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Conjectura: Filosofia e Educação

Print version ISSN 0103-1457On-line version ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.dossie.11 

DOSSIÊ: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA CRÍTICA: PREOCUPAÇÕES E TENDÊNCIAS ATUAIS

A Pedagogia Crítica segundo Nietzsche

The Critical Pedagogy according to Nietzsche

*Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor na Universidade Comunitária de Chapecó (Unochapecó). E-mail: anderson.tedesco@unochapeco.edu.br

**Bacharel em Teologia pela UniLasalle. Graduando em Pedagogia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. Coordenador da Pastoral do Colégio La Salle. E-mail: jordan.vilar@lasalle.org.edu


Resumo

A reflexão tem como objetivo identificar aspectos de um pensamento educacional no conjunto das obras, em Nietzsche, como uma perspectiva de autotransformação. Defende a tese de que a perspectiva educacional do filósofo é crítica e se apresenta como uma antieducação, na medida em que se contrapõe ao modelo educativo tradicional. Tendo como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica, recorreu-se à seleção de textos e obras que abordaram a temática da Educação nas três fases do pensamento de Nietzsche. Na primeira fase, consideram-se os textos: “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino” (1872) e a “Terceira Consideração extemporânea: Schopenhauer como educador” (1874). Neles, identificam-se aspectos de um projeto educativo em devir na filosofia de Nietzsche, voltado à renovação da cultura alemã daquela época. Já na segunda fase, trata-se da ruptura com a filosofia de Schopenhauer, e com a música de Richard Wagner como aspectos fundamentais de um projeto educacional que passou a inaugurar a “Escola da Suspeita” na obra Humano, demasiado humano, que leva Nietzsche a pensar na ciência como um contraponto à forma metafísica de entender o mundo. Ele dá preferência às coisas demasiadamente humanas, ou seja, pensa na Educação como libertação, na perspectiva do espírito livre. Em decorrência do pensamento educacional de Nietzsche, em sua terceira fase na obra Assim falou Zaratustra, identificam-se quatro aspectos da antieducação traduzidos como: o ensino da solidão; o ensino da elevação; o ensino da grande razão; e o ensino da afirmação. Conclui-se que tais aspectos constituem um quadro interpretativo, os quais articulam as lições filosófico-existenciais de uma Pedagogia Crítica na Educação, contrária à tradição ocidental que construiu, em seus processos educativos, uma cultura da gregariedade e da negação da vida.

Palavras-chave Zaratustra; Educação; Antieducação; Autotransformação

Abstract

The purpose of the reflection is to identify aspects of an educational thought in the set of works in Nietzsche, as a perspective of selftransformation. It is defended the thesis that the educational perspective of the philosopher is critical, and presents itself as an anti-education, in that it is opposed to the traditional educational model. Having as methodological procedure the bibliographical research, the selection of texts and works that approached the theme of the education in the three phases of the thought of Nietzsche was appealed. In the first phase we considered the texts: “On the future of our educational establishments” (1872) and the “Third consideration extemporaneous: Schopenhauer as educator” (1874), in them identified aspects of an educational project in becoming in philosophy of Nietzsche, aimed at the renewal of German culture at that time. In the second phase, it is a break with Schopenhauer’s philosophy and the music of Richard Wagner as fundamental aspects of an educational project that began to inaugurate the “School of Suspicion” in the work Human Too Many, which leads Nietzsche to think of science as a counterpoint to the metaphysical way of understanding the world, he gives preference to things that are too human, that is, think of education as liberation, in the perspective of the free spirit. As a result of Nietzsche’s educational thinking, in his third phase in the work Thus spoke Zarathustra, four aspects of anti-education were identified: the teaching of solitude, the teaching of elevation, the teaching of great reason and the teaching of affirmation. It is concluded that these aspects constitute an interpretative framework that articulate the philosophical-existential lessons of a critical pedagogy in education, contrary to the Western tradition that built in its educational processes a culture of gregariousness and denial of life.

Keywords Zarathustra; Education; Anti-education; Self-transformation

Introdução

O objetivo da reflexão constituiu-se em identificar alguns aspectos de um pensamento educacional no conjunto das obras, em Nietzsche, pois, segundo nossa hipótese interpretativa, constatou-se um pensamento da antieducação ou uma Pedagogia Crítica nos escritos do filósofo alemão. Nesse sentido, nosso delineamento metodológico caracterizou-se na seleção dos textos da chamada primeira fase do pensamento de Nietzsche, precisamente do texto: “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, publicado em (1872) e da “Terceira Consideração extemporânea: Schopenhauer como educador”, publicado em (1874). Nele se identificaram aspectos de um projeto educativo em devir na filosofia de Nietzsche, voltado à renovação da cultura alemã daquela época. Em um segundo momento do pensamento de Nietzsche, houve uma ruptura com a filosofia de Schopenhauer, e com a música de Richard Wagner por se tornarem espíritos da decadência ao tratar-se de um projeto cultural para a Alemanha daquela época. Desse modo, Nietzsche passou a inaugurar uma “Escola da Suspeita” (HH,1Prólogo, p. 1), ou seja, a pensar na ciência como um contraponto à forma metafísica de entender o mundo. O filósofo dá preferência às coisas demasiadamente humanas. Em outras palavras, ele pensa na Educação como libertação, na perspectiva dos espíritos livres. Por isso, na terceira fase do pensamento de Nietzsche, com a publicação da obra Assim falou Zaratustra, resultaram quatros principais aspectos de uma antieducação na filosofia de Nietzsche ou de uma Pedagogia Crítica interpretados como: ensino da solidão; ensino da elevação; ensino da grande razão; e ensino da afirmação. Tais aspectos, agora entendidos como lições filosófico-existenciais, revelam novos elementos educativos e neles constatam-se a inversão da perspectiva educacional tradicional, geralmente orientada para a gregariedade e para uma pedagogia da negação da vida.

