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Conjectura: Filosofia e Educação

Print version ISSN 0103-1457On-line version ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.dossie.7 

DOSSIÊ: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA CRÍTICA: PREOCUPAÇÕES E TENDÊNCIAS ATUAIS

As Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violências Escolares na Rede Pública Estadual de Ensino de Viamão: desafios e perspectivas

Internal Committees for School Violence and Accident Prevention in the Teaching Public Institutions of Viamão: challenges and prospects

*Bolsista de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: iccibele@gmail.com.


Resumo

Dado o crescente aumento da ocorrência e da gravidade dos conflitos em ambientes escolares, o presente estudo dedica-se a observar como tem sido conduzida a iniciativa das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violências Escolares (CIPAVEs), tendo por cenário as escolas da rede pública estadual de Viamão, Rio Grande do Sul. A observação do aumento e do agravamento dos conflitos não se restringe aos ambientes escolares. De forma generalizada, é possível verificar que a sociedade tem sofrido crescentemente com situações de conflito, o que se pode verificar com o volume cada vez maior de processos judiciais e com a escalada da violência e da criminalidade, por exemplo. No Município de Viamão, essas questões são bastante evidentes. Na condução das análises, a questão norteadora para a elaboração do problema de pesquisa busca investigar, como instrumental de gerenciamento de conflitos e violências em ambiente escolar, quais são os principais limites e potencialidades das CIPAVEs segundo a percepção dos integrantes das equipes gestoras das escolas investigadas. Para responder a essa questão, foram analisadas ocorrências registradas durante os anos de 2016, 2017 e 2018 pelas escolas da Rede Pública Estadual de Ensino do Município de Viamão, Estado do Rio Grande do Sul, na base de dados Mapeamento CIPAVE, política pública de iniciativa estadual voltada ao manejo de conflitos escolares. Também foram investigadas as percepções manifestadas por integrantes das respectivas equipes gestoras acerca do gerenciamento das ocorrências referidas. A estratégia metodológica desenhada para o estudo é descritiva, exploratório-sequencial, combinando as abordagens quantitativa e qualitativa. Inicialmente, a moldura teórica da pesquisa é delineada a partir de revisão bibliográfica acerca da gestão de conflitos escolares, subsidiando a análise dos dados registrados na base da CIPAVE, compondo um panorama interdisciplinar para instrumentalizar o exame dos casos que se destacaram, empreendendo visitações nas escolas e entrevistas com os gestores.

Palavras-chave Conflitos escolares; Gerenciamento de conflitos escolares; CIPAVE; Viamão – RS

Abstract

Given the increasing in the occurrence and severity of conflicts occurring in school environments, this study is dedicated to observe it has been conducted at the initiative of the Internal Committees for School Violence and Accident Prevention (CIPAVEs), having as scenario the public schools of Viamão, Rio Grande do Sul. The observation of increase and aggravation of the conflicts is not restricted to the school environments. Generally speaking, it can be seen that society has been progressively suffering from conflict situations, which can be seen in the increasing volume of judicial proceedings, and with the escalation of violence and crime, for example. In the municipality of Viamão, these issues are quite evident. In conducting the analysis, the guiding question for the preparation of research problem investigates, as instrumental for managing conflicts and violence in the school environment, what are the main limits and potential of CIPAVEs as perceived by members of the management teams of the schools. To answer this question, occurrences recorded during 2016, 2017 and 2018 were analyzed by the public schools of the municipality of Viamão, State of Rio Grande do Sul, in the Mapping-CIPAVE database, public policy of state initiative aimed at managing school conflicts. The perceptions expressed by members of the respective management teams about the handling of the referred occurrences were also investigated. The methodological strategy designed for the study is descriptive, sequential-exploratory, combining quantitative and qualitative approaches. Initially, the theoretical framework of the research is delineated from a literature review about the management of school conflicts, supporting the analysis of the data registered in the CIPAVE database, composing an interdisciplinary panorama to instrumentalize the examination of the cases that stood out, undertaking visits in schools and interviews with managers.

Keywords School conflicts; School Conflict Management; CIPAVE; Viamão – RS

1 Introdução

A observação do aumento e do agravamento dos conflitos não se restringe aos ambientes escolares. De forma generalizada, é possível verificar que a sociedade tem sofrido crescentemente com situações de conflito, o que se pode comprovar com o volume cada vez maior de processos judiciais e com a escalada da violência e da criminalidade, por exemplo. No município de Viamão, essas questões são bastante evidentes. De acordo com levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) nos Municípios com mais de 100 mil habitantes, Viamão ocupa o 21º lugar no ranking das cidades mais violentas do Brasil ANO. A soma das taxas de homicídios e de mortes violentas com causa indeterminada alcança 77,1 casos para cada grupo de 100 mil habitantes (IPEA; FBSP, 2018).

Especificamente observando as ocorrências havidas nas escolas da Rede Pública Estadual de Educação de Viamão, percebe-se que as situações conflituosas nos ambientes escolares vêm aumentando em quantidade e frequência. Consequentemente, as equipes de gestão das escolas têm enfrentado dificuldades maiores e mais complexas, relacionadas ao gerenciamento dos conflitos. Não raramente, as escolas são retratadas como ambientes de relações marcadas por hostilidade, enfrentamento, agressão e medo (BERG, 2012). Diante desse quadro e da propensão a futuras novas violências, as instituições de ensino são desafiadas a encontrar formas de lidar com a complexidade de suas realidades, as dificuldades e vulnerabilidades de seus membros e os reflexos, em seu ambiente, dos contextos sociais, econômicos, culturais e políticos em que estão inseridas.

