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Conjectura: Filosofia e Educação

Print version ISSN 0103-1457On-line version ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.dossie.6 

DOSSIÊ: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA CRÍTICA: PREOCUPAÇÕES E TENDÊNCIAS ATUAIS

Educação para a universalidade e para a não violência segundo Eric Weil

Education for universality and nonviolence according to Eric Weil

Paulo César Nodari* 
http://orcid.org/0000-0003-4123-8683

Marcelo Larger Carneiro** 
http://orcid.org/0000-0002-7462-2051

*Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) com Sanduíche de dois anos na Universidade de Tübingen – Alemanha. Professor no PPGFIL e no PPGDIR na Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: pcnodari@ucs.br

**Mestre em Filosofia (UCS). Doutorando em Filosofia (UCS). E-mail: marcelolarger@gmail.com.


Resumo

O presente artigo tem o objetivo de analisar como Eric Weil entende a Educação com vistas à compreensão do ser humano no mundo. Pretende-se demonstrar que a Educação Moral, defendida por Eric Weil, é um caminho privilegiado, sine qua non, que auxilia o ser humano no enfrentamento da violência. Evidencia que o educador toma lugar de destaque nessa discussão, pois lhe cabe a responsabilidade de indicar os meios e os caminhos para a universalização, para que a não violência possa subsidiar uma cultura de paz entre os seres humanos. Para tanto, percorre o caminho metodológico fazendo uma abordagem na ampla teoria filosófica de Eric Weil, em especial, nas obras: Lógica da filosofia e Filosofia política, a fim de analisar os pontos mais relevantes para ancorar a concepção de imprescindibilidade da Educação e, também, por sua vez, do educador. Esta pesquisa será eminentemente lastreada por levantamentos bibliográficos nas obras do próprio Eric Weil, bem como nos comentários de alguns de seus comentadores.

Palavras-chave Educação; Universalidade; Razão; Não violência; Eric Weil

Abstract

This article aims to analyze how Eric Weil understands Education with a view to understanding human beings in the world. It is intended to demonstrate that the Moral Education, defended by Eric Weil, is a privileged way, sine qua non, that helps the human being in the confrontation of violence. It will be evidenced that the educator takes a prominent place in this discussion, since it is his responsability to indicate the means and the ways for universalization, so that nonviolence can support a culture of Peace among human beings. To this end, the methodological path will be taken by taking na approach in Eric Weil’s broad philosophical theory, especially in the Works: Logig of philosophy and Political philosophy, in order to analyze the most relevant points to anchor the conception of the indispensability of education, and also the educator. This research will be eminently supported by bibliographic surveys in Eric Weil’s own Works, as weill as in the comments of some of his commentators.

Keywords Education; Universality; Reason; Nonviolence; Eric Weil

1 Introdução

Eric Weil (1904-1977) foi um pensador que se dedicou inteiramente às questões da violência. Para ele o homem é constituído de violência, pois está sob a influência de seus instintos mais primitivos, mas, evidentemente, também se constitui como razão. A dicotomia entre razão e violência transita em todas as suas obras, traçando a preocupação central de toda sua reflexão filosófica. Ele acredita que o homem é constituído, essencialmente, de razão e de violência, pois suas necessidades e desejos do ser empírico coexistem com a razoabilidade do ser consciente e moral.

É nessa confluência de ideias que Weil percebeu que a Educação pode transportar o homem a um patamar acima da compreensão, na medida em que possibilita a percepção de que o homem precisa ser compreendido na perspectiva da universalização caso se queira enfrentar a violência e efetivar uma possibilidade de uma cultura de paz entre os homens. Essa Educação ele a define como sendo uma Educação Moral, com vistas à universalidade e à não violência. Ele estabelece, também, que o educador tem papel preponderante nessa formação do indivíduo, pois é ele quem deve mostrar o caminho que será seguido.

Na tentativa de fundamentação do caminho a ser percorrido, neste texto, como primeiro aspecto, mostra-se que o homem se percebe como razão e violência e que, através de sua liberdade, escolhe entre essas duas possibilidades. Seguindo, verifica-se que esse homem, que agora sabe de sua constituição, qual seja, razão e violência, busca negar o descontentamento com vistas ao contentamento. Nessa busca, ele visa à universalidade, que somente é atingida por meio do tornar-se “ser moral”. E, por fim, apresenta-se a tese de que a Educação, segundo a concepção de Weil, possibilita um efetivo enfrentamento da violência, na medida em que visa a conduzir o homem a compreender-se como universalidade e ser para a não violência. Essa Educação, exercida por todos os educadores sociais, deve, contudo, estar no centro da discussão, pois tão somente com sua centralidade é que se poderá tentar estabelecer uma cultura de paz entre os homens.

2 O homem como razão e violência

Na primeira parte da introdução à obra Lógica da filosofia, muito provavelmente, sua principal obra, Weil ocupa-se com o sentido da definição de homem, exatamente por existirem, naturalmente, inúmeras definições apresentadas, pois, como ele mesmo comenta, “é provável que existam mais definições do homem do que de qualquer outro animal.” (WEIL, 2012, p. 11: doravante referida como Lf ). Ele parte, essencialmente, da definição de homem como “animal dotado de razão e de linguagem, mais exatamente de linguagem razoável” (Lf, 11), contrapondo-se, diametralmente com as definições estabelecidas pela ciência, as quais por utilizarem métodos de avaliação que possibilitam certa verificação de seus resultados, poderiam “ser constatadas com facilidade e quase não dão margem a confusões.” (Lf, 12). Contudo, mesmo com métodos de avaliação mais confiáveis, as quais possibilitariam a refutação ou comprovação de suas teses, os homens de ciência1 deixam aos filósofos a tarefa de definição de homem.

Com efeito, “o homem no sentido da ciência deve merecer o título de homem no sentido humano” (Lf, 14), na medida em que a definição de homem não pode ser tão simplesmente compreendida como é na ciência. Essa leva em conta todas as semelhanças de um conjunto de seres e os considera humanos por exatamente serem semelhantes. “Eles sabem com uma certeza absoluta que eles próprios são homens e que o que se assemelha a eles é indubitavelmente humano, e sabem-no sem reflexão, de imediato” (Lf, 14). A ciência descreve apenas a matéria, devendo-se impor uma forma, possibilitando que a definição humana não se torne simplesmente um sinal identificador de reconhecimento, mas a possibilidade de realização do próprio homem. Na perspectiva da ciência, o homem é considerado em seu aspecto biológico, e suas explicações buscam aquelas que constituem seu próprio corpo. Todavia, o homem é mais do que sua constituição biológica; ele é sua cultura, sua história de vida e seus próprios sentimentos. Ele se projeta no mundo como sujeito de sua história de derrotas e realizações. Portanto, “o homem natural é um animal; o homem tal como ele quer ser, tal como ele quer que o outro seja para que ele próprio o reconheça como seu igual, deve ser razoável” (Lf, 14, grifo do autor). Mais ainda, “os homens não costumam dispor da razão e da linguagem razoável, mas que devem delas dispor para serem homens plenamente” (Lf, 14, grifo do autor).

Weil percebeu que o homem não é somente razão e linguagem razoável, ele é mais do que isso, é também necessidade e desejo. “Ele é aquilo que ele não é, e não é aquilo que ele é: ele é natureza dada e descritível, ao mesmo tempo em que está em busca de seu ser verdadeiro, que nunca é dado nem pode ser descrito” (Lf, 15). Em outras palavras, o homem quer ser aquilo que ele não é, isto é, ele quer ser razão e linguagem, ao mesmo tempo que ele não quer ser aquilo que é, ele não quer ser natureza dada, um objeto dado. Em suma, para Weil “o homem ignora o que quer. Mas sabe muito bem o que não quer” (Lf, 18). Dessa forma, Weil descortina a natureza do homem como sendo sua própria negatividade, pois é ela que o impulsiona a agir sobre o que ele encontra ao seu redor, para satisfazer suas necessidades, e o impulsiona a agir sobre sua ação. Afirma Weil:

O homem é um ser, um animal que quer algo de si próprio e para si próprio; já se pode adivinhar do que se trata, já se pode reconhecer aquele traço, que, em Hegel, se chama a negatividade do homem. O homem é um ser como os outros, um ser vivo; mas mesmo sendo como os outros, ele não é apenas como os outros. Tem necessidades, mas também desejos, isto é, necessidades que ele próprio formou que não estão sem sua natureza, mas que ele deu a si mesmo

(Lf, 17, grifos do autor).

