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Conjectura: Filosofia e Educação

Print version ISSN 0103-1457On-line version ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.dossie.18 

DOSSIÊ: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA CRÍTICA: PREOCUPAÇÕES E TENDÊNCIAS ATUAIS

Interpretação do modelo social de deficiência a partir do conceito de normalidade de Canguilhem

Interpretation of the social disability model from the normality concept of Canguilhem

Naim Rodrigues de Araújo* 
http://orcid.org/0000-0003-4966-816X

Charles Moreira Cunha** 
http://orcid.org/0000-0001-6926-0394

*Mestrando em Educação e Docência pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Graduação em Educação Especial e Inclusiva pelo Instituto Pedagógico Universal. Graduação em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Técnico administrativo em Educação na Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: naim@ufmg.br.

**Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor-Adjunto na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Programa de Mestrado Profissional na linha de pesquisa Trabalho e Educação. E-mail: charlescunha@hotmail.com


Resumo

Este estudo apresenta uma abordagem aproximativa entre as discussões propostas pelo modelo social de deficiência e as concepções filosóficas do médico e filósofo Georges Canguilhem. A partir dos conceitos de doença, patologia, anomalia, normalidade e anormalidade, busca-se aqui, atualizar a discussão dialogando com as preposições do modelo social de deficiência. Elegemos como referencial teórico a obra O normal e o patológico, de Georges Canguilhem e as contribuições de Débora Diniz na obra O que é deficiência; além disso, uma busca na plataforma Google acadêmico foi feita com os seguintes descritores: normal – anormal – norma – normalidade – deficiência. Foram feitas as seguintes associações de descritores: normal/ deficiência, anormal/deficiência, norma/deficiência e normalidade/ deficiência. Após a leitura dos resumos, constatamos que quatro textos encontrados tratam da temática abordada neste artigo, portanto, fizemos a opção de integrá-los ao referencial teórico deste estudo. Espera-se que essa abordagem aproximativa possibilite uma reflexão a respeito do conceito de normalidade, distanciando-o da deficiência, e assim, aumentando as possibilidades de alcançarmos uma sociedade cada vez mais inclusiva.

Palavras-chave Normalidade; Inclusão; Autonomia; Cuidado

Abstract

This study proposes an approximate between the discussions proposed by the social model of disability and the philosophical conceptions of the doctor and philosopher Georges Canguilhem; from the concepts of disease, pathology, anomaly, normality and abnormality, we will try to update the discussion by dialoguing with the prepositions of the social model of disability. We chose as a theoretical reference the work The normal and the pathological of Georges Canguilhem, and the contributions of Débora Diniz in the work What is Disability; in addition, a search in the Google academic platform was made with the following descriptors: normal – abnormal – norm – normality – disability. The following descriptions were made: normal / disability, abnormal / disability, norm / disability and normality / disability. After reading the abstracts we found that four texts found deal with the theme addressed in this article, therefore, use the option to integrate with the theoretical framework of this study. It is hoped that this approach will allow a reflection on the concept of normality, distancing it from disability, and thus increasing the chances of reaching an increasingly inclusive society.

Keywords Normality; Inclusion; Autonomy; Care

Introdução

Ainda que as questões inclusivas, sobretudo em âmbito político tenham ganhado espaço a partir da década de 1990, no Brasil, as pessoas com deficiência, em diferentes contextos, sofrem discriminação/marginalização. Muitas vezes, o contexto social se torna preponderante na luta por uma sociedade inclusiva.

Entendendo, assim, que existe uma necessidade emergente de ampliar as discussões, este artigo se estrutura a partir da retomada de conceitos apresentados por Georges Canguilhem,1 sobretudo por entender que ainda que, tais conceitos não tenham sido pensados especificamente às pessoas com deficiência, eles dialogam com o modelo social de deficiência e nos ajudam a refletir sobre o que, de fato, representa deficiência no contexto social.

França (2014) discute os processos inclusivos a partir de uma análise historiográfica da percepção social para com a pessoa com deficiência. O autor perpassa por contextos históricos nos quais as pessoas com deficiência eram extirpadas, institucionalizadas, normalizadas e, mais recentemente, integralizadas e socializadas.

Para França a concepção médica de normalização ou renormalização da pessoa com deficiência condiz com um contexto histórico no qual não se pensava a integralidade da pessoa com deficiência como ser humano, ou seja, a busca era por condições que pudessem fazer com que a pessoa com deficiência atingisse determinada média social e exercesse as mesmas funções que as demais. Ainda que essa abordagem tenha problemas, é preciso que admitamos a existência de uma preocupação em atender às demandas das pessoas com deficiência, talvez uma preocupação mais econômico-social do que propriamente social, contudo, ainda que em pequena medida, todas as ações têm prós e contras, que precisam ser examinadas e discutidas e não apenas refutadas de forma simplista.

A Ideologia da Normalização e seu objetivo final de inserção social da pessoa com deficiência por meio da intervenção no indivíduo atuou positivamente no processo de desinstitucionalização da deficiência que passou a ser fortemente questionado e tida como ineficiente para a inserção social da pessoa com deficiência, decorrendo em isolamento social ao passo que se tornam mais dependentes da instituição

(FRANÇA, 2014, p. 112-113).

Ainda que toda prática deva ser interpretada a partir de um contexto histórico no qual está inserida, é inconcebível não discutir a necessidade de ampliar a ideia de normalização da pessoa com deficiência, sobretudo por ser a deficiência, conforme salienta Diniz2 (2007), uma maneira particular de experienciar a vida, o que pouco tem a ver com uma não normalidade corpórea ou social.

