A entrevistada possui Bacharelado (1982) e Licenciatura em Ciências Sociais (1985), pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Mestrado em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (1998), Doutorado em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2006). Realizou estágio de pós-doutorado em 2009 no Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd/UERJ), desenvolvendo pesquisa na área de políticas e reformas curriculares. É professora adjunta da Faculdade de Educação (UFF), onde integra o corpo docente do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da UFF e do programa de pós-graduação em Ensino de Ciências do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Na atualidade, exerce o cargo de Secretária de Educação do Município de Niterói, Rio de Janeiro. Desenvolve projetos de pesquisa sobre políticas educacionais e formação de professores, bem como coordena o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Educação (GRUPPE/UFF), vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense e o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gestão em Gestão e Políticas Públicas em Educação (NUGEPPE/UFF). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Políticas Educacionais, Currículo e Formação de Professores. É autora de diversas publicações na área.
Entrevistador: Gostaria de retroceder 13 anos. Em 2006, você defende sua tese de doutorado, intitulada: Políticas públicas para a formação de professores em nível superior: constituição dos institutos superiores do sistema público de ensino do Estado do Rio de Janeiro.2 Logo no princípio, você faz um agradecimento ao seu pai3 por ter te ensinado a importância da vida política pautada nos princípios da ética e à sua mãe, por ter sabido construir uma numerosa família, portanto ter conseguido, com sabedoria, fazer articulações políticas, se tomarmos a política como a arte de conviver na pólis. O que é política pra você? Como ética e sabedoria se relacionam nesse lugar? Por que você agradeceu dessa maneira?
Flávia: Por que que eu agradeci? Porque meu pai, e eu acho que tenho muito dessa marca, sempre teve muito interesse por história, história política, ele me ensinou muito história. Ele era um verdadeiro autodidata, quase foi padre, foi interno no Mosteiro de São Bento4, teve aquela formação toda, mas, na hora H, ele acabou aos 18 anos indo pra vida política e se envolveu no contexto tumultuado dos anos 30. Papai era um nacionalista. Ele participou, inclusive, da tentativa de tomada do Palácio de Guanabara.5 Ele botou fogo no correio (risos). Depois ficou preso, obviamente tinha que ser preso. Colocou fogo no correio (risos). Ele ficou preso um tempo. E quando saiu da cadeia, saiu nos braços de Vargas,6 para montar o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), ele foi trabalhista e tinha um verniz socialista muito grande. Ele gostava muito de ler. Papai gostava muito do modelo do socialismo da Iugoslávia.7 Então a gente cresceu um pouco ouvindo essas coisas de Tito8, do Leste Europeu, da primavera de Praga.9 Papai teve uma trajetória política muito intensa. Ele era trabalhista e resistiu na Revolução de 64. Ficou no Palácio do Ingá, junto com Badger da Silveira10. Era um grupo antigo, ligado ao Brizola,11 ao Jânio.12 E papai sempre foi uma pessoa extremamente ética. Papai teve até cargos, mas era uma pessoa zelosa pela honestidade, pelos princípios. Então nós crescemos com esses valores. Papai era viúvo quando casou com minha mãe, levou quatro filhos pequenos e mamãe teve mais quatro, criou os oito sem distinção. Até hoje somos muito unidos, somos uma família, hoje nós somos sete, porque o mais velho faleceu. Então nós tivemos essa criação e convivemos