Partindo dessa percepção, infere-se que o homem é um ser descontente. Ele está descontente com sua própria natureza e emprega sua linguagem para dizer não ao que é dado. Com efeito, ele somente sabe falar sobre o que não é. Portanto, o homem é o ser que, por meio da linguagem da negação do dado, busca libertar-se do descontentamento. Assim, a linguagem expressa o que não o satisfaz e formula o que ele deseja; “seu conteúdo não é formado por aquilo que ele é, mas por aquilo que não é” (Lf, 19). Weil, mais uma vez, lembra que

jamais contente com o que encontra e com o que possui, ele não apenas muda a natureza: sua negatividade muda também as maneiras de mudar. Ora, o instrumento especificamente humano dessa atividade negadora e transformadora é a linguagem ou, caso se prefira um termo mais usual e menos claro, o pensamento, a razão: aquilo que nega o que é imediatamente.

(Lf, 19).

Assim, ser razoável significa ser capaz de realizar sua própria negatividade, não apenas dizer não àquilo que é, mas produzir daquilo que é o que ainda não era: um novo objeto, um novo procedimento, ambos liberados do dado da natureza (Lf, 19). Ora, o homem é o ser que não se contenta com o que é. Ele não se contenta com o que é dado pela natureza, esse dado que é seu. Na medida em que a natureza do homem é dada, ela será imediatamente transformada pela atividade do homem através de sua linguagem negadora, a fim de modificá-la. Desse modo, o homem, que se compreende pela expressão agente de seu descontentamento, erguer-se-á contra esse mesmo descontentamento e “já não buscará se desvencilhar do que o descontenta, mas criará o contentamento pela vitória sobre esse mesmo descontentamento e essa mesma negatividade” (Lf, 20).

Com efeito, o homem é um ser eternamente descontente. Ele não se contenta mais com o que é e busca, incessantemente, modificá-lo e transformá-lo. Contudo, o homem razoável não busca aquilo que não se obtém, não se contenta com essa busca indefinida e interminável de satisfações, uma vez que as últimas satisfações substituem, imediatamente, as primeiras e logo serão substituídas por outras igualmente insatisfatórias. O homem é descontente, mas não busca simplesmente o contentamento, ele busca negar o descontentamento. Ser razoável, em última análise, é “criar o contentamento pela vitória sobre o descontentamento” (PERINE, 1987, p. 127). Em outras palavras, acentua Weil:

“Não quero mais disso”, e esse isso é então descartado; ele não é mais, e o que ainda não era foi realizado; mas o que não era ainda se torna o que não deve mais ser, e um outro não ainda, um outro desejável e desejado toma seu lugar: jamais o homem estará contente

(Lf, 21, grifos do autor).

O contentamento, segundo Weil, não pode ser dado ao homem, ele é quem tem que dar a si mesmo, na medida em que nega sua própria negatividade. Essa negação voltada à própria negatividade proporciona ao homem ser razoavelmente razoável (Lf, 21). Ou seja, o homem não busca contentar-se, mas, ao contrário, busca negar o descontentamento, negar o que lhe é dado pela natureza. Assim, ele refere:

Ao dominar o descontentamento, ao se dominar em seu ser natural, o homem será livre e contente, porque não deseja mais nada, mas . diante daquilo que ., sem esperar nada, sem recear nada, mas sendo olhar, olho aberto para o mundo verdadeiro, bom e belo, que lhe dá a existência e as possibilidades, a realidade do olhar e da presença. A linguagem é boa, a linguagem é verdadeiramente humana, porque permite ao homem chegar ao silêncio do olhar, ao desprendimento

(Lf, 21, grifos do autor).

Ao se perceber que o homem encontra o contentamento, não porque o buscou, mas porque negou seu próprio descontentamento, negou sua própria negatividade dada pela natureza, compreende-se, pois, que a razão toma um aspecto essencial para o encontro da liberdade daquilo que incomoda o homem: da sua natureza imediata. A razão, dessa forma, “deixará de ser instrumento, ela será o próprio homem” (Lf, 21), na medida em que o libertará de sua própria natureza. Essa positividade encontrada pela negação da negatividade é que torna o homem razoável.

Mas o homem não é somente razão. Ele também tem sua face de animalidade, demonstrada em suas paixões e desejos. Ele jamais será por inteiro razão, e seu trabalho é, verdadeiramente, a transformação dessa animalidade, a fim de que se torne razoável. “É o homem que o homem deve transformar, pela razão e com vistas à razão” (Lf, 23), com vistas ao contentamento. Com efeito, o homem é um animal razoável, animal que não é somente razão pura, mas que, também, tem desejos e necessidades. Ele se utiliza de sua negatividade, para negar o que lhe é apresentado, negar o que lhe é dado pela natureza, assim, a razão lhe é apresentada como uma opção que pode ser seguida. Vale dizer, a razão apresentada dessa forma, como uma possibilidade que pode ser seguida ou não, deixa evidente que, necessariamente, há outra possibilidade, “já que o conceito de possibilidade única é um contrassenso” (Lf, 30). O homem pode escolher a recusa da razão, a recusa do discurso razoável; em outras palavras, o homem pode escolher a violência.

O homem pode escolher a violência que não aceita o discurso do outro e que busca seu contentamento na luta por seu próprio discurso, na manutenção, às vezes à força, de um discurso único que suprime todos os outros discursos, sem ao menos dar a oportunidade de estabelecer seu contraponto. Essa violência que apreende e compreende seu discurso numa linguagem que não se expõe às contradições. A violência que exerce um poder sobre esse homem que não se pode imaginar livre do dado da natureza, de seus instintos, necessidades e desejos. Assim, utilizando-se da fórmula kantiana, Weil entende o homem como um ser finito e razoável, contendo, ao mesmo tempo, traços de sua animalidade como suas pulsões e necessidades, paixões e instintos, ao passo que também é razoável e é capaz de pensar a totalidade estruturada do mundo (WEIL, 2012, p. 107-108: doravante referida como Pk). Com efeito, como ser razoável, o homem procura universalizar-se deixando sua individualidade em segundo plano; já como ser finito, considera sua natureza animal, satisfazendo seus instintos (ASSIS, 2011, p. 34).

Em se reconhecendo como razão e violência, sabendo ele que tem essas duas opções que se abrem à sua frente, esses dois caminhos que podem ser trilhados, portanto, o homem não pode prescindir de fazer uma escolha. Essas opções se apresentam como as possibilidades mais diametralmente distantes entre si, arraigadas no seu íntimo. Com efeito, a violência, assim como a razão, constitui a essência do indivíduo, na medida em que “o homem não é essencialmente razão, mas somente razoável, ele não é somente razão, mas também e, irredutivelmente, animalidade, paixão. Em duas palavras: o homem é finito e razoável, ou se se prefere, numa palavra: ele é livre” (PERINE, 1987, p. 174, grifos do autor).

Na Lf, precisamente na categoria da consciência, Weil afirma que o homem é um ser imperfeito, ele está sempre condicionado aos seus desejos e necessidades e, apesar de ter conhecimento disso, não consegue estabelecer-se plenamente na razão. A busca dessa perfeição, nunca atingida plenamente, é o objetivo infinitamente distante que o homem real busca sem visualizar seu horizonte. Com efeito, o homem imperfeito busca, incessantemente, a perfeição e é essa busca que o faz progredir, mas nunca conseguirá atingi-la, porque, se o fizesse, tornar-se-ia um ser acima de qualquer determinação e, por isso, incognoscível para si próprio (Lf, 346). Por isso, o homem precisa sempre buscar aperfeiçoar-se sem, contudo, atingir a perfeição. Para Weil o homem moral tende a essa perfeição, mas não deixa de se deparar com suas condições interiores, pois, se houvesse perfeição, não restaria mais nada a fazer (Lf, 346).

