Introdução
“Educação e Atualidade Brasileira” é comumente identificado como um dos livros de Paulo Freire, mas é a tese de concurso que ele escreveu em 1960, quando realizou, na Universidade do Recife (UR), atual Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o concurso para professor da cátedra História e Filosofia da Educação. A cátedra, que atendia ao curso de Professorado de Desenho (e ao Curso de Pedagogia), foi disputada pelo professor Paulo Freire e pela professora Maria do Carmo Tavares de Miranda, o que ainda é um acontecimento pouquíssimo discutido na História da Educação Popular. É possível que isso ocorra porque Freire, apesar de aprovado, não conquistou o primeiro lugar, saindo derrotado na disputa pela cátedra. Por mais que seja comum não passar num concurso, não deve ter sido fácil para Paulo Freire conviver com essa situação, visto que houve certa repercussão nos jornais da época. O Diario1 de Pernambuco (24 set. 1960, p. 5), por exemplo, anunciou: Nova Docente da Escola de Belas Artes. Já no domingo, trouxe uma matéria de mais ou menos meia página (25 set. 1960, p. 11), reportando-se à aprovação da professora: Contribuição do Povo Hebreu para uma teoria da Formação Humana. Nessa matéria foram expostos os detalhes do concurso. Um pouco depois, Aníbal Fernandes publicou, também no Diario de Pernambuco (27 set. 1960, p. 4), um importante artigo falando sobre a Renovação dos Quadros na Universidade, enfatizando o ingresso de Maria do Carmo na instituição. Quando tomou posse na Escola de Belas Artes, a professora Maria do Carmo Tavares foi anunciada como sendo a “primeira professora por concurso em Escola Superior de Pernambuco” (POSSE NA ESCOLA DE BELAS ARTES, Diario de Pernambuco, 31 maio 1961, p. 6).
Com essa ressonância da imprensa não identificamos como mero acaso o fato de Freire, anos depois do concurso, ao ser questionado sobre o resultado, mencionar: “perdi a cátedra e ganhei a vida!” (apudVERAS; MENDONÇA, 2004/2005, p. 15). Por outro lado, consideramos esse momento importante para Freire enquanto intelectual (e para a Educação Popular), pois ele assentou suas ideias escrevendo sobre elas, mostrando anos depois, quando se tornou conhecido e renomado pelo mundo, que de fato ganhou a vida.
Voltando ao concurso, como já dissemos, esse é um episódio pouco discutido na História. Num dos estudos que tentam construir uma narrativa sobre esse fato, o autor Dimas Veras (2010) considerou que o concurso (e a derrota de Paulo Freire) se deveu muito menos a uma disputa entre pedagogias diferentes (tanto que reconhece que “o conteúdo talvez seja o menos importante” (p. 108)) e muito mais a uma disputa de “um filho dos subúrbios recifense que brigava pelo emblema e espaço de distinção da ‘aristocracia’ intelectual que era a cátedra” (p. 109). Essa interpretação, de enfoque bourdiesiano, identifica o poder muito associado às expectativas “da luta simbólica entre as classes”2, tanto que Veras (2010) não discute outras configurações de poder quando acena para a possibilidade de o reitor João Alfredo3 propor a criação de outra vaga para contemplar Paulo Freire, ou quando indica que Paulo Freire, depois da derrota, se tornou assessor do reitor, ou até mesmo quando fala que o próprio reitor criou o Serviço de Extensão Cultural (SEC) para cuidar das demandas em torno do método do professor Paulo Freire, inclusive colocando o próprio Freire para dirigir esse setor de extensão na Universidade do Recife. Parece-nos que a questão do poder para o pesquisador se traduz apenas em aspectos mais elementares da luta de classes, com importante atenção às condições econômicas que polarizam essas relações e esses interesses.
Nossa proposta, neste artigo, é analisar esse concurso a partir de outras configurações de poder. Entendermos o poder como aquilo que se quer, que se deseja, que se constrói por meio de relações, que exclui e inclui, que está relacionado ao saber e que não se explica só por aspectos econômicos e de classe. Concordamos com Foucault (2007, p. 8), quando este diz que “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma ao saber, produz discurso”. Roberto Machado ( apudFOUCAULT, 2007, p. XIV-XV) traduz a concepção de poder de Foucault como “luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar, que se ocupa, nem um objeto que possui. Ele se exerce, se disputa. E não é uma relação unívoca, unilateral; nessa disputa ou se ganha ou se perde”.