com a política desde pequeninos; com as campanhas. Eu lembro até hoje quando Saturnino Braga13 se lançou candidato, quando esteve lá em casa. A gente cresceu nesse ambiente. Papai foi fundador do MDB14 também. Eu também fui filiada ao MDB, quando jovem, era aquela frente de esquerda. Então, eu lembro episódios da minha vida muito interessantes. Papai foi parar em São Gonçalo, fugindo da polícia e de Vargas, mas depois foi pego. São Gonçalo era muito roça e ele acabou se estabelecendo lá. Nos anos da ditadura, eu me lembro que tinha um senhor que vendia cocada nas ruas de São Gonçalo, ele sempre ia conversar com o meu pai. Sentava na varanda, eu ficava olhando, eu era garota e achava aquilo interessante. Eles sentavam horas a fio ali, conversando e vendendo cocada. Naquela época não tinha nem calçamento, depois que botaram paralelepípedo melhorou. Na saída da minha casa tinha umas chácaras grandes e tal, ele chegava, batia lá - o Flávio tá aí? E passavam horas a fio conversando. Eu ficava curiosa com tanto assunto. Quando chegou em 79, com a anistia, papai me contou quem era o vendedor de cocada. Tinha sido de um partido, não sei qual, era lá de Pernambuco e estava escondido em São Gonçalo fugindo da polícia. Eu acho que era ligado ao Partido Comunista. A cocada era um disfarce. Mas era deliciosa [ambos riem]. Eu, criança, comprava aquela cocada, adorava, e ele ia pela rua gritando “Cocada! Cocada!”, e ia com o menino vendendo cocada. Ele, acho, tinha sido um jornalista deportado, ou alguma coisa assim, e estava escondido. Na verdade conversavam sobre política. Depois eu fiquei perguntando de onde vieram aqueles livros traduzidos para o português, sobre as experiências do Partido Comunista [risos].
Entrevistador: Mas e hoje, o que você entende por “fazer política”?
Flávia: Fazer política? Eu vejo isso de uma forma que talvez esteja um pouco fora de moda. Porque o que eu vivo é uma intensa pressão, disputas. Disputas por poder, não são disputas ideológicas. Mas, eu ainda acredito na vida na pólis. Eu ainda tenho esse ranço, essa coisa de olhar pro bem comum, de olhar e tentar construir alguma coisa de bom para as pessoas e não pra mim individualmente. Eu estou com 60 anos (risos) e nunca tive ambições, as coisas foram acontecendo na minha vida, eu fui crescendo com essa formação que me deu essa visão de mundo.
Entrevistador: Essa sua ideia de ética é um pouco contrária a uma ideia muito utilitária que a gente tem hoje. Eu imagino que você vive um embate entre uma visão dessa noção de bem comum e ao mesmo tempo ter que lutar com essas forças em disputas, que são forças de poder. Como se dá esse conflito? Como é que a Flávia consegue conciliar suas múltiplas funções: secretária municipal, ativista, docente, pesquisadora, esposa e o que sobra de espaço para os desejos, para a vida comum, para o cuidado de si?
Flávia: Às vezes chega o final de semana, eu chego sexta-feira à noite em casa, e só saio segunda, de tão cansada que estou. E aí você precisa de um pouco de silêncio. Eu gosto muito, hoje em dia, de ficar sozinha, que meu marido que não ouça isso (risos). Eu amo meu marido, adoro ele, mas às vezes a gente precisa de um espaço pra descansar das pressões do telefone, descansar das demandas, dar um pouco de tempo pra mim, mas é difícil, porque é uma função que você, mesmo com o telefone desligado, não se desliga. Eu penso 24 horas, penso até quando estou dormindo e até sonho (risos). O tempo inteiro tem que estar pensando, elaborando as coisas.
Entrevistador: Como isso reverbera em você ou você não entende mais sua vida fora da sua vida pública? Não há mais vida privada (risos)?
Flávia: Eu tenho um pouquinho ainda.
Entrevistador: Um pouquinho ainda é bom (risos).
