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Conjectura: Filosofia e Educação

Print version ISSN 0103-1457On-line version ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.dossie.4 

DOSSIÊ: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA CRÍTICA: PREOCUPAÇÕES E TENDÊNCIAS ATUAIS

Racionalidade instrumental, fascismo e Educação na contemporaneidade

Instrumental rationality, fascism and education in contemporarity

João Vicente Hadich Ferreira* 
http://orcid.org/0000-0002-1013-3654

Sinésio Ferraz Bueno** 
http://orcid.org/0000-0003-3124-4692

*Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor-Assistente no Curso de Pedagogia do Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) / Campus de Cornélio Procópio. Disciplinas de Filosofia na Área de Educação, Sociedade e Formação Humana. Líder do grupo de pesquisa “Saberes e Fazeres da Docência” (UENP) e integrante do grupo de pesquisa “Teoria Crítica: Filosofia, Educação e Cultura” (UNESP). E-mail: joaohadich@uenp.edu.br.

**Professor Doutor em Filosofia da Educação, atuando como professor no Departamento de Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESP, Marília-SP. Especialista em Teoria Crítica e Educação, atualmente desenvolvendo pesquisas sobre os seguintes temas: Teoria Crítica, fascismo e Psicanálise; Teoria Crítica e pós-estruturalismo: uma confrontação conceitual. Líder do grupo de pesquisas “Teoria Crítica: Filosofia, Educação e Cultura” (UNESP). E-mail: sinesioferraz@yahoo.com.br


Resumo

Este ensaio tem como base inicial o conflito estabelecido a partir da visão mecanicista da natureza na ciência moderna, contraposto ao finalismo metafísico anterior. Nesse viés, interessa-nos seus desdobramentos com o surgimento daquilo que Adorno e Horkheimer chamaram de razão instrumental e os comprometimentos que parecem estar subjacentes nas bases do processo educativo contemporâneo. Pautado mais pelo pragmatismo econômico e cientificista do que na percepção da Educação como um processo humanizador e emancipador, encontramos um mundo cada vez mais avançado tecnologicamente, interconectado e pretensamente socializado virtualmente, mas, em paradoxo, vivencia retrocessos no campo das conquistas políticas e sociais. A partir da Revolução Científica na Modernidade e de suas bases mecanicistas, o mundo interpretado na perspectiva da razão subjetiva – entenda-se instrumental, como nos esclarece Horkheimer (2015) – passa a ser compreendido mecanicamente, desconsiderando-se sua finalidade ou o finalismo das coisas. O controle da natureza, daquilo que nos assustava e do homem, em sua condição de racionalidade, tomado pelo processo civilizatório e esclarecedor, transformou-se, ao longo dos anos, numa racionalidade não emancipatória, mas instrumentalizadora da nossa própria existência, condição que permitiu o surgimento do fascismo e que continua a alimentar e manifestar os sinais da barbárie que ainda paira no horizonte, como já nos alertava Adorno em Educação após Auschwitz (1995). Entendido como um fenômeno projetivo pelo filósofo, a partir de uma patologia narcísica, o discurso fascista traz, em sua base, o conceito de “estranho e familiar”, em que o outro é o diferente que lembra ao agressor as próprias mazelas, aquelas com as quais ele não lida e que espelham a si mesmo. Catalisado pelo discurso de ódio disseminado de forma repetida pelo líder, o in-group dos fascistas encontra, no out-group, os grandes inimigos. Implantar seu projeto, sua ideologia, é o que está em jogo. Na contramão, talvez pensar a Educação como elemento de ruptura e desnudamento das contradições que são ocultadas numa sociedade pautada pelo mecanicismo moderno e regulada por uma racionalidade instrumental que coisifica as consciências e manifesta, em seu uso cotidiano, a administração do existente e não suas possibilidades emancipatórias.

Palavras-chave Fascismo; Educação; Emancipação

Abstract

This essay has asan initial base the established conflict from nature’s mechanistic view in modern science, counterposed to the previous methaphysical finalism. Following that perspective, interestsus it’s deployment al on gwith the origin of what Adorno and Horkheimer called instrumental reason and the commitments that seems to be underlying in the foundations of the contemporary educational process. Based more on economic and scientific pragmatism than on the perception of education as a humanizing and emancipating process, we find a world increasingly technologically advanced, interconnected and allegedly virtually socialized, but paradoxically, experiencing setbacks in the field of political and social achievement. From the Scientific Revolution in Modernity and its mechanistic bases, the world interpreted from the perspective of subjective reason – known as instrumental, as Horkheimer (2015) clarifiesus – be comes mechanically understood, disregarding it’s purpose or the finalism of the things. The control of nature, of what frightened us, and of the man in his condition of rationality, taken by the civilizing and enlightening process, have become, over the years, a non-emancipatory but instrumentalizing rationality of our own existence. A condition that allowed the emergence of fascism and that continues to feed and manifest the signs of barbarism that still looms on the horizon, as Adorno warned us in Education after Auschwitz (1995). Understood as a projective phenomenon by the philosopher, based on a narcissistic pathology, the fascist discourse has in its foundations the concept of “strange and familiar”, in which the other is the different that reminds the aggressor of his own ills, those with which he does not handleand that mirrors him self. Catalyzedby the hate speech repeatedly disseminated by the leader, the fascist in-group finds the great enemies in the out-group. To implementh is project, his ideology is what is at stake. On the contrary, perhaps to think Education as an element of rupture and denudation of the contradictions that are hidden in a society based on the modern mechanism and regulated by an instrumental rationality that objectifies consciousnesses and manifests, in it’s daily use, the administration of what exists and not its emancipatory possibilities.

Keywords Fascism; Education; Emacipation

Contexto inicial

Nos avanços e conquistas do pensamento científico herdeiro das discussões do empirismo e do racionalismo e sua consequente desenvoltura após as intervenções kantianas e o advento das ciências em sua expressão contemporânea, o que nos incomoda, há um bom tempo, é talvez o que expressaremos inicialmente, aqui, como dicotomização e hierarquização do conhecimento humano em suas mais variadas vertentes, seja a dicotomia estabelecida, não pelas especificidades, mas pela ideia de prevalência de uma sobre a outra, no caso da teoria e da prática, seja pela perspectiva de supremacia absoluta do conhecimento científico sobre todos os demais que representam também nossa forma de compreender o mundo e a existência, como, por exemplo, a filosofia, o senso comum, a religião, entre outros.