Um dos grandes desafios às equipes de gestão, muitas vezes, é lidar com questões relativas aos ambientes domiciliares e às vivências de seus membros, especialmente dos discentes, com a família e com a sociedade (ABRAMOVAY, 2015). O elo existente entre as condições socioeconômicas e a conjuntura em que se dão os conflitos, objeto do presente estudo, demonstra quão grande é a interferência dos aspectos socioeconômicos e culturais sobre a ocorrência de situações conflituosas e de violência em ambientes escolares. Os dados supra referidos demonstram a vulnerabilidade presente em localidades cuja renda per capita dos moradores é mais baixa e a insegurança é um sentimento presente no cotidiano, estendendo-se aos espaços escolares.

Para dar curso ao proposto e em atenção às demandas do problema de pesquisa e dos consequentes objetivos formulados, a estratégia metodológica adotada é a exploratório- sequencial, a qual é definida por Creswell (2014) como aquela em que a análise qualitativa é realizada a partir dos resultados preliminares produzidos via análise quantitativa.

A estratégia metodológica de opção do presente trabalho é fundamentada pelas dificuldades verificadas quando da análise preliminar dos dados constantes no Mapeamento CIPAVE. Como será mais detalhadamente exposto no corpo do estudo, o desenvolvimento da pesquisa que embasa a monografia em tela encontrou alguns obstáculos relativos aos dados disponibilizados pela plataforma do Mapeamento CIPAVE, gerida pela SEDUC – RS. Dentre as adversidades enfrentadas, a descontinuidade no preenchimento dos formulários por parte das equipes gestoras das escolas, as discrepâncias de natureza e de categorias de dados fornecidos, a inconsistência entre definições e conceitos que ancoram a definição das variáveis delineadas pelo desenho da política pública podem ser destacadas como determinantes, para que as informações propiciadas pelo Poder Público fossem esmiuçadas com maior atenção, em busca de possíveis fatores que, se não fossem suficientes para construir explicações ao fenômeno objeto da investigação em tela, indicassem direcionamentos nesse sentido.

Ante o quadro esboçado, a pesquisa parte da análise dos registros estatísticos de conflitos em escolas da Rede Pública Estadual de Educação de Viamão com o Mapeamento CIPAVE, conforme tipos previamente definidos. A referida análise envolve o exame das ocorrências, a fim de traçar um panorama quantitativo dos conflitos e, na etapa subsequente, vai subsidiar a avaliação das percepções manifestadas pelos gestores acerca dos tópicos definidos conforme os resultados da etapa quantitativa indicarem ser de relevância ou interesse ao atendimento dos objetivos e à resposta ao problema de pesquisa.

2 Reflexão sobre conflitos e violência em ambientes escolares

Enfocando o desenvolvimento humano e a ascendência dos conflitos para que ele ocorra, distinguem-se diferentes expressões da violência, que Johan Galtung (2005) classifica como diretas ou indiretas. Dentre as expressões diretas da violência estão a física, que se mostra de forma perceptível, pela agressão corporal, verbal ou comunicada pelo gestual. A violência indireta, por sua vez, pode ser expressa estrutural ou culturalmente. Quando estrutural, a violência é manifesta na conformação e no sistema das instituições. Quando cultural, está impregnada nos costumes, valores, princípios e demais elementos formadores da cultura. Essas expressões da violência são conexas e complementares, chegando a compor, tal qual afirma Franz Fanon, formas de dominação e colonização de um sujeito sobre o outro (apudGUILHERME; SILVA, 2017).

O presente estudo pressupõe que o gerenciamento de conflitos não se esgota em si, mas consiste em ferramenta educativa e de desenvolvimento de capacidades e potencialidades das relações sociais. Como um conjunto de possibilidades de geração de mudanças, potencializa melhorias nos contextos relacionais e institucionais em que os sujeitos estejam inseridos, uma vez que é na relação com o outro (em sentido amplo) que o indivíduo vive e se reconhece (SCHNITMAN, 1999). A interação entre os elementos da cultura institucional e os fundamentos do gerenciamento de conflitos fomenta inovações e aperfeiçoamentos da estrutura organizacional, intensificando e validando processos sociais inerentes ao ambiente escolar, beneficiando tanto os sujeitos quanto a própria instituição (IBARROLA-GARCÍA; IRIARTE-REDIN, 2012).

A escola tem sido palco de conflitos sociais que a forçam a refletir sobre si. Questionando o paradigma instrucional, a escola se vê impelida a converter-se em plataforma de transformações sociais, o que demanda sua reinvenção para atender às novas exigências, demandas e papéis. A gestão de seu espaço passa a ser desafiada por uma pluralidade de responsabilidades socioeducativas que transbordam as funções tradicionais da disciplina e da transmissão de conhecimento numa nova lógica de inclusão, socialização e cidadania (NÓVOA, 2005). Assim, regras de comportamento essenciais para o convívio em comunidade passam a fazer parte do contexto escolar, simultaneamente a esgarçamentos e rupturas do tecido social, explicitados por conflitos que podem escalonar até a ocorrência de episódios de violência. Nesse contexto, entra em xeque a cultura disciplinar, emergindo a necessidade de se viabilizar o convívio pelo gerenciamento positivo dos conflitos, compondo uma perspectiva social na qual esses se imbricam em questões pedagógicas, estruturais e educativas (QUARESMA, 2010).

