Introdução
O movimento educacional renovador, assim chamado por seus protagonistas, foi amplamente estudado pela historiografia educacional no Brasil. Trabalhos pioneiros de Nunes (1991, 1993) e Carvalho (1998), por exemplo, revisaram, sob nova abordagem, o itinerário de lideranças que protagonizaram o movimento, com destaque a Anísio Teixeira, Carneiro Leão e Fernando de Azevedo, envolvidos com as reformas educacionais que lideraram no antigo Distrito Federal. Warde (2003), mais especificamente, analisou a trajetória de Lourenço Filho e suas redes de relacionamento no âmbito político e educacional de São Paulo.
Em outra perspectiva, Monarcha (2009), examinou as peculiaridades científicas e técnicas que marcaram o movimento da Escola Nova, com ênfase na circulação de teorias pedagógicas, provindas de diferentes escolas e as formas de apropriação no Brasil, fenômeno que o autor denominou “expansão planetária da Sciencia Nova”, a partir de um exercício analítico pautado na dialética “localismo/cosmopolitismo, nacional/universal” (Monarcha, 2009, p. 17).
Outros trabalhos de semelhante envergadura historiográfica colaboraram na divulgação de novas fontes e problemas de pesquisa relacionados ao movimento da Escola Nova, alguns privilegiando as reformas sob variados pontos de vista (Vidal, 1998; Paulilo, 2007).
O presente artigo analisa as formas de articulação protagonizadas por grupos católicos durante a década de 1920, e se propõe, no bojo destas conexões, evidenciar determinadas tensões verificadas no seio da Reforma Fernando de Azevedo (doravante RFA), entre os anos de 1927 a 1930. O projeto católico, por meio de suas lideranças intelectuais e do magistério público, era o de criar e consolidar repertórios discursivos e práticas de militância, especialmente vinculadas ao professorado. Além disso, destaca-se pertinente para o presente estudo, compreender os níveis de inserção dos mesmos grupos na burocracia estatal, ocupando cargos, exercendo funções e intermediando conflitos.
Para entender a inserção católica no escopo da RFA, com ênfase no intercâmbio e nas dissidências, foi escolhido um movimento até então pouco explorado na historiografia educacional brasileira. Trata-se da Cruzada Pedagógica em Prol da Escola Nova (doravante Cruzada), ação educacional que se propôs, no bojo da RFA, levar adiante um ethos urbano-católico pautado na formação do magistério e na divulgação, sob a ótica dos princípios doutrinários da Igreja, dos preceitos da Escola Nova.
A Cruzada foi liderada por Everardo Backheuser e sua esposa, Alcina Moreira de Souza que, juntamente com outros nomes do magistério público carioca, atuaram na organização de conferências, cursos, seminários e exposições pedagógicas. O movimento, em geral, é mencionado como uma das iniciativas da RFA, somada a outras investidas da Diretoria de Instrução Pública do Rio de Janeiro, sob a liderança de Fernando de Azevedo, no final da década de 1920. Porém, alguns dos escritos de Azevedo elaborados no burburinho das ações e em momentos posteriores, não tratam da Cruzada como um projeto interno da RFA. O próprio Backheuser em obra publicada em 19342 a definiu como uma associação “sui generis [...] por nós idealizada e fundada pela professora ALCINA MOREIRA DE SOUZA com valioso concurso de brilhantes colegas” (Backheuser, 1934, p. 12, caixa alta no original).
Os pressupostos teóricos e os procedimentos de método que o presente estudo elabora, estão, no decurso da narrativa, e na medida do possível, conectados com as informações coletadas nas fontes e, de forma mais sistemática, nas considerações finais do artigo. Destacam-se as contribuições de Gramsci (2011), sobre a Ação Católica e as relações entre Estado e Igreja; Rémond (2003) com suas reflexões sobre a História Política; Sirinelli (2003) e as categorias de rede e sociabilidades intelectuais e, por fim, Altamirano (2010) e Magalhães (2016), com suas assertivas relacionadas à História dos Intelectuais e a aplicabilidade do conceito, no sentido da perspectiva, da representação e da preservação, ou seja, os intelectuais na condição de atores e de efeméride.
