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Conjectura: Filosofia e Educação

Print version ISSN 0103-1457On-line version ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.dossie.8 

DOSSIÊ: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA CRÍTICA: PREOCUPAÇÕES E TENDÊNCIAS ATUAIS

A estética de Georg Lukács: pressupostos para a prática escolar

The aesthetics of Georg Lukács: assumptions for school practice

Carlos Henrique Ferreira Magalhães* 
lattes: 2945866267836763

*Doutor em Educação pela UFSCar. Professor Associado do Departamento de Educação Física da UEM-PR. E-mail: henryferrer@gmail.com.


Resumo

Este ensaio teórico tem a finalidade de caracterizar os pressupostos antropomorfização e realismo na Estética de Lukács. A tensão que a objetividade promove na subjetividade do ser social, proporcionada pela arte realista, possibilita ao homem se aproximar dos ritmos das contradições da realidade. Isso permite ao homem aguçar sua crítica e buscar sua emancipação. Acreditamos que uma prática escolar sustentada pela necessidade de se apropriar da cultura clássica com as múltiplas contradições da realidade constitui-se numa alternativa para proporcionar uma Educação crítico-emancipatória.

Palavras-chave Lukács; Estética; Realismo; Prática Escolar; Antropomorfização

Abstract

This theoretical essay aims to characterize the anthropomorphism and realism assumptions in Lukács’ Aesthetics. The tension that the objectivity promotes in the social being’s subjectivity provided by the realist art, makes it possible for mankind to approach the paces of contradictions in reality. This enables mankind to sharpen their criticism, while searching for emancipation. We believe a school practice upholded by the need to take ownership of the classical culture with the multiple contradictions of reality is an alternative to provide a critical emancipatory Education.

Keywords Lukács; Esthetics; Realism; School Practice; Anthropomorphism

Introdução

“[...] la tendência general de lo estético consiste en superar la fetichización […]”

(LUKÁCS, 1965a, p. 276).1

Refletir a respeito da formação do ser social que a Educação escolar realiza no tempo presente é a preocupação que justifica essa síntese. Parece acertado que os aspectos pragmáticos incidam com intensidade na instituição escolar, vide o projeto de escolas sem partido, discutidos em diversos estados da Federação brasileira (PENNA, 2018). Com efeito, na relação social sob a égide do capital, predominantemente, o ser social constitui sua ontologia reconhecendo a realidade pela aparência dos fatos dados. Buscar a origem, a estrutura e a dinâmica que compõem um fato, uma prática social, constitui-se num procedimento ontológico, observado nas reflexões do filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971), nas suas obras Estética e Ontologia. Essas sistematizações filosóficas permitem-nos refletir a prática escolar.

Lukács possui uma obra vastíssima. As primeiras foram traduzidas no Brasil pelos saudosos Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder (MASSUIA, 2013). Todavia, das duas grandes sínteses do pensamento de Lukács, a Estética, de 1963, não temos tradução, e a Ontologia do Ser Social, de 1969, foi traduzida recentemente, em 2012. Essas duas obras apresentam um rompimento com o idealismo de Lukács, de História e Consciência de Classe (1923), a qual Lukács, após a leitura dos Manuscritos econômicos-filosóficos, de Karl Marx (2004b), no seu exílio, na União Soviética, na década de 1930, proporcionou-lhe uma reflexão rigorosa a respeito do homem e das relações sociais a partir da realidade, da prática social, da categoria fundante do materialismo histórico-dialético: o trabalho. O trabalho, entendido como a intervenção do homem na natureza (MARX 2004a), possui uma teleologia. Essa proporciona distintas alternativas e meios para objetivá-la. As mesmas são escolhidas a partir dos valores/ ideologia do ser social. Para Lukács (2010), a objetivação fundante do ser social, o trabalho, elabora a subjetividade humana, sua autoconsciência, seu ser social fica em tensão permanente com seu estranhamento em relação a si, com o estranhamento em relação ao outro e com o estranhamento em relação à realidade.