Trazer outras percepções sobre esse acontecimento pode nos oferecer formas diferentes de compreender a disputa da cátedra nesses anos. Para isso, consideramos importante investigar alguns periódicos da época e alguns números do Diario de Pernambuco, mas também, principalmente, as teses de concurso dos candidatos: “Educação e Atualidade Brasileira”, defendida pelo professor Paulo Freire (2003), e “Pedagogia do Tempo e da História”, defendida pela professora Maria do Carmo Tavares de Miranda (1965).
1 Universidade letrada
No final da década de 1950 a Universidade do Recife (UR) ainda estava concretizando-se enquanto instituição unificada, pois quando foi fundada, em 1946, agregou apenas as Faculdades de Direito, Filosofia, Belas Artes e Engenharia. Em 1959 foi empossado o reitor João Alfredo da Costa Lima (SUCUPIRA, 1969). Ao observarmos um dos periódicos que circulavam nessa época na Universidade do Recife, identificamos que professores, monsenhores, padres, reverendos, instrutores, diretores e alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Pernambuco, alguns vinculados à “Seção de Pedagogia”4, elaboravam ensaios e poesias, proferiam discursos, faziam pesquisas e publicavam na Doxa, revista “oficial do departamento de cultura do diretório acadêmico”. De certa forma, essas publicações refletem debates existentes no interior da universidade.
Por exemplo, o estudo da professora Maria do Socorro J. Emerenciano (1957) enfatizou uma aula na qual o educando deve ser participante, dinâmico e pode fazer uso de sua capacidade crítica. Já o ensaio de Frederico Rocha (1957, p. 87, 90) trouxe descobertas científicas que podiam tornar a Pedagogia mais eficiente: Dewey (“autoridade inconteste da Pedagogia”), quando disse que “cultura emprestada não é cultura”; e Gilberto Freyre, quando retratou fielmente a “sociedade nordestina”. Nesse contexto, evidenciou também a preocupação de que “a realidade pedagógica nordestina” estava desvinculada das necessidades da região.
O diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências, eleito em 1956, professor Monsenhor Francisco Salles, no seu discurso de posse, citou Salmos, usou Cartas e Encíclicas e falou da postura “dos santos padres” diante da “falsa filosofia” (SALLES, 1956, p. 3-9). O estudante Antônio Sales da Silva, no discurso de colação de grau, também citou Salmos e reportou-se aos ensinamentos de Salomão e Davi, além de explicar que, ao longo dos tempos, a Educação tem ligação com a religião. E observou: “rejeitemos, por considerarmos sediços e perigosos, os princípios da chamada ‘Pedagogia nova’ ou ‘Pedagogia negativa’” (SILVA, 1958, p. 71-81).
Aridete da Mota Silveira (1958), em seu estudo, mostrou as várias intenções do Mestre ao longo da história. Um dos aspectos ressaltados no estudo foi que o Cristianismo tem um “caráter essencialmente educativo”, mesmo sem ter “um sistema pedagógico”, pois Jesus Cristo, “Mestre dos Mestres”, fez uma “educação sem escolas”. Mas o Mestre, o professor no mundo contemporâneo, seria também amigo e orientador; o aluno assumiria o papel fundamental no processo de aprendizagem, como orienta a Escola Nova.
