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Conjectura: Filosofia e Educação

Print version ISSN 0103-1457On-line version ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.dossie.17 

DOSSIÊ: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA CRÍTICA: PREOCUPAÇÕES E TENDÊNCIAS ATUAIS

Trajetórias biográficas de mulheres feministas atuantes em movimentos sociais*

Biographic pathways of feminist women acting in social movements

**Professora na Faculdade de Educação (FAE) e no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Líder do grupo de pesquisa D’Generus – Núcleo de Estudos Feministas e de Gênero do CNPq. E-mail: profa.marciaalves@gmail.com

***Mestra em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande (UFRG). Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista da CAPES. Pesquisadora no grupo de pesquisa D’Generus – Núcleo de Estudos Feministas e de Gênero, ativista do coletivo União Brasileira de Mulheres (UBM). E-mail:adrianalessacardoso@gmail.com


Resumo

O artigo busca refletir sobre a trajetória de mulheres feministas na cidade de Pelotas – RS, a partir de suas narrativas que, de certa forma, foram precursoras, visibilizando suas experiências no ativismo político. Entendemos que todo movimento social atua na formação humana, portanto, é um ato educativo. Utilizamos o referencial feminista descolonial, como perspectiva vinculada à resistência do sistema capitalista mundial-globalizado. Buscamos nossas bases teóricas especialmente nas autoras Heleieth Saffioti (2004), Ochy Curiel (2007), Marcela Lagarde y de los Ríos (2015), Patricia Hill Collins (2017) e bell hooks (2019), para discutir sobre a condição histórica das mulheres, em relação à classe social, ao gênero, à raça, à divisão sexual do trabalho e ao empoderamento social. A metodologia utilizada é de cunho qualitativo e, como fonte de dados, se compõe de narrativas biográficas. O conjunto de narrativas que apresentamos nesta escrita foi constituído por entrevistas narrativas individuais, com quatro mulheres que militaram politicamente nos anos 1980 e que, atualmente, têm mais de 60 anos de idade. Essas mulheres participaram de espaços institucionalizados de militância, como o Conselho Municipal da Mulher, o Grupo Autônomo de Mulheres Pelotas (GAMP), União Brasileira de Mulheres (UBM) ou sindicatos. Em recente pesquisa sobre trabalho na cidade de Pelotas, foi constatada uma grande situação de vulnerabilidade no trabalho, onde totalizaram mais de 62 mil pessoas em trabalho precário ou informal. Nesse contexto, as dificuldades de uma cidade socialmente desigual levam à criação de grupos de enfrentamento, e é nesse espaço social que as mulheres deste estudo atuam. No procedimento de análise destacam-se as categorias interseccionalidade, divisão sexual do trabalho e empoderamento social. Como resultados, ressaltamos a importância das epistemologias feministas descoloniais para aprender e conhecer a história de mulheres que colaboraram na construção do movimento feminista em prol dos direitos das mulheres. Também destacamos o empoderamento social das colaboradoras da pesquisa, pois são mulheres que se relacionam cotidianamente com a cidade, trabalham, dialogam com outras mulheres em situação de vulnerabilidade e têm consciência crítica que, através da Educação transformadora e feminista, possam colaborar para uma equidade de gênero.