Flávia: Ainda saio com os amigos, tomo uma cerveja, um vinho com eles. Eu não tiro férias, eu tiro assim, vou viajar no réveillon e tiro carnaval. E às vezes em julho eu vou a Tiradentes, porque eu gosto de Tiradentes. Mas, na realidade, você tem razão, a função [pública] ocupa todos os espaços do seu ser, porque você tem que estar pensando, produzindo e formulando, e ao mesmo tempo buscando corrigir os rumos das ações o tempo inteiro. Então, por exemplo, agora recentemente eu me envolvi pessoalmente na reformulação de um programa, que é um programa de aceleração de aprendizagem para três anos de idade, que é um programa que eu propus em 2015. Mas o programa estava com muitos problemas, está um verdadeiro fracasso. Você às vezes tem que ser humilde e reconhecer que aquilo que você fez está muito ruim. E aí, peguei pela mão, junto com os professores e representantes das escolas, e fizemos umas reuniões. Fui ouvi-los também. E aí, com as ponderações e sugestões deles, nós reformulamos o programa. Mas estar em uma função como esta, é estar 100%, é esquecer de você muitas vezes também.
Entrevistador: Sua tese de doutorado é fruto de sua experiência profissional, ela continua sendo o motor dos seus estudos? O que mudou de lá pra cá em termos de sua visão sobre as políticas educacionais? Sua experiência se tornou mais rica. Esse lugar que você ocupa, é um lugar privilegiado, talvez no mal sentido (risos), mas é um lugar privilegiado, o ponto de interseção onde o jogo político acontece. Todo jogo passa por você.
Flávia: Mudou, mudou sim. Eu hoje percebo muito a importância da necropolítica,15 percebo muito na prática, na vida cotidiana. Quando eu chego aqui, quando entro, percebo como a política é construída nas relações, como a política sofre as pressões e reflexões do cotidiano, das relações entre as pessoas, das disputas entre as pessoas, onde tantas coisas boas são abortadas, às vezes, porque as pessoas não querem fazê-la, quando aquilo vai de encontro aos seus interesses, então as pessoas procrastinam também. Porque tem coisas que não são feitas e elas são até aprovadas, mas as pessoas procrastinam. A política é uma teia, é uma rede muito grande, onde aquele conceito de burocrata de porta de rua, que está sendo muito discutido na Ciência Política, encontra bom lugar. Porque é justamente esse burocrata - eu tenho vários aqui - que implanta a política e que está em contato direto com o público. A política se dá em várias esferas. Por exemplo, nós temos agora um trabalho muito grande, que veio com uma demanda da Prefeitura, precisei fazer uma série de mediações e, nessas, consegui trazer o projeto para aquilo que tinha a ver com o trabalho que a gente faz na rede, inclusive as questões dos projetos instituintes.16 É uma política interessante, porque ela envolve tanto ações no campo mais evidente, que é o campo da segurança pública, de se colocar policiamento, de se colocar policiais militares nas ruas e isso é muito legal, você tem hoje o CISP (Centro Integrado de Segurança Pública) que monitora as ruas, então os roubos de carros caíram muito na cidade, os assaltos e a violência estão diminuindo muito, pois há uma vigilância forte também. Niterói estava/está com muito problema de violência. E tem outras questões que envolvem a saúde, a educação e a questão da gente garantir a permanência do aluno na escola da gente ter um ambiente mais tranquilo na escola. Algumas escolas estão com problemas, com ambiente violento. Mas retomando, em resumo, eu tinha que fazer alguma coisa, a gente conseguiu modelar o projeto e conseguimos apropriar do jeito que a gente achava. A gente tem profissionais excelentes aqui, doutores, pessoas de muita formação e muito compromisso político a favor do aluno, a favor da escola. E aí nós conseguimos, digamos, reorientar esse projeto e agora ele vai para as escolas. Naturalmente quando ele for para escolas, pelas mãos do burocrata que vai implantá-lo, ele sofrerá alterações, é o ciclo da política, cada um vai interpretar do seu jeito, então a política não é linear. A política sofre diversos processos constantes de reinterpretação.
Entrevistador: Eu escrevi um texto (LEMOS, 2019) sobre isso, onde uso como metáfora a “altura de cruzeiro”, quando a gente vê a terra lá de cima do avião, a 11 mil metros de altura, a gente vê uma paisagem imensa, mas os seres humanos desaparecem, e a gente tenta planejar e organizar essa paisagem a despeito daquilo que a gente não vê, mas quando a gente aterrissa, a paisagem some e os seres humanos aparecem (risos). Como a gente concilia nessa questão da macro e micropolítica a metáfora que eu fazia nesse sentido como as coisas se relacionam. Você já está há bastante tempo em cargo de gestão e essa função te obriga a tomadas de decisões que, por vezes, contrariam à sua própria vontade pessoal, como a Flávia e a Secretária negociam quando entram em conflito?
