SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25Morality, biopolitics and Education in post-truth timesInstrumental rationality, fascism and education in contemporarity author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Conjectura: Filosofia e Educação

Print version ISSN 0103-1457On-line version ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.dossie.3 

DOSSIÊ: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA CRÍTICA: PREOCUPAÇÕES E TENDÊNCIAS ATUAIS

As Ciências Humanas em tempos de mercantilização da Educação*

Human sciences in Education marketing times

Paulo Sérgio Gomes Soares** 
http://orcid.org/0000-0002-0906-396X

**Doutor em Educação (UFSCar/2012). Universidade Federal do Tocantins (UFT). Mestre em Filosofia (UNESP/2004). Licenciado em Filosofia (UNESP/1997). Professor no Programa de PósGraduação – Mestrado Profissional e Interdisciplinar em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos (UFT/ESMAT) e no Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO/UFT). Bolsista FAPTO. Email: psoares@uft.edu.br.


Resumo

Com o rápido desenvolvimento da técnica e da tecnologia, o campo educacional tem se mostrado estratégico para transformar a racionalidade humana em racionalidade tecnológica, alterando a consecução dos fins da própria Educação. O objetivo do artigo é analisar as contradições entre o processo de reprodução da vida material nas sociedades capitalistas e a perda de liberdade dos indivíduos inseridos e ajustados aos seus critérios e, da mesma forma, o ajustamento dos estudantes às demandas socialmente úteis ao sistema em decorrência da pretensa extinção dos cursos de Ciências Humanas dos currículos, que tende a afastar a Educação de sua prerrogativa fundamental que é educar para a emancipação. A Teoria Crítica do filósofo frankfurtiano Herbert Marcuse refere que o restabelecimento da razão humana é tarefa para uma Pedagogia Radical como forma de resistência em tempos de mercantilização da Educação. Seus argumentos contribuem para uma análise crítica e contextualizada da Educação brasileira em tempos de contrarreformas.

Palavras-chave Teoria Crítica; Racionalidade humana; Racionalidade tecnológica; Pedagogia Radical

Abstract

With the rapid development of technique and technology, the educational field has been shown to be strategic to transform human rationality into technological rationality, altering the achievement of the ends of Education itself. The aim of this paper is to analyze the contradictions between the process of reproduction of material life in capitalist societies and the loss of freedom of the individual inserted and adjusted to their criteria and, similarly, the adjustment of students to the socially useful demands of the system as a result. of a possible extinction of the Humanities Courses of curricula, which tends to move education away from its fundamental prerogative of Educating for emancipation. The Critical Theory of Frankfurt philosopher Herbert Marcuse points out that the restoration of human reason is a task for radical pedagogy as a form of resistance in times of commercialization of Education. His arguments contribute to a critical and contextualized analysis of Brazilian Education in times of counter-reforms.

Keywords Critical Theory; Human rights; Technological rationality; Radical Pedagogy

Introdução

Atualmente, a reestruturação produtiva, em decorrência do avanço tecnológico, atinge diretamente a universidade pública – instituição cujos profissionais estão cedendo às pressões do mundo administrado e se ajustando, gradualmente, a formação dos indivíduos para atender às demandas do mercado. As universidades estão se adaptando ao contexto do novo tecnicismo e aceitando a missão de formar indivíduos produtivos para atender às demandas do sistema capitalista de produção e consumo. O programa “Future-se”, por exemplo, com apelos à inovação e ao empreendedorismo e pautado pelo pseudodiscurso de autonomia às universidades, pretende que essas instituições captem recursos para se autofinanciar, eximindo o Estado de sua responsabilidade pela formação das novas gerações, além de, explicitamente, fragilizar o art. 207 da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Sabidamente, esse artigo garante a autonomia das universidades: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” A contradição salta aos olhos entre o que pretende o programa “Future-se” e a autonomia das universidades, dado que a captação de recursos externos tem um preço, a saber, que o capital passa a interferir no financiamento, diretamente na produção do conhecimento científico, eliminando qualquer forma de autonomia. Do mesmo modo, as pesquisas podem deixar de atender a todas as perspectivas de valor para atender, ideologicamente, apenas aos valores do capital. Certamente, as universidades públicas brasileiras estão diante de um processo de privatização.

A reflexão a que se propõe este artigo aponta às consequências desse novo tecnicismo na Educação brasileira em estreita relação com as agendas neoliberais e as contrarreformas1 ditas modernizantes. Esse novo tecnicismo, disseminado, sobretudo, pela pedagogia das competências, reforça as aquisições passivas de habilidades e competências que fortalecem os princípios da racionalidade tecnológica – os discursos quantitativos por produtividade, eficácia, eficiência, etc. – que tende a alterar substancialmente o livre-desenvolvimento das faculdades humanas, a razão humana, tornando-a racionalidade tecnológica. O indivíduo produtivo e afeito aos valores do capital, necessariamente, introjeta essa racionalidade, tornando-se um veículo da ideologia do sistema.

Uma Educação tecnicista envolve a formação da racionalidade tecnológica e, nesse contexto, a formação em Ciências Humanas tem seu valor depreciado, como salienta Nussbaum (2005). Evidentemente, o ajustamento dos estudantes às demandas socialmente úteis ao sistema capitalista tende a fortalecer ideias perigosas, como a possível extinção dos cursos de Ciências Humanas dos currículos, bem como afasta a educação de sua prerrogativa fundamental, que é educar para a emancipação.

A definição conceitual do que venha a ser a racionalidade tecnológica advém do pensamento do filósofo frankfurtiano Herbert Marcuse (1898-1979), o pensador da grande recusa, da revolta, da resistência e da crítica que não faz concessões ao capitalismo e às suas formas escusas de reprodução do sistema de produção e consumo, cujo fim é a dominação cultural dos indivíduos e mercantilização da vida em suas várias esferas.