1 Aspectos da antieducação nas três fases do pensamento de Nietzsche

O ponto de partida da reflexão ocorreu a partir da análise de dois textos de Nietzsche: o primeiro trata-se da conferência: “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino” (proferida entre os meses de janeiro e março de 1872, ainda quando o filósofo era professor na Basileia, na Universidade e no Pädagogium) e da “Terceira Consideração Extemporânea”: “Schopenhauer como educador”, publicado em 1874. Em tais textos, identificam-se aspectos direcionados a uma primeira percepção de Educação no pensamento de Nietzsche, vinculado ao conceito de Bildung e a uma profunda análise da cultura da Alemanha da época, mais de dez anos antes da escrita de ZA, o que demonstra que o tema Educação é transversal à obra de Nietzsche. Observa-se, no conjunto das obras, em Nietzsche, que a primeira fase disso que chamamos de uma antieducação, no sentido esclarecido na introdução deste trabalho, trata-se de uma contravenção em relação às práticas educativas de seu tempo, marcada pela influência da filosofia de Arthur Schopenhauer e da música de Richard Wagner no contexto do projeto de renovação cultural germânica. Ambos os autores contribuíram para que Nietzsche constituísse um pensamento educacional como base desse projeto, no qual o filósofo passou a disseminar severas críticas contra a cultura do eruditismo e do filisteísmo cultural, que não passariam de doenças culturais que deveriam ser combatidas.

Segundo Nietzsche, esse seria o momento de “extirpação de todas as ervas daninhas, dos dejetos, dos vermes que querem atacar as tenras sementes das plantas” (SE 1, p. 166). Para Nietzsche o momento é de que surjam “médicos filosóficos”, ou seja, “alguém que persiga o problema da saúde geral de um povo, de uma época, de uma raça, da humanidade” (GC, Prólogo, p. 2). Nesse sentido, a crítica de Nietzsche ocorre como tentativa de pensar o futuro das instituições na Alemanha, “o futuro da escola primária alemã, da escola técnica alemã, do ginásio alemão da universidade alemã” (EE, Prefácio, p. 50). Isto é, a partir de como se estrutura ou são organizadas as instituições de ensino em um país, tem-se a possibilidade de pensar de que modo elas contribuem com a formação cultural. Segundo Nietzsche, constatou-se que, em sua época, o sistema educacional apresentava uma crise generalizada na formação cultural de crianças e jovens. Ele aponta a um indício desse problema educacional.

Com a afirmação de que as escolas são “material doméstico dos nossos antepassados”, Nietzsche provoca a pensar a respeito das bases que fundamentaram a Educação ocidental. Elas se constituíram a partir da filosofia de Sócrates, e o resultado disso levou ao apogeu do racionalismo. Nietzsche se contrapõe, portanto, a tal perspectiva e, ao mesmo tempo, faz uma ressalva: ele não quer ser considerado um profeta da Educação, a exemplo de um arúspice romano, mas direcionar suas críticas ao uso de métodos educativos, ao papel da Educação e ao lugar das escolas na cultura. Segundo ele, os métodos modernos “levam consigo o caráter do não-natural e as mais graves fraquezas do nosso tempo estão justamente ligadas a estes métodos antinaturais de educação” (EE, Prefácio, p. 52). A tese central da conferência: “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, ocorre quando Nietzsche pensa em duas tendências: a de estender tanto quanto possível a cultura; e a de reduzi-la e enfraquecê-la” (EE, Prefácio, p. 53).

Segundo ele, a primeira tendência assegura uma cultura de massa que deve ser levada a todos os círculos, enquanto a segunda tendência constitui-se em submissão às regras das políticas de Estado. Precisamente, o resultado disso é catastrófico para a formação de espíritos livres na medida em que aquelas não formam para a vida, algo que remete à tarefa central da Educação: “Não prometo quadros e novos horários para os ginásios e as escolas técnicas, admiro bem mais a natureza poderosa daqueles que são capazes de percorrer toda a via das profundezas da experiência” (EE, 2 Prefácio, p. 54). Nietzsche, portanto, sublinha o engessamento das práticas pedagógicas no seu tempo, demonstrando como tal processo leva à pobreza cultural da Alemanha de então.

Segundo Dias (1993), as críticas de Nietzsche são bem-direcionadas ao papel do Estado que não se preocupava com uma Educação para libertação, mas para ocupar, com louvor, as funções do nacionalismo alemão. Nessa primeira fase do pensamento educacional de Nietzsche, constatam-se os reflexos da influência de Wagner e Schopenhauer e como ele se mantém esperançoso no sentido de acreditar no aparecimento de “homens sérios, a serviço de uma cultura inteiramente renovada e purificada e num trabalho comum, se tornarão os legisladores da educação rotineira – da educação que leva a esta cultura” (EE, 2 Prefácio, p. 54). A Educação seria o processo de criação de tais personagens. Assim, Nietzsche realizou um diagnóstico da Bildung de sua época e denunciou “a extirpação e desenraizamento completos da cultura” (SE, p. 4), pois, segundo ele, “o homem culto degenerou até se tornar o maior inimigo da cultura, pois ele quer negar com mentiras a doença em geral e é um estorvo para os médicos” (SE, p. 4), ou seja, é “uma denúncia do eruditismo que assolava a cultura de então, tendo como consequência a crise da verdadeira educação e da produção artística” (OLIVEIRA, 2013, p. 134). Tal diagnóstico sobre a cultura e a Educação revelou-se como uma profunda preocupação com a ausência de uma visão filosófica de formação pedagógica. Trata-se de uma cultura deplorável, pois estava a serviço dos interesses religiosos, políticos e econômicos e tinha como uma de suas características principais a formação de rebanho [Herdenbildung] e dela ainda surgia o “filisteísmo da cultura” (CE I, p. 2), cujo personagem é o filisteu da cultura [Bildungsphilister], um erudito com aspecto vulgar, medíocre e degradado em sua forma de perceber a Educação. Seus pensamentos estavam sempre cheios de uma “pobreza do espírito pedagógico” (EE, Segunda Conferência, p. 67), embora fossem apresentados com os vernizes de uma cultura falsa e empobrecida.