Nesse marco, importa refletir acerca da intersecção entre escola, Educação e conflito como fundamentos necessários à compreensão das diferentes situações do contexto social-educacional e do próprio ambiente da prática pedagógica. Nesse sentido, a escola é uma instituição estratégica que, dentro da força de trabalho e das relações de produção, mobiliza a ideologia da Educação como forma de ascensão social e de democratização de oportunidades. Articulando-se formação, competição e fixação justa de regras do jogo, é possível ressaltar a perspectiva construtiva do conflito. Abordam-se, assim, aspectos democráticos da Educação, fator de dinamização das estruturas o qual se concretiza no ato inovador do indivíduo. Esse, habilitado a atuar no contexto societário em que vive, torna-se capaz de reorganizar seu comportamento e contribuir à reestruturação da sociedade a partir de suas experiências, da análise e da avaliação crítica. Por essa ótica, indivíduo e sociedade são vistos em um contexto dinâmico de constantes mudanças.

Edgar Morin (2006) lembra que nenhuma técnica de comunicação traz embutida a eficaz compreensão do que é comunicado. A compreensão, portanto, não pode ser quantificada, mas, por sua importância crucial para o ser humano, é preciso ensiná-la. Essencialmente, educar para compreender os conteúdos de uma disciplina é diferente de educar para a compreensão humana, porque “nela encontra-se a missão propriamente espiritual da Educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia de solidariedade intelectual e moral da humanidade” (MORIN, 2006, p. 93). Nessa senda, Paulo Freire et al. (1986) localiza, no conflito, a gênese da consciência. Sob esse enfoque, independentemente da forma de conflito, a única maneira de enfrentá-lo é por meio do conhecimento, que permite a todos alcançarem a superação entre o racional e o teórico, vencendo a desigual distribuição do poder e gerando, dessa forma, o que o autor denomina “contrapoder”. Freire et al. ao abordarem a nominada Pedagogia do Conflito, a definem como

dialógica, assim como o diálogo se insere no conflito. Por que isso? Porque não é possível diálogo entre antagônicos. Entre estes, o que há é o conflito. Mas a Pedagogia do Conflito não pode prescindir do diálogo, do diálogo entre os iguais e os diferentes que participam da luta, ou do grito, para botar abaixo o poder que nega a palavra. Ora, qual é o espírito fundamental da Pedagogia do Conflito senão este! E este é o espírito da concepção que tenho de diálogo também. Na Pedagogia do Oprimido digo que o diálogo só se dá entre iguais e diferentes, nunca entre antagônicos. No máximo pode haver um pacto (1986, p. 94).

O diálogo, assim, é substancialmente relacional, lócus de posições e oposições, sendo que o conflito é inerente à oposição, à controvérsia e à divergência. Dessa forma, o diálogo não existe apenas para a comunicação, mas consiste numa ferramenta de transformação da realidade, de percepção e pronúncia do mundo, é um

encontro dos homens mediatizados pelo mundo para pronunciálo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito

(FREIRE, 1970, p. 79).

A noção de diálogo abarca concepções ancoradas nas proposições dialéticas e materialistas freirianas, e nas humanistas, fundadas em Martin Buber (2002). Embora os autores não compartilhem a definição de diálogo, para ambos é, através dele, nas interações cotidianas, que ocorre a aprendizagem e a comutação da realidade social. O interstício entre cotidiano e transformação social está materializado nas relações dos sujeitos em seus espaços habituais, conformando uma noção relacional do cotidiano, em razão da consciência humana que se forja no diálogo. Destarte, o diálogo é uma forma de ser e de estar na sociedade, intrínseca ao cotidiano e às experiências humanas. É pelo diálogo que o outro se humaniza, passando de objeto a sujeito nas relações intersubjetivas, deixando de ser isso para ser tu (BUBER, 2002). Ao ser sujeito, o outro faz parte do eu, impulsionando a existência a patamares concretos de autonomia e empoderamento, abandonando os contornos de uma figura distanciada, imprecisa, colonizada (SPIVAK, 2010).

O exercício do diálogo, realizado por sujeitos, é indissociável da escuta (ativa) através da qual o eu pode experimentar a existência do tu. Segundo Carl R. Rogers (1997), a escuta que favorece o autodesenvolvimento e o amadurecimento para enfrentar os desafios da vida eì tomada por uma atitude de empatia, ou seja, de aceitação incondicional e respeito, que eì a capacidade de acolher o outro integral e incondicionalmente e sem julgamento; e coerência, no sentido de ser real e de se mostrar ao outro de maneira autêntica e genuína. Todavia, a disposição para acolher o outro requer um reconhecimento desse como legítimo em sua diferença. Nesse sentido, Gayatri Spivak afirma:

Por fora (mas não exatamente por completo) do circuito da divisão internacional do trabalho, há pessoas cuja consciência não podemos compreender se nos isolarmos em nossa benevolência ao construir um Outro homogêneo se referindo apenas ao nosso próprio lugar no espaço do Mesmo ou do Eu [Self]. Aqui se encontram os fazendeiros de subsistência, os trabalhadores camponeses não organizados, os tribais e as comunidades de desempregados nas ruas ou no campo. Confrontá-los não é representá-los [...], mas aprender a representar a nós mesmos. Esse argumento nos levaria a uma crítica da antropologia disciplinar e a relação entre a pedagogia elementar e a formação disciplinar (2010, p. 70).