O texto sobre “A escola confessional em Pernambuco” foi uma palestra oferecida por Paulo Rosas (1958) no Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco, publicado também na revista Doxa. No artigo Rosas pontuou sobre a necessidade de uma Educação confessional, mas também que deve se adaptar à região, ser regional. O professor Paulo Rosas utilizou alguns recursos para discorrer sobre a temática das escolas confessionais. Se autores reclamam de padres e ex-seminaristas que não têm resultados satisfatórios na função do magistério, para Rosas o professor Panqueca, presbiteriano e depois batista, é um exemplo de professor religioso que tem bons resultados. Rosas utilizou recursos da pesquisa científica (inquéritos aplicados, quadros com os resultados obtidos, citações dos inqueridos, comentários) e ressaltou experiências exemplares que podem ser aproveitadas (reunião de pais e mestres adotados pelo professor Paulo Freire e jornais-murais organizados pela Juventude Escolar Católica, a JEC). Sobre a existência de uma “filosofia educacional” ou “orientação pedagógica” nas escolas confessionais, segundo o pesquisador não existe uma resposta “uniforme”, sua sugestão foi que seria um ponto inicial adotar a própria Filosofia da Religião, na tentativa de mostrar a importância da instituição religiosa na Educação.
Entre outras informações, o professor concluiu que “educar é formar, integralmente, a personalidade”. Entre todos os aspectos da personalidade a ser formada “existe o religioso; valor, hierarquicamente, superior”. “Toda escola primária ou média deve ser confessional, sendo aconselhável o sejam as superiores”, aponta. Ele não concorda com a “posição filosófica materialista”, que oferece aos alunos uma “formação anti-religiosa”, mas simpatiza com sua atitude de explicitar o que defende (ROSAS, 1958, p. 61-73).
Por meio desses exemplos podemos identificar que as temáticas versavam sobre as bases científicas da Educação, experiências da Escola Nova, ensino confessional e Educação adaptável à região, assuntos que, em certo sentido, demonstram as tensões existentes entre aqueles que defendiam uma escola laica, pública e científica e aqueles que defendiam uma escola particular, em sua maioria, confessional.
Contudo, se observarmos essa tensão existente na Universidade do Recife durante esses anos que cercam o concurso para Cátedra de História e Filosofia da Educação para o curso de Professorado de Desenho, tal realidade seria só um recorte do que acontecia em âmbito nacional.
2 Escola privada versus Escola pública
É importante lembrar que, desde que os Pioneiros da Escola Nova, em Manifesto, defenderam a escola pública, laica e gratuita, havia certa tensão em torno dessa disputa. Na verdade, o próprio manifesto foi resultado do embate travado na IV Conferência Nacional de Educação, realizada em 1931, promovida pela Associação Brasileira de Educação (ABE), na época dirigida por Anísio Teixeira, entre aqueles que defendiam o ensino confessional e os que defendiam o ensino laico. Na abertura dessa conferência o chefe do governo provisório, Getúlio Vargas, solicitou que os educadores que ali estavam deliberassem os alicerces de uma política educacional para o país, mas, sem conseguirem chegar a um acordo pela disputa dos interesses em questão, três meses após a conferência, 26 autoproclamados pioneiros publicam, em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, rascunhado por Fernando Azevedo em São Paulo, redigido em sua forma final no Rio de Janeiro e firmado pelos signatários: Afrânio Peixoto, Anísio Spínola Teixeira, M. Bergstrom Lourenço Filho e Roquette-Pinto, entre outros (CUNHA, 2007apudTEIXEIRA, 2007b).
Mas foi em 19565 que Anísio Teixeira, um dos pioneiros, após falar sobre a importância da escola pública, universal e gratuita (I Congresso Estadual de Educação Primária, em 1956), passou a ser identificado pela Igreja Católica como uma pessoa a ser condenada. A partir de 1957, com a discussão no Congresso Nacional (Projeto de Lei nº 2.222, de 1957) sobre as diretrizes e as bases que deveriam orientar a Educação no Brasil, essa tensão se acentuou mais ainda (TEIXEIRA, 2007a; BRASIL, 1957; BRASIL, 1961).
Em 1958 Anísio Teixeira, concomitantemente, dirigia o Instituto Nacional de Pedagogia (embrião do atual Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, o INEP) e a Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (embrião da futura Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES). Ele também era responsável por Centros de Pesquisas Educacionais espalhados pelo Brasil, enquanto instituições submetidas ao Ministério de Educação. A disputa entre a Educação pública e a Educação particular, significativamente religiosa, se faz presente. O Memorial dos Bispos Gaúchos, por exemplo, foi um documento entregue ao presidente da República pedindo o afastamento de Anísio Teixeira do Ministério da Educação. Escrito por Dom Vicente Scherer, a peça teve apoio de outros bispos e foi entregue por Dom Helder Câmara ao presidente. O memorial associava Anísio Teixeira a Jonh Dewey e ao materialismo socialista, dizendo que “a filosofiada” Educação adotada por Anísio não era compatível aos preceitos de uma vida cristã e a filosofia de Dewey era contrária às “verdades imutáveis que a religião cristã admite e demonstra como vindas de Deus” (CORREIO DO POVO, 1958).