A Ideologia da Normalização consiste na crença que, por meio da habilitação e reabilitação, deve-se prover às pessoas com deficiência serviços que ajam sobre seus corpos para que executem funções mais próximas possíveis do normal. Normalidade, nesse caso, traduz-se na execução de ações como fariam na média as pessoas que não têm deficiência, segundo o esperado para sua idade, sendo assim um conceito bio-estatístico. Essa concepção orienta não somente o meio pelo qual os indivíduos se podem inserir socialmente como também quem o pode (ou não) (FRANÇA, 2014, p.111-112). Seja por meio de práticas ancestrais de infanticídio, dos planos de esterilização forçada, do ainda corrente isolamento institucional e difundida negação da sexualidade, a deficiência, por vezes, disputou sua própria existência com a promoção da normalidade. A Ideologia da Normalização, em seu sentido mais restrito, individualiza a experiência da deficiência ao impor uma regulação sobre o corpo de cada indivíduo

(FRANÇA, 2014, p. 121).

Essa regulação corpórea imposta pela ideia de normalizar a pessoa diferente deixa de reconhecer a singularidade da pessoa com deficiência, que, mais do que uma deficiência, possui muitas potencialidades. Essa discussão filosófica e social ganha maior visibilidade com as proposições do modelo social de deficiência que surge como uma alternativa à hegemonia médica.

Por meio de uma análise majoritariamente dedicada à teoria, o momento histórico no qual surge uma alternativa à Ideologia da Normalização também é abordado, principalmente, através da apresentação do Modelo Social da Deficiência e suas implicações

(FRANÇA, 2014, p. 106).

Contudo, ainda que as discussões em prol de um modelo social de deficiência tenham ganhado espaço nas discussões sociais, incluindo as pedagógicas e as políticas, na prática, “a tendência contemporânea de politização da deficiência, de torná-la um elemento da composição do corpo da sociedade para além do corpo do indivíduo, não elimina as tendências médicas e seu grande peso nas representações sociais” (FRANÇA, 2014, p.117).

O excerto acima deixa claro que as ideias de normalizar/ renormalizar as pessoas com deficiência não foram extirpadas da sociedade e se mostram presentes no contexto atual. Sem querer desconsiderar a importância da medicina na qualidade de vida das pessoas, é preciso admitir, por outro lado, que a abordagem médica deve ser, a priori, social e, sobretudo individualizada, pois “mesmo após forte regulação científica, indivíduos que possuem a mesma limitação física podem ou não serem socialmente reconhecidos como uma pessoa com deficiência, devido às expectativas e papéis sociais” (FRANÇA, 2014, p. 120).

De modo geral, o atual panorama acadêmico entorno da deficiência indica uma bipolarização entre as investigações e elaborações teóricas. De um lado, a deficiência permanece como um desafio ao funcionamento do corpo, na perspectiva médica. De outro, os estudos sociais da deficiência se dedicam a examinar a sociedade e como essa se relaciona com a deficiência, numa abordagem em que a deficiência é um componente indissociável da experiência de vida das pessoas que a possui

(FRANÇA, 2014, p. 118).

Pensar o trabalho é um bom exercício para refletirmos sobre a importância do modelo social de deficiência. Autores como Bechtold e Weiss (2003), Araújo e Schmidt (2006), Duarte (2009), Braga e Pereira (2010), Cezar (2010), Opuszka e Hartmann (2013), discutem os processos inclusivos no mercado de trabalho e reiteram que muitas pessoas com deficiência são discriminadas, têm dificuldade de ser contratadas pelo mercado formal, mesmo a legislação garantindo a reserva de vagas. Contudo, ainda que por processos diferentes, quando recebem oportunidade de colocação profissional, conseguem desempenhar as mesmas funções. Assim, é preciso (re)pensar a perspectiva que percebe a deficiência apenas como um desafio ao funcionamento do corpo, buscando compreendê-la como um estilo próprio de vida, uma das muitas normas de vida existentes.

Metodologia

Este artigo se estrutura a partir de uma abordagem aproximativa entre os conceitos de doença, patologia, anomalia, normalidade e anormalidade, discutidos pelo filósofo e médico Georges Canguilhem e as preposições do modelo social de deficiência. Para tanto, elegemos como referencial teórico a obra O normal e o patológico (CANGUILHEM, 2009) e a obra O que é deficiência (DINIZ, 2007).

Rampazzo (1998) considera que fazer uma revisão bibliográfica crítica significa conhecer contribuições científicas que se aprofundaram sobre o tema assumido como objeto de pesquisa pelo investigador. Para Yamamoto e Miako (1999) uma análise bibliográfica ocorre quando o pesquisador relaciona o seu objeto de pesquisa com outros já estudados, a fim de se familiarizar e se aprofundar no tema. Segundo Salomon (1996), perpassar por produções bibliográficas pretéritas mostra as dificuldades, as perspectivas e, sobretudo, as futuras possibilidades a respeito de um tema específico.

Reconhecendo a importância de revisitar a bibliografia para ampliar as discussões atuais, utilizamos os seguintes descritores na plataforma Google acadêmico: normal – anormal – norma – normalidade – deficiência. Os descritores foram organizados em pares de forma que a palavra deficiência sempre estivesse presente na busca. A procura foi feita no título dos artigos e em páginas em português.

Com os descritores anormal/deficiência, encontramos dois artigos; na pesquisa por normal/deficiência obtivemos sete textos, sendo que um retorno já havia sido obtido com descritores utilizados anteriormente. Ao pesquisarmos por norma/deficiência; encontramos oito trabalhos; já com os descritores normalidade/deficiência; sete retornos foram obtidos. Optamos por analisar o conteúdo dos artigos e constatamos que os termos (normal – anormal – norma – normalidade) foram mais associados à legislação do que propriamente a uma reflexão filosófica. Assim, encontramos quatro artigos – discutidos posteriormente – que consideramos pertinentes à temática abordada neste estudo, e, portanto, os adicionamos ao referencial bibliográfico deste artigo.

Todas as normas são normais

Canguilhem recorre a autores como Claude Bernard, Bichat, Broussais e Comte, que apresentam uma convergência de conceitos quantitativos e qualitativos na definição dada aos fenômenos patológicos para, então, refutar o conceito positivista de doença como falta ou excesso; nesse sentido, Canguilhem formula sua tese sobre o normal e o patológico. O autor argumenta que, à época, Broussais teorizou que

todas as doenças consistem, basicamente, “no excesso ou falta de excitação dos diversos tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal”. Portanto, as doenças nada mais são que os efeitos de simples mudanças de intensidade na ação dos estimulantes indispensáveis à conservação da saúde (CANGUILHEM, 2009, p. 16).