Palavras-chave Feminismo; Ativismo; Empoderamento social; Estudos descoloniais

Abstract

The article looks for reflecting on the trajectory of feminist women in the city of Pelotas – RS, from the narratives of these women who were, in a way, precursors, highlighting their experiences in political activism. We understand that every social movement act in human formation, so it is an educational act. We use the decolonial feminist framework as a perspective linked to the resistance of the globalized world capitalist system. We sought our theoretical foundations especially from the authors Heleieth Saffioti (2004), Ochy Curiel (2007), Marcela Lagarde and de los Rios (2015), Patricia Hill Collins (2017) and bell hooks (2019), to discuss the historical condition of women, related to social class, gender, race, sexual division of labor and social empowerment. The methodology that has been chosen has a qualitative nature and as a data source is composed of biographical narratives. The set of narratives we present in this writing consisted of individual narrative interviews with four women who have been political militants in the 1980s and who are currently over 60 years old. These women took part in institutionalized militancy spaces, such as the Municipal Council of Women, Autonomous Group of Women from Pelotas (GAMP), Brazilian Union of Women (UBM) or unions. In a recent survey considering work in the city of Pelotas, a large situation of vulnerability was found, summing up more than 62,000 people working in precarious or informal activities. In this context, the difficulties of a socially unequal city, which leads to the creation of confrontation groups, and it is in this social space that the women in this study act. In the analysis procedure, the categories intersectionality, sexual division of labor and social empowerment were highlighted. As a result, we underscore the importance of decolonial feminist epistemologies in learning and understanding the history of women who helped building the feminist movement in relation to women’s rights. We also highlight the social empowerment of the research collaborators, as they are women who have a daily relationship with the city; they work, dialogue with other women in vulnerable situations, and are critically aware that through transformative and feminist Education they can contribute to gender equity.

Keywords Feminism; Activism; Social empowerment; Decolonial studies

Condição histórica das mulheres: interseccionalidade e empoderamento

Refletir sobre a condição histórica das mulheres, em relação à classe social, ao gênero, à raça e à divisão sexual do trabalho, perpassa por uma discussão acerca da “acumulação primitiva”, expressão marxista que Silvia Federicci (2017) utiliza para pensar nas opressões e discriminações de gênero. De acordo com a autora, Karl Marx examinou a acumulação primitiva do ponto de vista do proletariado assalariado do sexo masculino, entretanto, ao contrário, a autora busca responder a essa questão do ponto de vista social das mulheres e o quanto o trabalho e a subordinação delas auxiliaram no modo de produção capitalista. Ainda, a autora acrescenta importantes fenômenos históricos desconsiderados pela percepção sexista: o fato de que a perseguição às bruxas (normalmente mulheres pobres, curandeiras e velhas), a colonização e a expropriação do campesinato europeu foram importantes ao desenvolvimento do capitalismo. De acordo com a historiadora italiana,

cada fase da globalização capitalista, incluindo a atual, vem acompanhada de um retrocesso aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o que mostra que a contínua expulsão dos camponeses da terra, a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época (2017, p. 27).

As violências praticadas conta as mulheres e com as/os colonizadas/ os, para produzir um modo de vida moderno/capitalista, raramente aparecem na história. Aparece o relato retratando apenas as/os como sujeitos passivos da história, pois esse pouco traz os processos de resistência (FEDERICI, 2017). Adiante, para pensarmos em não estagnar em uma categoria de inferiorização social ou outra, seja, por exemplo, a classe, a raça ou o gênero, mas na dinâmica do embate de forças contra uma hegemonia imperial que destrói a alteridade, Walsh, Oliveira e Candau (2018), no dossiê “Colonialidade e Pedagogia Decolonial” apresentam o grupo de pesquisadoras(es) da perspectiva teórica Modernidade/ Colonialidade (M/C), e seus principais conceitos. Além de trazer a ideia de que a M/C não se restringe a um pensamento acadêmico ou que se propõe ser novo campo teórico-universal, afirmam que ela só adquire sentido desde e com as lutas contra a colonialidade, junto com os movimentos políticos e sociais (WALSH; OLIVEIRA; CANDAU, 2018, p. 3). Ainda de acordo com as autoras, a modernidade foi implementada escondendo o seu lado mais obscuro que a colonialidade produziu, inclusive, as Ciências Humanas e Sociais como modelo único e superior para estudar a humanidade, pressupondo um modelo de sujeito universal (branco, eurocêntrico, judaico-cristão, masculino). Dessa forma, o silenciamento conivente de parte da população esclarecida e a influência da colonialidade estão implicadas na construção da modernidade. Essa modernidade “vendida” como salvação da humanidade, essa modernidade das instituições “fortes”, do Estado/nação, da família tradicional burguesa e da empresa capitalista pouco diz sobre que só foi possível tal processo devido à opressão colonial, à subalternização das mulheres e ao racismo. Essas três estruturas (Estado, família e empresa capitalista) mantêm relações de poder hegemônicas e de interdependência entre si constituindo, a partir de seus núcleos, o primeiro sistema mundo-global conhecido (QUIJANO, 2005).