Diante desse quadro, o debate do artigo perpassa pelas contradições inerentes ao processo de reprodução da vida material nas sociedades capitalistas e pela perda de liberdade dos indivíduos inseridos e ajustados aos seus critérios de racionalidade. Para tratar desse tema, o quadro teóricoconceitual se fundamenta nos escritos da terceira fase de Marcuse, centrados na Teoria Crítica da sociedade (FREITAG, 1988). Para a análise, o livro intitulado One-dimensional man: studies in the of advanced industrial society,2 publicado originalmente em 1964, traduzido para o português com o título A ideologia da sociedade industrial, em 1967, expõe algumas preocupações ainda muito atuais que servem para uma análise das tendências da Educação em tempos de mercantilização, embora Marcuse não trate da Educação nesse livro.

Esse livro evidencia os aspectos fundamentais das sociedades capitalistas industrializadas em termos de organização social e de estrutura social unidimensional, que obstrui a crítica e esmaga a oposição para padronizar os indivíduos pela introjeção da racionalidade tecnológica. Uma vez introjetada pelos indivíduos, essa racionalidade interfere no livredesenvolvimento das faculdades humanas. Assim, a razão crítica pode ser obstruída, levando o indivíduo a reproduzir o sistema e a aceitar a promessa de felicidade em meio a um padrão de vida crescente. A troca da liberdade pela promessa de conforto é a primeira consequência de um fenômeno responsável pela alienação: a falsa consciência. Diga-se de passagem, a falsa consciência é a própria ideologia veiculada pelo indivíduo dominado e ajustado aos padrões sociais do individualismo contemporâneo.

Segundo Kellner (2011), a Educação sempre foi uma das preocupações de Marcuse, tanto que ele sempre esteve muito próximo dos estudantes quando lecionava e palestrava em universidades norte-americanas, procurando mostrar alternativas emancipadoras à vida administrada pelo sistema, utilizando-se de uma Pedagogia Radical que fazia severas críticas à organização social nas sociedades capitalistas, esboçando contornos para uma sociedade não repressiva. A sua Pedagogia Radical se mostra contra qualquer padronização na Educação; defende a perspectiva de uma Educação do corpo e da mente contra a aquisição passiva de habilidades (KELLNER, 2011). O propósito é interferir no processo de introjeção passiva da racionalidade tecnológica.

Em termos metodológicos, a Teoria Crítica examina a vida nas sociedades capitalistas, analisando a forma como tais sociedades estão organizadas para demonstrar com validez objetiva e bases empíricas: 1) se todo esforço intelectual está voltado para tornar a vida digna de ser vivida; e 2) se apresentam possibilidades específicas para melhorar a vida humana e se possuem meios para realizá-las como alternativa histórica. Como podem os recursos materiais e intelectuais dessas sociedades ser utilizados para o máximo desenvolvimento e satisfação das necessidades com o mínimo de labuta e miséria?

O debate que responde a essas questões somente se torna viável em decorrência do desenvolvimento das Ciências Humanas, divididas em áreas do conhecimento específicas e com horizontes voltados à formação humana. Diante disso, uma sociedade organizada a partir da técnica para atender às demandas do mercado pode proporcionar vida digna para todos os seres humanos e melhorar a formação e a condição humana? Vai minimizar os impactos sobre o meio ambiente e a cultura? Com o acentuado processo de mercantilização da Educação e a visível tendência de extinção das Ciências Humanas3 dos currículos acadêmicos nas universidades públicas, por exemplo, a Educação pode ter como consecução dos fins a emancipação humana e o respeito aos direitos humanos, sociais, civis, etc., aceitando a pluralidade cultural independentemente de raça, religião, orientação sexual, classe social? Essas perguntas norteiam o debate que não se furta à crítica e de apontar o processo (de)formativo da Educação em tempos de mercantilização da vida.

1 A transformação da racionalidade humana em racionalidade tecnológica

O desenvolvimento da técnica e da tecnologia depende da formação de uma racionalidade específica que Marcuse chamou de “racionalidade tecnológica”. Nas sociedades capitalistas, desde o advento da Revolução Industrial, a ideia de razão humana vem sofrendo transformações que a deturpam, num esforço contínuo do sistema em transformá-la em racionalidade tecnológica para atender às demandas para a reprodução do sistema.

Para realizar esta racionalidade pressupunha-se um ambiente social e econômico adequado, um ambiente que atraísse indivíduos cuja conduta social fosse, pelo menos em grande medida, seu próprio trabalho. A sociedade liberal era considerada o ambiente adequado à racionalidade individualista. [...] No decorrer do tempo, no entanto, o processo de produção de mercadorias solapou a base econômica sobre a qual a racionalidade individualista se construiu. A mecanização e a racionalização forçaram o competidor mais fraco a submeter-se ao domínio das grandes empresas da indústria mecanizada que, ao estabelecer o domínio da sociedade sobre a natureza, aboliu o sujeito econômico livre

(MARCUSE, 1999, p. 76).

O impacto do aparato transformou a racionalidade individualista em racionalidade tecnológica, que passou a determinar padrões de julgamento e comportamento para predispor os indivíduos a aceitarem e a introjetarem a nova ordem. O desempenho individual foi transformado em eficiência padronizada com reação adequada às demandas objetivas do aparato. Diante dessas condições, coube aos indivíduos se submeterem ao processo de mecanização como personificação da racionalidade desejada.