Canguilhem acrescenta que, para corroborar a ideia simplista de separar a saúde da doença, apenas pela mudança de intensidade entre as ações estimulantes do corpo, Broussais tenta argumentar que os fenômenos da doença coincidem, exatamente, com os fenômenos da saúde, diferenciando-se apenas pela intensidade da ocorrência em cada estado. “Esse luminoso princípio tornou-se a base sistemática da patologia, subordinada, assim, ao conjunto da biologia”

(CANGUILHEM, 2009, p. 16).

Em uma reflexão filosófica acerca dos procedimentos adotados pela medicina, Canguilhem argumenta que

a fisiologia é a ciência das funções, e dos modos da vida, mas é a vida que oferece à exploração do fisiologista esses mesmos modos, cujas leis ele codifica. A fisiologia não pode impor à vida apenas os modos cujo mecanismo lhe seja inteligível

(CANGUILHEM, 2009, p. 38).

Na passagem acima, o autor nos convida a refletir sobre a limitação em admitirmos a doença apenas como uma variação quantitativa da saúde, o que transferiria ao fisiologista todo o discernimento acerca do que, de fato, esteja ocorrendo no corpo humano. Ainda que seja necessária tal atuação, é preciso não desconsiderarmos os fatores sociais, é preciso que concebamos que ainda que existam características gerais dos seres humanos, somos, em essência, únicos e igualmente nos relacionamos com a vida de forma singular; desse modo, seria simplista demais admitir a doença como uma variação objetiva da saúde:

[A] Medicina do século XVIII tinha permanecido, por influência dos animistas e dos vitalistas, uma medicina dualista, um maniqueísmo médico. A Saúde e a Doença disputavam o Homem, assim como o Bem e o Mal disputavam o Mundo

(CANGUILHEM, 2009, p. 40).

O autor analisa a importância do contexto social na definição do conceito de normalidade. Fica claro, nesse modo de pensar, que a medicina não é capaz, por si só, de estabelecer a definição de normalidade, pois um homem normal em determinada cultura, poderá não ser normal em outra.

A norma lógica de prevalência do verdadeiro sobre o falso pode ser invertida de modo a se transformar em norma de prevalência do falso sobre o verdadeiro, assim como a norma ética de prevalência da sinceridade sobre a hipocrisia pode ser transformada em norma de prevalência da hipocrisia sobre a sinceridade

(CANGUILHEM, 2009, p. 109).

Para um homem que imagina seu futuro quase sempre a partir de sua experiência passada, voltar a ser normal significa retomar uma atividade interrompida, ou pelo menos uma atividade considerada equivalente, segundo os gostos individuais ou os valores sociais do meio

(CANGUILHEM, 2009, p. 45-46).

Percebe-se, ainda, na passagem acima, que, além dos valores sociais, as normas levam em consideração a individualidade das pessoas. À medida que o homem procura ressignificar sua prática, para voltar ao que era considerado normal para ele ou para algo cossignificativo, o processo de (re)normalização torna-se subjetivo, pois cada sujeito – levando em consideração suas individualidades – terá percepções do meio em que vive de forma distinta; e da mesma forma cada meio se relacionará com esse homem de maneira distinta, podendo tornar a (re)normalização mais fácil ou mais difícil.

Vejamos o exemplo de um rapaz, examinado, recentemente, que tinha caído em uma serra circular que estava em movimento, e cujo braço tinha sido seccionado transversalmente em três quartos, tendo ficado indene o feixe vásculo-nervoso interno. Uma intervenção rápida e inteligente lhe permitiu conservar o braço. O braço apresenta uma atrofia de todos os músculos, assim como o antebraço. Todo o membro estava frio, a mão cianosada. O grupo dos músculos extensores apresentava, ao exame elétrico, uma reação de nítida degenerescência. Os movimentos de flexão, de extensão e de supinação do antebraço ficaram limitados (flexão limitada a 45º; extensão, a 170°, aproximadamente), a pronação é mais ou menos normal. Esse doente está contente por saber que vai recuperar grande parte das possibilidades de uso de seu braço. É claro que, em relação ao outro braço, o membro lesado e restaurado cirurgicamente não será normal do ponto de vista tráfico e funcional. Mas o essencial é que esse homem vai retomar a profissão que havia escolhido ou que as circunstâncias lhe haviam proposto, ou talvez mesmo imposto, e na qual, em todo caso, ele encontrava uma razão, mesmo medíocre, de viver

(CANGUILHEM, 2009, p. 46).

O exemplo acima é bem-elucidativo e ajuda a entender que para alguém que esteja momentaneamente privado de realizar atividades exercidas outrora, o que mais importa é poder exercer o que gosta/quer fazer, ainda que por processos diferentes. Conforme salientado por Canguilhem,

mesmo que esse homem obtenha de agora em diante resultados técnicos equivalentes por processos diferentes de gesticulação complexa, continuará a ser socialmente apreciado segundo as normas de outrora; continuará a ser carreteiro ou chofer, e não ex-carreteiro ou ex-chofer (2009, p. 46).

Ou seja, o homem não deixou de ser normal, apenas apresenta novas normas, que, por processos diferentes, continuam a cumprir os objetivos pessoais da pessoa. Obviamente que essas regras muito têm a ver com o contexto social. À medida que um ambiente seja favorável às diferenças individuais e entenda que ainda que uma pessoa tenha limitações ela pode realizar as mesmas tarefas desde que tenha equipamentos de auxílio, ou desde que utilize estratégias pessoais diferentes do que utilizara outrora, esse processo de (re)normalização tende a ser facilitado.

O doente esquece que, por causa de seu acidente, vai lhe faltar, daí por diante, uma grande margem de adaptação e de improvisação neuromusculares, isto é, a capacidade de melhorar seu rendimento e de se superar, capacidade esta da qual talvez jamais tenha feito uso, apenas por falta de oportunidade. O que o doente lembra é de que não está manifestamente inválido

(CANGUILHEM, 2009, p. 46).