Para Melo Sobrinho (2012, p. 13), nessa primeira fase do seu pensamento pedagógico, “Nietzsche ensinou a seus alunos o espírito da antiguidade clássica, levantou para eles os grandes problemas da existência e mostrou a eles a importância fundamental do pensamento filosófico”, tendo em vista sempre a formação de indivíduos nobres; para ele “o indivíduo deve, nesta ocasião, congratular-se com seus pontos de vista e com os seus propósitos, para poder andar por si mesmo e sem muletas” (SE, p. 145), superando o mestre, como veremos mais claramente na atitude desejada por Zaratustra. Podemos constatar, ainda, que as práticas educativas vivem de muletas, asseguram somente a perpetuação de uma pseudocultura ou conduzem à degeneração cultural. Por sua vez, segundo Nietzsche, “um homem de cultura degenerado é uma coisa grave: e é para nós um golpe terrível observar que todos os nossos homens públicos, eruditos e jornalistas, levam consigo o sinal desta degenerescência” (SE, p. 154).

Pela falta de processos educativos eficientes do ponto de vista cultural, todas as demais instâncias da sociedade são marcadas pela decadência. Essa é a marca da modernidade e de todas as suas instituições. Segundo Oliveira (2013, p. 135), para Nietzsche “a modernidade é um tempo de estiagem: falta criatividade, falta inovação, falta verdadeira educação, ao tempo em que sobra formalismo, repetição e indolência”. Tais características da modernidade criam condições para que Nietzsche pense em uma proposta de libertação do ser humano que ocorre no terreno da Educação. Para tanto, Nietzsche elegeu seu mais dileto professor: “É por isso que vou lembrar hoje o nome do único professor, o único mestre de quem eu posso me orgulhar, Arthur Schopenhauer” (SE, 1, p. 166).

Nietzsche encontrou, em Schopenhauer, alguém que fala por si mesmo, precisamente, porque é o filósofo da solidão, aquele que aprendeu a cultivar a si próprio. Nele, Nietzsche viu “aquele que faz uma filosofia da verdadeira libertação, aquela que começa em si mesmo e que torna a filosofia algo vivo e prático” (OLIVEIRA, 2013, p. 136). Em nossa interpretação, Nietzsche ainda não tinha uma dimensão desenvolvida a respeito do ato de se educar, como aparecerá tempos mais tarde no ZA. Ele se concentrava, nesse momento, em pensar “a pobreza de espírito pedagógico da nossa época; eis que estão ausentes justamente os talentos realmente inventivos, eis que faltam os homens práticos, quer dizer, aqueles que têm ideias boas e novas” (EE, Segunda Conferência, p. 79). Nesse sentido, Nietzsche constatou em Schopenhauer uma proposta educativa que se colocava na contrariedade de seu tempo. Ou seja, “através de Schopenhauer, podemos nos educar contra o nosso tempo, porque temos, graças a ele, a vantagem de conhecer verdadeiramente este tempo”. (SE 4, p. 191). Isto é, uma Educação que se constitui na denúncia do conformismo e da estagnação do pensamento.

Nietzsche considera que a modernidade trouxe consigo o aniquilamento da verdadeira cultura, como resultado da pobreza de esforços ou da constituição de bases inférteis à Educação. Ainda sobre o assunto, corresponde pensar na pseudocultura como a “raça dos conformistas” e “a triste causa disso é a pobreza de espírito pedagógico da nossa época; eis que estão ausentes justamente os talentos realmente inventivos” (EE 2, Segunda Conferência, p. 79). Eles, os talentos, se encontram enclausurados, pois o tempo histórico não dá condições para seu aparecimento, os mata antes de nascer. É perceptível quanto à “literatura pedagógica dessa época; é preciso estar muito corrompido para não ficar assustado, quando se estuda este tema, com a suprema pobreza de espírito” (EE, Segunda Conferência, p. 79).

Nessa instigante reconstrução dos registros expressos por Nietzsche sobre a Educação, notamos o seu esforço em diagnosticar o motivo dessa crise cultural que levou à passividade aqueles que, ao invés de assumirem o conhecimento como atividade libertadora, acabam optando pela obediência e pela erudição vazia, atenta apenas aos fatos cotidianos (aos moldes do que ele chama de jornalismo, ou cultura jornalística). A escola deixa de ser um lugar de cultivo de si e se torna, assim, um centro de repetição e reprodução de doutrinas decadentes.

Nesse viés, a educaÇão precisa ser assumida como um verdadeiro problema cultural: “Não devia estar longe a época em que homens honrados e decididos trabalhariam também no sério domínio da educação do povo” (EE, Segunda Conferência, p. 100). Ele não se conforma com a cultura de sua época, e seu esperançar ocorre no acreditar em novo projeto educativo constituído naquela sociedade doente. Nietzsche, assim, já nos seus primeiros escritos, se contrapõe à tendência universalizante e ao mesmo tempo empobrecedora da Educação tradicional e, com isso, cria nova percepção educativa, entendendo que a Educação se constituiu como um processo de libertação das amarras da modernidade, marcadamente de sua insistente promoção da gregariedade. Por isso, seu projeto crítico já se efetiva como uma antieducação, no sentido de que ele recusa a tarefa tradicional e linear em nome de nova perspectiva, para a qual Schopenhauer, como o mestre por excelência, serve de modelo: a Educação deve cultivar o indivíduo (e não a massa) e precisa estar enraizada nas experiências vitais (para fugir do mero eruditismo).