Assim, o trabalho, entendido como categoria fundante do ser social, sua objetivação pode revelar um ser social autêntico ou um ser social inautêntico. Essas contradições foram refletidas por Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos (2004b). Lembra-nos que o homem, quando está intensificado seu estranhamento em relação a si, foge do trabalho como se foge da peste, constrói palácios para outros e constrói uma caverna para si; na relação social-capitalista, o trabalhador é a mercadoria de menor valor, pois quanto mais riqueza produz para quem detém a propriedade privada dos meios de produção, mais miserável o trabalhador se torna. São essas contradições proporcionadas pelo trabalho, entre outras, que permitiram Lukács se aproximar de uma reflexão materialista históricp-dialética (BESSIÈRE, 2019) e ter a compreensão dos aspectos fundantes do ser social a partir da totalidade e de suas múltiplas contradições.

Sendo assim, a partir da década de 1930, Lukács teve uma preocupação intensa para entender o ser social (PEREIRA; COSTA, 2017). Essa singularidade para Lukács somente poderia ser refletida tendo uma mediação ininterrupta com a universalidade, que é representada pelas relações sociais de produção. Para compreender o ser social, Lukács estudou rigorosamente aquela que considerava ser uma alternativa possível de objetivações autênticas do ser social: a Arte. Intensificou seus estudos de Estética chegando em sua obra final em 1963. A arte é uma das objetivações humanas na qual o ser social revela-se na sua plenitude. É com essa tensão contraditória de um homem que foge do trabalho, assim como por meio do trabalho o homem realiza objetivações criativas, necessárias e importantes que Lukács observa a necessidade de estudar a ética, porém ele entendeu que era necessário sistematizar uma ontologia materialista (TERTULIAN, 2014). Isso o consumiu na última década de sua vida. Logo, ele não teve tempo para sistematizar suas reflexões acerca da ética, porém deixou algumas reflexões na sua última década de vida.

A prática escolar

O pensamento de Lukács a respeito do trabalho sugere-nos categorias como teleologia, valores, alternativa e objetivação, que foram de suma importância para Silva Júnior e Ferreti (2004) sistematizarem pressupostos teóricos a respeito da prática escolar. “A alternativa constitui-se em categoria fundamental na prática escolar” (2004, p. 98). Os autores asseveram que a formação de um ser social com estranhamento ou sua formação em luta contra seu estranhamento são as alterativas fundantes de uma prática escolar. Nesse viés, caso a prática escolar tenha como alternativa a luta do ser social contra seu estranhamento, o gnosiológico articulado com o ontológico deve ser fundante do saber escolar a ser ensinado, a fim de problematizar o pragmatismo da cotidianidade, assim como suas contradições.

Lukács (1965a) assevera que a Ciência e a Arte partem das necessidades do cotidiano, todavia suas reflexões e objetivações se suspendem da mediocridade cotidiana. A prática escolar é objetivada nesse cotidiano pragmático. A prática escolar é o tempo e o espaço pedagógicos em que há o predomínio do pragmatismo e do cognitivismo cotidiano. Essa prática escolar organiza um polo de contradição na sua teleologia: uma formação no sentido do em-si ou uma formação no sentido para-si. A objetivação, ou seja, a materialização de uma das finalidades apontadas, exige uma apropriação da realidade. Nesse momento, a prévia ideação é colocada em ação quando a subjetividade humana passa a refletir sobre a objetividade social a fim de selecionar a teleologia a ser buscada e os meios para objetivá-la. “A apropriação é, portanto, antes de tudo, um momento histórico da formação social do indivíduo, ainda que neste momento sob a forma de potência na consciência humana” (SILVA JÚNIOR; FERRETI, 2004, p.86).