Essa compreensão de limitação pessoal, ou de invalidez, que passa, obviamente, por questões internas e pessoais, diz respeito ao modo pelo qual a pessoa doente percebe suas dificuldades e potencialidades; contudo, acredita-se que um ambiente social acolhedor, que busque ressaltar as potencialidades em vez de apenas lembrar as dificuldades, tenha papel preponderante no processo de (re)normalização.

[É] certo que, em medicina, o estado normal do corpo humano é o estado que se deseja restabelecer. Mas será que se deve considerá-lo normal porque é visado como fim a ser atingido pela terapêutica, ou, pelo contrário, será que a terapêutica o visa justamente porque ele é considerado como normal pelo interessado, isto é, pelo doente? Afirmamos que a segunda relação é a verdadeira. Achamos que a medicina existe como arte da vida porque o vivente humano considera, ele próprio, como patológicos – e devendo, portanto, ser evitados ou corrigidos – certos estados ou comportamentos que, em relação à polaridade dinâmica da vida, são apreendidos sob a forma de valores negativos. Achamos que, dessa forma, o vivente humano prolonga, de modo mais ou menos lúcido, um efeito espontâneo, próprio da vida, para lutar contra aquilo que constitui um obstáculo à sua manutenção e a seu desenvolvimento tomados como normas

(CANGUILHEM, 2009, p. 48).

O trecho supracitado corrobora o entendimento de que a norma está mais relacionada com um pensamento individual do que com um pensamento técnico de reestabelecimento da saúde. Isso ratifica a necessidade de trabalharmos, em primeiro lugar, o ser doente em sua individualidade, não tentando quantificar o quão distante ele esteja da saúde, mas buscando ajudá-lo a entender suas potencialidades. Nesse sentido, insistimos na importância de uma sociedade acolhedora que não seja estritamente opositora entre saúde e doença. Uma compreensão ampla da saúde, da doença e das múltiplas normas ao invés de uma única norma, pode contribuir para uma (re)normalização cada vez menos traumática. “Em resumo, a anomalia pode transformar-se em doença, mas não é, por si mesma, doença” (CANGUILHEM, 2009, p. 54).

O meio é normal pelo fato de o ser vivo nele desenvolver melhor sua vida, e nele manter melhor sua própria norma. É em relação à espécie de ser vivo que o utiliza em seu proveito que um meio pode ser normal. Ele é normal apenas porque tem como ponto de referência uma norma morfológica e funcional

(CANGUILHEM, 2009, p. 55).

Falar em normalidade significa, para Canguilhem, ser capaz de desenvolver melhor sua vida; desse modo, uma deficiência, ou limitação física, não implica anormalidade. À medida que as relações sociais discriminam a existência de uma norma diferente, temos, pois, uma estrutura social preconceituosa, e não, uma ausência de norma. Nesse sentido, percebemos que, não necessariamente, precisamos mudar a norma individual, e sim, restabelecer a concepção social de normalidade.

O ser vivo e o meio, considerados separadamente, não são normais, porém é sua relação que os torna normais um para o outro. O meio é normal para uma determinada forma viva na medida em que lhe permite uma tal fecundidade e, correlativamente, uma tal variedade de formas que, na hipótese de ocorrerem modificações do meio, a vida possa encontrar em uma dessas formas a solução para o problema de adaptação que, brutalmente, se vê forçada a resolver. Um ser vivo é normal em um determinado meio na medida em que ele é a solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder a todas as exigências do meio. Em relação a qualquer outra forma da qual se afasta, esse ser vivo é normal, mesmo se for relativamente raro, pelo fato de ser normativo em relação a essa forma, isto é, desvalorizando-a antes de eliminá-la

(CANGUILHEM, 2009, p. 56).

Ao considerar a relação entre o ser humano e o meio como indispensável na concepção de normalidade, Canguilhem deixa clara a ideia de que um mesmo ser pode ser considerado normal em uma cultura e anormal em outra. Logo, se depreende que as relações sociais contribuem significativamente na concepção de normalidade, de tal modo que uma concepção de normalidade única desconsidera todos os outros seres que possuem normas distintas, ainda que consigam desempenhar as mesmas funções por processos diferentes. Desconsiderar essa multiplicidade de normas é o mesmo que desconsiderar a singularidade do ser humano. Mesmo que minimamente, somos únicos e nos relacionamos com o meio de forma singular. Além do conceito de norma, Canguilhem busca superar a ideia de que toda anomalia esteja atrelada a uma patologia.

Compreende-se, finalmente, por que uma anomalia – e especialmente uma mutação, isto é, uma anomalia já de início hereditária – não é patológica pelo simples fato de ser anomalia, isto é, desvio a partir de um tipo específico, definido por um grupo dos caracteres mais frequentes em sua dimensão média. Caso contrário seria preciso dizer que um indivíduo mutante, ponto de partida de uma nova espécie, é, ao mesmo tempo, patológico porque se desvia e normal porque se conserva e se reproduz. O normal, em biologia, não é tanto a forma antiga mas a forma nova, se ela encontrar condições de existência nas quais parecerá normativa, isto é, superando todas as formas passadas, ultrapassadas e, talvez, dentro em breve, mortas

(CANGUILHEM, 2009, p. 56).

Compreender a distinção entre patologia e anomalia é importante do ponto de vista social, sobretudo por ser a anomalia frequentemente/ historicamente alvo de preconceito social. De modo geral, existe resistência ao diferente; compreender que uma norma diferente não é, por si só, uma patologia, compreender que uma anomalia, por si só, não é uma patologia, nos ajuda na distinção entre diferença e doença.

Distinguindo anomalia de estado patológico, variedade biológica de valor vital negativo, atribui-se, em suma, ao próprio ser vivo, considerado em sua polaridade dinâmica, a responsabilidade de distinguir o ponto em que começa a doença

(CANGUILHEM, 2009, p. 71).