Esclarecendo, nesse sentido, o que apontamos é a ramificação da ideia de conhecimento que, muitas vezes, prevalece como se fossem condições estanques e superáveis progressivamente, numa proposição apenas evolutiva e não contextual, de nossa forma de interpretar o mundo. Ou seja, se explicávamos o mundo de forma mítica inicialmente e, na crise desse desenvolvemos o pensamento filosófico, classicamente ensinado nas aulas de introdução à Filosofia, não se extrai daí que o pensamento mítico se esgotou ou foi eliminado da nossa condição humana, tampouco que, com o advento do conhecimento científico elaborado após a revolução copernicana, tenhamos eliminado ou resolvido todas as nossas questões que, no fundo, permanecem metafísicas. Afinal de contas, a morte, o amor, a angústia, nossas questões políticas, éticas e tantos outros problemas existenciais com os quais nos deparamos não são solucionáveis ou abrandados apenas com os avanços da ciência médica ou bioquímica. Na verdade, encontram espaço hoje, inclusive, para o desenvolvimento de pseudoexplicações que têm recheado as estantes com livros de autoajuda ou, ainda nessa linha, travestido de filosofia, de textos provocativos, mas não menos superficiais, como o Mais Platão menos Prozac, de Lou Marinoff (2001), ou as “pérolas” do guru da extrema direita Olavo de Carvalho.

Nesse descompasso, construímos uma interpretação da realidade e do mundo pautada pela racionalidade que propunha o esclarecimento e a autonomia – mesmo que talvez tenha sido seu desdobramento uma dogmatização do pensamento científico – tão perniciosa ou obscura quanto o combalido pensamento religioso da Idade Média. Fosse Deus ou o transcendente a explicação para o que havia, fosse a teoria científica dogmatizada como nova verdade, em ambos os casos, parece tratarmos o mesmo problema que acuava os nossos antecedentes: como sermos esclarecidos? Como chegar à autonomia?

Considerando nossa preocupação com os fundamentos do processo educativo e seus desdobramentos, tendo como base a Teoria Crítica e os estudos dos frankfurtianos, especialmente de Adorno, a partir desses incômodos, propõe-se o presente ensaio.

Para tanto, passaremos por uma breve contextualização do estabelecimento da racionalidade instrumental no tópico “Da metafísica para a racionalidade instrumental”. A partir do desacordo na Modernidade entre o pensamento metafísico e o pensamento científico e o estabelecimento do mecanicismo como percepção predominante da natureza e da existência, apontamos a uma racionalidade em que os meios passam a prevalecer perante os fins. Solidificou-se, assim, cada vez mais, o repúdio a toda forma de pensamento que representasse, classicamente, o finalismo metafísico ou o pensamento filosófico anterior.

No tópico seguinte, “Racionalidade instrumental e barbárie”, trataremos de alguns elementos que se apresentam na linha tênue entre barbárie e civilização. Partimos da tese de que essa forma pragmática da razão de interpretar a realidade e coisificar os existentes contribuiu, como seu desdobramento, para as impensadas barbáries contemporâneas ocorridas no século XX e representadas, a saber, pelo fascismo.

Por fim, no tópico “Formação cultural versus indústria cultural”, explicitaremos o problema do comprometimento da primeira pelos filtros da segunda, a partir daquilo que Adorno e Horkheimer apontaram como sendo a base de sustentação de uma semiformação e da constituição de uma semicultura.

Ao longo do texto, evidentemente, não se concretizará uma resposta final, posto que seja este, na linha de pensamento da dialética negativa, um ensaio negativo, ou seja, sem a pretensão de apresentar soluções. O que vislumbramos são problemas que, acreditamos nos levarão a pensar diante de uma realidade que, ainda que permeada pela razão instrumental e pela indústria cultural, vislumbra, em suas contradições, a possibilidade de Educação e de emancipação humana.

Da metafísica para uma racionalidade instrumental

Num primeiro momento, a crítica e a ruptura com o pensamento antigo e a proposição de um Novum Organum, como na perspectiva baconiana, apresentavam-se promissoras e permitiam ao homem desvendar relações e fatos antes impensados ou administrados pela mente humana. Da constituição do cogito cartesiano aos desdobramentos da estrutura do entendimento em Locke e Hume, encontramos, na ciência moderna, nova promessa de Prometeu. Evidentemente, como nos ensina a mitologia, não sem trazer consigo o acompanhamento de novas manifestações dos castigos perpetrados por Zeus ao presentear Pandora com sua atraente e curiosa caixa.

De um projeto esclarecedor proposto pelo Iluminismo, fundamental para nossa compreensão de mundo e superação dos limites impostos pela natureza precedente e à qual permanecemos vinculados, deparamo-nos com o advento de novo tipo de racionalidade, fruto de desvio, ou desviante, da proposição inicial. Uma racionalidade que ao se intensificar na busca por fins desejados, não de forma teleológica, mas pragmática, mitigou nossa percepção transformando-nos em meros instrumentos, ou apenas meios para fins almejados.

Numa analogia com o clássico conto de Mary Shelley, é a criatura que se volta contra o criador. Entretanto, na possível compreensão, aqui, de que Victor Frankenstein, o cientista, representaria a própria figura da racionalidade instrumental e, paradoxalmente, seria, o monstro, a expressão de nossa submissão a essa estranha deformação da razão humana e que continua suscitando em nós a busca pelo esclarecimento.

A partir desse contexto, numa perspectiva metafísica, por sua vez, a racionalidade não é algo restrito à interioridade humana, ao domínio da individualidade exacerbada pelos modernos. Desde Aristóteles, a razão não é apenas um instrumento do homem para conhecer o mundo. Ela está fora do homem também. De acordo com Horkheimer,

por muito tempo, uma visão [...] de razão prevaleceu. Essa visão afirmava a existência da razão como uma força não apenas na mente individual, mas também no mundo objetivo – nas relações entre seres humanos e entre classes sociais, em instituições sociais e na natureza e em suas manifestações. Grandes sistemas filosóficos, como os de Platão e Aristóteles, a escolástica e o idealismo alemão foram fundados sobre uma teoria objetiva de razão (2015, p. 12).

Para os pensadores clássicos o mecanicismo sempre esteve subordinado ao finalismo. Nesse caso, Kant representa uma exceção à tradição.