Questionar essas instituições como universais e aplicáveis a todas/os é uma condição necessária para concebermos outra epistemologia, e, nesse sentido, a perspectiva feminista e decolonial vem contribuindo, significativamente, para uma mudança substancial. O grupo M/C considera que a colonialidade é um padrão de poder que permaneceu mesmo após o fim da situação colonial e que produziu e intensificou o racismo, a fome, o patriarcado e as relações desiguais das(os) trabalhadores(as) (MOTA-NETO, 2018). Anibal Quijano (2010) aborda a colonialidade como uma estrutura de dominação e exploração, baseada na raça, no gênero e na expropriação da terra e da vida. Desse modo, numa visão convergente, que destaca a importância das mulheres para decolonizar, Curiel (2007, p. 95) entende que “para descolonizar supone registrar produciones teóricas y práticas subalternizadas, racializadas, sexualizadas, es importante reconecer a tantas mujeres cuyas luchas sierviron para construir teorías”. Assim, o feminismo decolonial busca uma práxis do pensamento e a possibilidade de outras epistemologias antes silenciadas.

Segundo essa autora, a colonialidade produziu uma lógica na qual as mulheres do terceiro-mundo são representadas como objeto e não como sujeitos de sua própria história. Assim, temos uma autorrepresentação das feministas do primeiro-mundo, que colocam as mulheres do Sul global como vítimas, ao desconsiderar experiências importantes de resistência, lutas, ensinamentos e da consequente construção de conhecimento. Outro aspecto para pensar o processo de colonialidade se refere às contribuições do feminismo afrodescendente e indígena, que vem trazendo aportes imprescindíveis à perspectiva decolonial.

Desse modo, faz-se necessário conhecer o pensamento patriarcal e como se constrói a opressão das mulheres. A autora mexicana Marcela Lagarde y de Los Ríos (2015) ajuda a compreender o processo histórico de naturalização das opressões de gênero. Assim, desenvolveu o conceito de “cativeiros” para pensar sobre a condição das mulheres, pessoas concretas ou simbólicas. Para isso, elencou cinco tipologias, que são: “as madresposas, monjas, putas, presas y locas”. Todas essas categorias são estereótipos patriarcais, são sexualidades disciplinadas para o outro, sendo o corpo e a vida para o outro, uma vida sujeitada e normatizada entre deveres e obrigações. Ainda, de acordo com a autora,

vidas sin derechos, sin conciencia ciudadana ni laboral, cuajadas de anhelos incumplidos. Vi la asimetría entre la magnitud de los deberes y los mecanismos de dominación con la escasez de opciones y la falta de investidura de las mujeres como seres aposentadas con legitimidad individual y coletiva en el mundo

(LAGARDE Y DE LOS RÍOS, 2015, p. 23).

Essa construção sócio-histórica leva a uma vida de contradições, ao buscarmos uma consciência crítica e a emancipação, pois, de alguma maneira, o sistema patriarcal se organiza para não mover os privilégios masculinos, privilégios que são paradoxais, pois não existem benefícios coletivos, já que o machismo e a misoginia produzem um dano à sociedade (LAGARDE Y DE LOS RÍOS, 2015). A manutenção da ordem patriarcal é cotidiana. Saffioti (2004) cria – como alegoria ao patriarcado – a ideia de que o mesmo se constitui em uma máquina bem-azeitada, que opera sem cessar e nem precisa dos “olhos” do patriarca para ser acionada. Segundo a autora, além de o patriarcado fomentar a guerra entre mulheres, funciona como uma engrenagem quase automática, visto que pode ser acionada por qualquer um, inclusive por mulheres. Também acrescenta que as mesmas, imbuídas da ideologia dominante, ainda que não sejam cúmplices desse modo de organização, colaboram para alimentá-lo (SAFFIOTI, 2004).