Desse modo, entendemos que uma prática escolar que vise à predominância no sentido para si, um ser social crítico-emancipado, busca seu gênero humano, seu genuíno vir-a-ser necessita de uma aguda reflexão acerca da realidade social, assim como a apropriação da cultura clássica (SAVIANI, 2000). Sem uma profunda reflexão sobre essa realidade social a qual intensifica um ser social estranhado, em si, sob relações sociais fetichizadas, numa cotidianidade pragmática, a prática escolar não consegue se objetivar com um viés crítico-emancipatório a qual tem como pressuposto a superação da atual relação social (DUARTE, 1999).

Mas Lukács (1963) alertou que a Ciência e a Arte são duas objetivações humanas, que partem do pragmatismo cotidiano retornando ao mesmo para transformá-lo, quando há necessidade de suspensão dessa mediocridade. Todavia, não se trata de toda objetivação artística para Lukács (1965a), e sim daquelas que buscam uma intensa compreensão da realidade: o Realismo. Essa tendência artística tem sua origem nas aspirações mais profundas de uma época cuja forma e conteúdo não se separam. A vida cotidiana toma a maior parte da vida dos homens, nela está as complicadas relações de trabalho, de família, de amor e de amizade. Desse modo, a cultura, seja por meio da Ciência, seja por meio da Arte, possibilita a elaboração de alternativas para melhor atuar na cotidianidade. Na vida cotidiana, está a origem das necessidades humanas. A Arte realista propõe uma profunda reflexão estética sobre essa realidade a fim de apresentá-la. “La aproximación del entendimento [...] a la cosa singular, la elaboración de una copia [...] de ella, no es un acto simples, imediato, [...] sino un acto complicado”2 (LUKÁCS, 1965a, p. 66).

Este ato complicado constitui-se num reflexo estético do concreto da realidade. Essa reflexão orienta-se pelas necessidades humanas, não por algum a priori. As necessidades humanas têm a sua origem na vida cotidiana. O reflexo científico elabora leis para o objeto investigado além de intensificar as forças produtivas. Já o reflexo estético, na medida em que não há separação do sujeito do objeto, é uma atividade antropomorfizadora, que intensifica a elaboração da autoconsciência. O reflexo estético permite um refinamento dos sentidos humanos. Com efeito, Lukács (1965a) fundamenta-se em Marx lembrando que os sentidos humanos (tato, visão, audição e gustação) são desenvolvidos num árduo processo histórico. Assevera-nos que o ato de se alimentar promove uma distinção entre o homem e o animal quando essa atividade nutritiva destaca o sabor. Ainda nos diz que o homem angustiado não terá sensibilidade, percepção, não terá senso estético para apreciar distintas objetivações de essências humanas, que revelem belas sonoridades, saborosos preparos alimentares ou a apreciação visual de um belo3 espetáculo de dança. Com isso, o desfrute dessas objetivações belas produzidas pelos homens, assim como a capacidade de produzi-las, exigem o desenvolvimento e a educação dos cinco sentidos humanos.

Esses cinco sentidos podem ser educados, também, pela Arte. Todavia, na atual relação social-capitalista, a fetichização torna-se predominante na formação humana. Sendo assim, a essência humana tem obstáculos para se objetivar. Com efeito, isso exige um empenho, um esforço, uma reflexão profunda de toda literatura e Arte autêntica que vise a objetivar a substância humana autêntica. A mercadoria, o dinheiro, o preço são reificações que estabelecem, predominantemente, relações anti-humanas. Assim, Lukács (2009), apoiado em Marx e Engels, defende que a Arte realista é aquela que apresenta a realidade social fetichizada a qual afasta o homem de sua essência, fazendo-o um homem verdugo do próprio homem a partir de relações de opressão e exploração. “Marx e Engels viam em Shakespeare e em Balzac [...] a tendência artística realista que melhor correspondia à estética que professavam” (LUKÁCS, 2009, p. 106). Realmente, autores que nos fazem refletir significativamente sobre o tempo presente. Estar diante de uma obra em que irmãos se matam para ser o futuro Rei, como em Hamlet de Shakespeare, ou ver o sofrimento de uma mulher, de 30 anos, numa sociedade machista, como Balzac apresentou, são temas, são histórias reveladoras da sordidez produzida num cotidiano opressor, em que homens viram objeto e objetos viram sujeitos.