Quanto às fontes, foram pesquisados veículos da imprensa periódica carioca, documentos arquivados no Centro Cultural Alceu Amoroso Lima para Liberdade, localizado na cidade de Petrópolis (RJ), a obra memorialística de Alcina Backheuser e material empírico sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
O texto está organizado em três partes, a saber: na primeira, elabora-se um arrazoado sobre Everardo Backheuser, sua formação, itinerário e sociabilidades, com ênfase no período de sua conversão ao catolicismo, a partir de 1928. Num segundo momento, o eixo da discussão é a Cruzada, sua origem e principais ações, em articulação com a RFA. Em sua terceira parte o artigo apresenta considerações conclusivas sobre a temática em tela.
Everardo Backheuser, formação, itinerário e sociabilidades intelectuais católicas3
Expoente da intelectualidade católica, Everardo Backheuser pode ser considerado um nome que esteve à frente de iniciativas dentro e fora da estrutura administrativa do Estado (Barreira, 1999; Sgarbi, 2001; Rosa, 2017). Desde sua aposentadoria, em 1927, da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, passou a militar no campo da educação primária, envolvendo-se nas discussões em torno da formação de professores, métodos de ensino, pedagogia renovadora e ensino religioso (Backheuser, 1934). Para tanto, fortaleceu sua participação na imprensa periódica, na produção de manuais e atuação em projetos especificamente elaborados na gestão de Fernando de Azevedo na Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal.
No preâmbulo do seu livro Técnica da Pedagogia Moderna (Teoria e prática da Escola Nova), destacou sua participação na organização do Museu Central Pedagógico, confiado a ele por Fernando de Azevedo. Antes disso, lembrou os leitores sua circulação pela Europa e visitas que realizou a “alguns centros estrangeiros vivamente empenhados na nova didática” (Backheuser, 1934, p. 11). A imprensa carioca anunciou sua partida nos termos que seguem:
Partiu Everardo Backheuser no dia 30 de abril de 1928 no vapor alemão “Sierra Ventana”, comissionado pela Sociedade de Geografia e Academia de Ciências, para representar as referidas entidades nas festas do Centenário da Sociedade de Geografia de Berlim e no Congresso Internacional de Geografia de Londres e Cambridge. Representou o governo do Brasil, por parte do Ministério da Justiça no 20º Congresso Internacional de Esperanto, que se reuniu na Antuérpia em setembro daquele ano (Jornal do Brasil, 1928).
Na mesma notícia, uma informação indicou a ligação de Backheuser com a burocracia estatal: havia recebido, por parte do prefeito e diretor de Instrução, a missão de “examinar com especial detalhe o funcionamento das escolas ativas na Europa em geral, mas em especial na Alemanha, Áustria, Bélgica e Suíça” (Jornal do Brasil, 1928).
É conhecida a ligação de Everardo com as áreas de Geografia e Engenharia (Barreira, 1999). Em 1897 ingressou na Politécnica carioca e, após sua graduação, foi contratado pela prefeitura do Rio de Janeiro para atuar em projetos ligados às habitações populares. Em efeméride dedicada a seu marido, Alcina Backheuser4 lembrou de um artigo escrito pelo marido intitulado Onde moram os pobres, logo que assumiu seu posto de engenheiro público:
O Dr. Everardo Backheuser é engenheiro da Prefeitura. Por dever de ofício, percorreu grande parte da cidade onde se acumula a população pobre: foi, pois, com observações próprias que pode escrever o seu artigo impressionista da Renascença “Onde moram os pobres”. É um artigo que confrange a alma” (Backheuser, A., Efeméride, 1954, p. 44-45)5.
A relação de Backheuser com a Geografia e a Engenharia, rendeu-lhe, certamente, notoriedade junto às elites políticas cariocas e à intelectualidade científica e técnica das respectivas áreas. Passou a representar internacionalmente a Geografia brasileira em eventos e jornadas acadêmicas, com atesta a reportagem acima citada. Além disso, sua atuação no espaço urbano carioca lhe proporcionou um conhecimento agudo e sistemático da “questão popular”, tema que o envolveu durante sua longa estada profissional na prefeitura carioca.