Flávia: No início eu me contrariei muito. Mas, aí, eu sei a hora de brigar. Eu reagi, no bom sentido, reinterpretando os projetos à luz da realidade na qual a gente acredita, e a gente também sabe que efetivamente não se muda a realidade por decreto. Essa é minha aprendizagem maior aqui, a realidade ela só muda com o trabalho coletivo, discussão e consenso. Criando o tempo inteiro, consensos possíveis, o que podemos fazer? Podemos fazer isso? Então vamos caminhando, a gente tem que criar consenso, as pessoas precisam acreditar naquilo que elas fazem, se elas não acreditarem e se elas não forem reconhecidas em sua importância, aquilo não vai valer de nada, você gasta dinheiro à toa. Por isso, a importância das relações, da micropolítica, do olho no olho. Foi isso que eu aprendi aqui.
Entrevistador: Mas como você negocia consigo mesma, quando você tem que tomar uma atitude que de fato te contraria?
Flávia: Isso aconteceu muitas vezes. Nem sei te responder (risos). Eu procuro sempre reinterpretar as coisas - tem que fazer, não gostei muito, tento fazer de um modo diferente. Eu tento fazer diferente, driblar um pouco. É difícil. Teve momentos na gestão que foram muito impactantes, muito decisivos. Mas teve um momento que foi duro e naquele momento duro, algumas decisões precisaram ser tomadas, eu tive muita dificuldade em alguns momentos e isso me impactou muito.
Entrevistador: Até que ponto a experiência como Secretária de Educação interfere na sua docência, enquanto formadora de professores? De que modo essa experiência incide sobre ou reivindica referenciais teóricos que você utiliza na sua docência?
Flávia: É uma situação distante da sala de aula, distante do professor, se você não entender que o caminho é pelo diálogo, pelo consenso, debate e negociação. A partir dessa ideia da política como uma negociação, você negocia entre os autores, porque as coisas não caminham e você não consegue também alavancar a realidade. Quando você entra na escola é real. As pessoas das escolas são reais. A escola pulsa. As pessoas não se percebem muitas vezes. As pessoas acham que basta modelar propostas, propostas muito bonitas, bem formuladas do ponto de vista teórico. De outro lado, a literatura sobre a formação de professores, desde muito tempo, me ajudou também a compreender melhor os processos de formação. E a entender também essa questão da pessoa do professor e como ela é central no processo educativo. Então, eu comecei na minha dissertação de mestrado, me voltei para os estudos de processos de formação continuada e processos extremamente massivos, ali você vê a inoperância desses processos massivos. Você tem que trabalhar a formação de professor no micro, lá no plano anual de planejamento, no diálogo - eu digo pra elas: “meninas me desculpe, o diálogo é maravilhoso”. Fizeram uma jornada de alfabetização, botaram 3.500 professores e brinquei com elas: “eu fui lá atrás e vocês não estavam escutando direito não. A gente não estava escutando direito” (risos) - esse olhar o estudo me trouxe, e eu sempre digo a elas: “meninas, a gente tem que investir em outras propostas para a formação de professores, em diálogo com uma proposta mais clássica, uma proposta teórica e todo mundo precisa estar alinhavando, lendo, estudando, aprofundando seus referenciais.” Mas nós precisamos, sobretudo, de processos - isso hoje eu tenho muita clareza - que estejam focados na prática da sala de aula, no dia-a-dia, na prática do professor. Porque o que professor faz, é muito legal, mas o que eu faço com aquele menino que mora lá na maloca - maloca é uma favela que tem aqui em Niterói - e não frequenta a aula, que se torna infrequente. Quando ele vem, o que eu faço? Como essa formação ajuda na resolução do encaminhamento de questões do cotidiano? Eu hoje sinto muito o peso e a importância de como a vida se dá aqui.