A estética marxista se limita a desejar que a essência individualizada pelo escritor não venha representada de maneira abstrata e, sim, como essência organicamente inserida no quadro da fermentação dos fenômenos a partir dos quais ela nasce

(LUKÁCS, 2009, p. 107).

Essa fermentação dos fenômenos é uma alusão ao cotidiano. A maneira abstrata sugerida na citação trata-se de idealismo. Lukács (1965a) afirma a necessidade de termos fidelidade à realidade com a origem histórica. Essa mesma realidade produz um reflexo, exigindo-nos captar as continuidades e descontinuidades contraditórias de uma prática social. Assim, abre-se um confronto direto com o idealismo. A reflexão estética proposta por Lukács (1965a, 1965b) parte da realidade, do mundo humano e se volta a ele. A gênesis de uma obra artística e autêntica está nas contradições sociais de sua época. São essas obras artísticas e autênticas, como as observadas no Realismo, provoca-nos uma reflexão acerca da realidade, promovem uma tensão na nossa capacidade de reflexão. Assim, nossos valores, talvez, sejam problematizados e alternativas para que uma intervenção social se revele. Com efeito, isso, talvez, seja uma possibilidade, diante do imediatismo pragmático ou do idealismo a respeito da realidade social de serem problematizados. Com isso, um caráter crítico pode se objetivar exigindo do mesmo uma prática para si, emancipadora. Desse modo, a Arte realista tem força para educar criticamente o ser social. A Arte realista, ao se impor a tarefa de elaborar uma estética com reflexos da realidade, não se permite uma observação imediata da realidade ou uma mera conformação com seus aspectos observados na aparência.

Com efeito, revelar a essência de um fato social, buscando revelar o real, na sua inserção na totalidade, constitui-se numa característica da arte realista. “A autêntica dialética de essência e fenômeno se baseia no fato de que em ambos são igualmente momentos da realidade objetiva, produzidos pela realidade e não pela consciência humana” (LUKÁCS, 2009, p. 104). Todavia, a realidade não se apresenta de imediato ao nosso olhar. Múltiplas particularidades (Educação, Direito, Arte, Saúde, Esporte e Lazer) se influenciam sendo as mesmas influenciadas pela economia-política, assim como as particularidades citadas, entre outras, influenciam na economiapolítica. Somente a reflexão sobre essas influências múltiplas de particularidades permite-nos revelar o oculto na aparência dos fenômenos.

Assim, “a verdadeira arte, portanto, fornece sempre um quadro de conjunto da vida humana, representando-a no seu movimento, na sua evolução e desenvolvimento.” (LUKÁCS, 2009, p. 105). Apresentar as múltiplas contradições da realidade é uma condição sine qua non para provocar o sujeito a refletir criticamente acerca da realidade. Um projeto educacional, uma prática escolar, que tenha a finalidade de formar um ser social crítico-emancipado não pode se furtar de apresentar as múltiplas contradições da cotidianidade no processo de apropriação da cultura clássica (SAVIANI, 2000).