Weil defende, assim, que a razão se apresenta, contudo, apenas como uma das possibilidades que podem ser seguidas pelo homem em sua trajetória existencial. A razão, por certo, apresenta-se como a possibilidade mais radicalmente distante de sua outra possibilidade: a violência. Apresentadas ao homem como formas de possibilidade de escolha, tanto a razão quanto a violência podem ser seguidas, pois ele é capaz tanto de uma quanto de outra, contudo terá que optar entre uma delas.

A razão é uma possibilidade do homem: possibilidade, isso designa que o homem pode, e o homem pode certamente ser razoável, ao menos querer ser razoável. Mas isso é apenas uma possibilidade, não uma necessidade, e é a possibilidade de um ser que possui ao menos outra possibilidade. Sabemos que essa outra possibilidade é a violência

(Lf, 87, grifo do autor).

É exatamente nesse ponto que a filosofia e também o homem que toma para si o discurso razoável, representam um papel importante na reflexão sobre as possibilidades apresentadas. É ela que, juntamente com o filósofo, o qual, weilianamente dizendo, é o homem que quer compreenderse e se estabelecer no discurso, “quem expressa e coloca o discurso coerente; quem fala a respeito daquilo que os homens pensam, sem saber que pensam, estabelece a discussão e pretende compreender as relações que se apresentam entre razão e violência” (Lf, 20). Com efeito, o filósofo quer que a violência desapareça do mundo. Ele reconhece a necessidade e admite o desejo dos homens, por isso consegue entender que o homem é racional ao mesmo tempo que é animal (Lf, 20), percebendo, portanto, que a filosofia já não é a única possibilidade para o homem, tão logo se tenha de admitir que ela brote de um solo que pode produzir outras plantas e outros frutos, e que os produz. O homem pode se tornar filósofo, isso é mais do que garantido, já que se pode, tranquilamente, concluir da existência a possibilidade; mas o mesmo princípio prova igualmente que o homem pode não se tornar filósofo. E como o filósofo ensinou a falar razoavelmente, o homem da vida comum, aquele que não quer se tornar filósofo, é perfeitamente capaz de cuidar razoavelmente de seus assuntos, que não são os da filosofia (Lf, 28).

O discurso, então, é fundamental, sobretudo à filosofia e também ao filósofo. No discurso, o homem se compreende como um ser razoável, falando e agindo razoavelmente, compreendendo-se em seu próprio discurso, mas, mesmo com essa cristalina percepção, Weil ainda se questiona se esse mesmo discurso é fundamental para todos os homens. Será que existe algo fora desse discurso? Por certo, para Weil, para o homem que escolheu falar razoavelmente, o discurso realmente é tudo, pois, mesmo quando ele contradiz o discurso, ele o faz por meio dele (Lf, 86). Mas para o homem que escolheu rejeitar o discurso, o que restaria? Será que ele reconhece que tem outra possibilidade? O homem, que escolheu rejeitar o discurso, se reconhece como um ser violento? Essas questões devem ser enfrentadas caso se queira avançar na compreensão das relações que permeiam a razão e a violência.

3 O homem em busca de universalidade

Partindo-se da concepção de que a oposição aparentemente irredutível entre razão e violência esteja compreendida pelo homem, poder-se-ia afirmar que existiria violência para o indivíduo que ainda não tivesse chegado ao ponto em que a liberdade razoável tenha se realizado, em que o homem se saberia universal e definitivamente satisfeito, ou seja, ao ponto em que é razoavelmente contente (Lf, 81). Mas, agora, por sua vez, a violência é conhecida, isto é, é reconhecida como essência do homem, irredutível e radicalmente incrustada em seu ser, permitindo ao homem falar sobre a violência com conhecimento de causa. Para Weil a violência só tem sentido para a filosofia, que é a recusa da violência (Lf, 90). Por isso, o homem que escolheu a violência acabou por escolhê-la livremente e com conhecimento de causa, até porque o filósofo, como homem do discurso, ensinou-lhe a falar razoavelmente e, uma vez possuindo o discurso, pode rejeitar-se a ele (Lf, 87). Assim, Weil comenta:

Em suma, o sentido, qualquer sentido, tem sua origem no que não é sentido – e essa origem só se mostra ao sentido desenvolvido, ao discurso coerente. O discurso absolutamente coerente tem razão, portanto, na media em que a recusa absoluta do discurso só é possível com conhecimento de causa. Qualquer recusa é apenas particular se não se apóia no discurso absolutamente coerente, e não passa então de recusa de uma condição determinada que o discurso absoluto pode mostrar como particular, se não aos olhos do violento em questão, ao menos em si, isto é, no e para o discurso

(Lf, 93, grifos do autor).

O homem que escolhe a violência somente a escolhe quando reconhece que tem essa possibilidade. Ele não pode admitir a violência se não tiver, pelo menos, a percepção de que existe, ao menos, outra possibilidade, a saber, a razão. A razão e a violência estão tão intimamente ligadas uma à outra, apesar de se apresentarem como possibilidades, radicalmente distantes da escolha do ser humano, que a violência só é violência aos olhos da razão, assim como a antítese só é pensada a partir de uma tese. Uma não se compreende senão pela outra, na medida em que somente podemos entender o que é violência a partir da razão ou vice-versa. Com efeito, o homem violento só se sabe violento uma vez que adentrou na seara da razão, pois, se diferente fosse, ele não saberia o que é ser violento. Weil define que enquanto é natural, o homem é violento, age cegamente impulsionado pelos seus instintos naturais, determinado pelas forças da natureza, contudo, se compreende e, por isso, não é pura violência (WEIL, 2011, p. 19: doravante referida como Fm). Sublinha, pois, Weil:

A rocha que cai e arrasa uma casa com seus habitantes, o leão que mata e devora sua presa não são violentos senão para o homem que, só ele, já tem a ideia da não violência e que, por essa razão, pode ver a violência na natureza. Só existe o insensato do ponto de vista do sentido

(Fm, 20-21).

É dessa dicotomia que Weil parte para formular seu filosofar, sua reflexão. É quando o homem se percebe como razão, dotado de discurso, mais precisamente, de discurso razoável, mas, também, como um ser que é dotado de necessidades, desejos e instintos, tem a liberdade e a capacidade de escolher entre essas possibilidades. É evidente que o homem é um ser finito, repleto de desejos e instintos, postos sempre à necessidade da sua finitude, agindo assim como os demais animais. No entanto, tão somente ele se põe a questão da compreensão de sua finitude. O que realmente difere o homem de outros animais, necessitados como ele, é que sua infelicidade é consciente. “Ele é infeliz, ele não quer sê-lo, e ele quer que a felicidade que ele busca seja verdadeira, vale dizer, universal.” (Fm, 48). Essa vontade de universalidade fundamenta o indivíduo moral. Ele quer que sua vontade seja universal, deixando a particularidade de sua finitude para trás. A tese weiliana é evidente: “A teoria moral é infinita enquanto filosofia, mas o sujeito dessa teoria [...] é essencialmente finito e compreendido como tal” (Fm, 47, grifos do autor).

Como, então, conceber uma regra universalmente válida para todos os indivíduos em sua própria individualidade, abstraindo suas determinações históricas e naturais? Essa regra não se constituiria numa própria regra da individualidade humana? O homem, considerado como um ser finito, afeto às suas necessidades e desejos, tem, contudo, que fundar uma teoria universalmente válida, a fim de poder submeter-se e, ser possível, submeter todos os indivíduos em suas individualidades às regras universais. Todavia, ele se descobre como um ser finito e, compreendido em suas finitudes, sabe que é infeliz, sabe que é insatisfeito, que não é infinito, pois, se assim o fosse, ele encontraria tudo em si mesmo, ou seja, ele não precisaria buscar ou esperar a felicidade. Ele gozaria da mesma pelo simples fato de não ter necessidade de nada, de não encontrar nenhum exterior do qual dependaria (Fm, 48). Nesse sentido, ele vê a si mesmo como pura vontade de universalidade, na medida em que essa vontade de universalidade, essa universabilidade do homem, como Weil a define, contudo, sempre finito e particular, é que constitui a natureza do homem nas sendas de seu pensamento moral (Fm, 49).