O pensamento crítico foi transformado em pensamento positivo, precondicionado a responder, adequadamente, ao estabelecido, à ordem de reprodução da existência conforme um padrão do que é visto como melhor para todos. As sociedades capitalistas são unidimensionais no sentido de restringir a experiência para padronizar o comportamento dos consumidores. Elas se utilizam de um aparato tecnológico totalitário que invade todas as esferas da vida, tendo em vista a própria reprodução do sistema pela manutenção constante da produção e do consumo. Na luta pela existência, os indivíduos reproduzem o sistema, e tudo parece natural, mas impera uma falsa consciência – entendida como ideologia que escamoteia a realidade.

A consciência do indivíduo – cidadão consumidor – foi engolfada pelo sistema de produção e consumo, de maneira que a luta pela permanência e estabilidade do capital não está sendo travada somente nas esferas econômica e política, mas, sobretudo, na esfera cultural, tendo em vista que a introjeção, pelos indivíduos, de valores que cristalizam a cultura do consumo tem permitido a implantação de um processo gradual de administração total da vida para a reprodução do sistema.

Para entender isso, Marcuse caracteriza o termo introjeção da seguinte forma:

Introjeção sugere uma variedade de processos relativamente espontâneos pelos quais um Eu (Ego) transfere o “exterior” para o “interior”. Assim, introjeção subentende a existência de uma dimensão interior, distinta e até antagônica das exigências externas – uma consciência individual e um inconsciente individual separados da opinião e do comportamento públicos. A ideia de “liberdade interior” tem aqui sua realidade: designa o espaço privado no qual o homem pode tornar-se e permanecer “ele próprio” (1967, p. 30).

Vale ressaltar que o pensamento dos autores frankfurtianos, além de Marcuse, Adorno, Horkheimer, Fromm, etc., traz uma característica comum, após Horkheimer assumir a direção do Instituto de Pesquisa Social, em 1930, que é confluir o pensamento marxista com o pensamento freudiano. Marcuse, por exemplo, utilizou a teoria freudiana da estrutura psíquica – id, ego e superego – para explicar por que a classe trabalhadora renunciou ao seu destino histórico de revolucionar a ordem vigente (FREITAG, 1988).

A repressão faz com que os valores dominantes sejam internalizados pelo superego à guisa de valores da cultura. Dessa forma, todo indivíduo, em princípio resistente à vida social devido ao pesado fardo das proibições, privações e frustrações oriundas da repressão, passa a ser veículo da cultura com vistas nas conquistas sociais do processo civilizatório. Para Marcuse isso explica a troca da liberdade pelo conforto. “Nas condições de manipulação dos sujeitos pela publicidade, a possibilidade da mistificação depende de alguma concessão real, ainda que mirrada, para que as promessas mistificadoras tenham alguma credibilidade” (apudKONDER, 1998, p. 19).

Porém, a promessa de felicidade – de prazer e liberdade – não pode ser desfrutada por todos os indivíduos, tendo em vista que poucos vão dispor do poder de compra que supõem trazer a felicidade. Ao introjetar a racionalidade tecnológica, os indivíduos se deformam e se esquecem das suas próprias origens sociais, deixando de ser agentes históricos de transformação social, além de se tornarem veículos acríticos de reprodução do sistema.

A psicanálise freudiana tem um papel importante no pensamento de Marcuse. Freud, em livro intitulado O futuro de uma ilusão, publicado em 1927, afirma que o processo civilizatório só foi possível devido à repressão dos instintos (Id), que retirou o homem da condição animal por intermédio da cultura e o colocou na direção da vida social. No caso, a repressão tem por fim conter os impulsos libidinais e agressivos, sublimando-os pela atividade produtiva. Esse é o ponto fulcral, pois o

fortalecimento do superego constitui uma vantagem cultural muito preciosa no campo psicológico. Aqueles em que se realizou são transformados de opositores em veículos da civilização. Quanto maior é o seu número numa unidade cultural, mais segura é a sua altura e mais ela pode passar sem medidas externas de coerção

(FREUD, 1996, p. 7).

Contudo, no sistema capitalista, o processo psicológico espontâneo, em que o indivíduo transfere a determinação exterior para o interior de si – abre caminho à reprodução e à perpetuação dos controles sociais externos. O capitalismo transformou a repressão na cultura em eficiência produtiva para o mercado, criando e estimulando a cultura de consumo. A racionalidade privada – o espaço privado que pertence somente à consciência do indivíduo – foi invadido pela racionalidade do sistema, pela ideologia da sociedade industrial. Evidentemente, há que se considerar que a consolidação do capitalismo se deu mediante o precondicionamento repressivo para o consumo, como forma de reproduzir, na existência dos indivíduos, sua própria ideologia. O comportamento humano pode ser manipulado e tornado unidimensional.

Para tanto, os indivíduos devem se tornar incapazes de ver o que está por trás dessa engenharia e a repressão tem a função de restringir a experiência – a ordem é experimentar o que é dado aos sentidos para satisfação imediata. As falsas necessidades criadas pelo mercado perfazem o universo que compõe a felicidade em consumir como uma experiência restrita, por exemplo. “Em virtude da repressão real, o mundo experimentado é o resultado de uma experiência restrita, e a limpeza positivista da mente põe esta em consonância com a experiência restrita” (MARCUSE, 1967, p. 173).

Está em curso um precondicionamento mental para o consumo que incide, diretamente, sobre a racionalidade crítica, inviabilizando-a. A razão que pode emancipar é a mesma de onde pode irradiar a dominação. A racionalidade tecnológica esconde a irracionalidade e a perversidade do sistema. Para Marcuse, um dos aspectos mais perturbadores das sociedades capitalistas é o caráter racional da sua irracionalidade.

Sua produtividade e eficiência, sua capacidade para aumentar e disseminar comodidades, para transformar o resíduo em necessidade e a destruição em construção, o grau com que essa civilização transforma o mundo objetivo numa extensão da mente e do corpo humanos tornam questionável a própria noção de alienação. As criaturas se reconhecem em suas mercadorias; encontram sua alma em seu automóvel, hi fi, casas em patamares, utensílios de cozinha (1967, p. 29).