Lukács ainda assevera que a “la essencia del arte no puede estudiarse sino en estrecha conexión con su génesis” (1965a, p. 83). “La génesis histórica del arte, en sentido productivo y en el de la receptividade artística, tiene que tratarse en el marco de la génesis de los cinco sentidos”4 (LUKÁCS, 1965a, p. 240). Desse modo, Lukács (1965a), apoiado em Engels, destaca o papel da mão no desenvolvimento dos sentidos e da essência humana. Com a mão, o homem faz uma intervenção na natureza para realizar sua sobrevivência. Com essa mão, o homem faz força em um objeto, possui uma percepção tátil, da forma (escrita, escultural ou pictórica) de um conteúdo elaborado idealmente. A mão elabora instrumentos para atender às suas necessidades, enfim com a mão o homem aprimora sua essência humana e desenvolve sua sensibilidade. São os objetos externos e as necessidades humanas que educam os cinco sentidos humanos. Dessa forma, a subjetividade estética se enriquece, intensifica os sentimentos e pensamentos. Mas qual seria a origem histórica da Arte no desenvolvimento da subjetividade estética do homem? Não se tem essa precisão. Assim, indicar alguns princípios que estruturam a produção artística é necessário para entender o caráter de antropomorfização que a reflexão estética produz no homem.

Um primeiro princípio da produção artística para Lukács (1965a) é o ritmo. O ritmo está presente na existência fisiológica do indivíduo e nos hábitos motores. Possui uma derivação externa oriunda do trabalho. Esse orienta os limites espaciais e temporais de uma ação do homem. A intervenção do homem na natureza, o trabalho, pode ser observada nas múltiplas técnicas, das quais o homem precisa se apropriar, internalizar, dominar para ter uma intervenção na natureza. Isso pode ser observado em grupos de artistas como os dançarinos. O ritmo é um encontro, uma interação dos atos fisiológicos humanos com a necessidade de uma objetivação do talento humano. A diversidade de ritmos impõe distintas sensibilidades e percepções para decodificá-los, exigindo o aprimoramento dos sentidos humanos e, também, da capacidade humana de refletir. Esse aprimoramento faz-nos relembrar que para Lukács (1965a) a reflexão estética permite superar a fetichização. São com esses pressupostos que refletimos sobre uma Educação, que possa permitir que o sujeito lute para ser sujeito e não objeto. Há de se destacar com isso o caráter de antropomorfização que a Arte possui para Lukács (1965a).

A antropomorfização constitui-se numa intensificação da autoconsciência, quando esse momento subjetivo age na humanização do homem. Esse momento subjetivo exige a captação da realidade, uma mímese com a qual o homem busca a essência não revelada pela aparência da vida. Para Lukács

cada manifestação da subjetividade humana se encontra condicionada de múltiplas formas, por suas relações concretas com a realidade objetiva; não é, simplesmente, o objetivo de uma atividade humana, por mais elementar que essa atividade seja, a qual é criada pelos problemas surgidos no curso do processo de produção e reprodução da existência

(TERTULIAN, 2008, p. 198).

O exercício de subjetividade humana se estabelece na medida em que o homem sofre novas necessidades impostas pelo cotidiano. A relação sujeito-objeto se impõe quando o homem resolve intervir na realidade. Isso promove a autoconstituição da subjetividade humana na medida em que o homem decide intervir no pragmatismo ou irracionalismo para objetivar nova ordem. A subjetividade estética é uma forma avançada de relação sujeito-objeto. Na Arte, sujeito e objeto não se excluem. O objeto construído pelo homem é uma representação da subjetividade contraditória que o elaborou. Assim, o conhecimento de si exige o conhecimento objetivo das tragédias e da realidade que formam nossa subjetividade. A necessidade de compreender as contradições postas pela realidade exige a organização de generalizações mais complexas à qual o pragmatismo não mais responde. A realidade, a história, exige uma subjetividade autêntica para decifrá-la e transformá-la.

Essa subjetividade autêntica não se elabora com relações imediatas entre teoria e prática. A realidade opera na elaboração de formas evoluídas de subjetividade humana. O equilíbrio entre objetividade e subjetividade na compreensão da realidade pela Arte, Lukács designa como reflexo antropomorfizante (apudTERTULIAN, 2008). O reflexo antropomorfizante é promovido quando a força da realidade retira a paz do homem, quando suas explicações ideais, ou pragmáticas, da realidade não conseguem mais lhe dar a tranquilidade com que mantinha sua cotidianidade medíocre. Essa realidade força a subjetividade humana a pensar, a refletir. Essa tensão da objetividade e subjetividade é uma necessidade básica à atividade estética que visa a captar os ritmos da realidade, a fim de se aproximar de suas tendências e, com isso, apresentar a essência de um fenômeno. A atividade estética, aqui, reflete a vida com suas contradições.