Como afirmado, desde sua aposentadoria na cátedra de Minerologia e Geologia da Politécica (Backheuser, A., 1954, p. 110), dedicou-se a debater questões relacionadas à educação primária popular. Logo foi convidado por Fernando de Azevedo a assumir tarefas em comissões e ações específicas da Diretoria, com destaque à sua participação no ciclo de conferências organizada por Fernando de Azevedo, em 1928, denominada A Escola Nova e a reforma do ensino, ao lado de Licínio Cardoso, Jonatas Serrano e Lourenço Filho (Monarcha, 2009, p. 150-151) e na organização do Museu Pedagógico Central.
Suas ações no âmbito da educação pública não se resumiram nos círculos estatais. Sua esposa, Alcina Moreira de Souza, a quem dedica seu pioneiro livro sobre a Escola Nova ou Ativa (Rosa, 2017), professora pública com um largo círculo de amizade e reconhecimento junto ao magistério primário carioca, sistematizou na Efeméride dedicada à memória marido, o caminho por ele trilhado na conquista de um espaço de reconhecimento intelectual e político.
Alcina Souza destacou-se como liderança junto ao corpo docente primário, majoritariamente feminino, como se pode notar na relação de educadores que dedicaram esforços na organização da Exposição Pedagógica na escola Deodoro, em 1929, promovida pela Cruzada, senão vejamos:
Alfredina de Paiva e Souza, Alice Jorge da Cruz, Eurydice Jorge da Cruz, Juracy Silveira, Clotilde Matta e Silva, Sara Guimarães Regadas, Orminda Marques, Edith Werneck, Helena Mandroni, Joaquina Daltro, Alcina de S. Backheuser, Ruth Rebello, Cecília Muniz, Maria Bonfim Lima, Adelaide Lima, Oscarina Mello e Souza, Nise Corrêa Lima, Isaura Sampaio, Maria de Lourdes Sarmento, Lucinda Ramos, Consuelo Magalhães, Yvone Nahon, Maria Augusta Bion, Moema de Carvalho, Thereza Rosas de Castro, Anna Bessa Menezes, Yolanda Goffi, Claudia Goffi, Aline Rodrigues, Zilda Denucci, Aurea Paiva Neiva, Judith Rocha, Elzira Glycerio Lins, Azurita Britto, Octávia Saldanha, Estella Tinoco, Abigail Almeida, Marianna Rangel, Esmeralda Souza Lobo, Clara Malinconico, Alzira de Azevedo Vieira, Carolina Bertholo, Djalma Qyuintanilha, Nestor Magno de Carvalho, Antenor Ultra, Rubina Rosa da Silva, Maria da Glória Barreto, Antenor de Paiva e Souza, Maria Pacheco Barbosa (Fundo Fernando de Azevedo, Instituto de Estudos Brasileiros, D1/1,31).
A relação exposta acima evidencia uma rede de professores primários que, em articulação, provocaram um amplo movimento em torno da causa da “educação nova”, sob a liderança do casal Backheuser. Interessante notar que a organização não nasceu a partir das diretrizes emanadas da RFA, nem mesmo de uma ação estatal específica, apesar do apoio obtido. Outras implicações merecem uma análise mais detida, centrada no ritmo da história e na circulação dos sujeitos envolvidos.
Mais uma vez são as memórias de Alcina Backheuser que auxiliam a compreensão de uma trajetória, em que pese limitações dos relatos desta natureza, pautados, por vezes, no esquecimento ou na seleção (Ricoeur, 1994; Le Goff, 1990). Backheuser, após sua conversão ao catolicismo, em outubro de 1928, fato simultâneo à criação da Cruzada, iniciou seu périplo à causa do ensino religioso, conforme relata sua esposa em efeméride:
Logo que, em virtude de sua conversão, Everardo Backheuser resolveu alistar-se nas fileiras católicas, formulou seu programa de ação: propugnar pelo ensino religioso nas escolas. Fé-lo desde a primeira hora. Esta se apresentou a 25 de outubro de 1928, quando ele subiu pela primeira vez à tribuna de uma Igreja católica. Era por ocasião da importante “Semana do Chefe de Família” em cujo programa figurava uma série de conferências na Catedral de Niterói. Backheuser inscreveu-se para falar sobre “A influência da Escola”. Assim se refere a esse fato o ilustre sacerdote e escritor Cônego Melo Lula: “Foi uma noite memorável a de 25 de outubro de 1928. A catedral de Niterói transbordava...” (Backheuser, A., Efeméride, 1954, p. 120, grifos meus).