Uma segunda percepção sobre a Educação, em Nietzsche, ocorre com sua ruptura com o pensamento de Schopenhauer e com Wagner. Ele abandona “o projeto filosófico de juventude, em que a arte aparecia em primeiro plano” (ARALDI, 2004, p. 210). Tal ruptura marca um passo decisivo na percepção de Nietzsche sobre a Educação; agora, segundo Araldi (2004, p. 211), ele passa a viver “a grande libertação” (Loslösung; HH, Prólogo, p. 3), que “significou também o sofrimento mais duro: a andança por desertos desconhecidos, calados” (ARALDI, 2004, p. 210). Precisamente, tal perspectiva se configurou no momento em que o filósofo alemão trabalhava na elaboração de sua filosofia do “espírito livre”, que rendeu a escrita de Humano, demasiado humano, com subtítulo: um livro para espíritos livres.

Em tal texto, se encontra a ideia de “grande libertação” (HH, Prólogo, p. 3), uma evocação tardia (o texto é de 1886) à tarefa da “suspeita” inaugurada por Humano, demasiado humano, no sentido de promover a libertação das normas sociais vigentes. Tal perspectiva é também marcada pelo próprio rompimento de Nietzsche com o projeto de renovação cultural representado por Wagner e Schopenhauer, de quem ele se distancia a partir de 1876, voltando suas reflexões à nova perspectiva de cultura e de Educação, mais demasiada humana de “poder viver por experiência e oferecer-se à aventura: o privilégio de mestre do espírito livre!” (HH, Prólogo, p. 4).

Nesse momento, Nietzsche recorre à ciência como forma de valorização das coisas demasiadamente humanas e recusa todo tipo de interpretação metafísica da realidade. Para Oliveira (2013, p. 139), nesse momento, a Educação “passa a ser um processo de elevação do indivíduo acima dos antigos dogmas e verdades fornecidas pela metafísica, ela mesma algo que deve ser incluído entre as atividades educacionais, em vista de sua superação”. Trata-se de um movimento de superação e de confronto com os “fantasmas metafísicos”, cuja base é o próprio resgate da ideia de ciência como princípio educativo para superação da metafísica.

Nietzsche chama a atenção a respeito da necessidade de um “movimento para trás” (HH, p. 20), de olhar para os processos educativos e perceber seu fracasso no que tange à libertação plena dos indivíduos, pois estiveram sempre a serviço da religião, da política e da economia. É preciso compreender o papel da Educação como uma libertação de todas essas amarras metafísicas, e sua função se compara a uma ferramenta de (des)construção da história humana. Por isso, considera o filósofo que “o interesse pela educação só ganhará força a partir do momento em que se abandone a crença num deus e em sua providência: exatamente como a arte médica só pode florescer quando acabou a crença em curas milagrosas” (HH,

p. 242), ou seja, trata-se de uma recusa completa do filisteísmo cultural, que seria extirpado em nome de uma Educação verdadeira que reconhecesse, no indivíduo, os próprios nutrientes para um cultivo de si.

Nesse sentido, para Nietzsche a Educação teria um papel fundamental na criação e no cultivo da liberdade de espírito, em vista da plena libertação dos indivíduos das antigas amarras representadas pela religião (cristã), pela estética (romântica) e pela moral (schopenhauriana da compaixão). Para Nietzsche “uma educação que já não crê em milagres deve prestar atenção a três coisas: primeiro, quanta energia é herdada?; segundo, de que modo uma nova energia pode ser inflamada?; e terceiro, como adaptar o indivíduo às exigências extremamente variadas da cultura, sem que elas o incomodem e destruam sua singularidade?” (HH, 242). Note-se a preocupação do filósofo com a questão do cultivo da singularidade e com o papel libertador da Educação, que deve conduzir cada indivíduo a se tornar “senhor de si mesmo” e de suas virtudes, como se lê no prólogo de 1886.

Nietzsche, entende que o espírito da ciência deveria levar rigor à atividade educativa. A escola deve “ensinar o pensamento rigoroso, o julgamento prudente, o raciocínio coerente” (HH, 265), devendo, por isso, “prescindir de todas as coisas que não são úteis a essas operações, por exemplo, a religião” (HH, p. 265). Tal perspectiva deve estar embasada, afinal, na formação dos educadores: “Eles mesmos não são educados: como poderiam educar?” (OS, p. 181). Por isso, com Educação libertadora, “começa então a tarefa do educador, é tempo de solicitar-lhe ajuda – não como um educador, mas como um autoeducado que tem experiência” (AS, p. 267). E isso só será possível na medida em que cada educador educar a si mesmo: “Como pensador, só se deveria falar de educação por si próprio” (AS, p. 267).

Uma terceira percepção sobre a Educação, em Nietzsche, surge a partir da obra ZA e é marcada pela ideia de cultivo de homens de exceção. Inspirado no papel do deus Hermes, o mensageiro divino dos gregos, o nosso desafio, agora, é levar adiante uma investigação filosófica capaz de decifrar as mensagens enigmáticas do ZA, como experiências de uma autotransformação ou de uma pregação do cultivo de si mesmo. Essas experiências formativas em Zaratustra e dos seus personagens (sol, águia, serpente, santo, cadáver, discípulos...) revelam as condições necessárias à criação de discursos educativos ou formativos. É, precisamente, nessa epopeia de Zaratustra que surgem os nutrientes que ajudam a pensar em uma antieducação em tempos gregários na filosofia de Nietzsche.

Essa antieducação caracteriza-se como estratégia de autotransformação do modelo tradicional de Educação praticado no Ocidente, cujo objetivo é adestrar os indivíduos, caracterizando as práticas educativas como uma negação da vida, cujo resultado seria a criação de uma sociedade marcada pela décadence. Ao contrário disso, os ensinamentos de Zaratustra são educativos justamente na medida em que educam para a autotransformação, compreendida como a mudança que cada indivíduo provoca em si mesmo, a partir de si mesmo, como resultado da autolibertação em relação às normas da gregariedade e em vista da afirmação da vida e de si mesmo. Esse é o leitmotiv da obra que pretende contribuir para o projeto do “tornar-se o que se é”, a qual será o grande labor de Zaratustra, de Nietzsche, sua primorosa atividade, sua maior expressão em nosso estudo. Por isso, a problemática dessa investigação gira em torno da arte de decifração desse enigma chamado Zaratustra e como seus discursos educativos, criados em uma época de enclausuramento do pensamento, ainda podem ensinar que todas as propostas educativas ou pedagógicas, até então, não passaram de grilhões para o pensamento, levando ao adoecimento e à negação da vida. E, somente assim, no ZA, encontram-se os aspectos característicos dessa atividade antieducativa, na medida em que recusa as normas da gregariedade geralmente praticadas pela Educação tradicional. Desse modo, a Educação deveria, assim, evitar o que ela tem sido: “um sistema de meios visando arruinar as exceções em favor da regra”, conforme lemos no aforismo 16[6]238 (KSA XIV).