Para defender as acusações feitas a Anísio Teixeira e à escola pública, em janeiro de 1959 Fernando de Azevedo escreveu O Manifesto dos Educadores mais uma vez convocados, publicado em vários órgãos da imprensa, em 1º de julho, e firmado por 161 signatários, emitindo opiniões sobre a “escola pública em acusação”:
A luta que se abriu, em nosso país, entre os partidários da escola pública e os da escola particular, é, no fundo, a mesma que se travou e recrudesce ora nesse, ora naquele país, entre a escola religiosa (ou o ensino confessional), de um lado, e a escola leiga (ou o ensino leigo), de outro lado. Esse, o aspecto religioso que temos o intuito de apenas apontar como um fato histórico que está nas origens da questão [...]. Ela disfarça-se com frequência, quando não se apresenta abertamente, sob o aspecto de conflito entre a escola livre (digamos, francamente, a educação confessional) e a escola pública ou, para sermos mais claros, o ensino leigo [...].
(MANIFESTO..., 1959, p. 78-79).
Voltando à Universidade do Recife, na Escola de Belas Artes, área de Educação, com a disputa pela Cátedra de História e Filosofia da Educação para o curso de Professorado de Desenho (atendendo também ao Curso de Pedagogia), de certa forma, se evidenciam os debates travados nacional e localmente sobre uma Educação pública ou privada (em sua maioria, confessional).
Em 1959 Paulo Freire ministrava aulas na Universidade do Recife, na qual era professor interino (cargo hoje nomeado como professor substituto) do curso de Desenho, lecionando a disciplina História e Filosofia da Educação. Além de atuar como professor, ele fazia parte da comissão de redação da Revista da Escola de Belas Artes e ministrava cursos de Extensão Universitária com temas como Problemas de Educação. Em meados desse ano, Freire se candidatou à Cátedra de História e Filosofia da Educação para o curso de Professorado de Desenho. Inscreveram-se ele e a professora Maria do Carmo de Miranda6, e ambos entregaram suas “teses de concurso” (REVISTA DA ESCOLA DE BELAS ARTES, 1959).
As provas do concurso (com as defesas das teses) ocorreram apenas em 1960, nos dias 21, 22 e 23 de setembro. Participaram da banca examinadora Vicente Murilo La Greca e Cassimiro Correa, da Escola de Belas Artes; Raul Bittencourt, da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil; José Denizard M. de Alcântara, da Faculdade de Filosofia da Universidade do Ceará; e Maria Luiza de Almeida Cunha Ferreira, da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais (VIDA ESCOLAR, 1960).
3 Pedagogia do Tempo e da História
A professora Maria do Carmo de Miranda, em sua tese do concurso para a Cátedra de História e Filosofia da Educação, publicada em 1965 em livro, logo informou na apresentação: “Saliento que as referências bíblicas são tomadas de acordo com a divisão e numeração dos livros da Bíblia Hebraica”. Nesse momento o texto é prefaciado por Frei Romeu Peréa, da Ordem Carmelita, assinado em 06 agosto de 1961, “Dia da Transfiguração do Senhor”7.
O objetivo da tese da autora (MIRANDA, 1965, p. 21) foi “inquirir a contribuição do povo hebreu para nós. Contribuição de Israel que revelou a história do mundo”. Ela continuou afirmando que “nosso estudo se limitará, portanto, a indagar de sua formação, de sua educação, procurando elucidar alguns de seus traços mais salientes. Impossível, mesmo que pudéssemos abrangê-los em sua totalidade, tal a riqueza e a densidade de suas experiências”.