O homem é, evidentemente, vontade de universalização, pois está sempre em busca de um aperfeiçoamento, fazendo com que as determinações e necessidades do indivíduo finito sejam apenas o ponto de partida para a reflexão em busca dessa universabilidade. A busca que jamais cessa dá-se pelo fato de que o homem é um projeto inacabado, sempre em busca de aperfeiçoamento, e, por conseguinte, jamais concluído. Todavia, esse ser finito e necessitado que é o homem tem a possibilidade de buscar essa conclusão na medida em que se vê como vontade de universalidade e como recusa de toda determinação. Com efeito, ele não deixa de ser um indivíduo finito, apenas compreende sua finitude na medida em que sabe que não tem a verdade e o bem, mas que os busca incessantemente, assim como tenta alcançar a universalidade. Ou seja: “Ele é capaz de infinito, mas a cada instante de sua existência, vale dizer, enquanto ser finito, ele não é senão capaz.” (Fm, 50). Logo, segundo Weil, essa vontade de universalidade, que é consciente de si mesma e que se compreende como a própria natureza humana, deve ser representada por dois termos diferentes: razão e liberdade. O fato de querer a universalidade faz com que o homem seja razoável; enquanto for capaz de ser universalidade, ele é liberdade.

Tradicionalmente, essa vontade de universalidade consciente de si mesma e que se interpreta como a própria “natureza” do homem é designada por dois termos diferentes: razão e liberdade. O homem, enquanto visa à universalidade, é razoável; enquanto é capaz de universalidade, é liberdade: sendo capaz de razão, mas não sendo razão, ele é também capaz de optar contra a universalidade e contra a razão

(Fm, 52).

Aparece, aqui, a relação entre razão e liberdade, na medida em que o homem que quer se universalizar, expressa essa vontade livremente e somente é livre na medida em que quer essa universalidade. Em outras palavras: “o homem só é livre na condição de querer se universalizar, vale dizer, obedecer à razão” (Fm, 53). Esse argumento weiliano leva à compreensão de que o homem concreto, o homem real, precisa, contudo, falar e viver razoavelmente se quiser se compreender como um ser livre, como um ser razoavelmente livre. Essa estreita relação entre razão e liberdade designa, portanto, a natureza do homem, pois encerra em si os aspectos de uma unidade fundamental: o homem razoável e livre. Afirma Weil:

Uma relação muito estreita entre os dois anuncia-se assim; mais ainda, dado que elas remetem uma à outra e se referem ao mesmo sujeito, as duas constituem os dois aspectos de uma unidade fundamental, que é designada como essa “natureza” do homem, que é essencialmente oposta a tudo o que se chama natural no sentido corrente do termo

(Fm, 53).

Essa vontade de universalidade permite a escolha por uma ação não violenta, na medida em que o ser finito estabelece um horizonte a ser alcançado com vistas a dominar sua violência, a submeter sua vontade, fazendo novos progressos em sua caminhada existencial. Ele vai decidindo deixar-se inspirar somente por motivos que levem ao respeito à lei da razão, vale dizer, à lei da sua própria vontade, não se submetendo à sua animalidade. Ele agora é vontade em busca de universalidade, ou melhor, vontade razoável. É nessa condição que é a sua, que ele se reconhece como infinito, não se opondo mais a nada que não seja seu próprio limite. Esse limite se encontra na sua finitude, nas suas determinações de ser finito, que servem somente para tornar concreto e consciente o infinito de sua liberdade. Assim, vale dizer que a liberdade do homem tem seu limite nas determinações do indivíduo finito. Acentua uma vez mais Weil:

Enquanto razoável, enquanto vontade razoável, o homem não tem mais nada a desejar; enquanto vontade puramente razoável, o ser humano é infinito e sabe agora que é infinito, pois a esse ser razoável não se opõe mais nada senão o limite: se, animal, ele permanece submetido às determinações interiores e exteriores, esses limites não só servem para tornar concreto e consciente o infinito da sua liberdade

(Fm, 63).

No entanto, mesmo o homem moral, o homem que busca sua universalidade, permanece indivíduo, e sua Filosofia Moral permanece no campo dos indivíduos que permanecem determinados pelas leis da natureza. Assim, para que ele busque se tornar infinito, ele precisa ser submetido às leis da razão, uma vez que essa busca é infinita, pois o finito, por assim dizer, jamais consegue infinitizar-se. É nessa tensão que o indivíduo busca a universalidade para se tornar homem, porque é um ser duplicado “em ser animal e imoral e em razão universal e universalizante” (Fm, 64).

A vontade razoável fundamenta a escolha pela universalidade, na medida em que o homem se sabe liberdade e razão. Ele sabe que deve ancorar sua escolha na perspectiva universal, pois, como Weil salienta, “é ilícito o que não pode ser universalizado, o que não seria ato admissível para todo homem enquanto razoável” (Fm, 62). Ele sabe, também, que ele só será livre, quando seus atos não forem impostos por um senhor ou por um grupo dominante que os imponha, ou ainda, por motivos e interesses, eminente e determinantemente, esdrúxulos e alheios à sua realização como ser livre e razoável. É somente assim que ele poderá ser responsabilizado moralmente, sobretudo, quando seus atos não forem proibidos pela lei universal (Fm, 67).

Aqui, surge, pois, nova consideração de relevância singular. O homem moral descobre-se como um homem político. Esse homem que descobriu que é moral, porque busca a universalidade livre e razoavelmente, e que essa vontade razoável fundamenta as opções de escolha entre razão e violência, sabe que vive no mundo dos indivíduos, que organiza a colaboração e a coexistência desses indivíduos em uma comunidade. Descortina-se, então: “A ação do homem que quer agir sobre si mesmo segundo a razão-liberdade é, ao mesmo tempo, ação no mundo e sobre o mundo” (WEIL, 1990, p. 37: doravante referida como Fp).

Ora, a moral (tida como uma ação razoável e universal do indivíduo sobre si mesmo), pode, apesar de se diferenciar, conceitualmente, e ser considerada, agora, como uma ação política. Essa que, por sua própria natureza, estrutura-se como sendo uma ação razoável e universal sobre o gênero humano, é, em última análise, possibilitada pela ação moral. Vale dizer, a ação moral, como sendo a ação de um indivíduo com ele mesmo, subsidia a ação política, na media em que a exigência moral última é a de uma realidade política.

A exigência moral última é a de uma realidade política (formada pela ação razoável e universal sobre todos os homens) tal que a vida dos indivíduos seja moral e que a moral, visando ao acordo do indivíduo razoável consigo mesmo, torne-se uma força política, isto é, um fator histórico com o qual o homem político deva contar, mesmo que ele pessoalmente não queira ser moral

(Fp, 17, grifo do autor).

É nessa perspectiva que a Educação toma acento de destaque na reflexão proposta. É ela que faz a fusão do homem moral com o homem político, na medida em que faz parte do campo da ação do indivíduo sobre si mesmo e sobre sua comunidade. É dessa Educação que Weil se propôs a tratar, a fim de evidenciar que a Educação Moral é, além de possível, imprescindível para o homem no combate à violência. Weil, na sua Fp, ensina que “a vontade moral no indivíduo é a ação do indivíduo razoável sobre si mesmo enquanto condicionado” (Fp, 33). Essa tese weiliana reflete que a ação do indivíduo que se quer moral precisa ser sobre si mesmo, sendo que sua razão deve prevalecer sobre suas paixões, ou seja, que o universal deve dominar e informar o particular, mas também que esse mesmo indivíduo é condicionado por seus desejos e suas vontades, pois o homem é um ser que, ao mesmo tempo, é razão e animalidade, ou seja, ele é, além de razoável, finito (Fp, 33-34).

É nessa perspectiva que Weil define que as instituições políticas (aqui podem ser inclusas tanto a família, como também a escola), existem para fazer com que os homens ajam segundo a moral, sem, contudo, ter o condão de se ocuparem da consciência moral dos indivíduos (Fp, 35). Ora, o homem moral que quer universalizar-se num discurso coerente e razoável, deve admitir, contudo, que sua consciência moral não está sozinha no mundo, ela deve agir sobre si ao mesmo tempo que deve agir no mundo e sobre o mundo (Fp, 36). Dessa maneira, as suas ações morais se refletem na sua comunidade, nas suas relações com os outros indivíduos que também têm suas consciências morais e que agem igualmente nesse mundo.