Nas sociedades capitalistas, a liberdade se restringe a uma questão de escolha dos indivíduos entre produtos que satisfazem o desejo por consumo. Não se trata de liberdade: “Como podem as pessoas que tenham sido objeto de dominação eficaz e produtiva criar elas próprias as condições de liberdade?” (MARCUSE, 1967, p. 27). O processo de administração total da vida pelo consumo e a mercantilização da vida pressupõem a dominação dos corpos pela técnica, cuja racionalidade – sem a devida crítica negativa – invade a subjetividade dos indivíduos, interferindo no livre-desenvolvimento das faculdades humanas. Sem a crítica, os indivíduos tornam-se não somente veículos da cultura de consumo, mas mercadorias cujos corpos dominados ostentam a marca dos produtos.

2 A função das humanidades e a Pedagogia Radical em Marcuse

Atualmente, a Educação parece ser um campo estratégico para tornar os indivíduos eficientes, competitivos e produtivos durante a formação escolar que, sugestivamente, tende a se acirrar com a prerrogativa de profissionalização prevista na dita reforma do Ensino Médio, por exemplo. Os mesmos objetivos vêm no bojo do programa “Future-se”, cuja prerrogativa é tornar as universidades públicas aptas a atender ao mercado, isto é, a produzir conhecimento científico que atenda somente aos valores do capital, exigindo uma formação unidimensional com base nos valores da competitividade, eficiência e produtividade. Para tanto, a cultura afirmativa, entendida como educação unidimensional, precisa ser fortalecida e disseminada nas escolas e universidades com essa função ideológica formativa nos indivíduos com o fim de padronizar o pensamento e/ou colocá-lo em consonância com o projeto civilizatório preconizado pelo modelo capitalista de produção e consumo.

Marcuse, o pensador da grande recusa, nos anos de 1960, já alertava aos perigos da cultura afirmativa e à sua influência no campo educacional, procurando conduzir sua prática docente por meio de uma Pedagogia Radical capaz de colocar os estudantes diante da crítica negativa por meio do exercício da dialética, um método que evidencia as contradições e destrói o falso consenso e a unidimensionalidade em torno da cultura afirmativa defendida pelo positivismo torpe.

Marcuse constrói essa teoria da educação a partir de uma contradição básica entre Bildung como o cultivo da individualidade totalmente desenvolvida e o que ele descreveria como ‘homem unidimensional” e a sociedade. A sociedade unidimensional é uma sociedade que não possui negatividade, crítica e prática transformadora. É uma sociedade sem oposição

(KELLNER, 2011, tradução nossa).

Sem oposição, em face do falso consenso, não há transformação social qualitativa, e a emancipação – que deve ser o fim último de qualquer processo educacional – se inviabiliza, deixando os indivíduos encerrados nos limites da experiência restrita e permitida pelo sistema, mas de uma forma que os próprios indivíduos não percebam os precondicionamentos da racionalidade tecnológica. Diante desse quadro, a restituição do conceito de razão crítica contra a unidimensionalidade da cultura afirmativa ganha relevo e importância no processo formativo educacional, não podendo ser negligenciada a ponto de não mais fomentar as condições de transformação qualitativa da sociedade. O problema apontado por Marcuse é que a razão crítica é combatida e obstruída pela ideologia da racionalidade tecnológica, visando a “reprimir com a mesma intensidade com que é capaz de ‘entregar mercadorias’ em escala cada vez maior, usando a conquista científica da natureza para conquistar o homem cientificamente” (MARCUSE, 1967, p. 17).

O avanço da técnica e da tecnologia tem contribuído para que a ciência sirva ao contexto global de progresso conforme a ordem dominante, fazendo com que a reprodução da vida social, no capitalismo, inclua a utilização técnica da natureza e do próprio homem. “Como universo tecnológico, a sociedade industrial desenvolvida é um universo político, a fase mais atual da realização de um projeto histórico específico – a saber, a experiência, a transformação e a organização da natureza como mero material de dominação” (MARCUSE, 1967, p. 19, grifos do autor).

Depreende-se daí que “a técnica por si só, pode promover tanto autoritarismo quanto liberdade, tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo” (MARCUSE, 1999, p. 74). Compreenda-se que o autor não critica a técnica e a tecnologia, mas a técnica e a tecnologia da forma como são utilizadas nas sociedades capitalistas, ideologicamente – no sentido político – para produzir o controle e a dominação e, por conseguinte, o aumento do trabalho árduo e a escassez, crise social e crise ambiental.

O predomínio das disciplinas meramente técnicas conduzidas pelo método das Ciências Naturais são orientadas pela busca de objetividade científica, tendendo a olhar tanto à natureza quanto aos indivíduos como objetos do progresso científico, de forma que a organização e o manuseio da matéria (como mero material de controle) pode servir a todos os fins e propósitos, considerando que o julgamento sobre a realidade fica suspenso em nome dessa mesma objetividade. Em última instância, o mundo-objeto se transforma em mero instrumento, e os indivíduos dominados, em veículos dessa transformação, movimentando toda a engrenagem do sistema. Ainda, a quantificação da natureza conforme o modelo matemático permite a separação entre a ciência, a ética e a racionalidade tecnológica formada nesse bojo que, hoje, orienta os empreendimentos tecnocientíficos e, por conseguinte, são responsáveis pelas relações predadoras entre homem e natureza (LOUREIRO, 2004).