Ao tratar da razão em duas perspectivas, a pura e a prática, Kant apresenta a primeira como um instrumento para conhecer o mundo e, a segunda, como condição para colocar em prática esse conhecimento, esse agir. Ou seja, nesse contexto, Kant reduz a razão a seu aspecto meramente instrumental, sem preocupação com sua finalidade, conforme nos esclarece Horkheimer (2015) ao tecer sua crítica. Seguindo a tradição dos modernos, Kant privilegia o mecanicismo contra o finalismo metafísico. É a ideia dos meios e fins que se estabelece e predomina sobre a compreensão de uma finalidade. É o que Horkheimer chamará de razão subjetiva:

A força que, em última instância, torna possíveis ações razoáveis é a faculdade de classificação, inferência e dedução, não importando qual o conteúdo específico – o funcionamento abstrato do mecanismo do pensar. Esse tipo de razão pode ser chamado de razão subjetiva. Está essencialmente preocupada com meios e fins, com a adequação de procedimentos para propósitos tomados como mais ou menos evidentes e supostamente autoexplicativos. Dá pouca importância à questão de se os propósitos em si são razoáveis (2015, p. 11-12).

Nesse sentido, a partir da revolução científica, na Modernidade, e de suas bases mecanicistas, o mundo interpretado na perspectiva de uma razão subjetiva – entenda-se instrumental – passa a ser compreendido mecanicamente, desconsiderando-se sua finalidade ou o finalismo das coisas. Muda nossa relação com o corpo, com a morte, com a existência. Nossa sociedade ocidental, autora e ainda herdeira dessa visão mecanicista na contemporaneidade, busca a longevidade acima de tudo e, nesse cenário, morrer é inadmissível. Nutrindo o horror pela morte, culturalmente constituído junto com a formação burguesa ocidental, vivemos imersos num universo de coisas muitas vezes sem sentido e que, na maior parte do tempo, não apresentam para nós finalidade alguma.

Se retomarmos Aristóteles e sua Teoria das Quatro Causas, encontraremos nela o finalismo como o coroamento da existência das substâncias. No pensamento metafísico aristotélico, o telos das coisas não se desvincularia de suas outras três causas, a saber, a formal; a eficiente: e a material. Aliás, poderíamos entender essa como a causa principal para que algo exista. Ao contrário, a característica de uma sociedade baseada no mecanicismo é a desconsideração pela quarta causa apresentada pelo filósofo grego, ou seja, a causa final.

Nesse contexto, vivemos em um mundo que passou a basear-se nas três primeiras causas abandonando toda remissão à finalidade da existência. Importa-nos a materialidade das coisas, a forma e a eficiência com que são realizadas. Se há finalidade para tal, isso passa a ser um apêndice. O que passa a valer não é a finalidade como condição teleológica do existente, mas os fins desejados pragmaticamente, tanto que, para que se possa alcançá-los, manifesta-se a máxima atribuída a Maquiavel e reproduzida descontextualizada e levianamente para fundamentar ainda mais nossa concepção mecanicista: a de que os fins justificam os meios.

A concepção retratada na percepção dos meios e fins traz, em si, uma concepção mecanicista. Influencia nossa ciência ocidental a partir de um pressuposto mecânico da existência, contrapondo-se à perspectiva da ciência oriental, por exemplo, que comporta um viés mais espiritualizado e não apenas mecanicista.

Nesse viés, mesmo a religião clássica, fundada em uma percepção metafísica inicialmente, ou a filosofia em seu entendimento tradicional, são instrumentalizadas e transmutadas em mercadoria. Se, no entendimento dos pensadores clássicos e dos místicos pré-mecanicismo o que se buscava era uma finalidade maior, um sentido para a existência, na percepção dos modernos formatamos o existir para um ou outros fins desejados. Num mundo em que prevalece a imanência, a transcendência torna-se estranha, sem significado e desprezível. O que vale é o que se pode ter e não o que se pode ser.

Pautado pelo ideal de iluminação para o mundo, almejando liberar-nos do obscurantismo religioso, o pensamento dos modernos caminha no sentido da ruptura com tudo o que represente o viver dos antigos. Não é só a religião que está na mira dos iluministas e dos epistemólogos da revolução científica, mas a própria filosofia em sua concepção metafísica e clássica, representada, principalmente, pelas teorias aristotélicas e pela interpretação de mundo que não condiz com as novas perspectivas mecanicistas da existência.

A busca pela verdade em sua objetivação da natureza e do homem, como uma máquina cujo funcionamento é possível entender e manipular, representa mais do que a passagem do controle da religião tradicional e sua determinação de mundo. Traz consigo o entendimento de que, para alémmeta – da physis, não se encontra validade científica. Nesse norte, o controle da natureza e daquilo que nos assustava e do homem em sua condição de racionalidade, tomados como processo civilizatório e esclarecedor, transformaram-se, ao longo dos anos, numa racionalidade não emancipatória, mas instrumentalizadora da nossa própria existência.

Se, na metafísica clássica, o conceito de episteme vincula-se ainda à perspectiva de conhecimento como entendimento, contemplação e busca de uma finalidade maior para existir, na percepção dos modernos assume a expressão a concepção de aplicabilidade e eficiência, instrumentalizando o real e almejando não um telos, mas respostas para um presente que se consome e não pode ser contido. Desse modo, se inicialmente se trazia a conotação da ciência como meio para nossa realização humana, no seu contraponto, encontramos nossa instrumentalização pelo próprio conhecimento científico, alçado a detentor das “verdades seguras” e, não mais, como meio, mas fim em si mesmo que deve ser almejado, ainda que possa implicar a não continuidade da nossa existência. Eis a base da racionalidade instrumental.

Racionalidade instrumental e barbárie

Theodor Adorno desenvolveu, ao longo dos anos em suas pesquisas, obras e artigos, diversos estudos sobre a personalidade autoritária, o fascismo e a violência como questões que pautaram sua percepção sobre a barbárie contemporânea.

Ele trata o fascismo a partir da patologia humana narcísica, da necessidade que o homem tem de compor grupos e de ter um líder para que possa, nesse pertencimento, dirigir seu ódio a outro grupo que não lhe seja espelho e represente a diferença. Entrando, portanto, no campo da psicanálise, Adorno não fica restrito apenas à concepção política, que também não desconsidera.