No contexto presente, em que o capitalismo global demanda a crescente flexibilização dos processos produtivos, Ilan Gur-Ze’ev (2002) enfatiza as reconfigurações que comprometem alguns dos pressupostos da práxis pedagógica, tais quais o desaparecimento dos mercados físicos e a consequente quebra da identificação entre mercadoria e sua representação, entre economia e cultura. Essa flexibilização, presente em todas as circunstâncias cotidianas, está no cerne dos processos de consumo, esvaziamento e glamorização da vida,

desde o fluxo das finanças até a produção e consumo de mercadorias, identidades e conhecimento (que se transforma em informação) – e até em escolas. Tecnologias de informação eletrônica são vitais nesse processo em termos não só de velocidade, mas também de diversidade e flexibilidade numa modalidade em que ninguém pode participar – independente de classe, sexo, etnia, raça, (in)capacidade e idade – como consumidor-produtor efetivo no mercado capitalista: apenas assim – e certamente não como sujeito – efetuando sua autonomia potencial ou sua alteridade

(GUR-ZE´EV, 2002, p. 85).

A Educação, nesse cenário, assume a dinâmica de uma jornada interminável, sem caminhos preestabelecidos ou horizontes alcançáveis. Igualmente, assume-se que o ser humano não é objeto de idealização, e nem pode ser tomado como algo pronto. O ser humano está em contínua construção e, nessa premissa, ser humano significa tornar-se humano, conquistar-se, apoderar-se de si. A consciência do eu, simultânea à consciência do nós, torna o ser humano um sujeito responsável, ético, individual e social. Ninguém pode ser ético senão em relação com o outro: a ética existe na necessária interação com o outro. Interação essa que nem sempre será harmônica ou equilibrada, pois a sociedade é plena de interesses e valores divergentes. A divergência e a dissociação levam ao conflito, e ele, por sua vez, não representa uma patologia ou um fator de desmantelamento da sociedade. Ao contrário, se gerenciado com ética, pode produzir resultados positivos.

No contexto escolar, tais resultados têm relação direta com a atuação de professores, cujo papel, no transborde das funções escolares, também é objeto de questionamentos. Alexandre Guilherme e W. John Morgan (2018, p. 794) sintetizam a “importância dos professores para um novo modelo de desenvolvimento baseado na completa compreensão do potencial individual e para o desenvolvimento sustentável em nível global”, que desafia a profissão docente. O professor é impelido a assumir o papel de construtor de uma comunidade dialógica e formador do caráter dos sujeitos (a partir de Buber), de político instigador da crítica e da autolibertação nos indivíduos (a partir de Freire) e, ainda, de improvisador a incentivar a criticidade sem referenciar idealizações utópicas (a partir de Gur-Ze’ev).

É na relação direta com o outro, tendo a ética da alteridade como critério, que o ser social se define e define sua existência cidadã. Ao definir seu agir a partir do outro, ele define a si e exerce seu direito mais básico de cidadão: o direito a ter direitos. A proposta compreendia pela CIPAVE, nesse sentido, é campo profícuo à construção da cidadania a partir da autonomia do sujeito e de seu empoderamento, chamando para si próprio a tarefa de gerenciar os conflitos de que faz parte.

3 A abordagem das CIPAVES na Rede Pública Estadual de Educação de Viamão

Os conflitos e a violência são temas complexos, pois atingem diferentes perfis, contextos sociais e iniciativas de controle. Também ocorrem em dinâmicas variadas, por razões múltiplas e com diversos graus de intensidade. Destaca-se, neste estudo, a CIPAVE como proposta para trabalhar os conflitos e a violência que ocorrem nas escolas. A CIPAVE, política pública do Estado do Rio Grande do Sul, foi formulada a partir de parceria firmada entre a Secretaria Estadual de Educação, o SEDUC e a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), em vista do projeto “Justiça para o século 21”, visando à implementação de uma proposta de justiça social da qual a comunidade escolar participa e resgata valores tendo como meta a prevenção da violência. Passou-se a desenvolver, nas escolas estaduais, círculos de cultura, os quais fazem parte da gestão, por meio de programas estruturantes, do projeto “Prevenção da Violência”. Esse envolve a sociedade civil por meio do Comitê Estadual de Prevenção da Violência, voltado a minimizar os índices de violência escolar no estado. No âmbito desse projeto, Círculos Restaurativos são praticados junto com os representantes das trinta Coordenadorias Regionais de Educação (CREs), os quais têm a função de multiplicar a metodologia ao tratar as situações de conflito e de violência no âmbito escolar.

A criação das CIPAVEs surgiu a partir da Lei Municipal n. 6.025, de 12 de junho de 2003, no Município de Caxias do Sul, regulamentada pelo Decreto n. 13.097, em 8 de fevereiro de 2007. A proposta original da CIPAVE foi a de formar comissões internas nas escolas de Caxias do Sul para debater questões como violência e acidentes envolvendo estudantes. A partir das comissões, surgiu a necessidade de formar uma rede de apoio às escolas por meio de parcerias para a obtenção de auxílio na resolução de problemas enfrentados no ambiente escolar, tais como o uso de drogas no entorno da escola e nas comunidades com alto índice de violência nas quais as escolas encontram-se inseridas.

A Lei Estadual n. 14.030, aprovada pela Assembleia Legislativa em 27 de junho de 2012, institui as CIPAVEs nas escolas da Rede Pública Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul. Conforme se depreende dos objetivos indicados, a CIPAVE propõe que se diga não à violência e se adote a cultura de paz no dia a dia da escola. A intenção é de que, por meio dessas ações, as relações entre as pessoas traduzam respeito, amizade, harmonia e integração. A própria violência é trabalhada por meio de ações das comissões, o respeito aos sujeitos que integram a escola, com o objetivo de construir a paz e um bom e salutar convívio. A proposta prevê, ainda, a instalação de Núcleos Escolares de Gestão de Conflito e Combate ao Bullying, a começar pelas escolas de tempo integral e nas que já contam com as CIPAVES.