Entrevistador: E eu me recordo dos meus dezessete anos na Rede Pública Estadual. A gente não se dá conta, atuando como profissional, que é a pessoa atuando. Que os alunos impactam a gente afetivamente.
Flávia: Nossa… teve um episódio que me deixou muito emocionada depois. Eu fui numa UMEI (Unidade Municipal de Educação Infantil) lá na Teixeira de Freitas, estava no corredor e vi uma porção de criancinhas de 4 a 5 anos. E tinha uma muito bonitinha que estava com um cabelinho preso e eu disse pra ela: “mas como você é linda.”. Eu realmente a achei uma graça, uma fofa, linda a menina. E daí a professora quase começou a chorar. Daí eu, opa, opa o que houve? A professora disse: você sabe que eu estava justamente conversando com ela - parece que a gente capta algumas coisas -, ela tem muitos problemas com o cabelo, com a autoestima, então que bom que a senhora elogiou ela - mais eu falei aquilo de coração, eu achei a menina linda, uma graça. Criança é muito bonitinha. Outro dia eu voltei lá. Daí quando a menina me viu, veio correndo pra me abraçar. Eu abracei e perguntei: “Como você tá?”. Então são coisas do dia-a-dia que envolvem muito. Ontem eu fui numa unidade escolar, e vi a professora com um aluno que era pequeno, devia ter uns cinco anos e ele estava com um arranhão grande no rosto. Ele disse que foi a mãe dele que fez. Então como você lida com isso? Os professores ficam muito impactados, lógico que aos poucos vão criando alguns calos, mas é um cotidiano de muita necessidade, de muita carência. Nós temos as questões que as crianças emagrecem nas férias em janeiro, elas ficam magras. Porque elas não comem, as crianças de comunidade, muitas vezes, vão comer um salgado com um guaraná. Essa dimensão que sensibiliza muita gente, pois estamos lidando com vida, a vida que tem necessidade, o tempo inteiro estamos lidando com isso. Desde a professora fofoqueira que chega aqui para falar mal da diretora, que você sabe que muitas vezes a diretora assediou mesmo, que são práticas terríveis. Eu acho que tudo na vida é pessoal, mas quando eu vejo na prática, no dia a dia, me pergunto: que gestão democrática é essa? Você foi professor, eu também fui professora há muitos anos. Eu lembro que quando eu comecei a trabalhar, foi numa área rural no estado... Fiz quinze anos no Estado. Dava tudo. Tinha habilitação para história e geografia, mas tudo o que precisasse, eu lecionava. A minha escola não tinha nem forro, aí quando chovia, a gente saía para pegar os baldes, eu e as crianças. Passarinhos faziam aqueles rasantes e faziam caquinha na cabeça dos meus alunos. Não esqueço dessa experiência. E as diretoras... Era um horror... As práticas autoritárias... Lógico que tem diretoras muito boas. Os professores sofrem muito... Então assim... Como coibir também essas práticas? Lógico que todo mundo tem o discurso maravilhoso... Os discursos das pessoas sobre as gestões democráticas, sobre a importância do SEPE.17 Mas “a vida é real e de viés”.
Entrevistador: A gente acaba, às vezes, se tornando déspotas, nós também, com os alunos. Teve um dia que eu me peguei corrigindo uma prova, e que eu dei um zero de caneta vermelha, segurando a caneta assim... Aquele zero cortado como uma vingança (risos), foi com um prazer que eu dei aquele zero... Depois eu fiquei pensando assim - Gente, eu estou muito mal amado, estou muito ruim - porque quando você chega a pensar o seu próprio magistério como o lugar de poder e vingança, você atingiu o máximo da infelicidade. E aí, como é que a gente trabalha isso? Porque eu queria trabalhar com elas (as professoras da rede) exatamente essa coisa, que elas precisam começar a pensar, e isso é uma prerrogativa do nosso referencial teórico lá no grupo em que eu trabalho no ProPEd/UERJ, que é essa produção de sentidos no campo. Como é que você produz um magistério “feliz” para você? Porque se você entra bem na sala, você contamina os alunos e se você entrar mal, você também contamina os alunos. Como é que a gente pode nos contaminar primeiro? Ao invés da gente pensar primeiro no aluno, como é que a gente cria magistérios em que a gente possa se colocar dentro dessas questões.