Portanto, a consciência crítica sobre a opressão e discriminação de gênero, raça e classe tem papel fundamental para o empoderamento e a transformação social. A esse respeito, segundo Paulo Freire,

a conscientização não pode existir fora da “práxis”, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens. Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel na história de sujeitos que fazem e refazem o mundo

(FREIRE, 1980, 26).

A conscientização pode ser entendida como ato político, portanto, indissociavelmente educativo. Essa noção, a nosso ver, constitui uma importante ferramenta para o feminismo, pois pressupõe a noção de trabalho coletivo e empoderamento social. Como sair da condição de opressão, se não conhecemos o processo histórico que nos levou a tal condição? E é nesse contexto de agir, refletir no e sobre o mundo que as colaboradoras da pesquisa se inserem, já que buscam um empoderamento social, percorreram caminhos árduos para perceber as limitações impostas pela cultura patriarcal em sua vida e na vida de outras mulheres.

De acordo com a socióloga Céli Pinto (1992), o sujeito que adere ao movimento feminista se constitui um “novo sujeito”, colocando-se em frente de uma linha de tensão com familiares, vizinhos, colegas de trabalho, estabelecendo novas relações de poder às mulheres. Esse enfrentamento pelo espaço público é acirrado e paradoxal, pois, historicamente, seu lugar não é a tribuna, mas o “tanque e o fogão”. Nesse aspecto, podemos dizer que temos muitos avanços para as mulheres, e muitos desses foram conquistados pelo movimento feminista, mas ainda não são todas as mulheres que conquistaram seus direitos de cidadãs, o que implica uma dialética de se refazer a cada conquista.

Percepções feministas: apresentando as trajetórias

Em meio a tantas mulheres que participaram da construção do movimento feminista em Pelotas, optamos por colaboradoras que desenvolveram – reconhecidamente por seus pares – ações para melhorar as condições social, política e econômica, promovendo o empoderamento de si e de outras mulheres, combatendo a discriminação, os preconceitos e as desigualdades estruturais de gênero, raça, classe, idade e outros marcadores identitários, forjados na modernidade para subalternizar.

De acordo com Everardo (2012), a perspectiva feminista apresenta uma diversidade de métodos e metodologias, afirmando serem muitas as posições epistemológicas e ideológicas, não obstante ressalta a invisibilidade das mulheres, a qual atribui à ideologia patriarcal e à sua decorrente misoginia. Nesses aspectos, devemos estar atentas para não utilizar metodologias que reproduzam o machismo, o racismo, a heteronormatividade e outros marcadores de identidade que são utilizados para oprimir e subalternizar.

Como temos defendido, os estudos feministas não buscam objetividade, mas intersubjetividade. Segundo McDowell (1999, p. 349), devemos buscar metodologias que permitam às mulheres estudar as próprias mulheres num processo interativo, de colaboração para evitar o dualismo objeto versus sujeito. Tendo em vista que, cada vez mais, necessitamos de pesquisas que respondam às necessidades sociais, é visível a importância de pesquisas que busquem especificidades do campo estudado, pois não bastam apenas estudos sobre mulheres que têm, na sua fundamentação, uma teoria/metodologia patriarcal-colonial.

A metodologia utilizada é de cunho qualitativo, e, como fonte de dados, essas se compõem de narrativas biográficas. De acordo com Rosenthal (2014), as entrevistas narrativas permitem às colaboradas da pesquisa a maior liberdade possível para a articulação de suas próprias experiências. Dessa forma, o conjunto de narrativas que apresentamos nesta escrita foi constituído por entrevistas narrativo-individuais, realizadas com quatro mulheres que militaram politicamente nos anos 1980 e que, atualmente, têm mais de 60 anos de idade. Essas mulheres participaram de espaços institucionalizados de militância, como o Conselho Municipal da Mulher, o Grupo Autônomo de Mulheres Pelotas (GAMP), a União Brasileira de Mulheres (UBM) ou sindicatos.