A crítica de Marcuse ao positivismo se dirige ao sujeito do conhecimento, que, por sua natureza empirista, observa, mede, calcula, experimenta e abstrai o objeto de suas qualidades, definindo-o abstratamente por mensuração e quantificação. No caso, a natureza e os indivíduos são explicados conforme as leis do movimento – químico, físico, biológico – leis objetivas que não consideram os valores sociais, morais, culturais, ambientais. O autor define esse modelo de explicação como a priori tecnológico, como ciência despida das causas finais. Nas sociedades capitalistas, a técnica projeta a natureza como instrumento material de controle e organização, servindo esse mesmo instrumento à dominação dos indivíduos que consomem o progresso tecnológico. A tecnologia, nesse caso, se tornou “uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação” (MARCUSE, 1999, p. 73-74).

A conquista da natureza conduziu à conquista científica dos indivíduos como parte de um mesmo processo, considerando que a racionalização do trabalho eliminou as qualidades humanas, transferindo-as ao universo quantificável da ciência e permitindo sua exploração eficaz como unidades de força de trabalho abstratas.

Enquanto a ciência libertou a natureza de fins inerentes e despojou a matéria de todas as qualidades que não as quantificáveis, a sociedade livrou os homens da hierarquia “natural” da dependência pessoal, relacionando-os entre si de acordo com qualidades quantificáveis – a saber, como unidades de força de trabalho abstratas, calculáveis em unidades de tempo

(MARCUSE, 1967, p. 152-153).

Um homem vale o quanto produz e tem a oferecer e é transformado em mercadoria para produzir mercadorias. Nesses termos, qualquer indivíduo é livre para vender sua força de trabalho, mas sem saber que o seu trabalho é concebido como o de uma máquina, isto é, que sua produtividade deve ser explorada com a máxima eficiência e que, como produtor de mercadorias, é também consumidor delas e pode ostentar, em seu próprio corpo, as marcas e etiquetas, bem como os bens e serviços que conferem status social.

As necessidades humanas tornaram-se necessidades repressivas (ou falsas necessidades) a partir do momento em que seu conteúdo passou a ser determinado por forças externas e fruto do precondicionamento com o intuito de administrar a vida na luta pela existência. A luta pela existência, no sistema capitalista, acontece sem a consciência da servidão e em meio à liberdade confortável proporcionada pelas falsas necessidades e pela falsa consciência – pela promessa de felicidade pelo consumo.

Cabe salientar que as necessidades humanas são históricas e dependem do grau de desenvolvimento das forças produtivas, porém, na atual conjuntura, essas necessidades foram precondicionadas a um nível de satisfação que está para além da satisfação biológica. Nesse sentido, Marcuse adverte que

a questão sobre quais necessidades devam ser falsas ou verdadeiras só pode ser respondida pelos próprios indivíduos, mas apenas em última análise: isto é, se e quando eles estiverem livres para dar a sua própria resposta. [...] Toda libertação depende da consciência de servidão

(MARCUSE, 1967, p. 27-28).

Sendo precondicionados, doutrinados, manipulados e conquistados pelo progresso científico-tecnológico nas várias esferas da vida, qualquer resposta que os indivíduos derem não será sua porque suas faculdades da razão foram invadidas. “Como podem as pessoas que tenham sido objeto de dominação eficaz e produtiva criar elas próprias as condições de liberdade?” (MARCUSE, 1967, p. 27).

Ora, o direito à liberdade – entendida como o livre-desenvolvimento das faculdades humanas – é um direito humano fundamental, que pode estar sendo violado pelo precondicionamento repressivo para o consumo voltado à reprodução do sistema capitalista, já que a racionalidade tecnológica e o progresso técnico têm interferido no livre-desenvolvimento das faculdades humanas, deturpando a razão e inviabilizando a crítica. A importância do direito à liberdade se revela como um direito positivado4 e como um dos pilares da dignidade humana. Portanto, a liberdade integra incondicionalmente os direitos humanos.

Cabe interpretar que, se o direito à liberdade (entendido como o direito essencial ao livre-desenvolvimento das faculdades humanas) está sendo violado, tendo em vista que a subjetividade está sendo invadida pelos precondicionamentos e formando os indivíduos para a cultura de consumo desde a mais tenra idade, o sistema capitalista caminha na contramão dos direitos humanos.

A despeito desse julgamento, a Educação – escolar e acadêmica – apoiada numa perspectiva da Pedagogia Radical, tem uma função formativa específica diante de tal realidade: estimular o pensamento crítico – negativo – como possibilidade de restabelecer a razão humana livre da racionalidade tecnológica e colocar os estudantes no caminho da emancipação, entendida como possibilidade de “cultivo da individualidade totalmente desenvolvida”.

No caso da Educação brasileira, cabe aos educadores recusar o novo tecnicismo educacional e de se revoltar contra qualquer tentativa de extinguir as Ciências Humanas dos currículos escolares e acadêmicos, como também não aceitar que os cursos de humanas se tornem mercadorias ofertadas em instituições privadas. Considera-se que a possibilidade histórica de extinguir as Ciências Humanas ou depreciá-las como mercadoria não minimiza a labuta pela existência, isto é, não se caracteriza como esforço otimizado dos recursos intelectuais e materiais disponíveis para melhorar a condição humana. Pelo contrário, apenas acelera o desenvolvimento da técnica sem a crítica e, portanto, o processo de administração total da vida por suster a repressão, a dominação sobre os indivíduos e o esgotamento dos recursos naturais, gera mais miséria, injustiça e violência.

3 A extinção das Ciências Humanas dos currículos e o problema da (de)formação para o mercado

Em tempos de acirramento das contradições sociais e de disputas entre projetos societários, o Brasil vivencia a ascensão do fascismo, da intolerância, da repressão, do preconceito, da xenofobia, do machismo, etc., que o colocam numa condição de incerteza no campo educacional. Atualmente, está em tramitação no Congresso Nacional o projeto de lei escola sem partido;5 circulam discussões infundadas e obscuras sobre “ideologia de gênero” e havia até uma proposta de extinguir as disciplinas de humanidades das universidades públicas que, no site do Senado Federal,6 contou com o apoio de 7.385 assinaturas até a data de 7 de junho de 2018, com a seguinte justificativa.