Logo, não podemos/devemos desconsiderar as concepções individuais das pessoas. Está claro que a medicina tem papel fundamental na sociedade, conquanto, um diagnóstico de cegueira em um local em que não existe luz pode significar pouco:

Uma espécie animal cega e cavernícola pode ser considerada adaptada à obscuridade, e pode-se conceber sua aparição, por mutação, a partir de uma espécie dotada de boa visão, e sua conservação pelo fato de ter encontrado e ocupado um meio que, se não é adequado, pelo menos não é contraindicado

(CANGUILHEM, 2009, p. 121).

Esse exemplo reitera a necessidade de considerarmos, de antemão, o que a própria pessoa pensa sobre sua situação, sendo, nesse contexto, as relações sociais fortemente relacionadas com as decisões/percepções individuais.

Aquilo que é normal, apesar de ser normativo em determinadas condições, pode se tornar patológico em outra situação, se permanecer inalterado. O indivíduo é que avalia essa transformação porque é ele que sofre suas consequências, no próprio momento em que se sente incapaz de realizar as tarefas que a nova situação lhe impõe. Certa ama, que cumpria perfeitamente os deveres inerentes a seu cargo, só veio a saber de sua hipotensão pelos distúrbios neurovegetativos que sentiu, no dia em que a levaram para passar férias na montanha

(CANGUILHEM, 2009, p. 121).

Conforme exposto no exemplo acima, uma pessoa que possui uma doença que apenas manifesta sintomas em altas altitudes não pode ser considerada incapaz para atividades realizadas em baixas altitudes. Em outras palavras, essa pessoa tem sua norma própria, o que não implica uma anormalidade e, muito menos, uma incapacidade; apenas necessita de uma organização para desempenhar as funções às quais sua norma de vida permite.

Sem dúvida, ninguém é obrigado a viver em elevadas altitudes. Mas poder fazê-lo significa ser superior, pois isso pode se tornar, um dia, inevitável. Uma norma de vida é superior a outra quando comporta o que esta última permite e também o que ela não permite. No entanto, em situações diferentes, há normas diferentes e que, mesmo enquanto diferentes, se equivalem. Desse ponto de vista, todas as normas são normais

(CANGUILHEM, 2009, p. 71).

Percebe-se, logo, que falar em uma norma geral só é possível em situações às quais determinada norma seja superior a outra, conforme o conceito de superioridade destacado por Canguilhem; em contrapartida, na sociedade em que vivemos, sobretudo com o advento da tecnologia, cada vez mais, a tecnologia assistiva e até mesmo as tecnologias no geral, têm servido de suporte e possibilitado que todas as pessoas possam exercer suas atividades, seja no trabalho e na família, seja em qualquer outra instituição social. Mesmo que essa participação seja por processo diferente do exercido pela maioria das pessoas, trata-se de uma norma própria que não torna a pessoa inapta ou anormal, apenas diferente do ponto de vista técnico-operacional, mas igualmente normal do ponto de vista filosófico.

Em consequência das análises precedentes, fica evidente que definir a fisiologia como a ciência das leis ou das constantes da vida normal não é rigorosamente exato, por duas razões. Primeiro, porque o conceito de normal não é um conceito de existência, suscetível, em si mesmo, de ser medido objetivamente. Em seguida, porque o patológico deve ser compreendido como uma espécie do normal, já que o anormal não é aquilo que não é normal, e sim aquilo que é um normal diferente. Isso não quer dizer que a fisiologia não seja uma ciência. Ela o é autenticamente por sua procura de constantes e de invariantes, por seus processos métricos, por sua atitude analítica geral. No entanto, apesar de ser fácil definir – por meio de seu método – o modo como a fisiologia é uma ciência, é menos fácil definir – por meio de seu objeto – de que ela é a ciência. Poderemos chamá-la de ciência das condições da saúde?

(CANGUILHEM, 2009, p. 81).

Canguilhem, então, não desconsidera ou desqualifica a importância dos investimentos médicos no campo da saúde, contudo, salienta a necessidade de refletirmos sobre o que, de fato, é a doença, sobretudo a partir das concepções individuais sobre saúde, pois sem entender as normas privadas ou individuais, fica impossível compreender as normas públicas ou coletivas. “A doença é um comportamento de valor negativo para um ser vivo individual, concreto, em relação a atividade polarizada com seu meio” (CANGUILHEM, 2009, p. 89).

Da mesma forma que a doença passa pela relação do indivíduo com o meio, falar em cura significa entender que o sujeito, perante sua subjetividade e a relação com o meio no qual vive, ressignificou suas normas e passou a entender-se como um novo ser. Curar não é o mesmo que voltar ao estado anterior à doença, mas, conforme salientado por Canguilhem, adquirir um novo estado entendido como suficiente para viver. “Curar é criar para si novas normas de vida, às vezes superiores às antigas. Há uma irreversibilidade da normatividade biológica” (2009, p. 92).

Não é absurdo considerar o estado patológico como normal, na medida em que exprime uma relação com a normatividade da vida. Seria absurdo, porém, considerar esse normal idêntico ao normal fisiológico, pois trata-se de normas diferentes. Não é a ausência de normalidade que constitui o anormal. Não existe absolutamente vida sem normas de vida, e o estado mórbido é sempre uma certa maneira de viver

(CANGUILHEM, 2009, p. 92).

Quando falamos em várias normas de vida, não significa, exatamente, que todos os seres sejam iguais, conquanto, admitir que um estado patológico é normal e, principalmente, que um ser considerado socialmente patológico, mas individualmente normal, é capaz de exercer inúmeras atividades por meio de processos diferentes dos que executava outrora, é admitir que não existe uma normalidade única, e sim, uma multiplicidade de normas. À medida que esse ser humano é capaz de exercer suas atividades através de normas próprias, é impedido de exercê-las por um entendimento social de incapacidade ou de anormalidade, a patologia torna-se social e não pessoal. O normal não é um conceito estático ou pacífico, mas um conceito dinâmico e polêmico (CANGUILHEM, 2009, p.109).

Canguilhem destaca que existem duas formas de intervenção terapêutica sobre a doença: se a doença for entendida como um mal, então a terapêutica atuará em prol de uma revalorização; entretanto, se a doença for compreendida sob a lógica quantitativo-positivista, então a terapêutica procurará uma compensação.