Para Nietzsche, ao contrário, a Educação deveria criar condições para uma cultura de exceção, “da experimentação, do risco, do matiz – uma cultura de estufa para as plantas excepcionais”.

2 Aspectos do ensino da autotransformação em Zaratustra

O projeto educativo exposto em Assim falou Zaratustra, como uma Educação da autotransformação, cujos elementos se opõem à tradição educativa, em quatro perspectivas: [1] a educação, tradicionalmente, foi pensada a partir da perspectiva do autoconhecimento, enquanto Nietzsche expõe o desafio de pensar a partir do “tornar-se o que se é”, e o caminho para se alcançar essa perspectiva é de um ensino na solidão, como uma tentativa de desligamento da missão gregária praticada pela Educação tradicional; [2] o modelo educativo esteve pautado, no Ocidente, pelo recurso da racionalidade e sua consequência moral, que é a crença no livre-arbítrio, enquanto Nietzsche pensa a Educação a partir do pathos, em que o conhecimento é apenas um aspecto da vida, e a vida, um tema central do conhecimento, o que nos leva ao tema da paixão pelo conhecimento e o ensino da elevação; [3] se o modelo tradicional pensou o cultivo da alma, segundo o modelo dualista herdado da tradição socrático-platônica, Nietzsche rompe com essa perspectiva ao falar do corpo como grande razão e, com isso, propõe um modelo educativo baseado naquilo que poderíamos chamar de ensino da grande razão; e [4] por último, se a Educação tradicional foi orientada pela massificação e pela decadência da cultura, na padronização dos indivíduos, Nietzsche, por sua vez, fala da autoafirmação a partir da atividade criativa de cada indivíduo, capaz de conduzir ao júbilo existencial de um ensino da afirmação.

Trata-se de verificar as consequências dos ensinamentos das principais teorias desenvolvidas na obra em questão. Na introdução da obra Nietzsche’s teaching: na interpretation of Thus Spoke Zarathustra (LAMPERT, 1986, p. 5), considera-se que a essência da ação de Zaratustra é considerar a necessidade de um novo professor. Na ótica de Zaratustra, faz-se necessário um novo ensino, uma vez que o antigo teria falido. Esse fato decorre da primeira lição, ou seja, da “morte de Deus”, aforismo que revela a decadência moral e religiosa. Por conseguinte, um professor do futuro, designado “super-homem”, trará um novo ensino. É relevante enfatizar que Zaratustra é o arauto desse super-homem, sua segunda lição. Em adição, a humanidade encontra-se presa a princípios morais do passado, e o presente clama por mudanças, que serão provenientes de pessoas do futuro. Fica clara, diante de crises humanitárias, a cobrança de uma urgente evolução por parte da própria humanidade. A Educação é o caminho para esse fim.

Ainda na introdução, Lampert (1986, p. 6)destaca que o velho ensino estimulava a vingança contra a vida, uma vez que ela se finda(va). Em face dessa constatação, descobre-se a essência do conteúdo do novo ensino: “A redenção do espírito vingativo requer que a mais espiritual vontade de poder seja o eterno retorno dos seres como eles são. A vontade humana de poder cria, desse modo, o novo ideal do ser humano mais altivo, vivo e que afirma o mundo” (LAMPERT, 1986, p. 6). Dessa forma, depreende-se que o novo princípio formativo de Zaratustra se voltava à prática de amor à vida e à lealdade à terra, tratando-se da terceira e da quarta lições do ZA.

Lampert (1986, p. 7) também sublinha que, com o exemplo pessoal de ensino de Zaratustra, torna-se evidente que o fator decisivo (e básico) para o sucesso de um professor é ser, antes de mestre, aprendiz. Dessa maneira, a prática educativa é uma atividade laboriosa de experimentos em que o próprio indivíduo que vive tais experimentos é o educador. Ainda em Lampert (1986, p. 7) isso explica por que Zaratustra, já filósofo na perspectiva de Nietzsche, infere que aqueles que creem acrítica e piamente em verdades antigas, que justificam ações com base em preceitos religiosos e que, sobretudo, têm a lei a favor da manutenção de convicções pessoais, se opõem à nova ordem de professores que urge. Esse fenômeno se institucionaliza dado que a nova classe configura uma ameaça letal ao sistema em voga.

Ao analisar os primeiros discursos de Zaratustra (examinados por Lampert (1986) no capítulo intitulado “Discursos de Zaratustra: a educação que faz discípulos”), é perceptível que a intenção do profeta é ampliar o grupo de seguidores. A estratégia é uma apresentação atrativa de seu modelo original de ensino. Segundo Lampert (1986, p. 32), o novo ensino de Zaratustra é uma chamada para uma luta contra pregadores do mal. Além disso, destaca-se a crítica de Nietzsche ao velho modelo de ensino (Lampert examina tal problemática, a partir dos discursos 2 e 7, no capítulo intitulado “Escola para insurgentes” [1986, p. 36]). Portanto, há fortes traços de niilismo em diversas instituições, das quais, notadamente, não se escapam a escolar e a política. Há, sendo assim, no pensamento nietzschiano, uma crítica mordaz a máscaras de civilizações (pós-)modernas.