Flávia: Você sabe que esses dias teve uma aula, mas foi uma aula da pós. Tirando os 15 minutos do intervalo, eu acho que eu falei quase 3 horas. Eu disse: “Meu Deus do céu, como que eu fui capaz de fazer isso?” Eram adultos, altamente respeitosos e ficaram em silêncio. E aí, no final, até duas vieram falar comigo: “Ah, professora, a senhora contagia a gente, porque a senhora gosta”. A gente vê assim, evidentemente, que você tem uma questão de gostar muito do que faz, de acreditar, de ver importância... Eu acho que a gente contagia assim, colocando o coração na sua prática. Mas depois eu fiquei pensando: “Meu Deus, demorei 3 horas... que massacre”. Eu adoro o que faço. Eu tinha lido lá o livro do Mário de Andrade, falei dos anos 30, falei da Revolução. Falei da comissão de fascistas que veio ao Rio... Contei essas histórias que eu acho ótimo, mas não sei se os outros acham, se têm interesse.
Entrevistador: Acho que na medida em que você acha ótimo, você acaba contaminando de alguma maneira esses alunos, e a gente também. Você hoje tem matéria prima, enquanto gestora de educação, que são crianças e adolescentes. Início de adolescência. Eu sou formado em filosofia, eu tenho paixão por filosofia. Mas se eu pegar o currículo mínimo de filosofia da Secretaria de Estado de Educação, que eu odiava aquele currículo mínimo. Por que eu odiava? Porque eu olhava para os meus meninos e meninas ali, os meus adolescentes, e eu percebia quais eram os temas que interessavam... Mais do que interessavam, que eram necessários que fossem conversados com eles, e a filosofia tem tudo para te oferecer, então eu chutava o currículo mínimo e fazia o que era preciso.
Flávia: Uma aula de filosofia com práticas, com reflexão... Ouvindo as pessoas.
Entrevistador: Exatamente!
Flávia: E aí eles deviam gostar muito...
Entrevistador: Passaram a gostar. Então eu comecei a abrir mão, inclusive, de alguns instrumentos... Eu parei de dar prova. Eu criei outras formas de avaliação que não eram formas punitivas. Que eram formas em que eu tentava fazer com que os alunos mesmos compreendessem suas formas, como é que eles se percebiam, inseridos ou não, naquele assunto. Também acho que eles têm o direito de tomar a decisão de não querer aprender. E não adianta querer forçar, nós sabemos quais são os macetes para passar numa disciplina sem aprender o conteúdo.
Flávia: Sim...
Entrevistador: Então a gente fica no disfarce? Como é que a gente trabalha essas questões? O Município de Niterói está em pleno debate acerca dos referenciais teóricos para a Educação, como é pedir aos professores da rede que pensem e proponham caminhos para suas ações, que produzam currículo, à contrapelo de possíveis pressões políticas contrárias externas, em tempos de conservadorismo?