Em nosso Ensaio, confrontamos a concepção ontológica da doença, que a entende como o oposto qualificativo da saúde, e a concepção positivista, que a deriva quantitativamente do estado normal. Quando a doença é considerada como um mal, a terapêutica é tida como uma revalorização; quando a doença é considerada como uma falta ou um excesso, a terapêutica consiste em uma compensação

(CANGUILHEM, 2009, p. 126).

Para além da concepção de deficiência como anomalia/doença/ patologia, o modelo social tenta discutir o que, de fato, representa deficiência no contexto social, não desconsiderando o corpo com lesão, mas acrescentando o papel da sociedade para alcançarmos uma inclusão efetiva. Para tanto, o modelo social, que será discutido a seguir, questiona as múltiplas formas de preconceito existentes, relacionando-as à deficiência, o que permite pensar que uma mesma deficiência é vivenciada de forma diferente por um homem ou por uma mulher, por uma criança ou por um adulto, por pessoas de raças diferentes ou de orientações sexuais diferentes, entre tantas outras associações possíveis.

O modelo social de deficiência

Diniz (2007) destaca a necessidade de superarmos a abordagem que considera a deficiência uma anormalidade; para a autora, um grande avanço é a percepção da deficiência como sendo um estilo de vida – uma das muitas formas de se viver a vida. Nesse sentido, ela argumenta que tal perspectiva não trata de desconsiderar as limitações das pessoas com deficiência, mas de reconhecer que todas as pessoas têm limitações em determinadas situações. Desse modo, não se deve apenas categorizar as dificuldades, porém potencializar as possibilidades.

Aproximando a abordagem social de deficiência aos conceitos de Canguilhem contidos na obra O normal e o patológico, percebe-se que mesmo que o médico e filósofo não tendo focado sua análise especificamente nas pessoas com deficiência, o fato de considerar a existência de múltiplas normas de vida colabora com o entendimento de estilo de vida proposto pelo modelo social. Depreende-se, logo, que um estilo de vida se aproxima do que Canguilhem entende como norma de vida.

Corroborando a percepção de deficiência como um estilo de vida, Diniz discute a relevância do modelo social de deficiência, que “foi uma revolução dos estudos sobre deficiência surgidos no Reino Unido nos anos 1970. De um campo estritamente biomédico, confinado nos saberes médicos, psicológicos e de reabilitação, a deficiência passou a ser também um campo das humanidades” (2007, p. 9).

Admitir que a deficiência não é uma questão relacionada apenas ao corpo físico, pode ser considerado um avanço, sobretudo por permitir pensá-la a partir de uma discussão interdisciplinar, o que possibilita estudar questões mais amplas, como: sexo, idade, cultura, entre diversos outros fatores que possam ampliar as discussões acerca de questões inclusivas. Diniz (2007, p. 9) acrescenta que a abordagem social supera o conceito de deficiência que se limita a uma lesão que impede a participação social da pessoa com deficiência. Deficiência passa a ser “um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente”.

Diniz (2007) destaca que as limitações corpóreas não são o que, de fato, caracteriza a deficiência, e sim, as barreiras sociais e políticas que impedem a plena participação social da pessoa com deficiência. Tal perspectiva permite refutar a imagem de deficiência como tragédia pessoal e nos aproximámos das barreiras atitudinais e políticas como desencadeadoras do processo de exclusão social. “Assim, as alternativas para romper com o ciclo de segregação e opressão não deveriam ser buscadas nos recursos biomédicos, mas especialmente na ação política capaz de denunciar a ideologia que oprimia os deficientes” (DINIZ, 2007, p. 19).

Ao propor ações políticas para romper com a segregação histórica das pessoas com deficiência, o modelo social de deficiência se aproxima, mais uma vez, das preposições de Canguilhem. Para o filósofo e médico um indivíduo não é, por si só, normal, o que o torna normal é sua relação com o meio, ou seja, com as diversas instituições sociais. “Se o meio estiver adaptado ao indivíduo, ele deixa de ser “anormal”, constituindo a “normalidade”, tão exigida pela sociedade ocidental, capitalista na qual vivemos” (MARCHESAN, 2017, p. 7). Marchesan considera que o Estatuto da pessoa com deficiência, promulgado sob a forma de lei em 2015, subsidia esse entendimento:

Ao definir pessoa com deficiência como “aquele que tem impedimento de longo prazo”, que relacionado a uma ou mais barreiras, pode obstruir a sua plena participação na sociedade em igualdade de condições com os demais, há uma minimização do caráter negativo vinculado historicamente à pessoa com deficiência, pois a deficiência aparece aqui relacionada a barreiras vindas da sociedade

(MARCHESAN, 2017, p. 9).

Musis e Carvalho (2010) fizeram um estudo com 107 estudantes de Pedagogia que já estavam atuando como professores. O principal objetivo era compreender a maneira que esses alunos-professores percebiam seus alunos com deficiência. Para os autores, a forma como esses alunos-professores veem seus alunos com deficiência em sala de aula orienta seu comportamento e sua prática.

Ainda que o discurso dos entrevistados tenha sido no sentido inclusivo, à luz do que propõe o modelo social de deficiência, na prática, os pesquisadores perceberam que “os alunos-professores, da mesma forma que a sociedade, falam da importância de perceber as diferenças, mas não convivem harmoniosamente com o diferente/deficiente” (MUSIS; CARVALHO, 2010, p. 214).

Para os autores “uma representação social do aluno deficiente, ancorada no ideal de normalidade, é favorável à objetivação de práticas inclusivas efetivas? Por princípio, não” (MUSIS; CARVALHO, 2010, p. 214). Percebe-se, logo, que para os autores é fundamental que exista a superação da ideia opositora entre normalidade versus anormalidade, pois, só assim, será possível perceber o aluno com deficiência em sua integralidade, o que ampliará as possibilidades de uma atuação realmente inclusiva do professor.