Alcina Backheuser expôs, resumidamente, o programa de vida de Everardo, a partir de sua conversão: lutar pelo ensino religioso nas escolas. Em uma conferência que marcou a liturgia do evento da sua conversão, discorreu sobre a Influência da Escola, título sugestivo elaborado por alguém que, a partir daquele acontecimento, elegera uma causa a ser conquistada no âmbito da educação escolar, nomeadamente a primária. Cônego Lula prosseguiu o seu relato nos termos que seguem:
Todos esperavam, com verdadeira ânsia, a hora abençoa da de ouvir a palavra autorizada e sincera do homem de ciência que, após estudos profundos e sábias reflexões, encontrara a verdade no seio da Igreja Católica, única instituição capaz de subsistir aos furores de um século em desespero. Começa o Dr. Everardo Backheuser a sua monumental conferência (Backheuser, A., Efeméride, 1954, p. 121).
O prelado, sob os auspícios da instituição católica, seguia, ao seu modo, as orientações emanadas dos documentos papais e cartas pastorais diocesanas. Eram tempos de Ação Católica, que marcaram o pontificado de Pio XI (1922-1939), o papa que dedicou esforços a questões emergentes e fundamentais para a Igreja: formação da juventude, matrimônio, família, formação dos sacerdotes e fortalecimento da hierarquia (Gallego, 2016). Outras questões no âmbito da teologia foram decisivas para Pio XI e que repercutiram nas ações políticas da Igreja durante o seu pontificado:
El centro vital del magistério de Pío XI se encuentra em la ideia del Reino de Cristo: Cristo deve reinar em la vida íntima, em la mente, em la corazón y em la vida pública de lãs naciones. Este convencimiento fudamenta la organización de la Acción Católica, uma de las obras mais queridas y representativas de este pontificado. Para conseguir este propósito, y considerando que los romanos eran demasiado indolentes, favoreció a los milaneses a la hora de ocupar los deparamentos pontifícios, la Secretaría de Estado y lãs congregaciones romanas, mientras que los jesuítas, de manera más cauta, fueron seus colaboradores cercanos (Gallego, 2016, p. 463).
A cerimônia de conversão, ato religioso e político, foi assistida por uma representatividade eclesial, sob a liderança de dom José Pereira Alves, bispo diocesano. Monsenhor Lula destacou a relevância do ato que, segundo o religioso, “não foi apenas uma belíssima profissão de fé, foi também um ato de reparação pública, uma confissão para seus erros e pecados, de seus ataques à Igreja e às crenças cristãs” (Backheuser, A., Efeméride, 1954, p. 121).
Para a Igreja, instituição que buscava inserção social e política, a conversão de intelectuais e cientistas era motivo de celebração. O engajamento de redes científicas e culturais estava presente na pauta de Pio XI que entendia ser oportunidade para fortalecer o combate aos inimigos da fé:
A través de diez concordatos y de numerosos acuerdos Pío XI respaldo jurídicamente la libertad de acción de la Iglesia en su propósito evangelizador, de manera especial en relación con la educación juvenil, la prensa propia y los movimientos apostólicos (Gallego, 2016, p. 463).
Para Gallego (2016), o papa das Concordatas acreditava ser a Igreja uma alternativa global para a civilização moderna. Na esteira dessa constatação, Gramsci (2011) analisou a Ação Católica como um movimento eclesial de alcance internacional, centrado na autoridade do pontífice, mas com forte apelo regional. Da perspectiva dialética, a Ação Católica, como um movimento, ou ainda como um partido, elaborou estratégias que conjugaram orientações pontifícias às especificidades nacionais: “embora o papa represente um centro internacional por excelência, existem de fato alguns organismos que funcionam para coordenar e dirigir o movimento político e sindical católico em todos os países” (Gramsci, 2011, p. 149).