Em sua análise do fascismo, o filósofo frankfurtiano considera que ele é um fenômeno acima de tudo projetivo. O outro, nesse sentido, é uma tela em que você joga as suas próprias mazelas, aquelas com as quais você não lida e que encontra coro na pertença a um grupo de identificação com um líder que dissemina o discurso de ódio de forma repetida contra o outro grupo. No sentimento do in-group, os membros desse coletivo se consideram superiores como uma elite favorecida ou eleita para a realização de um bem. Caberia entender que bem seria esse e perceber que não é na perspectiva de um telos, um finalismo como preconizava a perspectiva metafísica, mas no exercício do mais puro mecanicismo relacionado ao entendimento dos meios e fins que fundamentam o exercício de uma racionalidade instrumental.

Na contraposição do in-group, temos o entendimento de que há aqueles que são out-group e que, nesse contexto, são considerados inferiores e representam o mal a ser evitado, o inimigo a ser derrotado e extirpado para que se possa construir um mundo idílico e perfeito. Essa fórmula do in-group versus out-group ajuda a explicar as relações de ódio e violência que se manifestam nas sociedades quando encontram espaço para esses elementos do pensamento fascista.

Independentemente de ser na esfera política ou religiosa, há mecanismos de projeção, tratados pela psicanálise, que nos ajudam a compreender o discurso fascista. No fundo, o fascista está falando de si mesmo quando agride o outro. É o conceito de unheimlich tratado por Freud e que representa, ao mesmo tempo, o estranho e o familiar. Ou seja, ao mesmo tempo em que o outro me é estranho ele também me é familiar. Aquilo que abomino nele encontro em mim, e o que parece estar fora de mim também se encontra dentro de mim. Por isso, quando não há reflexão, pensamento e busca do entendimento, não se vê a própria miséria.

De acordo com Freud e Gustave Le Bon, um dos contextos da relação grupal é exatamente o de enfraquecer e dissolver os mecanismos de defesa do indivíduo. No grupo o indivíduo sente-se livre e libera o “bárbaro” que contém em si, sem os freios necessários para evitar o pior. O que prevalece é uma consciência coisificada que se manifesta na violência do fascismo. Ao reduzir o ser humano a uma “coisa”, não há empatia. Ao contrário, há um embrutecimento das relações e o endurecimento da consciência, na manifestação daquilo que Adorno considerou como a frieza burguesa. Pinçadas do livro Educação e emancipação (1995), as citações a seguir de Educação após Auschwitz ajudam a entender um pouco mais essa questão:

No que diz respeito à consciência coisificada, além disto é preciso examinar também a relação com a técnica, sem restringir-se a pequenos grupos. Esta relação é tão ambígua quanto a do esporte, com que aliás tem afinidade. Por um lado, é certo que todas as épocas produzem as personalidades – tipos de distribuição de energia psíquica – de que necessitam socialmente. Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes consequências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao “véu tecnológico”. Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios – e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana – são fetichizados, porque os fins – uma vida humana digna – encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas

(ADORNO, 1995, p. 132-133).

Na constituição do caráter manipulador da personalidade endurecida, manifesta-se o tratamento que dá a si próprio também como coisa. Nesse endurecimento, há um afastamento da própria sensibilidade, ao passo que não se permita a expressão dos próprios sentimentos. Não há empatia com o outro e nem consigo mesmo. O prevalecimento da técnica, do mecanicismo, do entendimento pragmático da relação dos meios e fins colocam-se em contraposição ao finalismo de uma vida humana digna. Na coisificação dos entes, tendo como base uma racionalidade instrumental, os elementos da barbárie se apresentam com maior liberação. Continua Adorno:

Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um sistema ferroviário para conduzir as vítimas de Auschwitz com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com essas vítimas em Auschwitz. No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica, trata-se simplesmente de pessoas incapazes de amar. Isto não deve ser entendido num sentido sentimental ou moralizante, mas denotando a carente relação libidinal com outras pessoas. Elas são inteiramente frias e precisam negar também em seu íntimo a possibilidade do amor, recusando de antemão nas outras pessoas o seu amor antes que o mesmo se instale. A capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, elas precisam aplicá-las aos meios (1995, p. 133).

Num cálculo custo-benefício, exercício do pragmatismo de uma racionalidade instrumental, o que prevalece não é a percepção do outro, de sua dignidade ou humanidade, mas os meios necessários para se atingir o fim desejado. Como não há empatia, a alteridade não é reconhecida, e o que permanece é a reificação do existente.

Historicamente, todos aqueles que se consideram in-group geralmente se sentem fazendo o bem, entendendo que são componentes de um grupo puro, decente. Nesse contexto, numa cruzada contra o mal, seja qual for o elencado naquele momento, a luta se dá contra todos e tudo aquilo que representa dissonância com suas prerrogativas, considerados inimigos. Tal dissonância, efetivamente, é representada pela imagem do out-group. Contra esse se dirige a violência e toda e qualquer ação necessária para que se atinja o projeto ou a missão dos que são considerados como sendo os de bem. Como não há a empatia com o outro e, por consequência, com a vítima, justificam-se as ações violentas em nome deste bem, pois não se violenta a vítima, mas se estabelece com ela apenas uma relação de meios e fins, dada a coisificação de ambos: violentado e violentador.

Nessa perspectiva, é possível vislumbrar, pelo menos em parte, o pano de fundo no fenômeno da manifestação de atos violentos por pessoas aparentemente normais, sem histórico de violência ou psicopatias associadas. Casos como o do índio Galdino, queimado por jovens de classe média há alguns anos, como se fosse um divertimento juvenil ou do ambulante morto por espancamento no metrô de São Paulo por defender aquilo que representa a ideia de minorias. Ao determinarmos de forma racional nossa relação com algumas pessoas como se elas fossem coisas, coisificamos essas pessoas e não há sofrimento em fazê-las sofrer, pois não há empatia. É a manifestação de uma racionalidade instrumental. Conclui Adorno:

Aqui vêm a propósito algumas palavras acerca da frieza. Se ela não fosse um traço básico da antropologia, e, portanto, da constituição humana como ela realmente é em nossa sociedade; se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito. [...] O que contradiz, o impulso grupal da chamada lonely crowd, da massa solitária, na verdade constitui uma reação, um enturmar-se de pessoas frias que não suportam a própria frieza mas nada podem fazer para alterá-la. Hoje em dia qualquer pessoa, sem exceção, se sente mal-amada, porque cada um é deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas (1995, p. 133-134).