Mesmo escritores conservadores como Balzac, defensor da monarquia absolutista, defensor da aristocracia, adversário de republicanos de sua época, ao escrever tendo a realidade como teleologia de sua obra, faz um movimento e capta suas múltiplas contradições revelando essências cuja aparência tratava, com normalidade, fatos desumanos como a opressão sofrida por uma mulher numa sociedade do século XIX em que a desigualdade de gênero era tratada como um fato “normal” (LUKÁCS, 2009). Essa capacidade de apresentar a realidade com suas múltiplas contradições fez com que Marx, Engels e Lukács tivessem uma admiração pela literatura de Balzac, independentemente de seus valores conservadores. Assim, um sujeito criador, quando se propõe compreender a realidade e as contradições postas pela objetividade, o mesmo tem a capacidade de revelá-las. Isso pode provocar um desconforto, uma dúvida, naqueles que venham a se apropriar de sua obra. Assim, tem-se o início da elaboração de uma prática escolar, que pode formar um sujeito menos ignorante, menos obtuso, menos medíocre.

Lukács fez sua aposta: o método ontológico-genético fundado em suas duas últimas grandes obras, Ontologia e Estética, revelou-se fecundo na análise da vida social e das objetivações cada vez mais complexas, conferindo ao autor um lugar importante no panorama da filosofia contemporânea

(TERTULIAN, 2019, p. 76).

Parece acertado dizer que vivemos uma crítica às grandes narrativas, críticas realizadas, principalmente, ao materialismo histórico-dialético, críticas respondidas por Lukács em 1936 no seu Narrar ou descrever... Aqui, Lukács (2019) defende a narrativa clássica e realista. Ela consegue revelar a singularidade e a particularidade na totalidade. Quando se descarta a totalidade para analisar as particularidades, as múltiplas determinações não se revelam e, no máximo, a descrição produz uma crítica da civilização capitalista-romântica. A desumanidade, a fetichização produzida pela relação social-capitalista não é refletida com consistência pela descrição. Isso afirma Lukács (2019). Esse pensamento, na conjuntura, parece marginal, todavia, entender a relação social-capitalista, a realidade cotidiana, a fetichização humana nessa relação social, a fim de superá-la, faz de Lukács, ainda, um filósofo de suma importância na contemporaneidade para intervir na prática escolar.

Considerações finais

“[...] surge en el reflejo estético de la realidade una imagen de la verdadeira vida”5

(LUKÁCS, 1965a, p. 321).

Observa-se que a preocupação de objetivar uma prática escolar críticoemancipatória exige a revelação da realidade com suas múltiplas contradições. Essa não é uma tarefa fácil; vai exigir pensar contra nosso próprio pensamento. Pensar contra as certezas absolutas e pragmáticas, pensar contra o senso comum, enfim pensar contra a mediocridade cotidiana. Assim, uma prática escolar crítico-emancipatória exige um educador engajado. Todavia, caso não tenhamos esse educador engajado, caso o princípio da leitura da realidade com suas contradições esteja presente para orientar a finalidade e os meios pedagógicos, mesmo um homem conservador, talvez, consiga superar a aparência da realidade imediata. Caso um educador engajado tenha uma leitura da realidade mecanicista, numa relação de causa e efeito, poderá estar contribuindo para a formação do ser social com valores que, aparentemente, são negados. A história é contada por dois lados: os perdedores e os vencedores, senhores e escravos, dominantes e dominados. São histórias distintas contadas pelos dominadores e pelos dominados, embora, por vezes, os dominados reproduzam a história dos dominadores. E como chegar à verdade com duas histórias distintas? As duas precisam ser criticadas, e a realidade revelará a história coerente. Acredita-se que as reflexões da Arte realista de Lukács (1965a, 1965b) e a força que ela tem para elaborar uma subjetividade autêntica constitui-se em mais uma alternativa para contribuir com os fundamentos da tarefa hercúlea, grandiosa e dificílima de objetivar uma prática escolar críticoemancipatória. Essa dificuldade não pode se tornar um obstáculo, pois, quando as contradições da realidade não são criticadas, experimentamos todo tipo de bárbarie que a história executou. Quando a realidade não é criticada, convivemos tranquilamente com o pragmatismo e a irracionalidade. Somos capazes de conviver com 10 milhões de adultos analfabetos no Brasil, somos capazes de conviver com milhares de mortes nos hospitais públicos sem atendimento, somos capazes de conviver com o extermínio de homossexuais, negros, indígenas e trabalhadores brancos e trabalhadoras brancas, já fomos até capazes de conviver com o extermínio de milhões de judeus, fomos até capazes de conviver com a escravidão e com a tortura.