São cursos baratos que facilmente poderão ser realizados em universidades privadas, a medida consiste em focar em cursos de linha (medicina, direito, engenharia e outros). Os cursos de humanas poderão ser realizados presencialmente e a distância em qualquer outra instituição paga. Não é adequado usar dinheiro público e espaço direcionado a esses cursos, o país precisa de mais médicos e cientistas, os cursos de humanas poderão ser feitos nas instituições privadas. Cursos de humanas da proposta: Filosofia, História, Geografia, Sociologia, Artes e Artes Cênicas

(BRASIL, 2019).

Caso essa proposta absurda tivesse conseguido 20 mil assinaturas, no prazo de 120 dias, ela se transformaria em sugestão legislativa e seria apreciada pelo Senado, podendo (se aprovada) ser convertida em projeto de lei. A despeito disso, o excerto que resume a justificativa de uma proposta preconceituosa e descabida fortaleceria os argumentos econômicos de submissão das Ciências Humanas às políticas empresariais, aproveitando-se do contexto nacional favorável ao processo de mercantilização da Educação ou da Educação submetida ao lucro, tendo em vista que os cursos de Ciências Humanas seriam ofertados somente por instituições privadas.

A despeito do contexto nacional, o cenário mundial também aponta a uma crise na Educação devido aos ataques à democracia – o desprezo pelo pluralismo, pelos direitos humanos, pelos direitos civis, pelos direitos sociais, pela igualdade entre as pessoas independentemente das crenças, da orientação sexual, da raça, da origem de classe, etc. – cujos reflexos incidem diretamente na baixa valorização do conhecimento nas Ciências Humanas, seja pela criticidade inerente à área e à defesa dos valores humanistas, seja pela sua impossibilidade de gerar produtos rentáveis ao mercado, resultando, inclusive, em reduzido investimento em pesquisas.

As humanidades, embora sejam alicerces à formação humana, não favorecem a mercantilização nas várias esferas da vida e, portanto, não despertam o interesse econômico; pelo contrário, visam à formação da racionalidade crítica. Nussbaum (2005) aponta a um fenômeno mundial e, em particular nos EUA, que é a ideia de reduzir a formação escolar a um processo de capacitação para o negócio e para aumentar o PIB, de acordo com o utilitarismo produtivista neoliberal.

Tanto no ensino fundamental e médio como no ensino superior, as humanidades e as artes estão sendo eliminadas em quase todos os países do mundo. Consideradas pelos administradores públicos como enfeites inúteis, num momento em que as nações precisam eliminar todos os elementos inúteis para se manterem competitivas no mercado global

(NUSSBAUM, 2005, p. 4).

Em geral, observa-se que a busca por competitividade no mercado global tem eliminado as humanidades em prol de uma formação utilitária de competências lucrativas para atender aos ditames de uma sociedade totalmente administrada e com a vida sob seu domínio e controle. O propósito é formar indivíduos com espírito competitivo para serem produtivos para o mercado e que só respondam a uma visão social unidimensional: “ser bem-sucedido é o mesmo que adaptar-se ao aparato. Não há lugar para a autonomia” (MARCUSE, 1999, p. 80). Não importa o que pensam, mas que sejam produtivos e estejam inseridos na cultura de consumo, mantendo o funcionamento nefasto da lógica do sistema. Todavia, essa formação para o mercado global coloca em risco a própria saúde da democracia, que depende de uma formação humana muito mais ampla, fornecida pelo campo das humanidades.

A reforma do Ensino Médio brasileira, por exemplo, “coloca a educação diante de um novo tecnicismo sob a égide das agendas neoliberais, ou seja, atende a uma demanda externa e cede à pressão do mundo administrado” (SOARES, 2019, p. 350), priorizando os conhecimentos técnicos e desprezando as disciplinas que tendem a não ser (pré)requisitos para o mundo do trabalho. Entende-se, portanto, que essa reforma supre as exigências do mercado globalizado, sendo coerente com as reformas neoliberais. Contraditoriamente, exime-se do papel fundamental de formar indivíduos à vida emancipada, à guisa de um tecnicismo que fortalece a racionalidade tecnológica.

O rápido desenvolvimento da técnica e da tecnologia tensiona o campo educacional a ceder, e a formação humana tem sido o foco dessa tensão, já que tende a alterar a racionalidade humana, para convertê-la em racionalidade tecnológica, além de alterar a consecução dos fins da própria Educação se primar por uma formação utilitária de competências.

A questão é que a supervalorização da formação para o trabalho invade o espaço privado do indivíduo, o espaço responsável pelo livre-desenvolvimento das faculdades humanas, apoiando-se na prerrogativa de que, ao precondicioná-lo, os padrões de reação se tornam confiáveis, os comportamentos se tornam mecânicos, e os hábitos emocionais enrijecidos e fixos para produzir a insensibilidade diante da submissão que o sistema exige no processo de produção para atingir eficiência e produtividade desejadas. A introjeção da racionalidade tecnológica pode ser fortalecida no processo de formação humana nas escolas e eliminar a racionalidade crítica.