Já o professor Paulo Freire (2003, p.9), na introdução de sua tese de concurso, disse:
Ao escolhermos o tema de nosso trabalho, não tivemos a pretensão de esgotá-lo. Por outro lado, a ele não nos inclinamos ingenuamente, julgando-o fácil de ser estudado. Sabíamo-lo, pelo contrário, não só complexo, mas até certo ponto, perigoso, precisamente pela atualidade. Pelas divergências conceituais que suscita. Pelas posições opostas decorrentes dessas próprias divergências conceituais.
O próprio professor anunciava o perigo bem como os motivos desse perigo, em especial pela atualidade. A tentativa de conciliar algumas opções tão opostas foi uma estratégia para demonstrar as possibilidades de diferentes teorias que poderiam servir a um bem maior: a Educação. A estratégia queria indicar também o alcance do seu saber, o seu domínio de conhecimento e a sua habilidade em unir percepções tão diferentes. O candidato prosseguiu explicitando que não era “dono” do trabalho, pois as dimensões que trazia refletiam o que estava sendo debatido por estudiosos brasileiros:
A ele também não fomos ou a ele chegamos, com ares de “donos”. É aspecto que vem sendo debatido ora direta, ora indiretamente, em algumas de suas dimensões, por sociólogos, educadores, economistas e pensadores brasileiros, em estudos, muitos dos quais, objetivos e lúcidos.
(FREIRE, 2003, p. 9).
Foram esses estudiosos que Paulo Freire citou, dialogou e discutiu. Foi para eles e para aqueles interessados nas suas maneiras de ver a Educação que o professor se dirigiu ao escrever “Educação e Atualidade Brasileira”: seus pares, que, inclusive, estavam em disputa com instituições religiosas, pois almejavam um ensino laico, desvinculado destas.
Enquanto isso, Maria do Carmo citou, dialogou e discorreu sobre a Bíblia Hebraica. Foi a Deus, a Cristo e “à educação do seu povo” que ela se referiu. Foi para os seguidores de uma Educação cristã que a professora escreveu: padres, monsenhores, freis, bispos, professores e alunos que defendiam uma Educação baseada nos princípios cristãos. Eles eram contrários a uma provável perda de poder da Igreja Católica, causada pela efetivação do ensino laico, bem como à ideia de verbas públicas serem destinadas apenas para escolas públicas.
A professora demonstrou suas inclinações diante da opção de uma “educação religiosa”. Conciliou os ensinamentos bíblicos com os pedagógicos e indicou que Deus, seus profetas e seus discípulos conseguiram, mesmo sem possuir um “ensino organizado”, criar uma Pedagogia diante do Tempo e da História.
Usando “exemplos” ou “tipos” retirados dos livros e dos Evangelhos da Bíblia, ela agradou seus avaliadores. Por exemplo: Maria do Carmo demonstrou que, com Abraão, se experimenta a Pedagogia, pois sua obediência, sua preocupação com o outro, seu exemplo em seguir a palavra de Deus e fazer com que os outros a sigam demonstraram uma “pedagogia da fé e da obediência”. Moisés, por sua vez, teve uma função de “pedagogo”, de “educador”, pois, quando conduziu o povo de Israel para libertação do Egito, ensinou no deserto, por meio da Palavra, quem era Deus. Esse foi o tema da “peregrinação”. Já no tema da “conversão” do povo de Israel, os princípios (Justiça, Verdade, Amor, Espera), fundamentais para que houvesse a conversão desse povo, também são necessários para que estejamos convertidos enquanto alunos (MIRANDA, 1965, p. 54-55).
O tempo em que se baseou a candidata foi linear, progressivo e indicado por Deus. Uma história que iniciou com o Gênesis, numa “linhagem abraâmica”, e terminou com atenção ao futuro, pois as profecias anunciam algo que há de vir. A professora fez uso de palavras e expressões, especialmente em latim e hebraico, que indicam sua erudição e seu domínio sobre as línguas recorrentes nos documentos bíblicos.