A partir da narrativa dessas quatro mulheres, identificadas na pesquisa pelos nomes fictícios: Sofia, Ana, Rosa e Maria, buscamos conhecer quais foram suas principais frentes de atuação, que perpassam por uma atuação política. Todas compartilham a condição de mulheres trabalhadoras não satisfeitas com o status quo, tendo, assim, buscado no ativismo político e feminista a transformação social. Atuaram, em sua geração, no contexto histórico do País, marcado por altos índices de violência de gênero e também de raça, de pobreza, entre outros aspectos decorrentes da exclusão social, exclusão que permanece fortemente, como consequência de um processo de colonialidade do poder. Esse cenário, hoje, permanece e se fortalece com grupos políticos de extrema direita no comando do Brasil, usando um privilégio para retirar direitos e políticas públicas conquistadas pelas/ os trabalhadoras(es) do País.

A primeira colaboradora, Maria, teve sua participação ativista vinculada a movimentos estudantis e à filiação partidária. Atualmente é professora universitária e continua militando no mesmo partido político ao qual se filiou em sua juventude. A outra colaboradora, que denominamos de Ana, foi professora no ensino público – Educação Básica – e participa ativamente das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica (CEBs) e no sindicato das/os professoras(es) (CPERS). Também se dedicou à política partidária, atualmente, está aposentada da docência. Já Sofia também é funcionária pública aposentada, trabalhou como assistente social em diversas cidades do Estado do RS, principalmente com jovens em situação de vulnerabilidade social. Igualmente à Ana, ela participa das CEBs. Já Rosa se descreveu como uma mulher negra, trabalhadora doméstica, sindicalista e pobre. Não se define como vítima, mas como mulher que lutou e ainda luta para valorizar seus espaços de trabalho.

De acordo com as narrativas, podemos inferir que todas, apesar das diferenças culturais e de raça, sofreram algum tipo de opressão patriarcal, desde dificuldade de se sentirem seguras para se manifestar em público devido ao costume da não participação feminina em encontros e eventos, até por suas tomadas de decisão pessoais, como, por exemplo, optar por não exercer a maternidade, ou mesmo por manter uma relação afetiva não tradicional com parceiros/as, considerando que reconhece a existência de uma cobrança social pelo modelo de família tradicional. A esse respeito, Lagarde y de los Ríos (2015) considera que as mulheres vivem em cativeiros sociais, impostos pelo sistema patriarcal, desprovidas de poder, subalternizadas pela construção histórica da categoria mulher. É notório o processo de conscientização crítica e empoderamento dessas mulheres, pois tiveram que romper barreiras pessoais e, para isso, afirmam que os espaços de coletividade foram potentes para enfrentar as discriminações de gênero.

Também podemos analisar, em suas narrativas, que as quatro colaboradoras reconhecem o protagonismo de várias outras mulheres na construção do movimento feminista em Pelotas e que, cada uma à sua maneira e leitura de mundo, contribuíram para essa construção, considerando que o movimento necessita de muitas frentes de atuação. Essas mulheres, em vários momentos, estiveram juntas, evidenciando uma influência coletiva sobre o empoderamento solidário e a atuação na emancipação social.

Podemos observar, nas narrativas, que houve muitas ações pontuais, principalmente em relação à violência contra mulheres e a autonomia financeira, com trabalhos de geração de renda, o que também é uma prática necessária para compor o todo, ainda que não suficiente. Além disso, também discutiram sobre e aprofundaram temas-tabus, como: casamento, aborto, maternidade, divisão sexual do trabalho, e em todas, embora com pequenas variações, foi possível perceber a defesa de uma perspectiva progressista e de transformação da sociedade patriarcal.

O aspecto que perpassa por todas as narrativas que coletamos se refere à importância da autonomia econômica, entendida como condição necessária ao enfrentamento de outras opressões, como, por exemplo, dizer não à violência doméstica que, por si só, já é de alta complexidade. Vimos a importância da autonomia econômica para conseguirem decidir sobre casamento, maternidade, lazer, entre outros aspectos da vida. Desse modo, o sexismo, como cultura dominante, se apresenta de um único modo, isto é, o homem (como único provedor) anula e invisibiliza o trabalho das mulheres. Mesmo quando ele não garante o sustento familiar, a figura patriarcal se mantém tanto na figura do marido como, muitas vezes, na dos filhos.