Sendo assim, tal reforma é uma contrarreforma porque a perspectiva não é melhorar a condição humana e a do trabalhador (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 149), mas reproduzir a ordem social em meio ao discurso ideológico da igualdade de oportunidades fazendo o oposto: reproduzir explicitamente as diferenças sociais e de classe. Sabidamente, cabe à escola classificar os estudantes e selecionar, dentre eles, os melhores – os que vão ascender ao conhecimento acadêmico-científico – enquanto a maioria terá como única opção o mercado de trabalho em decorrência da própria precarização da vida. Para os estudantes da classe trabalhadora nessa condição a supervalorização da Educação para o trabalho e a escolha por fazer um curso técnico-profissional no Ensino Médio podem representar uma oportunidade de emprego, mas, por trás dessa lógica, existe a perversidade do sistema: 1) a negação da Educação para a emancipação (e a introjeção da racionalidade tecnológica); 2) a formação utilitária de competências para o mercado (e a formação de mão de obra barata); e 3) a diminuição da pressão por demanda de vagas nas universidades públicas (os jovens da classe trabalhadora não têm escolha diante da precarização da vida e das demandas por consumo – precisam ingressar precocemente no mercado de trabalho). Portanto, uma reforma que vai prejudicar e precarizar a vida dos estudantes trabalhadores não pode ser chamada de reforma, mas de contrarreforma.

O Brasil está se ajustando às determinações históricas dos organismos internacionais no que tange ao processo de reestruturação produtiva, que tem invadido o campo educacional e forçado um modelo de formação técnica. Na verdade, o País já vem adotando medidas de ajustamento para aferição quantitativa dos resultados estatísticos nas provinhas e provões para medir a qualidade da Educação, e a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) vai tensionar a formação para um modelo educativo que permitirá a uniformização, a regulamentação, a padronização, a homogeneização, etc., do ensino nas escolas, bem como o ajustamento, o condicionamento, o enquadramento, etc. dos estudantes com o intuito de possibilitar a medição mecânica e/ou meramente técnica do conhecimento.

Diante desse quadro, a Teoria Crítica da sociedade pensada por Marcuse (1967) aponta às contradições sociais geradas pela dinâmica do sistema e, com seu método de análise, é possível evidenciar a relação estreita entre a consecução dos fins da Educação hoje e a supervalorização das disciplinas que contribuem para o desenvolvimento da técnica e da tecnologia voltada à dominação cultural dos indivíduos e à manipulação da natureza para todos os fins. “A luta pela existência e a exploração do homem e da natureza se tornaram cada vez mais científicas e racionais” (MARCUSE, 1967, p. 143-144), já que a ciência, em seu atual estágio de desenvolvimento, tem servido ao capital. Notadamente, a produção e o consumo nas sociedades capitalistas se fundam na repressão e na destruição da liberdade e, portanto, são fontes de dominação humana.

A crítica marcuseana à forma como as sociedades industriais se organizaram a partir da Revolução Industrial, para disseminar seus valores por precondicionamentos e repressão, possui um caráter formativo no interior das instituições sociais, como as escolas e as universidades, por exemplo. Nesse sentido, deve-se estimular a intervenção social pela crítica negativa, que conduz a luta por emancipação humana no campo educacional. A Educação é, aqui, entendida como prática social e, portanto, a intervenção faz parte da prática docente intencional.

Em textos inéditos publicados no Brasil por Kellner, que é o editor de Marcuse, numa coletânea planejada a partir do arquivo Marcuse com o título Tecnologia, guerra e fascismo. coletânea de artigos de Herbert Marcuse, verificam-se os contornos do avanço de uma racionalidade técnicocapitalista invadindo todas as esferas da vida.

Os textos aqui publicados expõem suas críticas penetrantes à tecnologia e análise dos modos pelos quais a tecnologia moderna está produzindo novas formas de sociedade e cultura com novas formas de controle social. Suas análises do fascismo revelam o vínculo entre totalitarismo, capitalismo, tecnologia e formas potentes de dominação cultural

(KELLNER, 1999, p. 18).

Diante do exposto, pensar a Pedagogia Radical como forma de resistência e reabilitação da crítica é uma tarefa urgente para os educadores brasileiros, considerando-a como um enfrentamento à ideia descabida de extinguir as Ciências Humanas dos currículos das universidades públicas e de combater o problema da empobrecedora (de)formação para o mercado. Trata-se de uma tarefa hercúlea de combate à dominação cultural e de formação humana para a emancipação.

Considerações finais

A relevância do pensamento marcuseano, na atualidade, faz-se presente pelo fato de ele ser o pensador da grande recusa, da revolta, da resistência, da crítica e, sobretudo, da utopia – por não fazer concessões à ordem vigente imposta pelo capitalismo. O capitalismo está dando mostras de esgotamento das possibilidades civilizatórias. Procuramos mostrar isso ao longo do texto enfatizando a crise da democracia global, em razão do seu projeto civilizatório neoliberal, que tem forjado uma formação humana tecnicista para se reproduzir e administrar a vida dos indivíduos de maneira racional e técnica.

Trata-se de um projeto de dominação cultural que coloca em risco todo o processo civilizatório, já que não tem como fim último a emancipação humana e, em termos de desenvolvimento e consolidação da democracia, inviabiliza o papel do Estado na manutenção e no respeito aos direitos humanos, sociais, civis, etc., além de não priorizar a pluralidade cultural – as diferenças de raça, religião, orientação sexual, classe social. O capital só tem como meta sua própria reprodução, sem preocupação com as relações humanas e com os problemas sociais e ambientais.

O potencial educador de Marcuse reside na crítica com caráter pedagógico-formativo que estimula a intervenção social pela crítica negativa contra a “cultura afirmativa” do capital, que forma o cidadão consumidor. Sabe-se que a emancipação/libertação não é possível nas sociedades capitalistas, já que, nessas sociedades, impera a injustiça, a exploração, o terror – a falsa consciência, entendida como ideologia –, que impedem o florescimento da crítica e de outras alternativas históricas de organização social.