A importância da empatia se manifesta nesse contexto e, tratando sobre essa questão e a da frieza, compreendemos como a incapacidade de identificação com o outro, apesar dele nos ser familiar, nos remete às potencialidades de que a barbárie se repita.

Nesse contexto, retomando o conceito freudiano unheimlich, pode-se reafirmar que o que repele o outro por sua estranheza é porque este lhe é demasiado familiar. Em Elementos do antissemitismo, fragmento da obra Dialética do esclarecimento (1985), Adorno e Horkheimer apresentam a seguinte constatação:

O indivíduo obcecado pelo desejo de matar sempre viu na vítima o perseguidor que o forçava a uma desesperada e legítima defesa, e os mais poderosos impérios sempre consideraram o vizinho mais fraco como uma ameaça insuportável, antes de cair sobre eles. A racionalização era uma finta e, ao mesmo tempo, algo de compulsivo. Quem é escolhido para inimigo é percebido como inimigo. O distúrbio está na incapacidade de o sujeito discernir no material projetado entre o que provém dele e o que é alheio (1985, p. 154).

Ou seja, há uma identificação com o outro e, ao mesmo tempo, a negação, especialmente das fraquezas. Eu também sou fraco, mas rejeito isso e aplico no outro, naquele que está fora do grupo. Aqui se fecha a porta da empatia, da compaixão e se abre a porta para o fascismo. Numa perspectiva narcísica, é mais fácil hostilizar, coisificar o outro do que reconhecer em mim também os limites ou as fragilidades. O que há de comum entre o imigrante, o negro e o homossexual? Estão fora dos padrões estabelecidos por alguns que predominam na perspectiva social e, além disso, representam a ideia de fracasso, de fraqueza para esses determinantes.

A incapacidade de reconhecer o outro como humano e o humano no outro constitui a falta de empatia para com o semelhante e condição para sua coisificação. Na sociedade capitalista em que vivemos, manifestação dos principais elementos de uma racionalidade instrumental, prevalecem as relações mercantis, dos meios e fins sobre a perspectiva metafísica do finalismo. Não é determinado que ajamos assim, mas estamos de tal forma imersos nessas relações que agimos assim e normalizamos essa ação pela perspectiva pragmática do bem maior que justifica um mal menor ou males menores.

Quando não se constrói empatia com as pessoas, mas se estabelece uma relação com as mesmas como se fossem coisas, é compreensível, mas não aceitável, que alguém consiga demonstrar empatia com os próximos, o afeto pelo in-group e, ao mesmo tempo, a frieza, a agressão com aquele que lhe é estranho e familiar. A subjetividade se perde.

Por isso, na sequência, trataremos da questão da formação cultural e de seu comprometimento com a constituição do que Adorno e Horkheimer chamaram de “indústria cultural”. Como elemento importante para o processo de manipulação, a existência de uma indústria que produz cultura para consumo representa o amálgama necessário em uma sociedade em que a subjetividade é manipulada diuturnamente. Na perspectiva daquela racionalidade instrumental, em que pragmaticamente os fins desejados justificam os meios utilizados, o que se vislumbra é o estabelecimento da barbárie. Novamente, sem uma preocupação com a finalidade da existência, sua significação, como pleiteava, por exemplo, o pensamento metafísico, o outro, transformado em coisa, vale menos do que aquilo que se pode ter materialmente. Tudo se resume, numa sociedade assim administrada, a um ciclo de produção, consumo e descarte.

Formação cultural versus indústria cultural

Ao apontarmos à ideia de formação cultural, nos encaminhamos à compreensão de que é uma das questões prementes para Adorno na perspectiva do enfrentamento de alguns dos elementos da barbárie já tratados. Contudo, cabe juntar ainda o problema da semiformação à questão da consciência coisificada do homem e ao fascismo em sua relação com o narcisismo patológico que remete ao ódio ao outro, porque me lembra quem eu sou e aquilo que odeio em mim.

Pensando na constituição do processo educativo, a hipótese encaminha à formação cultural, na amplitude que Adorno lhe atribuirá, como contraposição não só da semiformação, mas como potencialidade para o esclarecimento e a emancipação humana. Ao tratar da questão cultural, o entrelaçamento com aquilo que produz a indústria cultural se imiscui na constituição de uma semicultura. No entendimento dessa como uma solução de continuidade da semiformação, podemos entender com Adorno a importância dos coletivos e a dissolução do indivíduo no contexto de uma reação à formação cultural. Aqui, aparece, também, o fenômeno do ressentimento como mais um dos elementos para o entendimento do pensamento fascista e a figura do líder.

Na perspectiva de um todo que dissolve as singularidades, os coletivos produzem os in-group e podem manifestar-se tanto à esquerda quanto à direita no espectro político e, também, em outras esferas, como a religiosa ou a profissional. Como peças de uma máquina, os coletivizados – já demovidos de suas singularidades – são ressentidos com a intelectualidade, com a formação e acreditam ser livres, mas reproduzem o padrão do que está determinado pelo grupo e que encontra, no líder, a representação e o acolhimento da neurose que acomete os próprios liderados. De acordo com um pensamento mecanicista, não é um telos que os move, não é a compreensão da finalidade, mas a conquista de um projeto que, custe o que custar, precisa ser implantado como a verdade ou a solução para todas as mazelas humanas, ou, pelo menos, de suas mazelas humanas. Eis novamente o desacordo entre metafísica e racionalidade instrumental.

Nesse entendimento, a economicização da existência, diante dos valores do capitalismo, a técnica como fim em si mesmo e a herança de um pensamento científico pautado pela fragmentação do todo que não restabelece a busca pela compreensão desse, mas a autossuficiência das partes, nos encaminham, cada vez mais, ao prevalecimento da razão instrumental.

No texto Sobre a música popular, escrito com George Simpson, Adorno (1986) apresenta uma análise sobre os jitterbugs, grupos de fãs de bandas de jazz e swing que se organizam, uniformizam e vão aos shows de seus ídolos manifestando um coletivo. Para ele, se apresentam nesses coletivos os elementos de um comportamento fascista. Essa análise aparece também no fragmento da Dialética do esclarecimento (1985) que trata da Indústria cultural.

Adorno se depara, nos Estados Unidos, com um aparato técnico do entretenimento que não existia na Europa. Na cultura europeia a relação com a arte e a autonomia do artista ainda estão preservadas em algum sentido, mas, no caso americano, o processo de produção já está estandardizado, padronizado para a venda, diferente do processo renascentista-moderno europeu.