Nesse contexto, Weil percebe que o indivíduo moral se autocompreende como sujeito agente, e, por conseguinte, a teoria moral se vê como teoria da ação positivamente válida no mundo. Com efeito, o homem moral agirá doravante sobre si mesmo, a fim de agir bem no mundo. Weil define, então, desse modo, a passagem da reflexão moral, sobre a forma da moralidade das ações, à reflexão sobre a própria ação (Fp, 40). Ele enfatiza:

O indivíduo que quer viver moralmente e não apenas compreender e julgar segundo a moral agirá em vista da realização do objetivo da moral. Toda ação será julgada segundo suas máximas; porém tais máximas não serão mais somente conciliáveis entre si, mas deverão ser conciliáveis com a ideia da realização progressiva do reino dos fins no mundo

(Fp, 40).

Ele entende, ainda, que o homem da reflexão moral, ou melhor, o filósofo da pura razão, é, ao mesmo tempo, um homem no mundo histórico (Fp, 53) e, por isso, salienta que o homem, para bem viver neste mundo, que é o seu, sem que seja considerado um louco ou um criminoso, a sua moral, para ser praticável, exige que ele aja segundo a lei concreta da sua comunidade. Todavia, essa lei somente pode exigir isso se não contradisser o princípio da moral. Nas palavras do próprio Weil,

enquanto a legalidade, a lei positiva da comunidade, representar apenas a exigência de uma força superior à minha, eu obedecerei porque sou forçado a isso; no limite, poderei até escolher, opondome a essa lei, o papel e o destino do louco ou do criminoso diante dessa lei. A obediência só é exigível moralmente, como adesão livre e razoável, se a lei corresponde ao princípio da moral, vale dizer, não o contradiz

(Fp, 42, grifo do autor).

Evidencia-se que a reflexão moral precisará ocupar-se das relações reais dos homens entre si, expressa na forma universal do Direito Positivo, não renunciando, contudo, à sua autonomia. Weil explica que a reflexão moral apreendeu que só se compreende, como real, como crítica viva de uma moral viva,2 exercida no seu interior (Fp, 53), pois, como ele bem-destaca: “A marcha para a universalidade das máximas e para a pureza dos motivos leva à inação e ao silêncio, abandonando o mundo dos seres agentes à violência” (Fp, 56). É assim que Weil considera a reflexão moral ao mesmo tempo autônoma e insuficiente, autônoma, porque ela é livre de toda e qualquer inclinação empírica, e, insuficiente, porque ela não é capaz de conduzir à compreensão positiva do campo ao qual se aplica. Eis como Weil a define:

A moral pura é fundada no discurso razoável do indivíduo que quer ser coerente, portanto, que não quer ser indivíduo puramente individual, histórico, psicológico, numa palavra, puramente determinado. Mas ainda, a moral pura não é só fundada no discurso, ela o funda igualmente e, portanto, identifica-se com ele. Contudo, ela acaba por compreender-se como essencialmente ligada à história

(Fp, 56-57).

Essa ligação com a história faz com que a reflexão moral, ou então, que a consciência moral não exista somente em si e para si, mas para um homem histórico em um mundo determinado, pois o seu conteúdo deve ser compreendido historicamente por quem quer realizá-la (Fp, 57). É dessa forma que Weil entende que a moral deve poder influenciar no mundo estruturado e compreensível, em que pese não ser determinado, para que a ação sensata seja possível, possibilitando, assim, “a quem levar a sério a moral da universalidade, para e na sua vida de homem intramundano (não somente na e para a sua reflexão), compreende-se como ser falante num mundo histórico e agindo por sua palavra” (Fp, 57). Assim ele explica:

Ora, a ordem desse mundo estruturado e compreensível exprimese, para o mundo como para o filósofo, na dupla realidade de um sistema dado de costumes e de leis e de um sentimento de justiça, ambos históricos, ambos pretendendo a universalidade, ambos a serem pensados e realizados a partir da consciência do universal

(Fp, 57, grifos do autor).

4 A educação para a universalidade e para a não violência

A Educação, nesse contexto, assume um papel preponderante na formação do homem com vistas à universalidade, vale dizer, “a dar ao homem a oportunidade de levar uma vida que o satisfaça (como ser racional, isto é, na condição de que cada um procure sua própria satisfação sem impedir o seu vizinho de fazer outro tanto)” (WEIL, 2000, p. 64), pois a tarefa essencial do homem moral consiste em educar os homens, para que se submetam espontaneamente à lei universal (Fp, 58). É dessa Educação que Weil se ocupa, mais precisamente, da Educação Moral.

Nessa perspectiva, Canivez (1991, p. 150) leciona que a Educação adquire uma significação política com caráter de socialização e moralização, na medida em que o educador inculca um comportamento de respeito às regras sociais, participando, assim, da disciplina dos educandos, bem como os leva a pensar e a compreender que essas regras universais são, por sua vez, regras morais. Defende, ainda, que a primeira Educação, qual seja, a Educação do ponto de vista da socialização, é importante para que se tenha respeito às regras universais e proporcione o controle da própria natureza e violência que há no homem. Mas essa disciplina, ou seja, essa Educação, do ponto de vista da socialização, deve, entretanto, estar atrelada a critérios morais, à reflexão moral da qual acima se referenciou, para que o homem, unindo esses dois aspectos, reconheça a legitimidade de toda a lei moral e política, com vistas a um comportamento racional e razoável.

Mas, para avançar nessa reflexão sobre a Educação, é imprescindível que se entenda como o próprio Weil a concebe. Crê-se que pela influência kantiana,3 Weil compreende que a Educação não está adstrita ao simples repasse de conhecimentos técnicos, não que esse aspecto seja menos importante, todavia, a Educação que Weil defende é mais ampla e mais completa, uma Educação com vistas à universalização do homem como ser agente em uma sociedade. Para tanto, ele faz uma diferenciação entre instrução e educação, sem, contudo, preterir uma à outra. Weil admite que a instrução possui um elevado valor educativo, contudo não pode fazer com que a Educação fique a seu serviço, de modo que, ao contrário, o homem seria incapaz de resolver ou até mesmo de formular o problema da boa utilização do objeto (Fp, 64). É evidente que ele acolhe a tese de que tanto a instrução quanto a Educação são imprescindíveis à formação do homem com interesse na universalidade, aquela que dá o suporte através do conhecimento técnico e, essa, em seu plano de socialização e moralização. Então,

sem ela (a instrução) não existiriam materiais de construção, nem tempo, nem vontade de construir. Mas, viver sobre um amontoado de tijolos e de vigas, rodeado de todas as espécies de utensílios e de máquinas, sem a menor ideia do que se vai fazer com esses materiais, é igualmente desagradável. A instrução diz-nos como proceder para fazermos o trabalho, mas não indica como será a obra final

(WEIL, 2000, p. 64-65, grifo do autor).

Esse é o cenário em que consiste nossa reflexão, mais precisamente, sobre a Educação Moral do homem. Weil tem educação, assim como problemas da violência e da razão, percorrendo todas as linhas de sua reflexão filosófica, como bem refere Perine (2004, p. 35) ensina: “educação, violência e razão, como sabem todos os que têm alguma familiaridade com a filosofia de Weil, atravessam toda sua obra”. Mas como se estrutura a Educação no pensamento weiliano? Será que a sociedade necessita somente de uma Educação baseada em conhecimentos técnicos sem considerar as relações humanas? Ou ainda, será que se pode pensar uma Educação a partir de conhecimentos técnicos e morais? Essas são questões que nos fazem refletir a fim de verificar se realmente a Educação pode contribuir para um enfrentamento da violência com vistas à universalidade.