Para obter dados referentes aos conflitos registrados pelas equipes gestoras das escolas da Rede Pública Estadual de Ensino de Viamão – RS, foi necessário recorrer à solicitação prevista na Lei n. 12.527/2011 (Lei de Acesso a Informações Públicas), via Serviço de Informação ao Cidadão (SEDUC). Os registros realizados nos anos de 2016 e 2018 foram disponibilizados em janeiro de 2019, durante visita ao setor responsável pela CIPAVE na SEDUC. Nessa ocasião, registrou-se o recebimento dos referidos dados através de protocolo, assinado pela coordenadora do Setor, no Termo de Utilização de Informações e Confidencialidade. Os dados disponibilizados compunham seis planilhas, em arquivos do tipo .xlsx, e foram analisados com a utilização do programa Excell, do Pacote Office da Microsoft Inc. Cada planilha apresentava-se organizada a exemplo da Figura 1, referente aos conflitos registrados no primeiro semestre de 2016.

Fonte: Elaboração própria.

Figura 1 Planilha disponibilizada pela SEDUC com o registro de conflitos realizado pelas CIPAVEs das escolas do RS no 1º semestre de 2016 

Como pode ser observado na Figura 1, a planilha apresenta, em cada linha, os registros efetuados por escola e, em cada coluna, a identificação da escola (por Município, código e nome), bem como a definição dos conflitos registrados. Importa salientar que os conflitos são previamente categorizados pela SEDUC, a qual fornece às escolas um formulário online para preenchimento. Esse formulário também contém o campo de registro das iniciativas de prevenção e ações realizadas nas escolas pelos parceiros do projeto CIPAVE.

O Quadro 1 mostra os tipos de conflito constantes em cada planilha disponibilizada pela SEDUC.

Quadro 1 Tipos de conflito predefinidos pela SEDUC nos formulários preenchidos pelas escolas, por ano e semestre 

Ano/Semestre: tipos de conflito
2016/1: Indisciplina; Agressão verbal a professores, funcionários ou direção; Agressão física a professores, funcionários ou direção; Arrombamentos e/ou furtos; Assaltos na entrada ou saída da escola; Violência física entre alunos; Violência no entorno da escola; Tráfico, posse ou uso de drogas; Bullying; Depredações, pichações e vandalismo; Acidentes de trânsito no entorno da escola.
2016/2: Indisciplina; Agressão verbal a professores, funcionários ou direção; Agressão física a professores, funcionários ou direção; Arrombamentos e/ou furtos; Assaltos na entrada ou saída da escola; Violência física entre alunos; Tráfico, posse ou uso de drogas; Bullying; Depredações, pichações e vandalismo; Acidentes de trânsito no entorno da escola; Racismo.
2017/1: Indisciplina; Agressão verbal a professores, funcionários ou direção; Agressão física a professores, funcionários ou direção; Arrombamentos e/ou furtos; Assaltos na entrada ou saída da escola; Violência física entre alunos; Tráfico, posse ou uso de drogas; Bullying; Depredações, pichações e vandalismo; Acidentes de trânsito no entorno da escola; Racismo.
2017/2: Bullying; Depredações, pichações e vandalismo; Assaltos na entrada ou saída da escola; Agressão verbal a professores, funcionários ou direção; Arrombamentos e/ou furtos; Agressão física a professores, funcionários ou direção; Racismo; Violência física entre alunos; Tráfico, posse ou uso de drogas; Acidentes de trânsito no entorno da escola; Indisciplina.
2018/1: Suicídio; Automutilação; Armas de fogo; Armas brancas; Agressão física a professores, funcionários ou direção; Tráfico, posse ou uso de drogas; Violência física entre alunos; Assaltos na entrada ou saída da escola; Arrombamentos e/ ou furtos; Acidentes de trânsito no entorno da escola; Depredações, pichações e vandalismo; Agressão verbal a professores, funcionários ou direção; Indisciplina; Homofobia; Racismo; Bullying; Intolerância religiosa.
2018/2: Suicídio; Tentativa de suicídio; Automutilação; Armas de fogo; Armas brancas; Agressão física a professores, funcionários ou direção; Tráfico de drogas; Posse de drogas; Uso de drogas; Violência física entre alunos; Assaltos na entrada ou saída da escola; Arrombamentos e/ou furtos; Acidentes de trânsito no entorno da escola; Depredações, pichações e vandalismo; Agressão verbal a professores, funcionários ou direção; Indisciplina; Homofobia; Racismo; Bullying; Intolerância religiosa; Consumo de bebida alcoólica.

Fonte: Elaboração própria.

Como se vê no Quadro 1, a cada semestre, a categorização dos conflitos foi alterada pela SEDUC. Assim, para realizar o presente estudo, optou-se por construir uma categorização própria, agrupando os conflitos conforme os critérios indicados por António Nóvoa (2005). O autor diferencia três dimensões nas quais o conflito pode ocorrer: a) relacional, referente a conflitos que acontecem entre pessoas; b) institucional, relativa a conflitos entre as pessoas e as regras ou normas de uma instituição; e c) estrutural, referente aos conflitos que extrapolam o ambiente institucional. Assim, no presente estudo, as categorias de conflito predefinidas pela SEDUC foram sistematizadas como indica a Figura 2.