Se a emancipação ainda não é possível, tentamos mostrar, a partir do pensamento marcuseano, que a tarefa da Educação é se apropriar de uma Pedagogia Radical – uma pedagogia crítica e da resistência – para restituir a razão crítica e procurar fazer com que os indivíduos passem da falsa consciência para a verdadeira. O próprio Marcuse (1967, p. 17) aponta esse caminho ao indivíduo que “só poderá fazê-lo se viver com a necessidade de modificar seu estilo de vida, de negar o positivo, de recusar”. Recusar é um direito; da mesma forma, a liberdade é um direito e se constitui como um dos pilares da dignidade da pessoa humana e como um pressuposto fundamental para a manutenção do Estado Democrático de Direito. O direito à consciência privada livre não está sendo respeitado pelo capital, e toda a liberdade permitida pelo sistema se resume na escolha entre uma gama de mercadorias que requer vida administrada – uma vida de labuta e temor, conformada, sem oposição e sem autonomia; uma vida administrada e saqueada pela ganância, que coloca em risco o futuro da humanidade.

Enfim, em tempos de mercantilização da Educação e da possibilidade de extinção das disciplinas das Ciências Humanas dos currículos escolares e acadêmicos em instituições públicas, a humanidade corre sérios perigos de formar técnicos assépticos prontos para utilizarem a natureza e a vida humana para todos os fins. Advém daí a incapacidade de lutar contra a destruição da natureza e em favor da própria manutenção das condições de vida no Planeta, bem como por justiça social e solidariedade nas relações humanas. Sem tais disciplinas, torna-se inviável a Educação das novas gerações para a crítica e a negação do modelo de organização capitalista e sua cultura afirmativa. Portanto, se nega a própria possibilidade de educar para a emancipação.

1“O termo reforma ganhou sentido no debate do movimento operário socialista, ou melhor, de suas estratégias revolucionárias, sempre tendo em perspectiva melhores condições de vida e trabalho para as maiorias” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 149). Considerando essa definição de reforma, vemos que uma reforma que vai prejudicar e precarizar a vida dos trabalhadores não pode ser chamada de reforma, mas de contrarreforma, termo usado por Behring para definir o que não é reforma.

3BRASIL. Senado Federal. Extinção dos cursos de Humanas nas universidades públicas. Ideia Legislativa. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoideia? id=100201. Acesso em: 30 maio 2019.

4O art. 5º da Constituição Federal brasileira de 1988, que dispõe sobre as garantias e direitos fundamentais de cada cidadão, diz o seguinte: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

5Conforme alerta Frigotto (2017, p. 17), o ideário da escola sem partido possui um “sentido de ameaça à vivência social e à liquidação da escola pública como espaço de formação humana, firmado nos valores da liberdade, de convívio democrático e de direito e respeito à diversidade”.

6BRASIL. Senado Federal. Extinção dos cursos de Humanas nas universidades públicas. Ideia Legislativa. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoideia?id= 100201. Acesso em: 30 maio 2019.

*Texto apresentado no VI Simpósio Internacional Horizontes Humanos com o título “O direito ao livre desenvolvimento das faculdades humanas como um direito fundamental”, realizado no período de 1º. a 3 de novembro de 2018, na Universidade de Brasília (UnB), com as devidas modificações.

Referências

BEHRING, E.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2007. [ Links ]

BRASIL. Governo lança programa “Future-se” e permite que universidades públicas captem recursos para se financiar. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/noticia/8538169/governo-lanca-programa-future-se-e-permite-queuniversidades-publicas-captem-recursos-para-se-financiar. Acesso em: 14 ago. 2019. [ Links ]

BRASIL. Senado Federal. Extinção dos cursos de humanas nas universidades públicas. Ideia Legislativa. Extinção em 7 de junho de 2018. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoideia?id=100201 Acesso em: 14 nov. 2018. [ Links ]

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, DF, 5 de outubro de 1988. [ Links ]

FREITAG, B. A Teoria Crítica ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1988. [ Links ]

FREUD, S. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 21. [ Links ]

FRIGOTTO, G. (org.). Escola sem partido: esfinge que ameaça a Educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ; LPP, 2017. [ Links ]

KELLNER, D. M. Prefácio – Marcuse o desconhecido: novas descobertas nos arquivos. In: KELLNER, D. M. (ed.). Tecnologia, guerra e fascismo: coletânea de artigos de Herbert Marcuse. São Paulo: Edunesp, 1999. [ Links ]

KELLNER, D. M. Sobre Marcuse: crítica, libertação e reeducação na pedagogia radical de Herbert Marcuse. Estud. Pesqui. Psicol. [on-line], v. 11, n. 1, p. 23-55, 2011. [ Links ]

KONDER, L. Marcuse, revolucionário. PhysisRevista de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 15-18, 1998. [ Links ]

LOUREIRO, I. Mudar o sentido do progresso ou parar o progresso?: Herbert Marcuse e a crítica à tecnociência. In: STREY, S. C.; PREHN, D. (org.). Gênero e cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre: Edipucrs, 2004. [ Links ]

MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial. Trad. de Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. [ Links ]

MARCUSE, H. One-dimensional man: studies in the ideology of advanced industrial society. Boston: Beacon Press, 1969. [ Links ]

MARCUSE, H. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In: KELLNER, D. M. (ed.). Tecnologia, guerra e fascismo: coletânea de artigos de Herbert Marcuse. São Paulo: Edunesp, 1999. [ Links ]

NUSSBAUM, M. C. Sem fins lucrativos: porque a democracia precisa das humanidades. Trad. de Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. [ Links ]

SOARES, P. S. S. A reforma do Ensino Médio à luz da Teoria Crítica marcuseana. SER Social: Nova direita, Estado e política social. Brasília, v. 21, n. 45, p. 338360, jul./dez. 2019. [ Links ]

Recebido: 18 de Agosto de 2019; Aceito: 28 de Outubro de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.