Com efeito, Weil entende que os conhecimentos técnicos do especialista têm seu valor, vale dizer, a instrução do ponto de vista de repasse de conhecimentos deve ser considerada, pois “ela é o meio mais fácil, mais direto, para que o indivíduo aprenda quão pouco valem suas paixões, seus desejos, suas preferências” (Fp, 64). Ora, essa instrução se faz necessária, uma vez que os conhecimentos adquiridos através dela são indispensáveis ao homem que quer participar do trabalho social de maneira útil; contudo, não é suficiente para a formação do homem que quer se universalizar. E mais, o homem sempre se educa através de qualquer estudo, vale dizer, pela aquisição de conhecimentos técnicos, mas o que a educação visa é à capacidade do homem de agir convenientemente (Fp, 64-65).

Canivez (1985, p. 531-532) acrescenta que a instrução já é uma forma de educar, sobretudo, no contexto social, isto é, no seu aspecto de socialização, fornecendo ferramentas para o homem atingir sua utilidade através do trabalho, em uma sociedade moderna em direção ao progresso. Contudo, o homem não é somente técnico, não que esse aspecto não deva ser considerado, mas, antes de qualquer coisa, o homem é um ser histórico. A instrução, assim, tem a finalidade de inserção social de um indivíduo útil à sociedade, não de levá-lo à universalização. Não obstante a instrução ainda continue a ser uma necessidade de nosso tempo, a primazia da instrução como forma de educar o indivíduo à universalidade e a não violência, contudo, não se sustenta sem o olhar para o processo da Educação em sua complexidade e integridade. A instrução precisa estar a serviço, ou então, quanto muito, como meio para a Educação, uma vez que a priorização exclusiva da instrução poderia levá-lo ao caminho de tornar o homem mero meio ou mesmo um objeto utilizável, tornando-o incapaz de resolver, ou, até mesmo, de formular o problema da boa utilização dessa importante etapa ou meio (Fp, 64). Em outras palavras, o homem não pode prescindir da instrução, contudo somente ela não basta para a completa compleição do homem enquanto tal.

Por consequência, para além da instrução e acima dela, há lugar para a Educação, que, por última análise, consiste em dar ao indivíduo uma atitude correta nas suas relações com os outros membros da sociedade (Fp, 64). Segundo Weil, “a educação visa precisamente à aptidão do indivíduo para agir convenientemente na comunidade histórica” (Fp, 65). Portanto, “a tarefa da educação consiste em desenvolver no indivíduo a capacidade de compreender o que lhe diz respeito enquanto membro de uma comunidade humana (enquanto objetivamente universalizado)” (Fp, 71). A Educação que se propõe, então, não é aquela que visa a instruir os educandos nas matérias técnicas, mas a que o próprio moralista intenta: “A educação do indivíduo violento na sua individualidade, à universalidade, educação que se opõe às paixões e se realiza por meio delas.” (Fp, 61). Analisada por essa ótica, a Educação toma um caráter moral, uma Educação mais ampla do que usualmente seu termo é empregado. Weil defende que a Educação, vista por este ponto, proporciona ao educador formar indivíduos que, nas suas ações, leve em consideração o interesse universal concreto, o que a comunidade define como seus costumes, regras e leis, como sendo de interesse público (Fp, 62).

Assim, a Educação é a domesticação do animal no homem (CANIVEZ, 1985, p. 538), na medida em que a violência que se pretende extirpar não é aquela violência física, exterior, tais como enfermidades, fome, mortes, etc., nem a que os outros indivíduos infligem ao seu ser, tais como sofrimentos, privações e morte violenta. A violência com que a Educação deve se preocupar é aquela em que o homem, como ser razoável sofre por parte do seu ser empírico, a que ele sofre por si mesmo. É dessa violência que a Educação deve libertar o homem (Fp, 62). Percebe-se, com isso, que a Educação do indivíduo humano é, além de tudo, um direcionamento bem objetivo e específico, ou ainda, uma espécie de domesticação, diversa da domesticação dos animais, cujas ações são provenientes da vontade de seu domesticador. A domesticação aqui referida toma um caráter último de fazer do educando um educador de si mesmo tanto quanto de todos os que têm necessidade de educação (Fp, 62). Dessa Educação conhece-se quando os pais e os familiares ensinam seus valores morais, como honestidade, integridade, honradez, amor ao próximo, etc., o que permite a cada um estabelecer uma relação sadia com os outros membros da comunidade, pois como Weil disse de modo tão explícito e direto, “todo homem educa, queira ou não, por seu discurso e sua maneira de agir, aqueles com os quais se relaciona: todo discurso e toda ação influem sobre os outros e os formam, assim como formam o seu autor” (Fp, 72).

A Educação em Weil deve, assim, ser considerada do ponto de vista moral, com a inclusão de todos os atores da comunidade. A Educação tem que ser responsabilidade de todos, e não somente dos mestres que se propuseram fazer de sua vida o cultivo e a propagação da Educação. “A educação deve estar centrada no homem. Ela deve ter como base de formação o ser humano inserido numa comunidade”; e “precisa trabalhar o indivíduo na perspectiva de socialização, de convivência com os demais” (ASSIS, 2011, p. 148). Ademais, deve-se compreender que a Educação deverá ir além da instrução e além do adestramento do animal no homem, ela deverá formar os homens para decidir racionalmente o seu lugar no mundo e desenvolver, no indivíduo, a capacidade de compreender o que lhe diz respeito como membro de uma comunidade humana, enquanto é objetivamente universalizado (Fp, 71).

A Educação que se pretende nada mais é do que a formação de um indivíduo capaz de perceber os problemas de sua sociedade, discernindo o certo do errado e, sobretudo, capaz de agir conscientemente para o progresso da comunidade. Em outros termos, o que se pretende, na realidade, é que o homem, assim como Kant já havia referido, se torne, além de disciplinado e culto, prudente e moral (KANT, 2002, p. 25-26). Essa capacidade do homem conter a animalidade de seu ser empírico, associada à de se tornar culto, civilizado e moral, é que proporciona o enfrentamento da violência, e isso somente é possível através da Educação moral. Todavia, faz-se urgente entender que a Educação Moral defendida por Kant e, sobretudo, por Weil não é o conjunto de regras de normas morais, mas o próprio pensar por si mesmo. Essa autonomia com caráter fundamental para o desenvolvimento da razão e da moralidade (PINHEIRO, 2007, p. 106).

Sabe-se, porém, que a violência está no homem e é uma realidade que, agora compreendida, faz com que a Educação tenha seu relevo. É nessa perspectiva que Weil entende que o homem deve educar e ser educado para a não violência, pois ele enfatiza que “o mundo contém a violência, jamais está livre dela, jamais encontra-se protegido dela e pode sucumbir no seu absurdo, mas não é feito de violência pura” (Fp, 74). Nessa perspectiva, percebe-se que o homem é agora violência informada e educada, tornada razoável em certo grau (Fp, 74). Resta entender como Weil compreende a Educação para a não violência. Indiscutivelmente, Weil percebe que educar para a moral é possível, na medida em que essa Educação não está ligada somente ao simples repasse de conhecimentos técnicos, como bem se observou acima, mas aos esforços do homem moral em educar para a razão e transformação do mundo com vistas a uma cultura de paz. Logo, o ponto de partida aqui é a não violência; assim, como bem salienta Weil, é também o próprio fim da filosofia (Lf, 90). Mas para Weil a Educação para a não violência parte do ponto de um paradoxo que é necessário enfrentar, a saber: “A violência só tem sentido para a filosofia, a qual é a recusa da violência”, contudo, “facilmente se poderia sustentar que uma filosofia que se compreende como compreensão e como via de contentamento recomenda o emprego da violência, porque é levada a constatar que deve se erguer contra a violência” (Lf, 90). Esse paradoxo permite inferir que Weil acredita que a violência ainda é necessária no mundo, e, pelo fato de o homem constituir-se como razão e violência, ela jamais será extinta por definitivo. Weil sabe que o homem é finito e razoável e, justamente, por essa razão, ele tem, em sua constituição, a possibilidade de violência. Agora, contudo, ao menos, ela é informada e educada, tornada, em certo grau, razoável (Fp, 74).

Ora, como se afirmou até agora, Weil entende a violência como negação do discurso coerente, como contrário à razão, e, por conseguinte, contrário à filosofia, que se apresenta como seu outro. Então, como se pode sustentar agora que a violência é necessária para combater a própria violência? E mais, como defender que a violência é possível para educar os homens para a não violência?