Fonte: Elaboração própria. Observações: foram omitidos, na sistematização, os tipos de conflito dos quais não houve registro efetuado pelas escolas, no período em estudo.

Figura 2 Sistematização dos tipos de conflitos registrados nas escolas 

Em sequência, as escolas localizadas no Município de Viamão foram identificadas em cada planilha, bem como os registros correspondentes efetuados. Ao todo, foram identificadas 15 escolas: Escola Estadual de Ensino Fundamental (EEEF) Adonis dos Santos; EEEF Antônio de Souza Neto; EEEF Carlos Chagas; EEEF Walt Disney; Instituto Estadual de Educação (IEE) Isabel de Espanha; Escola Estatual de Ensino Médio (EEEM) Dr. Genésio Pires; EEEM Governador Walter Jobim; EEEM Minuano; EEEM Santa Isabel; EEEM Açorianos; EEEF Rui Barbosa; EEEF Canadá; EEEM Nísia Floresta; EEEM Ayrton Senna da Silva e EEEM Orieta. Como pode ser visto no Quadro 2, as escolas que forneceram registros para o Mapeamento CIPAVE variou.

Fonte: Elaboração própria. Observação: o preenchimento da célula com a cor amarela significa que, naquele semestre, a escola preencheu o formulário on-line disponibilizado pela SEDUC – RS.

Quadro 2 Participação das escolas da Rede Pública Estadual de Ensino de Viamão no Mapeamento CIPAVE – 2016-2018, por semestre 

Chama a atenção que algumas escolas, tendo aderido ao Mapeamento CIPAVE, deixaram de preencher o formulário on-line nos semestres seguintes, bem como a total ausência de escolas viamonenses no segundo semestre de 2018. A inconstância de tal adesão, aliada às modificações nas categorias de conflito, tornaram mais complexo o questionamento acerca das eventuais dificuldades e desafios que as equipes gestoras poderiam enfrentar (BERG, 2012).

O próximo passo, no desenvolvimento da análise dos dados obtidos, foi quantificar o registro de conflitos, conforme informado à SEDUC pelas escolas. Nessa quantificação, foi adotada a sistematização já referida. A distribuição das ocorrências pode ser vista no Gráfico 1.

Observa-se que os conflitos relacionais ocorrem em maior proporção, totalizando 55,8% das ocorrências registradas. A segunda categoria com maior incidência é a de conflitos institucionais, correspondendo a 38,2% do total. Os conflitos estruturais abrangem 5,3% do total de registros. Por representarem apenas 0,7% do total, outros tipos de conflito não foram analisados separadamente.

Fonte das representações gráficas: Elaboração própria a partir de SEDUC/RS, Mapeamento CIPAVE. Notas técnicas: (1) Definições objetivas das categorias de conflito – relacionais: entre estudantes; institucionais: entre estudantes, servidores e a organização escolar; estruturais: entre estudantes, servidores, a organização escolar e as estruturas sociais em que se inserem. (2) Os tipos de conflito foram previamente definidos pela SEDUC – RS. (3) Total de ocorrências registradas (n) = 6.341. Percentuais calculados sobre o total geral (n) = 6.341. Todas as representações gráficas referem-se ao total geral (n) = 6.341. (4) As ocorrências proporcionalmente inferiores a 1% do total geral não estão representadas. (5) Outras ocorrências: demais tipos de conflito.

Gráfico 1 Distribuição em percentual (%) das ocorrências registradas em escolas estaduais no Mapeamento CIPAVE, por categoria e tipos de conflitos 

Uma vez traçado o panorama de ocorrência de conflitos registrados pelas escolas no Mapeamento CIPAVE, as respectivas equipes gestoras foram abordadas, entre os meses de março e junho de 2019, para que respondessem a um questionário. Nesse questionário, constam perguntas formuladas a partir do referencial teórico adotado no presente estudo, bem como das informações apuradas pela análise dos dados supracitados.

Ao longo da realização da pesquisa, especialmente a partir da disponibilização, pela SEDUC, das planilhas de dados referentes aos registros das escolas, foi possível destacar alguns tópicos de maior relevância para responder ao problema de pesquisa formulado ou, ao menos, indicar o direcionamento para que se pudesse cogitar de sua solução (MORIN, 2000). Dois pontos previamente aludidos neste estudo foram destacados: a) a categorização dos conflitos, por dizer respeito aos tipos de conflito ocorridos nas escolas, e a possibilidade de as equipes encontrarem dificuldades para enquadrar os conflitos vivenciados no cotidiano escolar, nas categorias preestabelecidas pela SEDUC; e b) a inconstância das escolas no preenchimento do Mapeamento CIPAVE e a possibilidade de as equipes encontrarem dificuldades para aderir à política pública.

Para aprofundar esses pontos, foi desenvolvido um instrumento de medida, sob a forma de questionário com perguntas semiestruturadas, a ser respondido pelas equipes gestoras das escolas integrantes do objeto de investigação. Das 15 escolas integrantes do objeto, obteve-se resposta das respectivas equipes em apenas nove: EEEF Adonis dos Santos; IEE Isabel de Espanha; EEEM Dr. Genésio Pires; EEEM Santa Isabel; EEEM Açorianos; EEEF Canadá; EEEM Nisia Floresta; EEEM Ayrton Senna da Silva e EEEM Orieta. Em cada escola foi aplicado um questionário. É importante dizer que as escolas indicaram uma pessoa para responder, referindo-se a ela como membro da equipe gestora (MILANI; JESUS, 2003).