Enquanto isso, o outro candidato, o professor Paulo Freire (2003), trouxe para a banca os estudos de Anísio Teixeira e Fernando Azevedo, referindo-se também a outros signatários do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Fez elogios ao educador Anísio Teixeira, quem chamou de mestre, ressaltando as ideias de uma renovação política na Educação, processo que deveria ser estável para atender às necessidades da região e da localidade. Citou o livro de Teixeira (Educação não é Privilégio) para enfatizar que “a escola da formação do brasileiro não pode ser uma escola imposta pelo centro, mas o produto das condições locais e regionais” (FREIRE, 2003, p. 13). Ainda comentou, após a citação, sobre as necessidades de uma Educação voltada para as condições locais e regionais como solução para um dos grandes problemas da Educação, pois isso tornaria o ensino adequado à sua época e ao seu lugar.
O regionalismo gilbertiano foi utilizado para falar das condições da Região Nordeste. Reproduzindo as críticas de Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos, Paulo Freire retratou a falta de experiência democrática no Recife, em especial pelo processo de “europeização” e “reuropeização” que atingiu a cultura brasileira (FREIRE, 2003).
O candidato trouxe também algumas passagens sobre o catolicismo na sua “tese”, mas foi inexpressivo diante dos vínculos entre religião e Pedagogia apresentados por Maria do Carmo Tavares de Miranda, que por fim ganhou o concurso. Essa vitória demonstrou, de certa maneira, quais eram as prioridades entre os examinadores do concurso na Universidade do Recife em relação à Educação confessional e à laica bem como ao destino das verbas públicas.
É importante lembrar que esse foi apenas um dos aspectos que, a nosso ver, fizeram com que a professora Maria do Carmo Tavares de Miranda ganhasse o concurso. De todo modo, ela, filha de professor da Educação Básica, era uma jovem com 34 anos muito culta e competente, tanto que, à época, já era formada em Letras Clássicas e Filosofia pela Universidade do Recife, tendo feito cursos de Especialização em Filosofia na Sorbonne, no Instituto Católico de Paris e na Faculdade de Filosofia da Universidade de Friburgo, na Alemanha (na qual foi assistente de Martin Heidegger). Ela também era autora de artigos e ensaios para congressos e revistas científicas nacionais e estrangeiras bem como tinha experiência como docente na área de Filosofia, tanto na Faculdade de Filosofia do Recife (atual Faculdade Frassinete do Recife, FAFIRE), quanto na Faculdade de Filosofia de Pernambuco.
Considerações finais
Como vimos, desde 1957, com as discussões em torno do Projeto de Lei que, em 1961, viria a ser efetivado como a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, havia uma tensão importante entre aqueles que defendiam a escola laica e pública e aqueles que defendiam a escola particular (em sua maioria, confessional). Na Universidade do Recife, ao longo desses anos, não foi diferente: alunos, professores e diretores, muitos pertencentes a instituições religiosas (padres, reverendos, freis), em seus ensaios e discursos se posicionavam em defesa da escola pública e laica ou em defesa da escola confessional. As teses de concurso defendidas por Paulo Freire e Maria do Carmo T. de Miranda, dentre outras coisas, também mostram essa tensão.
Freire falou da “Educação e Atualidade Brasileira” por meio de suas experiências e estudos (História, Sociologia, Filosofia), trazendo Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira (defensores da Educação pública e laica) e voltando-se de fato para os problemas da Educação brasileira na atualidade. Já Maria do Carmo se voltou para a realidade da história da Bíblia, colocando os conhecimentos pedagógicos (racionais, científicos), em certo sentido, a serviço da fé, e explicando que Deus, a partir de profetas e discípulos, conseguiu, mesmo sem possuir um ensino organizado, fazer uma Pedagogia ao longo do Tempo e da História. Resultado: Freire perdeu a cátedra.
Mas é importante dizer que foi justamente em “Educação e Atualidade Brasileira”, primeira escrita completa elaborada por Paulo Freire, que identificamos seu engajamento em relação às causas educacionais importantes para a constituição de suas ideias e da Educação Popular. Ele se apresenta enquanto intelectual ao vir a público cobrar e oferecer soluções para os problemas educacionais do país. Melhor: Freire teve a oportunidade de assentar suas ideias. E de várias formas todos esses aspectos serão consolidados nos anos que se seguem, demonstrando que Freire, realmente, “ganhou a vida”.