Em que pese Weil referir que o filósofo quer que a violência desapareça do mundo, pois o que importa é eliminar a violência, admitindo que “é legítimo o que reduz a quantidade de violência que entra na vida do homem; é ilegítimo desejar o que a aumenta” (Lf, 36), ele defende que o enfrentamento da violência se dá no campo da própria violência. Essa violência, que se pode chamar de positiva, é fundamental para submeter à violência natural os indivíduos e as comunidades, ou, se preferir, a violência negativa (Fm, 46). Nesse mesmo sentido, Assis descreve:

A violência é negativa quando destrói a humanidade do homem, tornando-se assim uma injustiça aos direitos naturais do homem. A violência é positiva quando ela serve como meio de defesa da humanidade do homem e de seus direitos naturais. Dessa forma, os meios utilizados pelo homem moral para a realização do bem provêm da violência, mas no sentido positivo (2011, p. 141).

Essa primeira violência vale dizer, a violência com caráter positivo, não passa de um meio necessário para criar um estado de não violência, na medida em que o mundo ainda está sob o domínio da violência pura (Lf, 90), da violência negativa. Com efeito, o homem é imperfeito, com instintos e necessidades, e, por conseguinte, afetado pela violência. Contudo, ele, também, por sua vez, está sempre em busca de aperfeiçoamento e de constante eliminação dessa violência, com vistas à razão. É Assim que Weil, percebendo que o homem é constituído de razão e violência, defende que se faz urgente recorrer à própria violência, mas agora com caráter positivo, no momento em que é necessário enfrentá-la. Weil não está sozinho em sua posição. Hegel também entendia haver duas espécies de violência: uma espécie que não se justifica, pois imprime certa coação injusta ao indivíduo.

Com efeito, Hegel afirma que essa primeira violência exercida lesa a existência da liberdade em seu sentido concreto e que lesa, por conseguinte, o próprio direito como tal. Trata-se do crime que o filósofo bem descreve no § 95 da obra Princípios da filosofia do direito. Nele, contudo, é negado tanto o aspecto particular da absorção da vontade, como também o que há de universal e infinito (HEGEL, 1997, p. 85). Já a segunda espécie de violência é a violência que Hegel chama de “jurídica” (HEGEL, 1997, p. 84). Essa é justificada por agir sob a primeira com a finalidade de suprimi-la. Assim, o direito, na visão de Hegel, toma o papel de coação contra a ação injusta da violência absoluta, com vista à sua eliminação e anulação (HEGEL, 1997, p. 85).

Weil, por sua vez, admite que a violência pode ser exercida como forma de combate da própria violência, porém é preciso deixar bem claro que ele não aceita que essa tal violência seja desprovida de qualquer justificação. Quando refere sobre questões de guerra, Weil define bem a utilização da violência como forma de combate à própria violência. Ele defende que a violência ali exercida será justa em todos os casos em que for imposta a uma comunidade por outra que, segundo o julgamento da primeira, nega a igualdade das nações e dos grupos, e será a defesa da justiça contra a injustiça, através de meios violentos, cujo emprego a serviço do direito é justificado pelo procedimento de que os utiliza a serviço dos seus interesses individuais ou de um grupo particular (Fp, 49). Nesse sentido, mais uma vez, urge mencionar o tema da violência, pois essa pode, segundo Weil, ser instrumento para o enfrentamento da própria violência. Mas essa violência, todavia, precisa atingir fins justos, dos quais o fim mais nobre e justo a buscar é o denominado princípio universal e razoável, a saber, a busca pela não violência.

Valendo-se, aqui, mais uma vez, da ideia kantiana de educação, como foi salientado, Weil, sobretudo, em questões da Educação, ancora seu pensamento nos ensinamentos do mestre de Königsberg. Kant admite que a disciplina seja necessária para educar os homens na medida em que impede seus defeitos e submete suas vontades com vistas a impedir que sua animalidade prejudique o caráter humano, consistindo em dominação de sua selvageria (KANT, 2002, p. 25). A Educação toma, assim, um caráter negativo (KANT, 2002, p. 29), ou seja, ela inflige no educando certa resistência, a fim de discipliná-lo. Weil, percebendo a necessidade de educar o indivíduo com vistas à universalidade e, consequentemente, à não violência, defende que a violência em submetê-lo à disciplina é necessária. Contudo, essa violência não passa de um meio para o atendimento da não violência, jamais devendo ser considerada seu fim. Mas, superada essa etapa, resta saber se somente a violência pode ser instrumento de enfrentamento da própria violência e da vida desarrazoada dos homens.

Com efeito, a não violência na história tornou-se o fim da própria história, mas não se tem garantias suficientes de que esse fim seja alcançado sem recorrer à violência, que pode ser “nobre e justa em certos momentos” (Fp, 311). Weil salienta, ainda, que a violência em si mesma é a negação de todo sentido, o absurdo em estado puro, mas não se pode ignorar a violência e sua presença no mundo. Só adentra e enfrenta os mais violentos conflitos quem se convence de que não basta falar de não violência e de vida boa na sociedade sem pensar na violência. É preciso auscultar as profundezas da condição humana, para que não se imagine, simplesmente, ou a possibilidade de eliminar, totalmente, de uma vez por todas, a violência, ou então, de bastar falar de Educação para a não violência. É preciso lançar um olhar crítico e prospectivo para o discurso e a práxis da cultura de paz e da não violência (Fp, 311).

Weil observa, também, que a violência, por mais necessário que pareça seu emprego no imediato, age sobre toda a organização social, compelindo os cidadãos a atos, hábitos e atitudes contrárias à racionalidade, recebendo, com isso, uma espécie de “contraeducação” perigosa, mesmo nos casos de vitória, para o bom andamento dos negócios da sociedade (Fp, 318). Ele observa que mesmo a guerra, quando empreendida em defesa da moral concreta da comunidade e tomada como necessária, suspende seu desenvolvimento e a projeta para trás (Fp, 318). É nesse sentido que ele admite que, de agora em diante, a tarefa se constitui em superar a necessidade de violência, na medida em que reafirma, categoricamente, a necessidade de realizar a não violência na história. Trata-se da tarefa de construir um mundo no qual a não violência seja real sem ser a supressão do absurdo da violência e de todo sentido positivo da vida dos homens (Fp, 312). Muller (2007, p. 182), por sua vez, acentua que a não violência não deve se contentar em balizar o pensamento do homem, mas deve determinar sua atitude para a vida, seu comportamento com os outros homens e sua participação na história. A não violência será, portanto, uma sabedoria prática, pois o homem que optou pela não violência não é um ser solitário, mas vive em uma comunidade histórica e tem interesses comuns aos dos outros homens. O homem, justamente por isso, não pode fugir do encontro e da presença de outras pessoas se quiser exercer a não violência. Antes, pelo contrário, ele precisa ser solidário com os outros membros da comunidade e juntos promoverem o avanço da não violência. Ao homem racional, então, compete a responsabilidade de agir de modo que a própria história se torne cada vez mais não violenta.

Percebe-se, portanto, que, ao fim e ao cabo, mesmo que a violência seja necessária, de modo precário e não definitivo, para o enfrentamento, de fato, da violência, o homem, se quiser ser considerado razoável com vistas à universalidade e para a não violência, precisará dirigir-se, necessariamente, à Educação Moral. Essa educação, como Kant bem ensinou, não se constitui somente de fatores coercitivos, mas, também, e, sobremaneira, de fatores morais, na medida em que o homem deve ser capaz de escolher bons fins, constituindo-se em fins que sejam aprovados por todos e cada um (KANT, 2002, p. 46).

O homem moral quer que todos os homens sejam moralmente educados com vistas à universalidade, contudo ele sabe que, por serem constituídos de razão e violência, os homens podem optar por seguir uma ou outra. Essa negação da moral é que se constitui em problema para a Educação, na medida em que restringe seu campo de ação e leva o homem a recorrer à violência para resolver seus conflitos. Assis (2011, p. 140) afirma que a Educação tem um papel de transformação do homem pelo ser razoável e é exatamente por essa razão que Weil defende que a Educação parte da concepção moral do homem, na medida em que o filósofo, que é o homem moral, pois ele escolheu a razão, faz uso da reflexão com vistas à ação para a “libertação de todo homem do domínio das paixões e da violência para uma vida moral e razoável” (ASSIS, 2011, p. 139).