Todas as pessoas entrevistadas são do sexo feminino e residem na cidade de Viamão. Dois terços encontram-se na faixa etária de 35 a 45 anos e possuem especialização lato sensu. Fazem parte da equipe gestora há mais de dois anos 88,9%, e 55,5% já compuseram equipes gestoras de outras escolas. Indagadas sobre a ocorrência de conflitos nas escolas, as respondentes manifestaram-se como pode ser analisado no Gráfico 2.

Fonte: Elaboração própria.

Gráfico 2 Percepção das equipes gestoras sobre a ocorrência de conflitos e sua atuação para solucioná-los 

Como se vê, para 89% das equipes entrevistadas, as escolas, de acordo com suas percepções, são palco de conflitos, e as ações empreendidas para os solucionar são inefetivas ou insuficientes para tal. Os motivos que fundamentam essas percepções foram questionados, de forma aberta, aos respondentes: a) despreparo da equipe, contemplando a falta de conhecimento/domínio de técnicas de prevenção e gerenciamento de conflitos pelas equipes gestoras e pelos professores e funcionários, bem como a baixa adesão dos professores e funcionários às iniciativas propostas pela SEDUC, através da CIPAVE; b) precariedade ou insuficiência institucional, abarcando a sobrecarga dos(as) servidores(as), pela insuficiência dos professores, gerando acúmulo de funções e, também, pela precarização da atividade docente e demais atividades profissionais relativas ao contexto escolar, a ausência de incentivos à participação, o que transforma a adesão em trabalho não remunerado, e, ainda, as falhas na rede de atuação, revelando insuficiência dos mecanismos de apoio, ou ausência de resposta das entidades e órgãos da rede quando acionados; e c) vulnerabilidade estrutural, envolvendo a inadequação dos meios viabilizados, que não consideram a realidade dos contextos social, econômico e cultural em que a escola está inserida, ausência de apoio da comunidade, falta de engajamento e descrença quanto à solução de conflitos, vulnerabilidades vivenciadas pelos próprios servidores, especialmente no campo econômico e, por fim, receio e exposição dos servidores a perigos por conta do contexto de inserção da escola.

As respostas mostram que o sucesso insuficiente ou o insucesso das equipes gestoras no gerenciamento de conflitos ocorridos nas escolas tem, na percepção das respondentes, causas inter-relacionadas. A baixa adesão dos servidores foi associada às vulnerabilidades e à exposição a perigos vivenciados por esses, bem como à sobrecarga no exercício das atividades profissionais e à ausência de incentivos. Da mesma forma, a falta de apoio das comunidades foi relacionada à inadequação dos meios de gerenciamento de conflitos viabilizados através da CIPAVE à realidade dos contextos em que as escolas estão inseridas e a falhas na rede de apoio (LUCK, 2005). As equipes também foram questionadas quanto aos tipos de conflito que ocorrem em ambientes escolares. Foi solicitado que as respondentes indicassem quais consideravam relevantes, a partir das categorias predefinidas pela SEDUC.

No Gráfico 3, podem ser encaminhados os tipos de conflito considerados extremamente relevantes e relevantes pelas respondentes.

Fonte: Elaboração própria.

Gráfico 3 Distribuição dos conflitos escolares indicados pelas equipes gestoras como extremamente relevantes e relevantes 

Em 37% das respostas, a indisciplina foi indicada como extremamente relevante ou relevante. Somando-se a esse valor ofensas e agressões a servidores e episódios de depredação do patrimônio da escola, causados por estudantes, totalizam-se 49% dos conflitos percebidos por sua relevância. As ocorrências registradas referem que essas categorias compõem 38,2% do total. Analisa-se que as percepções das respondentes quanto a esses conflitos se afastam dos registros efetuados.

As ofensas verbais entre estudantes aparecem em 17% das respostas, e as agressões físicas entre estudantes figuram em 15%. O bullying foi apontado em 4%, e a discriminação, em 6% das respostas. Somados, esses conflitos totalizam 42%, valor que se distancia dos 55,8% registrados no Mapeamento CIPAVE. Por sua vez, os episódios envolvendo tráfico e atividades correlatas, no ambiente escolar e na comunidade, somados a arrombamentos e furtos, totalizaram 9% das respostas. Esse valor contrasta com os 5,2% totalizados pelos conflitos estruturais indicados no Mapeamento CIPAVE.

A percepção de relevância dos conflitos escolares pela equipe gestora demonstra que os conflitos institucionais e estruturais estão superestimados, ao passo que os conflitos relacionais estão subestimados, em relação ao que se verifica nas ocorrências registradas para as respectivas escolas.

Quanto à percepção acerca do preparo das equipes para lidar com conflitos, nenhuma das equipes foi percebida pelas respondentes como muito preparada. As respostas se dividiram entre as que percebem as equipes parcialmente preparadas e as que as percebem pouco preparadas, com se lê no Gráfico 4.

Fonte: Elaboração própria.

Gráfico 4 Distribuição das percepções sobre o preparo da equipe gestora para lidar com conflitos 

Dois terços das respondentes entendem que as equipes gestoras estão parcialmente preparadas para o gerenciamento de conflitos na escola, e um terço percebe as equipes como despreparadas. As causas do despreparo foram investigadas através de pergunta aberta. As respostas obtidas apontam a dois motivos principais de acordo com as percepções das equipes, que podem ser vistos no Gráfico 5.