A arte, na indústria cultural, é esvaziada de seu caráter formativo e, portanto, deixa de ser cultura, formação cultural. Além do esvaziamento do caráter formativo da cultura, há também um processo semiformativo para o processo de interpretação.

Na música de consumo, não se tem uma relação orgânica do detalhe com o todo. Não há integração entre as partes. Na música séria, a integração das partes com o todo existe. É uma totalidade em que as partes estão integradas. Esses são elementos que demonstram as contraposições entre o mecanicismo e o finalismo no campo da arte, da cultura. No mecanicismo, tem-se as partes sem a integração do todo, ou seja, não há a presença da totalidade. Vejamos com Adorno e Simpson:

Para fins de comparação, a música séria pode ser caracterizada do seguinte modo: cada detalhe deriva do seu sentido musical da totalidade concreta da peça, que, em troca, consiste na viva relação entre os detalhes, mas nunca na mera imposição de um esquema musical. [...] Nada equivalente pode ocorrer na música popular. O sentido musical não seria afetado se qualquer detalhe fosse tirado do contexto; o ouvinte pode suprir automaticamente a “estrutura”, na medida em que ela é, por si mesma, um mero automatismo musical. O começo da parte temática pode ser substituído pelo começo de inúmeras outras. A inter-relação entre os elementos ou a relação dos elementos com o todo não seria afetada. Em Beethoven, a posição é importante só numa relação viva entre uma totalidade concreta e suas partes concretas. Na música popular, a posição é algo absoluto. Cada detalhe é substituível; serve à sua função apenas como uma engrenagem numa máquina (1986, p. 118).

No contexto dessa estandardização, “a composição escuta pelo ouvinte” afirmam Adorno e Simpson (1986, p. 121). É a perspectiva do consumo e não da possibilidade formativa. Há a ideia de uma individualidade na escolha que é falsa. É um processo de pseudoindividuação. A indústria cultural camufla esse processo apresentando a ideia de que somos nós que realizamos as escolhas do programa ou da música, por exemplo. Na realidade, não é assim. Num processo semiformativo, como nos esclarece Adorno,

o correspondente necessário da estandardização musical é a pseudoindividuação. Por pseudo-individuação entendemos o envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livre-escolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardização. A estandardização de hits musicais mantém os usuários enquadrados, por assim dizer escutando por eles. A pseudo-individuação, por sua vez, os mantém enquadrados, fazendo-os esquecer que o que eles escutam já é sempre escutado por eles, “pré-digerido” (1986, 123).

Trabalhando com a ideia de liberdade, seu principal ícone, a indústria cultural dá a ilusão de que se está fazendo uma livre-escolha (pseudoindividuação), mas, na realidade, já há uma pré-digestão nessa escolha. Nesse sentido, é o produto que escolhe o consumidor, pois é a manifestação do processo de estandardização.

Na esteira dessas questões, da indústria cultural e da propaganda, é interessante apontarmos para algumas análises de Adorno (2013) no texto Antissemitismo e propaganda fascista em que, olhando essa questão nos Estados Unidos, ele aponta para três características da abordagem desse tipo de propaganda que é predominantemente psicológica:

1. trata-se de uma propaganda personalizada, essencialmente não objetiva. Os agitadores despendem grande parte de seu tempo falando sobre si mesmos ou sobre suas audiências. [...] 2. Todos esses demagogos substituem os fins pelos meios. Falam muito sobre “este grande movimento”, sobre sua organização, sobre um amplo renascimento norte-americano que esperam realizar, mas raramente dizem alguma coisa sobre aquilo que se supõe que tal movimento conduzirá, para qual fim a organização é boa ou o que o misterioso renascimento pretende positivamente alcançar. [...] 3. Dado que toda a ênfase dessa propaganda é promover os meios, ela mesma se torna conteúdo último. Em outras palavras, ela funciona como um tipo de realização de desejo. Este é um de seus mais importantes padrões. As pessoas são convidadas a entrar, tal como se compartilhassem uma droga. Elas são recebidas com confiança, tratadas como se fossem da elite que merece conhecer os obscuros mistérios, ocultos a quem está fora

(ADORNO, 2015, p. 138-140).

Nos moldes da indústria cultural, a propaganda fascista objetiva também a venda de “seu produto”. E, aqui, entra o papel do líder que, na realidade, representa aquilo que os próprios adeptos esperam dele. Esclarece Adorno:

As condições prevalecentes em nossa sociedade tendem a transformar a neurose e até mesmo a loucura moderada em uma mercadoria, que o doente pode facilmente vender, bastando que ele descubra que muitos outros têm uma afinidade com sua própria doença. O agitador fascista é usualmente um exímio vendedor de seus próprios defeitos psicológicos. Isso somente é possível devido a uma similaridade estrutural geral entre seguidores e líder, e o objetivo da propaganda é estabelecer um acordo entre eles, em vez de dirigir à audiência quaisquer ideias ou emoções que não fossem dos próprios seguidores desde o começo. Assim, o verdadeiro problema da propaganda fascista pode ser formulado: em que consiste esta relação entre líder e seguidores na situação de propaganda? (2015, p. 144).

Como podemos observar, o líder fascista, como um ator, se utiliza desses e de outros recursos para a manipulação dos seus seguidores. Mas, como um ator que representa, provavelmente sabe que, no fundo, sua representação é falsa. Nesse emaranhado da psicologia dos indivíduos, a figura do líder mobiliza um ritual de manifestações e encenações que agradam aos liderados e lhe permite atuar “de forma vicária por seus ouvintes desarticulados ao fazer e dizer o que os últimos gostariam, mas não conseguem ou não se atrevem a tal”. (ADORNO, 2015, p. 145).

Apesar de exigir um aprofundamento maior essa questão do líder fascista, nos restringiremos ao entendimento de que ele representa para os coletivos um amálgama do que há de pior no contexto político e, geralmente, é uma figura icônica que não seria levada a sério não fosse a identificação desses coletivos com as mesmas ideias de barbárie. Nesse sentido, transmutada à política, está a interligação com o contexto da indústria cultural, da propaganda e do processo de semiformação e semicultura que se estabelece. Por isso, transcendendo os limites territoriais e de datação, os estudos de Adorno permitem afirmar que qualquer semelhança com a atual realidade não será, com certeza, mera coincidência.