5 O papel do educador moral

O educador tem que ter em mente que sua atuação é sobre o indivíduo não razoável, dado que se educa com vistas à razão e à universalidade, uma vez que se o indivíduo fosse universalizado e razoável, não precisaria ser educado. Com efeito, é o indivíduo não universalizado que deve ser educado para o universal. Demonstra-se, assim, que a Educação não pode ser uniforme, mas exige que se compreenda o indivíduo na sua individualidade determinada (Fp, 69). É em virtude de a Educação agir sobre o indivíduo não universalizado que Weil defende que ela tem que ser bem-realizada, para que não se ocultem talentos reais. Nessa senda, segundo ele, isso certamente ocorrerá se ela não propuser como ideal o que só pode ser alcançado pelo esforço e mérito (Fp, 69). Esta é a responsabilidade do educador: saber reconhecer, na individualidade dos indivíduos, sua possibilidade e potencialidades de universalidade. Por isso, o educador não deve esquecer que a Educação que ele busca é aquela fundada na moral, proporcionando-lhe a capacidade de reconhecer seu próprio lugar no mundo dos homens (Fp, 70).

Por conseguinte, pouco ou de nada vale um educador que, imerso em suas próprias vaidades, deixa à margem o que realmente importa na Educação. Ele precisa auxiliar a “desenvolver no indivíduo a capacidade de compreender o que lhe diz respeito enquanto membro de uma comunidade humana (enquanto objetivamente ‘universalizado’)” (Fp, 71). Esse educador, que apenas transmite um saber morto, ou o instrutor que inculca aptidões e atitudes parciais e particulares, são homens que dão má fama à Educação e à tarefa de educador (Fp, 70). Weil evidencia:

Existe, com efeito, uma maneira cômoda de domesticar o animal no homem: basta fixá-lo na sua animalidade (formada, vale dizer, deformada, pois trata-se de animalidade). É igualmente cômodo fazer jorrar para a cabeça das crianças e adultos uma massa de saber inerte, renunciando a levá-los ao pensamento e a pensar

(Fp, 70).

Do educador espera-se, então, que possa proporcionar ao homem a capacidade de agir razoavelmente no seu lugar no mundo. Essa verdadeira educação, que tem a instrução e a disciplina como integrantes em sua constituição, é que possibilita a busca da universalidade que tanto se procura quando, de fato, se quer enfrentar o problema da violência existente no homem animal. Ela proporciona ao homem a capacidade de compreender o porquê das coisas e não somente executar tarefas sem ao menos questioná-las ou entendê-las. Weil ressalta:

Capacidade não só de fazer e dizer o que dele se exige, mas de compreender por que isto é exigido e, se for o caso, porque aquilo que efetivamente se exige, não é exigível, seja por não se justificar tecnicamente, seja por mostrar-se injusto, sendo dirigido ao indivíduo isolado, não a todo homem que desempenhe o mesmo papel no universal concreto da comunidade (sendo, portanto, exigência violenta)

(Fp, 71).

Weil sabe que raramente a Educação corresponde ao fim a que deveria se propor, pois nenhuma Educação se faz sem ameaças e promessas, sem punições e recompensas. Com efeito, o educador que pensa no seu papel e na sua missão, ao invés de, simplesmente, desempenhar uma tarefa, precisará evitar os erros que tornariam impossível sua execução; vale dizer, pensar a Educação como forma precária de adestramento ou apenas como repasse de conhecimentos. Ele precisará, muito antes e mais, propor uma reflexão moral com vistas à universalização do ser empírico. Por isso, o educador poderá se considerar um verdadeiro líder de sua comunidade, pois ele pensa e pode ensinar a pensar. Ele sabe “que todo homem educa, queira ou não, por seu discurso e sua maneira de agir, aqueles com os quais se relaciona: todo discurso e toda ação influem sobre os outros e os formam, assim como formam o seu autor” (Fp, 72).

Esse educador assume a tarefa de discernir a razão no mundo e desvelar as estruturas do mundo em busca da realização da liberdade razoável, tornando-se, assim, um filósofo-educador. Esse filósofo-educador deve, por sua vez, compreender o mundo concretamente como razoável, não bastando admitir somente um princípio de uma razão encarnada no mundo, embora essa seja uma condição indispensável. Mas, se ele quer agir, precisa conhecer as formas que a razão assume no mundo, em um mundo no qual os homens não refletem apenas sobre as máximas de suas ações, mas agem segundo a moral existente. Com efeito, esse mundo é aquele em que o filósofo não só fala da Educação de todos e de cada um visando a universalidade e a liberdade razoável, mas onde se dá a possibilidade de tal Educação é consubstancialmente real e realizável. Esse mundo não deve perecer, a fim de que a moral e a Educação para a moral e pela liberdade na razão sejam, realmente, possíveis.

6 Considerações finais

Com Weil, percorreu-se um caminho com o qual e no qual se percebeu que o homem não é somente razão ou somente violência. Ele é, sobretudo, esses dois fatores que se complementam e se distanciam ao mesmo tempo. Com efeito, o homem é constituído, essencialmente, de razão e de violência. É a partir dessa percepção que se pode concluir que o homem tem, à sua frente, no mínimo, duas opções de escolha, e ele não pode se abster de fazê-la. Compreende-se, também, que o homem busca a universalidade, busca ações que possam ser efetivadas para todos, como a não violência, que se justifica uma vez que a todos se aplica, pois todos os homens, sem exceção, procuram afastar-se do descontentamento através da negação da sua própria negatividade.

Essa busca de universalização é instrumentalizada por seres que têm, em sua constituição, paixões, desejos e necessidades, seres que estão essa busca da perfeição, mas, com efeito, ainda não são perfeitos, ou melhor, dificilmente, ou melhor, nunca, chegarão a atingi-la. É nessa senda que a Educação recebe a nobre missão de conduzir os homens à universalização com o intuito de achar o caminho da não violência. E, por sua vez, essa Educação é definida por Weil como sendo a Educação Moral dos seres imorais, pois o homem, sendo um ser finito e razoável, precisa ser orientado, para procurar conter sua animalidade e para perceber, caso queira ser razoável, que ele precisa ser educado para o convívio em comunidade.

Nesse contexto, o educador, e não somente o professor, mas o educador, numa perspectiva mais abrangente, precisa compreender que seu papel é de suma importância para que o homem venha a se tornar um ser compreendido em sua animalidade contida pela razoabilidade. Só dessa forma é que Moral e Educação serão compreendidas positivamente para o mundo e para o homem que, neste mundo, quer ser razoável. Logo, segundo Weil, a “primeira tarefa de quem quer transformar o mundo consiste em compreendê-lo no que ele tem de sensato” (Fp, 76), e, dessa forma, a verdadeira Educação transformará o mundo em um lugar e em um espaço nos quais a cultura de paz seja, progressivamente, efetivada, fazendo com que a violência, antes utilizada para educar, seja ela cada vez mais prescindível na educação.

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1Segundo a nota 1 da tradutora da Lógica da filosofia, Lara Christina de Malimpensa (Lf, 12), para Weil homens de ciência é uma expressão utilizada para indicar a contradição como os homens de letras, literato, intelectuais. Expressão que se aplica tanto ao erudito, em uma área do conhecimento, quanto ao cientista.

2 CANIVEZ (1991, p. 149). O Estado será a organização graças à qual a comunidade age sobre sua própria estrutura social, para subordinar o processo de produção e de trocas, tanto quanto, de modo geral, o progresso material e técnico, ao qual Weil chama “a moral viva da comunidade”.

3Para Kant (2002, p. 25-26), a Educação deve possibilitar que o homem seja disciplinado, culto, prudente e moral. Ele esclarece, na obra Sobre a pedagogia, que a Educação não se restringe a simples instrução do educando, devendo, contudo, tratar, também, das questões da socialização e da moralização do homem.

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Recebido: 15 de Agosto de 2019; Aceito: 26 de Outubro de 2019

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