As reflexões carcerárias de Gramsci sobre a ação da Igreja possuem, segundo La Rocca (2017), fortes conexões com o exame que o pensador sardo proferiu sobre os intelectuais do espectro ideológico católico, nomeadamente os jesuítas, integristas e modernistas, grupos internos à Igreja que disputavam hegemonia junto ao Vaticano e à Ação Católica. O mesmo autor sinaliza que Gramsci, em geral,
Identifica a história da Ação Católica com a das organizações que, a partir da Revolução Francesa e, sobretudo, da segunda metade do século XIX, procuraram criar novas formas de presença cristã em uma sociedade que vai progressivamente se descristianizando (La Rocca, 2017, p. 30).
Entendemos ter sido a Cruzada uma expressão histórica desse movimento católico internacional, que articulou ações junto ao professorado público primário, sob a liderança de Backheuser, para efetivar não apenas as conquistas pedagógicas e didáticas da Escola Nova, motor mesmo da reforma Azevedo. Para além das questões estritamente escolares, a Cruzada engajou seus adeptos na luta pelo ensino religioso a fim de viabilizar o que a Igreja preconizava como alternativa mundial à civilização moderna.
A Cruzada e suas fileiras: militância pedagógica e ação católica
A constatação acima pode ser corroborada a partir do próprio itinerário que Backheuser traçou após sua conversão ao catolicismo. Em seu discurso na catedral de Niterói enfatizou a necessidade de uma articulação laica nas fileiras da Igreja e sob a coordenação da hierarquia. Propugnava a inserção dos católicos no mundo. Na escola, um ensino “com Deus afim de evitar-se que esse ensino se transformasse em ensino contra Deus” (Backheuser, A., Efeméride, 1954, p. 122, grifos da autora).
Para ele e seu grupo de apoio, formado majoritariamente por professoras primárias, era necessária uma ação para além da reforma do ensino, uma Cruzada que fortalecesse o laicato e o colocasse à frente, na arena do combate e, seguindo orientações eclesiásticas, criou a Associação Fluminense de Professores Católicos, em dezembro de 1928, com aprovação episcopal. São sugestivos alguns trechos do discurso dom José, bispo de Niterói, para que se compreenda o alcance do projeto político, religioso e cultural de Backheuser e sua rede de influência.
Aprovamos os Estatutos da Associação Fluminense de Professores Católicos e permitimos que em Nossa Diocese seja a dita associação fundada para restauração dos Direitos de Nosso Senhor Jesus Cristo na educação do povo e para a orientação católica do magistério. Abençoamos os novos apóstolos dessa grande obra pedagógica cujos frutos antevemos abundantíssimos e de profunda eficiência renovadora de nossa sociedade, minada por um verme terrível de desintegração intelectual e religiosa. À Associação Fluminense de Professores Católicos sob a especial proteção de Sta. Ricarda6 está reservada a missão providencial de proclamar o Reino de Cristo na Escola e no Lar pela ação irresistível da consciência fluminense, esclarecida pelos professores católicos (Backheuser, A., Efeméride, 1954, p. 123).
O bispo ressaltou o papel estratégico do professorado católico na cristianização do espaço urbano carioca, sob a coordenação de uma associação de mestres. Denominou “obra pedagógica” a mobilização coletiva de inserção política que Backheuser e seu grupo se propunham a realizar. O projeto era alargar a ação para além de Niterói. Assim o fez o grupo próximo a Backheuser, quando da criação da Associação de Professores Católicos do Distrito Federal, em 1931, no contexto das disputas internas na Associação Brasileira de Educação (ABE) que culminaram na saída do bloco católico da mesma associação (Sgarbi, 1997, 2001; Carvalho, 1998; Haydn, 2017).
Alcina Backheuser prosseguiu o seu relato memorialístico:
Instalou-se esta - a A.P.C. do Distrito Federal - oficialmente, no dia 9 de outubro desse mesmo ano (1931), em uma das sessões solenes do Congresso Nacional de Cristo Redentor, na Igreja de São Francisco de Paula, em presença do Sr. Cardeal Leme, do Sr. Núncio Apostólico, de grande número de membros do episcopado e de representantes do Clero além de avultada assistência. Usou da palavra o Professor Backheuser, seu presidente, que, agradecendo ao Sr. Cardeal, prometeu: a Associação de Professores católicos seria uma grande milícia, disciplinada e forte, a serviço da Igreja (Backheuser, A., Efeméride, 1954, p. 124, grifos meus).