Verifica-se que 89% das respondentes consideram as equipes despreparadas por não conhecerem as técnicas para gerenciamento de conflitos, ou por não dominarem essas técnicas. Em 11% das respostas, a falta de preparo para lidar com conflitos foi atribuída à baixa adesão dos servidores às iniciativas propostas nesse sentido. Ambas as circunstâncias foram citados como motivos que desafiam as equipes à obtenção de sucesso quanto ao gerenciamento de conflitos.

Fonte: Elaboração própria.

Gráfico 5 Motivos percebidos pelas equipes gestoras para o despreparo em lidar com conflitos escolares 

3 Considerações finais

O presente estudo abordou a temática conflitos escolares e os desafios que eles representam às equipes gestoras das escolas. Foram analisados: a) os conflitos ocorridos nas nove escolas referidas da Rede Pública de Viamão – RS, cadastradas na plataforma de Mapeamento das CIPAVEs, que geraram registros de ocorrência durante o período analisado; b) a congruência dos dados em relação ao cenário local e à percepção dos gestores escolares; c) os desafios enfrentados pelas equipes gestoras na utilização do instrumental em que as CIPAVEs consistem; d) as principais noções e conceitos referentes às abordagens teóricas recentes sobre o gerenciamento de conflitos, com ênfase no âmbito escolar; e e) os dados obtidos à luz do referencial teórico de fundamentação do estudo.

Pretendeu-se responder sobre a seguinte questão norteadora: como instrumental de gerenciamento de conflitos e violências em ambiente escolar, quais são os principais limites e potencialidades das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violências Escolares (CIPAVEs) segundo a percepção dos integrantes das equipes gestoras de escolas da Rede Pública Estadual de Ensino de Viamão-RS?

Observando os conflitos escolares, foi possível constatar a importância que a escola tem em renunciar ao papel tradicional de transferência de conhecimentos voltado à formação profissional para assumir o papel de instituição de promoção da transformação social. Dessa forma, promove a inclusão do aluno e do meio sociocultural dentro da rotina do ambiente escolar. Portanto, se percebem os desafios que a gestão escolar enfrenta para adotar essa nova perspectiva de ensino, através da falta de condições apropriadas de funcionamento das escolas, a ausência de incentivo de capacitação contínua da formação dos gestores e a carência no desenvolvimento constante das habilidades de mediadores de conflitos nos ambientes escolares.

Por fim, analisando o gerenciamento de conflitos nas escolas da rede em estudo, compreendeu-se que as CIPAVEs foram adotadas pelo Estado do Rio Grande do Sul como meio oficial de prevenção e gerenciamento de conflitos escolares. Porém, essa política pública (originalmente pensada para auxiliar os gestores e as comunidades nessa tarefa) apresenta inconsistências, que levaram a questionamentos. Ao averiguar as percepções das equipes gestoras sobre a relevância dos conflitos, percebeu-se que essas equipes subestimaram os conflitos relacionais, registrados no Mapeamento CIPAVE com as maiores frequências de ocorrência. Já os conflitos institucionais e estruturais foram superestimados. Essa discrepância dá pistas de que, possivelmente, as noções sobre os tipos de conflito que devem gerar ações das equipes não são compartilhadas entre essas e os gestores públicos que formulam políticas públicas compostas pelo Projeto CIPAVE. Nesse sentido, ficam abertas, para serem desenvolvidas em futuros estudos, as seguintes perguntas: a) As categorias predefinidas pela SEDUC são suficientemente claras?; e b) As alterações na definição dessas categorias, nos formulários on-line disponibilizados pela SEDUC fizeram sentido às equipes gestoras?

A inconstância das escolas viamonenses no preenchimento do Mapeamento CIPAVE também foi destacada no estudo. Verificou-se que todas as equipes gestoras percebem a existência de conflitos nas escolas, o que permitiu descartar, como possível causa para essa inconstância, a falta de ocorrências de conflitos. Nesse ponto da pesquisa, houve maior aproximação dos elementos que podem ser elaborados como resposta ao problema formulado. Aqui, figuraram os principais pontos considerados pelas equipes como desafios ao gerenciamento de conflitos, percebido como de alcance insuficiente ou parcialmente suficiente. As razões apontadas para tal, sistematizadas no estudo são: em despreparo da equipe; precariedade ou insuficiência institucional; e vulnerabilidade estrutural, indicativas do que, na percepção das respondentes, realmente desafia a gestão escolar na prevenção e no gerenciamento de conflitos.

Estima-se, assim, ter contribuído para o debate sobre os temas abordados, o qual segue aberto e, em trabalhos futuros, será retomado, dada a importância do tema tanto social quanto acadêmica.

1Segundo a nota 1 da tradutora da Lógica da filosofia, Lara Christina de Malimpensa (Lf, 12), para Weil homens de ciência é uma expressão utilizada para indicar a contradição como os homens de letras, literato, intelectuais. Expressão que se aplica tanto ao erudito, em uma área do conhecimento, quanto ao cientista.

2CANIVEZ (1991, p. 149). O Estado será a organização graças à qual a comunidade age sobre sua própria estrutura social, para subordinar o processo de produção e de trocas, tanto quanto, de modo geral, o progresso material e técnico, ao qual Weil chama “a moral viva da comunidade”.

3Para Kant (2002, p. 25-26), a Educação deve possibilitar que o homem seja disciplinado, culto, prudente e moral. Ele esclarece, na obra Sobre a pedagogia, que a Educação não se restringe a simples instrução do educando, devendo, contudo, tratar, também, das questões da socialização e da moralização do homem.

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Recebido: 18 de Agosto de 2019; Aceito: 28 de Novembro de 2019

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