2.1 Zaratustra e o ensino na/da solidão

Ninguém suporta a solidão porque todos dependem dessa presença. A morte de Deus, portanto, abre o pensamento de Nietzsche, no Zaratustra, para o tema solidão, como algo a ser ensinado: se não conta mais com a companhia do divino, resta ao ser humano aprender, aspirar à e suportar a solidão de si mesmo. Nesse sentido, o papel da filosofia de Nietzsche, no ZA, é a de denunciar todo tipo de verdade (na religião, na ciência, no conhecimento, na arte, na educação, entre outros), que se originou a partir de uma moral de rebanho, já nascida em estágio de putrefação: “A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos reverenciaram: que questões essa vontade de verdade já não nos colocou!” (ABM, p. 1). Observa Nietzsche que aqueles que se propuseram encontrar a verdade, em um plano metafísico, passaram a acreditar nas “coisas de mais alto valor uma origem miraculosa, diretamente do âmago e da essência da ‘coisa em si’” (HH, p. 1), colocando-se, portanto, em sentido contrário aos valores terrenos, criando suas próprias verdades absolutas e inquestionáveis como um projeto moral em decadência.

Essa verdade de Zaratustra só se revelou na solidão: ele ficou dez anos na solidão de sua caverna nas montanhas (ZA, Prólogo, p. 1). Em Nietzsche, aprendemos que “o homem solitário sabe que está acima da vulgaridade gregária e que esta respira o ar poluído no ambiente deplorável do mercado” (OLIVEIRA, 2010, p. 19). O desafio de Zaratustra era o de ser ouvido pela multidão: ainda no Prólogo, “ali encontrou muita gente reunida na praça” (ZA, Prólogo, p.3). Em Das moscas do mercado lemos: “Onde cessa a solidão, ali começa o mercado; e onde começa o mercado, ali também começa o barulho dos grandes atores e o zumbido das moscas venenosas” (ZA I, Das moscas do mercado). Essas passagens revelam o próprio processo de aprendizagem de Zaratustra, realizado na solidão, mas não em isolamento: note-se que a solidão do profeta não é um isolamento do mundo (aos moldes dos sacerdotes ascéticos e eremitas), mas uma espécie de ato preparatório, de propedêutica para o ensinamento. Zaratustra vive sua solidão para poder voltar, límpido, à praça do mercado e não se deixar contaminar pelos velhos ideais aí vigentes.

Ele, contudo, não é ouvido e, embora se esforce, continua sozinho. Ainda no Prólogo se lê: “Não me compreendem, não sou a boca para esses ouvidos” (ZA, Prólogo, p. 5) e, em outra passagem, Zaratustra considera que “o povo pouco compreende a grandeza, isto é: a criação” (ZA I, Das moscas do mercado). A multidão não sabe e não quer ouvir. Ela vive o mais pesado fardo, o da própria enganação de si. Nietzsche “critica a supremacia da gregariedade, na medida em que esta concorre para o enfraquecimento da vida, assim como se dá por meio da moral platônico-cristã” (OLIVEIRA, 2010, p. 12). Em uma passagem da A Gaia ciência (2012), relata Nietzsche: “Existe um lago que um dia se negou a escoar, e formou um dique até onde se escoava: desde este instante ele sobe cada vez mais” (GC, p. 285), ou seja, estando cheio de si, Zaratustra também transborda. É como se sentia Zaratustra: “Uma colmeia cheia de mel” ou uma “taça transbordante” (ZA, Prólogo, p. 1). Ainda Nietzsche considera que “talvez justamente essa renúncia nos empreste a força com que a renúncia mesma seja suportada; talvez o homem suba cada vez mais, já não tendo um deus no qual desaguar” (GC, p. 285).

Uma das características de Zaratustra compara-se a esse lago que, em seu período de solidão, se transformou em um grande dique e não tem onde desaguar seus ensinamentos. Ele se encontra cheio de si porque ele mesmo realizou (vivenciou na solidão) a tarefa que quer anunciar: ele se autotransformou por meio do conhecimento e da experiência que ele proporciona, mas suas palavras não atingiram ouvidos atentos e desejosos de mudanças; o barulho do povo na praça é um obstáculo para o pensamento das alturas. Eles não sabem o significado de solidão. São rebanhos conduzidos ao matadouro pelas crenças em verdades absolutas de uma moral décadence: “Eles possuem algo de que se orgulham. Como chamam mesmo o que os faz orgulhosos? Chamam de cultura, é o que os distingue dos pastores de cabras” (ZA, Prólogo, p. 5).

Nietzsche chama a atenção para esse tipo de cultura da multidão. É uma cultura que impede a criação de valores em nome da perpetuação de verdades. O autor de Zaratustra escolheu a solidão como remédio para combater as doenças da modernidade, marcada pela moral da compaixão que prega contra o egoísmo e ensina a mera compaixão: “Nada é tão pouco sadio, em meio à nossa pouca sadia modernidade, como a compaixão cristã” (AC, p.7). Suas críticas são endereçadas às raias do pensamento socrático-platônico-cristão, as quais deram origem à moral de rebanho. Por isso, é preciso afastar-se desse espírito gregário da multidão: é necessário buscar novas cisternas de água, pois as que existem estão todas contaminadas.

De onde vem essa força pedagógica de Zaratustra? Ora, ela advém justamente da capacidade da solidão. A solidão, em outras palavras, é a fonte da qual nascem as grandes lições de Zaratustra. Ele ensina, por isso, a própria solidão como pedagogia. Ele é o pedagogo da solidão, e ela, um nutriente para a autotransformação. Assim fala Nietzsche: “Queres ir para a solidão, meu irmão? Queres buscar o caminho para ti mesmo?” (ZA I, Do caminho do criador). Essa é uma decisão própria: “O homem da solidão é o homem forte que sobe a montanha e escapa do pífio mundo da massa, aceitando os riscos de ‘resfriar-se’ e vencendo estes óbices com sua força.” (OLIVEIRA, 2010, p. 20). Mas, infelizmente, nem todos estão preparados para esse desafio pedagógico, “a voz de rebanho ainda ressoará dentro de ti” (ZA I, Do caminho do criador).