As pesquisas de teóricas feministas sobre deficiência trouxeram o que Diniz (2007) entende como segunda versão do modelo social. Essas pesquisadoras introduziram na discussão questões subjetivas dos sujeitos com deficiência, entendendo que um mesmo tipo de deficiência pode ser vivenciado de forma distinta por um homem ou por uma mulher, por exemplo, ser mais ou menos difícil a depender do contexto cultural. “Foram as feministas que mostraram que, para além da experiência da opressão pelo corpo deficiente, havia uma convergência de outras variáveis de desigualdade, como raça, gênero, orientação sexual ou idade” (DINIZ, 2007, p.61).

Essa abordagem feminista, contextualizando uma série de fatores segregadores, permite pensar que incluir seja uma tarefa a se considerar para além da deficiência, sobretudo por existirem diversas formas de segregação. Assim, a deficiência, entendida, sobretudo como um estilo de vida, não precisa, por si só, de inclusão, mas a segregação social e a cultural e as diversas existentes necessitam de uma inclusão atitudinal.

As teóricas da segunda versão do modelo social de deficiência criticaram a separação feita no início das discussões acerca do modelo social entre corpo físico e busca por inclusão. De acordo com Diniz (2007), os primeiros teóricos do modelo social adotaram um discurso por independência das pessoas com deficiência, mas tal discurso, ainda que seja relevante, desconsiderou as individualidades dos corpos com deficiência, e tal fato foi, posteriormente, discutido pelas teóricas feministas, ampliando o debate a respeito do fato de que nem todos os corpos poderão atingir a totalidade da independência, havendo, portanto, a necessidade de discutir o processo inclusivo para além da busca incessante por independência.

Diniz (2007, p. 64) acrescenta que “as narrativas sobre a expectativa de viver em um corpo lesado ou doente reservavam-se à vida privada, pois eram indícios contrários à negociação pública de que a deficiência estava na sociedade e não no indivíduo”.

Canguilhem também ajuda a pensar na busca por independência por parte das pessoas com deficiência, sobretudo por destacar que a medicina existe para atender a uma demanda das pessoas, ou seja, o próprio indivíduo, dentro de suas limitações e visões de mundo, deve participar ativamente da escolha dos processos/métodos de intervenção terapêutica. Uma mesma anomalia vivenciada por sujeitos diferentes pode necessitar de intervenções diferentes, a depender do que pensam/sentem as pessoas que possuem tal anomalia, ou até mesmo dispensar qualquer tipo de tratamento.

A ampliação do debate acerca da busca por independência suscitou, entre as teóricas feministas, uma discussão a respeito da necessidade de cuidados que o ser humano requer. Diniz (2007) destaca que as teóricas feministas consideram o cuidado e a interdependência características marcantes dos seres humanos, independentemente de terem deficiência ou não; como argumento, utilizam a infância e os tempos de doença, períodos nos quais todos necessitam de amparo e cuidado. Assim, as pessoas com deficiência, em alguns casos de forma permanente, também necessitam de cuidados, o que problematiza o discurso da busca por independência de todos os corpos.

Diniz (2007) reconhece que o debate inclusivo deve ir além da busca por independência; contudo, analisa que a busca pelo direito ao cuidado pode refletir no desencadeamento de políticas públicas apenas assistencialistas, o que pode deixar o desenvolvimento de recursos que potencializam a plena participação das pessoas com deficiência, em segundo plano.

O debate é amplo; é preciso que concebamos que os primeiros teóricos não se contrapõem aos pressupostos feministas, mas ambos devem ser encarados como diferentes vertentes que têm o mesmo propósito – garantir a efetividade do processo inclusivo –. Isso é muito bem-quisto do ponto de vista de ampliação do debate, ainda que não seja possível chegar, atualmente, em um consenso. Já em suas considerações finais, Diniz (2007, p. 78) diz que “afirmar que a deficiência é um estilo de vida não significa igualá-la em termos políticos a outros estilos de vida disponíveis. Há algo de particular no modo de vida da deficiência, que é o corpo com lesão”. Percebe-se, logo, que as discussões a respeito da deficiência/inclusão permeiam a sociedade, sendo este um desafio atual: garantir que a força política e conceitual da categoria deficiência não se perca.

Autonomia e deficiência

Gaudenzi e Ortega (2016) recorrem às abordagens médica e social da deficiência para discutir os conceitos de autonomia e normalidade, buscando, sobretudo, distanciar o conceito de normalidade das abordagens inclusivas ao mesmo tempo que as mesmas procuram ampliar o conceito de autonomia e sua busca para/pelas pessoas com deficiência.

Segundo o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a avaliação da deficiência deve ser médica e social; enquan-to a primeira enfatiza as funções e estruturas do corpo para caracterizar a deficiência, a segunda pondera sobre os fatores ambientais e pessoais envolvidos. Ambas, diz o Estatuto, devem levar em consideração a limitação do desempenho das atividades segundo suas especificidades

(GAUDENZI; ORTEGA, 2016, p. 3.062).

O excerto acima deixa claro que os autores não refutam as abordagens, mas propõem que haja interação entre elas, buscando, conforme previsto na legislação, garantir que o processo inclusivo seja efetivo. Contudo, ainda que as abordagens sejam tentativas válidas de intervenção inclusiva, todas merecem o nosso esforço reflexivo.

Com a entrada da narrativa biomédica sobre o corpo na modernidade o discurso religioso so-bre o excêntrico perdeu força e o corpo atípico passou a ser diagnosticado como patológico ou deficiente, buscando-se o saber e o controle so-bre o mesmo. Doravante, discursos doutos de caráter científico tomam os corpos que não se encaixam nos padrões estéticos ou funcionais da média da sociedade como objeto de saber/poder e os rotulam como anormais, isto é, corpos que não são apenas diferentes, mas que devem ser “corrigidos”. Diferentes expressões da atipia se transformam, paulatinamente, em imagens da deficiência

(GAUDENZI; ORTEGA, 2016, p. 3.063).