Flávia: Eu acho que a gente tem que dar espaço para a vida. Pra vida... Para as pessoas se expressarem, falarem, impulsionarem... Eu acho que a política é isso. Política é esse bate bola que a gente faz no diário. Tendo em vista algumas questões, a gente está nesse movimento de discussão e produção de novas diretrizes curriculares. E aqui nós sofremos muitas pressões políticas até porque não endossamos os movimentos maiores do próprio Estado do Rio. Essa discussão do currículo fluminense, eu chamo de currículo fluminense. Eu lembro das primeiras reuniões com os secretários que eu fui, quando ainda estava se discutindo a questão da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), em 2015, talvez. Aí tinha uma determinada fundação, que eu não vou citar o nome, que estava vindo muito aqui. Eu sou uma pessoa educada, eu recebo. Papai me deu educação. Nesse dia teve uma fala de uma colega da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que eu também não vou citar o nome, que é uma pessoa muito especial, muito bacana, que se posicionou contra a BNCC e aí, no meio de um intervalo uma aluna falou - Professora: a senhora é contra a BNCC ? Eu disse - sou sim, por isso, por aquilo, por aquilo outro e ela nunca mais apareceu aqui, me livrei deles, não vieram mais aqui. Sofremos muitas pressões também pela questão do IDEB,18 a direita tem bombardeado, colocando no Facebook, que Niterói se arvora que gasta X, que o salário é Y, mas que o IDEB é W, digamos assim, que nós não atingimos a meta. Nós melhoramos muito nas proficiências. Acho que a gente tem que ter esse diálogo com avaliação externa, não somos uma ilha, não somos isolados, mas a pressão tem crescido e ela crescerá sobretudo no ano que vem, que é um ano eleitoral. A própria divulgação do IDEB acontece a um mês, dois meses antes da eleição. Um dia eu perguntei ao professor Paim19 - por que o senhor não botou a divulgação do IDEB em anos não eleitorais? Eu gosto muito do Paim, gente boa pra caramba, uma gracinha de pessoa, uma pessoa maravilhosa.
Entrevistador: Nós do ProPEd/Uerj, estamos encerrando hoje um curso de extensão, para a Rede de Niterói, que nomeamos “produzir currículo nas escolas”, nossa intenção foi estimular professores a pensarem suas vidas docentes e buscarem saídas próprias e criativas para sua próprias questões, o que vai na contra mão de um política prescritiva e uniformizadora. O que pensa a esse respeito?
Flávia: Eu sou extremamente agradecida ao Proped por esse movimento. Ele veio justamente ao encontro do que a gente estava precisando, pra gente também ganhar fôlego nessa discussão e fazer com que eles também, os professores, vejam e tenham clareza disso que você mencionando que é o poder deles de criar, recriar o currículo na prática, na escola, na sala de aula. Hoje em dia eu tenho muita clareza sobre isso. Não é que eu desacredite nos documentos oficiais. Os documentos oficiais têm a importância deles, com diretrizes amplas, mas a concretização, a realização dessas diretrizes na escola ela segue caminhos imprevisíveis e assim quem acha que pode controlar a realidade tá muito equivocado. Tem pessoas que propõem - vamos fazer isso, vamos fazer aquilo - bobagem, vocês acham que podem controlar a sala de aula? Não podem, o que a gente que tem que fazer é potencializar essa prática do professor para que ele tenha consciência de seu trabalho, para que ele também veja os caminhos que ele pode trilhar. Aqui temos um grande debate sobre alfabetização e eu às vezes faço papel de advogado do diabo com elas, não se pode ter a ilusão de que é possível impor um método, no campo da alfabetização, as práticas são hibridas, e é assim mesmo, o que se tem que fazer é potencializar, para que as pessoas possam desenvolver um bom trabalho. Alguém acha que vai dominar método de avaliação? O professor é que constrói, ali na sua prática de alfabetizador, a partir de “n” referências teóricas e vai dialogar com isso, mas o que a gente quer é que as crianças saibam pelo menos escrever, eu ando muito pragmática (risos). Agora a marca do carro, a cor do carro... Lógico que a discussão teórica é importante, mas o que nós temos que fazer é com que cada um possa ir se desenvolvendo e dando conta daqueles objetivos que a escola elenca no seu projeto político pedagógico. Eu acho que é preciso essa clareza hoje. Eu lembro que, quando eu cheguei aqui, eu fiquei impactada, porque eu também tinha um formalismo, fazia muita leitura da legislação. Teve uma época da minha vida em que eu lia todos os pareceres, mensalmente, do Conselho Nacional. Eu acompanhava aquilo, quando eu fui professora, no CEFET (Centro Federal de Educação Tecnológica) de Química,20 de Estrutura e Funcionamento do Ensino. Aí depois vim pra UFF, pra OEB (organização do ensino básico), que é a versão moderna, digamos assim, da antiga Estrutura e Funcionamento de Ensino. Então eu mantinha aquilo e hoje eu não domino mais porra nenhuma, não consigo. E é uma coisa que eu sinto falta, que eu gosto também. Eu gosto dessa discussão pedagógica. O parecer, ele tem uma discussão político pedagógica. Quando eu cheguei aqui, eu vi umas situações como o recreio contado como hora-aula, por exemplo. Mas aí, aos poucos, eu fui vendo, também, que existe uma questão que é a cultura local, a prática, a construção diária. Cada escola vai se construindo, fazendo isso de uma forma muito particular.