O espírito de rebanho ainda assombra a humanidade. Existe um eco muito forte que paralisa a vontade de vida, ele vem das várias formas de racionalismo e das religiões monoteístas: “Todas essas coisas mais que pesadas o espírito resistente toma sobre si: semelhante ao camelo que ruma carregado para o deserto, assim ruma ele para seu deserto” (ZA I, Das três metamorfoses). Para Oliveira (2010, p. 53) “toda a tarefa de domesticação e amansamento do homem empreendida pela moral até agora, segundo Nietzsche, foi o cumprimento desse processo de correção do ser humano, algo, entretanto, que o deixará mais fraco e mais doente”. Precisamente, o afastamento dessa moral é necessário e na seção Das três metamorfoses, o camelo carrega um fardo pesado e, na solidão do deserto, sofre a transformação: “Mas no mais solitário deserto acontece a segunda metamorfose: o espírito se torna leão, quer capturar a liberdade e ser senhor em seu próprio deserto” (ZA I, Das três metamorfoses). Ou seja, o processo de autotransformação individual ocorre na liberdade da solidão.

2.2 Zaratustra e o ensino da elevação

A concepção de um ensino da elevação é um dos motes recorrentes na obra nietzschiana, como vimos até aqui. Em Assim falou Zaratustra, ela está articulada à ideia de super-homem, como aquele que deve ser buscado e, para isso, o ser humano precisa passar pela elevação de si mesmo a outro patamar cultural, representado pelas várias metáforas que são utilizadas por Nietzsche para expressar essa tarefa educativa. Quando Zaratustra saiu de sua pátria e foi para as montanhas, buscava, na solidão, uma alternativa para pensar a cultura degenerada de sua época. Encontrou, como um dos seus princípios educativos, o espírito da afirmação: ele. “É preciso um sagrado dizer-sim: o espírito quer agora sua vontade, o perdido para o mundo conquista seu mundo” (ZA I, Das três metamorfoses). Ou seja, Nietzsche percebeu que, na maioria das instituições de ensino, suas práticas educativas se constituíram a partir do espírito da negação da vida. Não passam de cátedras da morte as nossas escolas e as nossas universidades, pois elegeram seus fundamentos educativos em valores gregários. Trata-se de identificar aquelas práticas educativas constituídas nos valores religiosos e no dualismo socrático-platônico, cujos resultados criaram os racionalismos, e a consequência disso foi a destruição dos modos de vida.

Um espírito de vingança e de ódio recai sobre a humanidade. “Em toda parte ecoa a voz dos que pregam a morte: e a terra está cheia daqueles a quem a morte tem de ser pregada” (ZA I, Dos pregadores da morte). Nesse sentido, Zaratustra, que se propõe realizar uma limpeza moral, não tinha outro caminho a não ser iniciar a construção de seu ensinamento pela lição da morte de Deus, e o resultado desse processo é a afirmação da vida, no famoso dístico da “fidelidade à terra”. Para isso, é preciso distanciar-se dos valores que causam a morte: “Fugi do mau cheiro! Fugi da idolatria dos supérfluos! Fugi do mau cheiro! Fugi da fumaça desses sacrifícios humanos!” (ZA I, Do novo ídolo). Fugir de práticas educativas que resultam em adestramento do humano. É chegada a hora de novos conteúdos, e as instituições de ensino precisam se reconstruir a partir de novo ideal de ser humano, representado pela ideia de exceção, de hierarquia e de pathos da distância, cujo símbolo é o refúgio na solidão: “Foge, meu amigo, para a tua solidão: vejo-te picado por moscas venenosas. Foge para onde o ar é rude e forte!” (ZA I, Das moscas do mercado). As cátedras da morte sempre irão perseguir os novos educadores porque eles ameaçam as velhas estruturas do poder. É próprio das críticas de Nietzsche se colocar na condição de um médico da cultura e considerar que a segunda lição sobre o super-homem se constitui, precisamente, no novo professor de uma nova cultura, que se transformou em relação àquela da décadence da modernidade, uma cultura agora saudável, portanto.

2.3 Zaratustra e o ensino da grande razão

Conforme vimos até aqui, as práticas educativas tiveram suas raízes no pensamento socrático-platônico e se constituíram na relação entre o bem e o mal. Em decorrência disso, originou-se, no Ocidente, a degeneração cultural, cujo principal resultado é uma má-compreensão e uma negação do corpo nas próprias práticas educativas. Ora, compreendendo o mundo como vontade de poder, Nietzsche concebe o corpo como lugar de ação das forças antagônicas e como, portanto, o grande terreno sobre o qual atua a vontade de poder, cujo efeito será a mudança no conceito mesmo de subjetividade, antes associada unicamente à racionalidade e agora à própria ideia de corporalidade assumida em sua dinâmica de vontades de poder.

Para Nietzsche toda a filosofia, até então, poderia ser compreendida como “uma máì compreensão do corpo” (GC, Prólogo, p. 2) e, por isso, ao relatar, em Ecce homo, a própria elaboração de Assim falou Zaratustra, ele dá tanta importância à questão do corpo e às “coisas mais próximas”: o pensamento é um resultado do corpo, é uma atividade que não está desligada de fatores como “alimentação, lugar, clima, distrações”, coisas que ele considera “inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que ateì agora tomou-se como importante” (EH, “Por que sou tão inteligente”, p. 10). Ao contrário, Zaratustra ensina a pensar o corpo como a “grande razão”: “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor” (ZA I, Dos desprezadores do corpo). Ou seja, não se trata mais de ensinar o dualismo, mas de superá-lo com a afirmação de que a razão mesma não é outra coisa que uma parte da atividade corporal, um afeto entre os outros, um elemento constitutivo, mas não privilegiado com a exclusividade que a tradição lhe doou.