Ressaltam-se os laços que Everardo Backheuser efetivou junto à hierarquia católica, presente, de forma representativa, nos eventos em que seu nome foi destaque. Neófito no catolicismo, em pouco tempo, reuniu em torno de si, e em seu apoio, expoentes do clero carioca, com destaque a uma das suas mais proeminentes lideranças: o cardeal Leme, diretor espiritual, fundador e militante declarado do Centro D. Vital e da revista A Ordem (Rodrigues, 2005; Gonçalves, 2016, 2017). Em abril de 1933, Leme assinou o imprimatur autorizando os estatutos da Associação dos Professores Católicos do Distrito Federal, publicados na quarta edição do boletim do referido órgão (Backheuser, A., Efeméride, 1954, p. 128).
A aproximação de Backheuser à burocracia estatal (sempre manteve seus laços com o Estado, desde sua formatura na Politécnica), especificamente no contexto da reforma azevediana, foi acompanhada pelo seu processo de conversão ao catolicismo e por seu protagonismo na articulação de órgãos representativos do professorado, com apoio incondicional da Igreja. Interessante considerar que sua trajetória se consolidou na confluência entre o Estado e a Igreja, entre a política e a religião, áreas historicamente imbricadas (Gramsci, 2011). Para nós, A Cruzada se explica quando se considera tais conexões.
De caráter privado, mas com apoio da Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal, a Cruzada nasceu a partir da aproximação de Backheuser e Fernando de Azevedo, com quem matinha laços de amizade. Alcina nas memórias dedicadas a seu marido, destacou a função do marido, inicialmente propagandista, junto às escolas do Distrito Federal. Segundo ela, a circulação de Everardo pelo município do Rio de Janeiro, visitando escolas e discursando favoravelmente sobre as bases filosóficas e pedagógicas da reforma, o conduziu à percepção da necessidade de organizar uma ação de
estreita colaboração entre os professores [...] nasceu daí a ideia de uma associação de professores primários destinada a manter esse intercâmbio. Foi assim que, em outubro de 1928, começou a existir a Cruzada Pedagógica pela Escola Nova, ainda sob a denominação mais ampla de “Cruzada em prol da Escola Ativa”. Sua finalidade precípua era a de estudar, praticar e propagar a Escola Nova - dentro do mais escrupuloso espírito de lealdade e mútuo auxílio (Backheuser, A., Efeméride, 1954, p. 112, grifos meus).
Da parte da Diretoria de Instrução Pública, pelo visto, a Cruzada recebeu, a princípio, apoio e espaço de divulgação de suas ações. O Boletim de Educação Pública 7 , órgão oficial da administração do ensino, na edição publicada no primeiro trimestre de 1930, apresentou o escopo da Cruzada, sinalizando sua iniciativa particular, realizando suas sessões nas residências das professoras. Contava com uma diretoria basicamente feminina: Alcina Moreira de Souza Backheuser, Julieta Arruda, Consuelo Pinheiro, Alfredina de Paiva e Souza, Ruth Rabello, Yolanda Goffi8.
Indícios do caráter privado da Cruzada e, de alguma forma, suas relações tensas com o governo reformista, podem ser localizados na imprensa periódica carioca. O Paíz, por exemplo, informou que, por determinação da Diretoria, as reuniões dos associados não poderiam ser mais realizadas às quartas-feiras, como de costume, para que os professores pudessem frequentar as convocações oficiais da Diretoria de Instrução. O jornal em tela resumiu o escopo do movimento: “facilitar o magistério meios de poder praticar com eficiência a nova pedagogia, conhecida por escola ativa e agora adotada no Distrito Federal” (O Paíz, 1929). O semanário insistiu em reafirmar a iniciativa particular do movimento e veiculou que a série de conferências havia sido organizada “por membros do próprio magistério” (O Paíz, 1929).