Considerações finais

Ao abordarmos a questão da metafísica, considerando uma tradição acadêmica, cultural e educacional introjetada desde o advento da ciência moderna pelos elementos da cientificidade, pressentíamos um risco para tal proposição, não no sentido de uma impropriedade, mas na percepção de que vivemos um momento estranho, em que os paradoxos parecem se apresentar como uma grande confusão com relação ao entendimento daquilo que se pensa sobre a ciência e a religião, por exemplo. Se, por um lado, parece ter se tornado lugar comum a tese de que é real e verdadeiro o que apresenta prova irrefutável, materializável, mensurável e aplicável, considerando o senso comum estabelecido sobre o que seja científico, é verdade também que, atualmente, em tempos de terraplanismo. globalismo e marxismo cultural, a linha demonstra-se muito tênue, permitindo que se descambe no extremo oposto, ou, de forma pior, numa relação deturpada e promíscua entre a compreensão do metafísico, do religioso e do científico. Com certeza, temos, nesses arautos dos novos tempos um desserviço tanto para o pensamento científico quanto para o pensamento metafísico.

Mas, em paralelo a essa discussão, o que nos interessava aqui é que, no contexto inicial, retomando a Modernidade, goza a metafísica de uma pecha de ultrapassada e subjetivista e que, ao fim e ao cabo, diante do senso comum, não resiste ao confronto com aquilo que é científico. Apresentamos em itálico o termo científico para denotar nosso entendimento de que há uma interpretação cientificista (e não científica) do chamado real que se estabelece a partir do confronto com a perspectiva metafísica. Tal concepção surge ancorada na compreensão mecanicista da ciência dos modernos e na esteira daquilo que os filósofos da Escola de Frankfurt denominaram como “racionalidade instrumental”. Nessa via, consideramos, neste ensaio, a necessidade de transitar pela discussão de alguns dos elementos que constituem tal racionalidade instrumental e, na sua contraposição, o pensamento metafísico.

Tal proposição se deu no intuito de compreendermos melhor os comprometimentos que parecem estar subjacentes nas bases de um processo educativo contemporâneo pautado muito mais pelo pragmatismo econômico-cientificista do que na percepção da Educação como um processo humanizador e emancipador na constituição da nossa condição humana. Parece-nos que isso permite ou fortalece também os desdobramentos que citávamos acima sobre os contrassensos que vivemos atualmente, num mundo cada vez mais avançado tecnologicamente, interconectado e pretensamente socializado virtualmente e, ao mesmo tempo, vivenciando retrocessos no campo das conquistas políticas e sociais. Sinais, talvez, de uma barbárie mais elaborada que paira no horizonte.

Por isso, num exercício a mais para a construção do nosso pensamento, compreendendo a Educação como um processo emancipatório, apresentou-se o presente ensaio com a pretensão de acrescentar mais alguns elementos à discussão sobre a qual nos debruçamos nestes momentos atuais. Nesse passo, torna-se premente retomar sempre a análise dos estudos da personalidade autoritária e do fascismo.

Por isso, aprofundando ainda a análise dos jitterbugs, Adorno explica que eles são como os insetos que ficam ao redor da luz, apresentando-se como um coletivo de pessoas em torno do líder. Nesse sentido, o coletivo de fãs já é um “coletivo fascista”. O fenômeno do rock, posteriormente, levaria à exacerbação desse “coletivo furioso” que, no seu entendimento seria um fascismo sublimado, porque não há, inicialmente, um inimigo a combater. Mas há um fanatismo. Nesse contexto, todo fanatismo – mesmo o religioso e o político – transforma a defesa das ideias em uma profissão de fé, carregada de fúria geralmente, o que implica a agressividade manifesta na divulgação dessas ideias. A análise de Adorno é de que o elemento de agressividade representa, no fundo, a farsa da crença que a própria pessoa não tem, pois quem tem crença não precisa dessa fúria. O fanático precisa do rancor para defender aquilo em que ele mesmo não crê.

Tentar esclarecê-lo acerca dessa condição, abrir-lhe os olhos é uma possibilidade de combate ao fascismo que se manifesta. O grande problema é que, na perspectiva do fascista, o primeiro a ser combatido, em sua luta quixotesca, é o crítico, aquele que pode ajudá-lo a abrir os olhos, pois esse pertence à condição de out-group, ou seja, ao grupo dos inimigos. Aqui, portanto, surge a questão da esfera do ressentimento:

Provavelmente em um número incontável de pessoas exista hoje, sobretudo durante a adolescência e possivelmente até antes, algo como uma aversão à educação. Elas querem se desvencilhar da consciência e do peso de experiências primárias, porque isto só dificulta sua orientação. Na adolescência desenvolve-se, por exemplo, o tipo que afirma [...]: “A época da música séria já passou; a música de nosso tempo é o jazz ou o beat”. Isto não é uma experiência primária, mas sim, se posso usar a expressão nietzschiana, um fenômeno de ressentimento. Essas pessoas odeiam o que é diferenciado, o que não é moldado, porque são excluídas do mesmo e porque, se o aceitassem, dificultaria sua “orientação existencial”, como diria Karl Jaspers

(ADORNO, 1995, p. 149-150).

O ressentido é magoado, ele não se conforma e tem aversão à formação nesse sentido. Há uma hostilidade ante a ideia de formação e uma ruptura com a cultura, geralmente criando uma relação de supremacia com a formação técnica em detrimento da humanitária. O espírito cativo se ressente com o liberto, com aquele que tem um empoderamento. O ressentido é pequeno e quer se afirmar diante das pessoas que são formadas, que mantêm uma relação com a cultura, que possuem uma formação cultural. Isso incomoda o ressentido e se encontram, aqui, elementos para o ódio à intelectualidade. Dada essa condição, como lidar com o ressentimento?

Para Adorno o antídoto para o fascismo é a cultura no sentido do aprimoramento ético, estético e político, condição de esclarecimento e emancipação. Emancipação que implica o aprimoramento do espírito e do intelecto, de acordo com a definição kantiana de autonomia, ou seja, a capacidade de fazer uso do próprio entendimento e não apenas na existência de uma formação técnica, para além do mecanicismo a que fomos submetidos na cultura ocidental.

