivência escolar em função dos grupos citados.

Considerações finais

O presente trabalho foi baseado no interesse de pesquisar se o adolescente surdo oralizado e usuário de aparelho auditivo sofre bullying no cotidiano escolar. Essa hipótese surgiu durante consultas otorrinolaringológicas na Saúde Auditiva da Policlínica UVV, no Estado do Espírito Santo-ES, onde alguns adolescentes atendidos se recusavam a usar os aparelhos auditivos e quando indagados sobre a causa, não conseguiam responder.

Com a lei da inclusão da pessoa com deficiência, esses passaram a frequentar escolas regulares que devem estar preparadas para qualidade de ensino, acessibilidade, professores capacitados para lidarem com as dificuldades desses alunos, principalmente em relação a linguagem, leitura e escrita com os surdos, mas essa não é a realidade dessas escolas que podem formar alunos iletrados funcionais, ocasionando umanegligência caracterizada como um tipo de violência escolar. A violência contra crianças e adolescentes acompanha a trajetória da humanidade desde os tempos antigos até o presente. A violência contra o deficiente auditivo se inicia no próprio seio familiar, pela não aceitação da surdez por pais ouvintes, com dificuldade de comunicação. Também pela falta de convivência entre surdos e suas especificidades. Até a escola, que, mesmo inclusiva, não prepara seus professores para receber e educar com qualidade esses deficientes.

Como o bullying é um tipo específico de violência escolar, muitas vezes as vítimas não conseguem comprová-lo, o que gera angústia, incompreensões e inconformismos. Também pode ser confundido com ações de socialização ou processos naturais da infância e adolescência.

Muitas vítimas de bullying se calam, não relatam os atos de violência nem delatam os agressores, por vergonha dos outros alunos, por medo de vinganças ou represálias, seja por acreditarem que os professores ou seus pais não acreditarem nas agressões sofridas.

O estudo constatou que a maior parte dos adolescentes surdos afirmam ter vivência escolar satisfatória, sentindo-se seguros na escola, sentindo-se parte da escola, sendo tratados de forma justa pelos professores e são assíduos em frequentar as aulas. Também professores são justos com os colegas que se sentem seguros na escola e alunos se respeitam mostrando boa convivência entre surdos e ouvintes.

Sobre a vivência de violência escolar, a maioria dos entrevistados afirmam que vivenciaram quase nenhuma ou nenhuma violência escolar. Um viés desse dado pode ser devido ao número relativamente baixo de participantes surdos que aceitaram participar da pesquisa. Avaliados dados sobre a frequência das vivências de violência, buscando caracterizar o bullying como violência repetitiva e cíclica, assim foi constatado baixa incidência de bullying sendo a forma verbal de agressão mais frequente, seguida de física e material, psicológica e menos ainda o cyberbullying.

Conforme exposto, os estudos consultados sobre práticas de violência escolar mencionam a ocorrência significativa de bullying junto a amostra de estudantes sem deficiências. Na presente pesquisa, com uma amostra de alunos surdos, protetizados e oralizados, não foi encontrada os mesmos índices. Porém, considerando ser o bullying um tipo de violência presente no contexto escolar, sugere-se que novos trabalhos, com amostras significativas, possam ser realizados. Que esta pesquisa possa servir como possibilidade de alerta às escolas sobre as vivências excludentes entre os alunos surdos, protetizados e oralizados.

Nesse sentido, almeja-se que esse estudo seja um ponto de partida para novos trabalhos e reflexões a respeito da vivência de violência escolar junto a estudantes surdos oralizados.

Espera-se que os dados da pesquisa estimulem novos estudos sobre a violência contra os surdos e que mobilize o desenvolvimento de estratégias voltadas para redução de medidas excludentes dos surdos protetizados e oralizados no ambiente escolar com a criação e manutenção de políticas públicas de ações antibullying, como capacitação e amparo de educadores e identificação dos alunos envolvidos, a partir de um olhar atento das instituições educacionais.

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Recebido: 20 de Julho de 2021; Aceito: 06 de Dezembro de 2022; Publicado: 31 de Janeiro de 2023

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