Por iniciativa dos seus membros, a Cruzada criou um boletim mensal denominado Escola Nova, dirigido, a princípio, pela professora Adelaide Lucinda de Moraes e, mais tarde, por Joaquina Daltro. Logo após a sua fundação, a Cruzada solicitou da Diretoria de Instrução autorização para que suas reuniões, anteriormente realizadas em residências particulares, pudessem sere realizadas num espaço maior, em razão do aumento do número de seus associados. O Boletim de Educação Pública foi enfático ao afirmar que aquele teria sido o único auxílio oficial recebido (Vidal, 2000a). Everardo Backheuser, no preâmbulo do livro Técnica da pedagogia moderna lembrou seus leitores sobre a iniciativa particular do professorado público carioca à mobilização cruzadística. Ressaltou suas duas frentes de atuação:
Nessa tarefa foi-nos de enorme préstimo, em primeiro lugar, o posto de organizador do Museu Central Pedagógico a nós confiado pelo ilustre Dr. Fernando de Azevedo, então diretor de Instrução no Distrito Federal, e, em segundo, uma associação de professores sui generis, denominada Cruzada Pedagógica pela Escola Nova por nós idealizada e fundada pela professora Alcina Moreira de Souza com o valioso concurso de brilhantes colegas (Backheuser, 1934, p. 12).
Interessante notar que Everardo prossegue o prólogo enfatizando divergências que ele constatou no decurso de sua atuação. Faz-se necessário recordar que o livro em tela fora publicado em outro contexto reformista, período em que a Cruzada sofreu um recrudescimento, desde a criação da Associação Fluminense de Professores Católicos e com a emergência de novos quadros burocráticos e técnicos, sob a liderança de Anísio Teixeira (Paulilo, 2007). Não é forçoso afirmar que o autor em tela elaborou uma revisão que explicitou níveis de contradição constatados no ritmo das ações da Cruzada. No caso, essa associação, em rede, havia promovido o esclarecimento e a tese da sistematização. Em suas palavras:
O professorado ficou atordoado. Ávido de conhecimentos, ansioso por saber “o que era afinal a escola nova”, o magistério procura ouvir quantos oradores apareciam com credenciais de profetas da Nova Ideia, mas saía em geral das salas de conferências ainda mais confuso, pois que a palestra de hoje contradizia a de ontem e seria demolida pela de amanhã. E todos eram defensores da escola nova (Backheuser, 1934, p. 13).
Para o autor, não havia consenso nem mesmo entre os diretores instrução pública, cujas estratégias de divulgação da “novidade pedagógica” esbarraram na narrativa prolixa e densa à confusão conceitual, causando perplexidade no magistério que sentira a falta de uma sistematização coerente e lúcida, equívocos que, de maneira geral, foram corrigidos pelas ações da Cruzada e, mais tarde, nos anos que seguiram a administração Anísio Teixeira, teriam, enfim, os esclarecimentos e sistematização definidos em outra arena: o Instituto Católico de Estudos Superiores, sob os auspícios de Alceu Amoroso Lima. Em 1933, Backheuser proferiu curso, a convite, que resultou na publicação de Técnica de Pedagogia Moderna e em sua efetivação como catedrático no referido Instituto (Backheuser, 1934).
Em carta dirigida a Alceu Amoroso em maio de 1931, Everardo defendeu a tese da imbricação entre a escola ativa e o ensino religioso, tema que ocupou de forma sistemática a pauta da Cruzada. Na missiva apresentou sua disposição em proferir um curso sobre a questão, no âmbito do Centro D. Vital e na condição de líder da Associação Fluminense de Professores Católicos. Backheuser, de alguma maneira, procurava uma aproximação com lideranças intelectuais católicas. Assim o fez, por exemplo, com Amoroso Lima e Leonel Franca, dentre outros (Centro Cultural Alceu Amoroso Lima para a Liberdade; Arquivo Alceu Amoroso Lima, Correspondência passiva de Alceu Amoroso Lima, 20/05/1931, C/B6/51).
Considerações finais
Analisar as sociabilidades entre os intelectuais católicos é desafio recente na historiografia educacional. Rodrigues e Zanotto (2013) abordam a temática sob as lentes de catolicismos diversos e complexos, pautados em contextos e circunstâncias, que se somam a itenerários individuais e ao peso das circunstâncias. Para Charle (2000), uma sociologia histórica das elites culturais requer de quem examina os processos uma mirada específica:
No es posible encontrar homogeneidad ni siquiera dentre de las fronteras estatales, en grand medida artificiales, en cujo interior viven unos junto a otros, sin mezclarse verdaderamente, los grupos sociales y/o nacionales (Charle, 2000, p. 5).