É importante para Adorno também a questão da autoridade nesse contexto, pois para ele, nas bases da personalidade autoritária, está a análise de que o autoritarismo não é fruto de um pai autoritário, mas da ausência de autoridade no processo formativo da criança. A autonomia não se constrói a partir da rebeldia pura e simples. Ao contrário do que pode parecer, os chamados “comportados” ou obedientes geralmente tornam-se autônomos. Em contrapartida, os refratários que não tiveram essa construção da autoridade emergem geralmente na perspectiva fascista. A rebeldia pela rebeldia não é autonomia. Como não há a construção do processo de identidade, a ruptura com a autoridade, surge uma identificação com o grupo (in-group), com a identidade do grupo e, nesse cenário, prevalece uma atração pelos coletivos. Tal condição favorece o trânsito dessas pessoas refratárias tanto pela esquerda quanto pela direita, no viés político e, geralmente, manifestam um comportamento fascista latente e relativo ao patrulhamento ideológico. É nesse contexto que se fundava a crítica de Adorno ao movimento estudantil na década de 60 do século XX.

Estabelecer, portanto, uma formação cultural não é enveredar pela perspectiva de um aparato técnico-formativo ou da expectativa pela rebeldia dos coletivos. Talvez, sem a pretensão de ter respostas, pensar a Educação como elemento de ruptura e desnudamento das contradições que são ocultadas numa sociedade regida pelo mecanicismo moderno e regulada por uma racionalidade instrumental que coisifica as consciências e manifesta, em seu uso cotidiano, a administração do existente e não suas possibilidades emancipatórias. Pensar uma formação cultural que não compactue com a violência e que se paute pela empatia, mesmo na manifestação da contradição que se apresente e que subverta a organizada produção da indústria cultural e seus produtos de semicultura. Num processo formativo, que supere a semiformação, pensar a Educação a partir dos elementos que aparecem no final do diálogo entre Adorno e Becker no texto Educação: pra quê?

Becker – [...] Trata-se de resistir a essas tensões, que são insolúveis tal como o é a relação entre teoria e prática, que se encontra no ponto central de nossa educação moderna. Adorno – Mas neste caso a educação também precisa trabalhar na direção dessa ruptura, tornando consciente a própria ruptura em vez de procurar dissimulá-la e assumir algum ideal de totalidade ou tolice semelhante.1

Nesse panorama, é um alerta para que não se pense a Educação numa perspectiva ideológica ou de homogeneização na sua possibilidade formativa. Não há fórmulas. Não há padrão determinante. Não que não implique finalidade, pensando na contraposição à perspectiva mecanicista tratada, mas deve prevalecer, sempre, a potencialidade do desnudamento das contradições, da ruptura com o determinado. Há sempre o risco de se repetir o projeto original do esclarecimento que, conforme nos demonstraram Adorno e Horkheimer,2 descambou, em sua pretensão não dialética, na constituição de uma racionalidade instrumental. Qualquer possibilidade de transformação, portanto, não pode estar restrita apenas ao desenvolvimento intelectual, apesar de exigi-lo, ou à formação de uma “cultura geral”, que poderia reafirmar uma semiformação e seu desdobramento como semicultura; tampouco significaria o fim das contradições, o que implicaria um perigoso conformismo social.

O grande problema da formação, numa sociedade globalizada em que se valoriza a informação como sua grande conquista, é exatamente o paradoxo que se estabeleceu com seu advento. Se, por um lado, temos acesso quase ilimitado à informação, por outro, apresentamos uma incapacidade cada vez maior de administrar tal volume de informações, considerando que muitas delas poderiam ser descartáveis. Manipulados em nossa subjetividade e submetidos à administração da existência pelo fascínio com os algoritmos, parece que nos encontramos muito aquém da formação necessária para uma verdadeira emancipação. Vivenciando um processo de inconsciência ou de vontade comprometida, encaixamo-nos no padrão e lutamos por uma ideia de igualdade que, proposta por uma sociedade valorada em bases economicistas, apresenta-se equivocada pelos próprios fundamentos que a constituem. Dessa maneira, ao contrário da emancipação, produzimos a alienação que nos presenteia com a dádiva da inconsciência, que simplifica a realidade e mitifica nossa interpretação de mundo novamente, impedindo a conscientização das contradições que permeiam nossa existência.

Para Adorno, portanto, a contradição está sempre presente, inclusive na possibilidade de alcançarmos (ou não) a emancipação. Seja na área da Educação, seja em qualquer outro campo em que a contradição se apresente, a resistência estará sempre presente. Por isso, ao desnudarmos as contradições, a incerteza e a insegurança se expõem. Somos desalojados, como existentes, daquilo que nos é confortável e, evidentemente, parece-nos desinteressante alterar ou pensar sobre o que está dado como determinado. Por isso também, talvez, a conformidade seja um comprometimento voluntário. É sempre grande o risco de, mesmo na intenção de transformação, se gerar a repressão, ou seja, se o que prevalecer for a uniformização do pensamento, não teremos um processo de emancipação, mas a adequação ao que está vigente, mesmo que pareça um novo vigente pois, efetivamente, não permitirá também a contradição.

Portanto, não se chega a um final, mas à compreensão por meio de um processo dialético que implica um constante devir, ou seja, no interminável vir-a-ser que constitui a história e a existência humanas, sempre como potencialidade e não inexorabilidade. Não é o contexto mecanicista que prevalece, mas a finalidade da existência que se reapresenta.

Adorno não apresenta soluções, respostas prontas ou fórmulas que possam ser apropriadas como aplicáveis para resolver problemas sociais e educacionais. Filosoficamente, faz reflexões e apresenta análises pertinentes para compreendermos melhor o processo histórico que compõe nossa sociedade atual. Nesse giro, retomando a questão da Educação na contemporaneidade, pensamos no desenvolvimento de uma práxis emancipadora que, a nosso ver, Adorno não define, mas nos permite vislumbrar como horizonte.

Referências

ADORNO, Th. W. Educação e emancipação. Trad. de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. [ Links ]

ADORNO, Th. W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Trad. de Verlaine Freitas. São Paulo: Edunesp, 2015. [ Links ]

ADORNO, Th. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. [ Links ]

ADORNO, Th. W.; SIMPSON, G. Sobre a música popular. In: COHN, G. (org.). Theodor W. Adorno: sociologia. São Paulo: Ática, 1986. [ Links ]

HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. Trad. de Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Edunesp, 2015. [ Links ]

MARINOFF, L. Mais Platão menos Prozac. Rio de Janeiro: Record, 2001. [ Links ]

Recebido: 15 de Agosto de 2019; Aceito: 28 de Outubro de 2019

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