Entrevistador: Suas considerações finais.
Flávia: Eu tento aqui ir na contramão de uma política prescritiva e uniformizadora. Eu acho que a gente tem de permitir que as coisas floresçam. Que as coisas brotem. Que as práticas brotem. A escola de que cada localidade tem um colorido, um tom, uma proposta. Basta passear um pouco com a gente e conhecer as escolas das comunidades. Tem escolas lá no Morro do Castro, tem a escola do Morro do Céu. Cada uma com seu jeito próprio. No Morro do Céu, é lá em cima. Você pode imaginar que é um lugar muito complicado. Aí você tem duas escolas, você tem uma escola de Ensino Fundamental I e II que é muito interessante. É muito interessante essa escola, é a José de Anchieta, a diretora está lá há muitos anos, ela fecha o portão, o portão fica trancado. Embora a configuração local tenha mudado muito, porque os meninos que estão lá não passaram pela escola, são meninos do Rio, são meninos de outras comunidades. Mas é interessante, ela fecha a porta e tudo acontece, tem até cineclube, é uma escola ótima. Cada uma é uma realidade. Se você for pro Fonseca, na Vila Ipiranga, lá a escola é do lado do Sabiá, uma escola de samba, que marca muito a escola. Então é uma riqueza muito grande, é uma riqueza de vida. A gente precisa ter clareza de que é preciso deixar a vida brotar, a vida fluir. Que as pessoas encontram os seus caminhos.
Entrevistador: Talvez a gente possa pensar uma política mais como uma articulação dessas criações locais do que como imposição de uma proposta unívoca.
Flávia: É isso. Os estudos prescritivos, às vezes, eles têm muita ilusão, eles gastam boa parte do tempo desenvolvendo estratégias de controle, até bem-intencionadas, ninguém é mal-intencionado. Lógico que, eventualmente, pinta alguém que é mal-intencionado. Mas boa parte das pessoas, e eu conheço um número muito grande de secretárias de educação aí do Estado, estou sempre com elas, que vêm da sala de aula, são professoras com muita trajetória.
Entrevistador: Eu acho que a gente precisa fazer articulações para que floresçam esses ambientes criativos locais. Não só relativos ao local, mas eu penso que relativo ao corpo docente que ali está. É preciso encontrar, talvez, saídas para fazer com que essas pessoas conversem e conversem sobre a vida delas Que conversem sobre as relações que elas têm com o conhecimento, com a atividade escolar. Porque o conhecimento humano é uma aventura. Não é possível que isso se transforme numa coisa desagradável, chata, ruim. Tão propulsora de tantos conflitos na ordem do poder, eles não estão na ordem do saber. Então eu acho que é isso. A gente precisa parar com essa ilusão de querer impor a coisas. Seu depoimento foi muito interessante, essa sua trajetória que vai de uma formação macropolítica barra pesada [ambos riem], dada por seu pai, mas que a prática da gestão foi fazendo deslizar para as paisagens micropolíticas. Muito obrigado.