Quais são a origem, a estrutura e a dinâmica de toda essa violência e desigualdade? Educar criticamente é difícil, mas é muito, muito mais difícil conviver com todas as barbáries e com aquelas que convivemos no tempo presente e com aquelas que as tendências históricas, com seus ritmos contraditórios, revelam a possibilidade de se objetivarem. Só podemos lutar contra essa mediocridade cotidiana se soubermos a origem e as contradições da realidade que as mesmas provocam.

Uma Educação crítico-emancipatória não nos livrará de futuras barbáries, mas, sem ela, teremos menos instrumentos para enfrentar e realidade e superá-la. A beleza que a Arte possui para nos permitir entender a realidade social-contraditória será a mesma beleza que nos permitirá construir uma relação social com homens livremente associados.

1“[...] a tendência geral da estética consiste em superar e fetichização [...]”

2A aproximação do entendimento [...] a coisa singular, a elaboração de uma cópia [...] dela , não é um ato simples, imediato [...] é um ato complicado.

3 Lukács assevera (1965b, p. 273) que a homogeneização da beleza é uma arbitrariedade e promove uma escala de hierarquização quando há uma valorização da forma em detrimento do conteúdo, bem a propósito dos idealistas. Lukács ainda relata a diferença entre beleza natural e beleza artística. A Estética moderna, a partir de Hegel, promoveu uma falsa hierarquização “ao intentar probar la superioridad estética del arte sobre la naturaleza” (ao tentar provar a superioridade estética da arte sobre a natureza) (LUKÁCS, 1965b, p. 297). A fantasia artística, nesse sentido, estabelece uma imperfeição da natureza, sendo a realidade desmerecida e, assim, a filosofia idealista intensifica a prioridade do mundo das idéias. “[...] la beleza es uma categoria de la filosofia de la naturaleza [...].” (LUKÁCS, 1965b, p. 300). Assim, Lukács indica que a proporção é um conceito importante para entender a beleza. Quando Kepler entendeu a proporção dos movimentos dos planetas, conseguiu generalizações belas da matemática. Proporções que se observam nas relações auditivas de uma música quando essa se revela como arte. A beleza não se revela de imediato. Ela se objetiva no intercâmbio do homem com a natureza revelando, assim, a essência secreta do mundo. Não consigo parar de pensar na arquitetura de Antoni Gaudí, em Barcelona – Espanha, ou nos CIEPS e tantas obras do nosso saudoso Oscar Niemayer.

4“A essência da arte não se pode estudar sem uma estreita conexão com sua gênesis. [...] A gênesis histórica da arte, em sentido produtivo, da receptividade artística, tem que tratar do marco da gênesis dos cinco sentidos”.

5Surge, no reflexo estético da realidade, uma imagem da verdadeira vida.

Referências

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Recebido: 04 de Julho de 2019; Aceito: 28 de Novembro de 2019

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