Joice Berth (2018), ao discutir empoderamento social, apresenta uma experiência de pesquisa sobre o Programa Bolsa-Família, implementado no governo do Partido dos Trabalhadores (PT), a partir de 2006. É importante destacar que esse Programa foi destinado, principalmente, às mulheres, chefes de família. Após, pesquisadores/as ouvirem algumas beneficiárias, constataram, de acordo com a autora, que aumentou o número de mulheres que procuram métodos contraceptivos, o que indica que elas passaram a se sentir fortalecidas para enfrentar o assédio dos próprios maridos, como também aumentou o número de mulheres que solicitaram divórcio (BERTH, 2018, p. 61). Essa prática ilustra a necessidade de políticas públicas fortes e consistentes, que atendam às necessidades de autonomia financeira. Esse aspecto se aproxima das preocupações das colaboradoras sobre a necessidade de empoderamento das mulheres; afinal, sem trabalho todos e, principalmente, as mulheres, que culturalmente assumem sozinhas a maior parte das vezes a guarda das/ os filhas/os, passam para o isolamento e assumem, individualmente, a responsabilidade pelo fracasso.

Outro problema social que apareceu nas narrativas diz respeito à violência doméstica, sendo que todas as colaboradoras, em algum momento de sua trajetória, realizaram atividades e ações para o combate da violência doméstica, atuaram em diversos círculos, na mídia local, em escolas, atos públicos, entre outros espaços, para discutir, denunciar e informar o grave problema da violência doméstica. bell hooks (2019) considera que o movimento feminista contemporâneo foi a força que revelou e expôs, dramaticamente, a contínua realidade da violência doméstica. A autora prefere utilizar o conceito “violência patriarcal” ao invés de “violência doméstica”, pois entende que a maioria das pessoas tende a enxergar a violência doméstica entre adultos como algo separado e diferente da violência contra crianças, quando, na realidade, a violência doméstica se estende também às crianças e aos jovens (2019).

Podemos observar que, ao falar sobre violência doméstica, as colaboradoras entendem que na família sofrem, pois, apesar de se referirem à violência doméstica, a prática exercida tende a ser mais ampla, ao reconhecer que não existe benefícios sociais. Saffioti (2004) afirma que a violência doméstica apresenta características específicas de codependência, já que o próprio gênero acaba por se revelar uma camisa de força, pois o homem necessita ter o controle e vai obtê-lo a qualquer custo, e tal prática é naturalizada, e muitas mulheres não percebem os primeiros sinais de abuso e nem sua reprodução no ato de educar as/os filhas(os).

As colaboradoras da pesquisa referem que é urgente o combate à cultura patriarcal e misógina e que, apesar dos muitos avanços, como, por exemplo, a criação da Lei Maria da Penha, das Delegacias da Mulher, das Casas de Acolhida e outras formas institucionalizadas, são necessárias mudanças culturais que combatam a violência doméstica e seus danos à sociedade. Todas as participantes da investigação entendem que não existe uma fórmula mágica, sendo que é necessário muito trabalho para combater essa violência e o sexismo.

Uma das colaboradoras apresentou maior interesse e preocupação por aspectos da interseccionalidade. Acreditamos que a ênfase nos marcadores raciais e de gênero e classe deve-se, principalmente, por ela ser uma mulher negra, pobre e atuante no Sindicato das Domésticas, no Munícipio de Pelotas. Ela assume que sua consciência crítica sobre racismo, sexismo e classe social surgiu como uma necessidade de diálogo para se empoderar e, consequentemente, colaborar no processo de emancipação de outras mulheres. Para Crenshaw a interseccionalidade,

trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (2002, p. 177).