Para a perspectiva de inclusão a partir do conceito de normalidade, “a pessoa é deficiente quando a mesma não pode andar por si, não pode cumprir, de forma independente, os projetos que a corrente principal da cultura considera dignos” (GAUDENZI; ORTEGA, 2016, p. 3.065). Essa concepção, em certa medida, permanece no primeiro estágio do modelo social de deficiência, período no qual havia uma incessante busca por autonomia das pessoas com deficiência.

No entanto, Gaudenzi e Ortega (2016, p. 3.066) discutem o termo autonomia e ajudam a refletir sobre o conceito a partir da ideia de um indivíduo “que exerce uma escolha autônoma e não obrigatoriamente como aquele que é capaz de agir de forma independente”. Essa reflexão amplia as discussões a respeito do processo inclusivo e nos convida a pensar no que, de fato, é preciso buscar para alcançar uma sociedade inclusiva. Essa perspectivada de inclusão, que não descarta a necessidade de cuidado que algumas pessoas com deficiência precisam, mas sim, reiteram que todas as pessoas com ou sem deficiência precisam/precisarão de cuidados em determinadas situações, são concepções discutidas em um segundo estágio do modelo social de deficiência, principalmente com as teóricas feministas. Pensar a deficiência a partir de um distanciamento do patológico e com uma aproximação ampliada do conceito de autonomia,

permite re-tirar a deficiência da condição de doença, pois muitos sujeitos que possuem variações corporais podem realizar suas metas vitais, como diz Nor-denfelt. Isso se dá, sobretudo, quando se modifica o comportamento mediano e o equipamento do ambiente que em geral não atendem às pessoas atípicas

(GAUDENZI; ORTEGA, 2016, 3.068).

Admitir a busca por autonomia das pessoas com deficiência implica o reconhecimento das capacidades individuais e um distanciamento pela busca incessante por normalização ou por uma média social; “ao invés de pensar a autonomia como soberania, podemos considerá-la dentro de uma ética de cuidado, de dependência e participação”. Desse modo, é possível perceber a deficiência como um estilo de vida pessoal, não como uma ausência de normas, porém, como a existência de normas próprias.

A normatividade como conceito fundamental para se pensar a deficiência permite que a mesma seja avaliada de acordo com o caráter criativo da vida e que a diversidade de estilos de vida seja com-preendida como um valor moral positivo

(GAUDENZI; ORTEGA, 2016, p. 3.069).

Pensar a deficiência não como uma anormalidade, mas como um estilo de vida, aproxima o modelo social de deficiência às preposições de Canguilhem apresentadas na obra O normal e o patológico. Tal concepção problematiza a doença que e vista como variação quantitativa da saúde; atribui ao próprio indivíduo o discernimento sobre o que, de fato, seja doença ou saúde e, ao mesmo tempo, amplia a concepção social da existência de apenas uma norma de vida, passando a compreender a individualidade do ser humano, e, por conseguinte, a existência de múltiplas normas de vida.

Considerações finais

De tudo posto, espera-se que a abordagem aproximativa entre as preposições de Canguilhem e o modelo social de deficiência suscite novos debates e permita avançar em direção a uma sociedade cada vez mais inclusiva. Nesse sentido, separar conceitualmente saúde de doença pode ser preponderante ao debate inclusivo. Admitir que doença não é oposto de saúde, e que é a pessoa dentro de sua individualidade, é quem deve determinar se precisa de apoio terapêutico ou não, ampliando a concepção social do papel da medicina, sobretudo em relação às pessoas com deficiência.

Admitir o que pensa o indivíduo dentro de sua subjetividade, como um importante passo para os processos terapêuticos também permite pensar no conceito de normalidade discutido por Canguilhem. Assim, uma pessoa doente não é uma pessoa anormal, da mesma forma que uma anomalia não é uma anormalidade, e sim, uma normalidade própria da pessoa. Para Canguilhem a normalidade se constitui na relação entre as normas individuais e as normas sociais; desse modo, uma sociedade que compreende e aceita as diferenças não considerará a deficiência uma anormalidade.

Para Canguilhem falar em normalidade significa ser capaz de encontrar uma forma de viver a vida. Já para o modelo social a deficiência é um estilo próprio de viver a vida. Entendendo, pois, a deficiência como um estilo de viver a vida encontrado pela pessoa com deficiência, essa pessoa constitui sua normalidade própria; tão logo, se a sociedade é capaz de se relacionar com a multiplicidade de normas individuais, não há espaço para se falar em anormalidades, contudo, se essa mesma sociedade não consegue conviver, harmoniosamente, com as diferenças, a pessoa com deficiência não deixa de constituir sua normalidade, mas talvez seja preciso pensar a respeito de uma anormalidade social.

Destaca-se, ainda, o conceito de autonomia como fundamental nas discussões inclusivas, pois, muitas vezes, as concepções sociais de autonomia distanciam tal conceito das pessoas com deficiência. Contudo, conforme salientado por Canguilhem, as concepções individuais não devem ser desconsideradas no processo de cura de uma doença. Por exemplo, é o próprio indivíduo quem sabe do que precisa/quer reestabelecer; para o autor “a anomalia pode transformar-se em doença, mas não é, por si mesma, doença” (CANGUILHEM, 2009, p. 54). Assim, o indivíduo torna-se autônomo na constituição de sua própria norma. A necessidade de cuidado não exclui a autonomia das decisões, e, nesse sentido, o modelo social de deficiência, sobretudo com as teóricas feministas, amplia o debate e destaca que a necessidade de cuidado é uma característica humana, e não exclusiva das pessoas com deficiência. Com isso, é possível associar o conceito de autonomia ao poder de decisão/escolha das pessoas, sendo a necessidade de cuidado algo inerente a todos nós.

1Médico e filósofo francês, reconhecido por questionar a lógica positivista da medicina, admitida, sobretudo no século XVIII. Para Canguilhem a vida não pode ser resumida a leis físico-químicas.

2Débora Diniz é antropóloga e desenvolve pesquisas sobre bioética, feminismo, direitos humanos e saúde. Na obra O que é deficiência?, a autora questiona a supremacia do modelo médico e amplia as discussões a respeito do modelo social.

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Recebido: 25 de Julho de 2019; Aceito: 28 de Novembro de 2019

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