Zaratustra, assim, ensina não a pensar que o corpo é um fim último em substituição à racionalidade, mas a percebê-lo como um fim em si mesmo, na medida em que deve ser reconhecido como um elemento central da vida. Em sua forma de pensar, se constitui uma oposição a todo tipo de educação linear marcada pela moralidade cristã que não deu lugar ao corpo, assumido como algo pecaminoso e errado. O ensino da autotransformação, ao contrário, deve levar o corpo em conta porque nele ocorre, a todo instante, a atividade da vida. Considerado como o “mais surpreendente”, o corpo, assim, deve fazer parte dos ensinamentos educativos dos novos mestres.

Nietzsche lê para evitar que “um pensamento alheio escale furtivamente o muro”. Tudo isso tem a ver com o cuidado (e com a Educação) do corpo. Tal cuidado com o corpo aparece em Assim falou Zaratustra, principalmente na seção Dos desprezadores do corpo, no qual ele critica aqueles que aprenderam a “dizer adeus a seu próprio corpo” (ZA I, Dos desprezados do corpo). Nesse texto, a versão não dualista do corpo é apresentada pela voz de uma criança: “Corpo sou eu e alma.” Nietzsche quer mostrar que a fala das crianças está além do dualismo, que engendrou a culpa e a mortificação do corpo. Com a questão do corpo, Nietzsche se distancia, assim, da noção moderna de sujeito, como ela aparece, portanto, em Descartes. Por isso, o corpo, desse modo, adquire um lugar central na filosofia de Nietzsche e deve ser levado em conta quando se analisa seu pensamento educacional, mais especificamente, aquilo que estamos chamando, nesta tese, de antieducação em Nietzsche, na medida em que pelo corpo se alcança a crítica a um dos motes centrais do modelo educacional-tradicional: o cultivo do intelecto.

2.4 Zaratustra e o ensino da afirmação

Toda a filosofia de Nietzsche exposta no Zaratustra poderia ser resumida na ideia de afirmação diante da vida; não é à toa que ele mesmo chegou a afirmar que o pensamento mais importante de ZA era o eterno retorno, compreendido como ato supremo de afirmação da existência. Tal perspectiva remete à crítica à cultura socrático-judaico-cristã que promoveu a negação das instâncias mundanas como mote primeiro dos processos religiosos, morais e, portanto, também educativos. Lampert (1986) destaca a importância desse conceito (ao lado da doutrina da vontade de poder), afirmando que a essência do ensinamento de Nietzsche está pautada pelo eterno retorno. Perante esse conceito, fica claro que fenômenos antônimos se complementam e, em processos cíclicos, impulsionam a evolução e conduzem à afirmação global dos processos existenciais. O grande ensinamento de Zaratustra é, pois, dizer sim à vida. Tal perspectiva aparece em várias passagens da obra, especialmente na parte 3, onde o tema eterno retorno aparece como central. Se lembrarmos que, para Nietzsche, “o conceito ‘Deus’ foi ateì agora a máxima objeção contra a existência” (CI, Os quatro grandes erros, p. 8), então a partir da morte de Deus, a afirmação passa a ser a única alternativa viável. Por isso, Zaratustra é apresentado como o “afirmativo” entre os espíritos (“contradiz com cada palavra, esse afirmativo dos espíritos; nele todos os opostos se fundem numa nova unidade”) (EH, Assim falava Zaratustra, p. 6).

Conclusão

Diante dessa reflexão, considerou-se a respeito dos aspectos da antieducação ou de uma Pedagogia Crítica em Nietzsche, uma perspectiva para (re)pensarmos as práticas educativas constituídas, na tradição ocidental, em décadence. Trata-se do ensino da solidão que se constitui como uma possibilidade do “tornar-se o que se é”, livre em si, ou seja, liberto das amarras da tradição, da condição de camelo, em vista do tornar-se criança. Esse aspecto do ensino da solidão só é possível com a grande lição da “morte de Deus”. Também se constatou que a crença na racionalidade levou à prisão do espírito humano nos processos educativos que se embasam no ensino meramente tecnicista e racionalista. Por isso, Nietzsche pensa a Educação a partir do pathos, em que o conhecimento é apenas um aspecto da vida, e a vida, um tema central do conhecimento, o que nos leva ao tema da paixão pelo conhecimento e o ensino da elevação, que ocorre a partir do super-homem constituído através da figura dos novos educadores. Nesse sentido, o ensino da elevação pressupõe romper com os resquícios da moralidade decadente, baseada na gregariedade, para se aproximar de um olhar aristocrático. Nietzsche rompe com essa perspectiva ao falar do corpo como grande razão e, com isso, propõe um modelo educativo baseado naquilo que poderíamos chamar de ensino da grande razão, como vontade de poder. Por último, se a Educação tradicional foi orientada pela massificação, pela decadência da cultura e pela padronização dos indivíduos, Nietzsche, por sua vez, fala da autoafirmação a partir da atividade criativa de cada indivíduo, capaz de conduzir ao júbilo existencial o ensino da afirmação, na perspectiva do eterno retorno, que culminará na autotransformação, sendo que isso será circular nos processos educativos, que afirmam a vida, precisamente, porque Zaratustra quer ensinar também a dizer sim; trata-se portanto, de um projeto educativo de lições filosófico-existenciais de uma Pedagogia Crítica nas obras de Nietzsche.

1Neste trabalho, usamos as siglas convencionais pelas revistas especializadas, a exemplo de Cadernos Nietzsche, para citação das obras de Nietzsche: A (Aurora); ABM (Além do bem e mal); HH (Humano, demasiado humano v. I: um livro para espíritos livres); BM (Para além de bem e mal); CI (Crepúsculo dos ídolos); EH (Ecce homo); GC (A gaia ciência); GM (Para a genealogia da moral); ZA (Assim falou Zaratustra); SE (Schopenhauer como educador); EE (Sobre o Futuro dos Nossos Estabelecimentos de Ensino).

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Recebido: 14 de Julho de 2019; Aceito: 28 de Novembro de 2019

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