As mulheres negras são, comumente, marginalizadas, devido a uma política única, seja racial, seja mesmo de gênero. A autora propõe uma política para ambas as opressões. Collins (2017) explica que a interseccionalidade que compõe a sobreposição de opressões de gênero, raça, classe social, sexualidade, entre outas identidades, antes de ser um tema acadêmico já estava fortemente sendo debatida por movimentos sociais e mulheres negras, que sentiam a necessidade de discutir gênero, raça, classe social e sexualidade nos movimentos sociais, pois essas mulheres não eram ouvidas nem nos movimentos de políticas raciais e nem pelo feminismo branco. Para a autora a interseccionalidade, antes de ser um projeto de conhecimento científico, se apresenta como um projeto de justiça social, autonomia e emancipação.

Considerações finais

Nessa investigação que apresentamos, é possível perceber, a partir das narrativas das mulheres que colaboraram com a pesquisa, a necessidade de visibilizar suas experiências que, a princípio, podem parecer individuais, mas que são de grande importância à construção da coletividade do movimento. Dessa forma, é possível registrá-las, na história do próprio movimento, e também compartilhar suas dificuldades, suas conquistas, suas percepções. Com isso, podemos ter subsídios para fomentar diálogos tanto com diferentes mulheres, homens e outras expressões de gênero e identidade e mesmo com as novas gerações.

Podemos afirmar que o contexto histórico da cidade é muito semelhante ao de diversas cidades do País, marcado por altos índices de violência e exclusão social. É também semelhante ao atestar os retrocessos das políticas públicas, afirmando a importância da vigilância e da manutenção dos incipientes avanços no Brasil.

Num país em que o capitalismo neoliberal se ressignifica e cresce, mais é confirmada a necessidade de conquistar independência financeira e empoderamento solidária, ao mesmo tempo que se luta por uma transformação social, ao inverso do que os rumos do pensamento hegemônico estão indicando. Essa luta por independência e emancipação do poder próximo do patriarca, se não for feita juntamente com esforços sociais baseados na solidariedade e na justiça, apenas se conformará a manutenção de práticas espontâneas e naturalizadas de competição aniquilante do outro. No diálogo com mulheres ativistas que pesquisamos, o apoio às minorias fragilizadas, junto com um posicionamento político e politizado, possibilita a transformação do paradigma tradicional em direção a um ideal maior e à valorização de outras epistemologias e expressões culturais.

Os exemplos de permanência no ativismo, em grupos e instituições, expressam o objetivo de aproximar o Estado da população, tornando-o decente e responsável, para democratizar, radicalmente, a política e promover melhor distribuição das riquezas e maior cuidado com os recursos da Nação.

Na importância de entender a trajetória do movimento feminista, sob o enfoque interseccional, decolonial, e, por sermos mulheres latino-americanas, entendemos que é preciso visibilizar as práticas de ativismo e também de pesquisas. Se a modernidade tem como projeto a hegemonia dos saberes culturais de pequenos grupo, pensamos no feminismo decolonial para praticar um movimento de resistência, de resgate e de criação de formas solidárias e seguras de se viver. Entendemos, com elas, que não há como não lutar por um mundo melhor, isso é necessário e urgente.

As mulheres que participaram desta investigação mostraram que a escolha pelo ativismo não é um caminho fácil, é mais uma atividade na já atribulada vida, no entanto, traz inúmeros frutos como o empoderamento, como percepção de si e a consciência da importância das mulheres e a união para o enfrentamento das agruras sociais. É importante destacar suas lutas pelo empoderamento coletivo, numa sociedade que premia indivíduos competitivos e nada éticos, em afirmação de que, para superar a vulnerabilidade das maiorias, a Educação e empoderamento produzem um pensamento-ação menos subserviente ao sistema mundo capitalista-neoliberal.

Elas reconhecem que ainda há muito trabalho social a ser feito para combater o patriarcalismo tanto nas mentes como nas instituições e na cultura. Mas defendem que é preciso insistir e difundir o pensamento e a influência cultural do feminismo, reunir mulheres em torno de uma causa maior, que contemple a luta por direitos e equidade de gênero.

*Este trabalho foi apresentado na V Conferência Internacional de Filosofia e Educação e Pedagogia Crítica, no GT Política e Educação.

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Recebido: 18 de Agosto de 2019; Aceito: 28 de Novembro de 2019

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