Outro desafio historiográfico diz respeito à inserção dessas sociabilidades no âmbito de uma História Intelectual, que reúna para além dos dispositivos internos dos discursos, conexões que sinalizem “que a palavra é anunciada a partir de uma posição de verdade e, portanto, indissociável da ação política” (Altamirano, 2007, p. 6). Se a dissociação é inviável, a tarefa é
apreender as formas de pensar e agir dos intelectuais, com base em um contexto histórico e cultural específico […] No entanto, mais do que uma articulação puramente mecânica entre contexto e conteúdo, em outras palavras, para além de uma abordagem que privilegie entre a análise externa dos acontecimentos (históricos, sociais, políticos) e a análise interna da obra (hermenêutica ou análise do discurso), a História Intelectual deve levar em consideração, simultaneamente a dimensão diacrônica (história) e sincrônica (os aspectos diferentes de um mesmo conjunto em um mesmo momento de evolução) (Silva, 2003, p. 19).
Em consonância com a assertiva de Silva (2003), examinar um movimento católico na arena dos acontecimentos educacionais do Rio de Janeiro em fins da década de 1920, exige uma atenção ao que de diacrônico estava estabelecido no forma mentis que organizava e ordenava o campo católico brasileiro naqueles tempos, bem como as circunstâncias da sincronia específica que marcava o advento novas e aderentes iniciativas no campo escolar.
Atenta aos acontecimentos, a Igreja e seus “catolicismos” atuavam em prol de um ethos que viabilizasse novo ordenamento educacional no interior das instituições de ensino. A estratégia de mobilização do professorado intitulado católico possibilitou uma inserção ativa da Igreja, por meio de seus intelectuais e lideranças hierárquicas.
Everado Backheuser em discurso na inauguração da escola Deodoro e da exposição pedagógica organizada pela Cruzada, contando com a presença de Fernando de Azevedo, não mediu palavras para inserir o movimento no bojo de uma reforma social, apregoada pelas lideranças da Escola Nova. Foi enfático ao defender o caráter militante daqueles professores que estavam engajados na “nova era pedagógica” que se instalara no Rio de Janeiro em fins da década de 1920. Excluía, por óbvio, toda uma história pretérita, objetivando elaborar e viabilizar um novo lugar de memória: o seu, de seu grupo e da Cruzada:
A Cruzada tomando essa iniciativa nada mais fez do que cumprir extrictamente o seu programa e obedecer ao lema de que uma delicada alma feminina colocou no seu pórtico, ‘Lealdade e mútuo auxílio’ é o que se lê no estandarte da Cruzada pela Escola Nova. Com este a Cruzada quer significar que a base do seu trabalho é a cooperação sincera, fraternal, cordeal, com abundância d’alma, entre os membros do magistério que a frequentam e que, como sabeis, são numerosos. A obediência a esse lema tem sido o esforço constante de seus membros no curto mas já fecundo ciclo de existência da Cruzada (Backheuser, 1929, p. 1, D1/1,31).
O périplo da Cruzada era o de reatualizar uma mensagem longeva do catolicismo dogmático e militante no campo da formação dos professores e de sua atuação didática. Insistia no “espírito comunitário” dos seus membros, na ausência de hierarquia, num discurso propositivo e consoante aos princípios emanados das cartas e documentos pontifícios. Era, enfim, a Ação Católica, em movimento, escolarizada e atenta aos novo rumos que a RFA empreendia nas instituições públicas de ensino cariocas.
Em 1932, em outra carta dirigida a Fernando de Azevedo, Backheuser lamentou a equivocada apropriação que muitos fizeram da Cruzada, de seus princípios, objetivos e ações, admitindo, inclusive, divergências com o próprio Azevedo (Backheuser, 1929, p. 1, D1/1,31). Conhecedor inequívoco de suas circunstâncias, o engenheiro formado na Politécnica carioca, convertido tardiamente ao catolicismo, naquele momento, já estava em outra arena, talvez mais consistente por seus propósitos: o de divulgar a doutrina católica por meio da ação militante do professorado e da formação de novos quadros intelectuais no universo complexo dos “catolicismos”.