Introdução
Os quase 1.000 dias do governo socialista de Salvador Allende (1970-1973) são lembrados, ao lado da Revolução Cubana, como um dos processos mais significativos da trajetória política das esquerdas latino-americanas do século XX. Composto por uma coalizão de esquerda integrada por comunistas, radicais e democratas-cristãos e denominada Unidad Popular (UP)1, esse governo defendeu a mudança gradativa do sistema capitalista rumo a um regime socialista por meio do jogo democrático institucionalizado, no que passaria a ser definido como a ‘via chilena para o socialismo’ (Aggio, 1993; Winn, 2010).
A especificidade do caso chileno chamou a atenção de boa parte da esquerda mundial naqueles anos, e o governo da UP logo se tornou uma referência àqueles que almejavam um projeto popular de governo em seus países. Era clara a necessidade de se atuar politicamente para se sustentar o novo regime, o que incluía a ênfase em políticas culturais voltadas à formação de um ‘homem novo’, alinhado às transformações ora em curso. O programa da UP indicava uma aposta do governo na relação entre uma educação popular - como forma de conscientização - e os meios de comunicação:
Estes meios de comunicação (rádio, editoras, televisão, imprensa, cinema) são fundamentais para ajudar na formação de uma nova cultura e de um homem novo. Por isso se deverá imprimir neles uma orientação educativa e liberá-los de seu caráter comercial, adotando as medidas para que as organizações sociais disponham desses meios, eliminando deles a presença nefasta dos monopólios (Programa básico de gobierno de la Unidad Popular, 1970, p. 31-32).
Uma das iniciativas de maior impacto nessa direção resultou na compra de uma parcela da editora Zig-Zag, considerada uma das maiores da América Latina. A porção adquirida passou a se chamar Quimantú e centrou esforços na difusão de publicações massivas em escala sem precedentes na história chilena. A defesa da experiência de formação de leitores e leitoras na construção de uma nova sociedade refletia-se na diversidade de títulos e formatos editados por Quimantú. De livros acadêmicos a revistas em quadrinhos, passando por publicações periódicas voltadas a mulheres e literatura de bolso, a nova editora atuou na linha de frente a favor de uma cultura letrada e esclarecida alinhada ao projeto político da UP, porém tal iniciativa não esteve isenta de tensões.
O papel dos impressos na formação de homens, mulheres e crianças é tema já bem estabelecido no interior da história do livro e da leitura. Longe de se pretender realizar levantamento exaustivo sobre as principais tendências do campo, vale ressaltar algumas tendências que dialogam com a proposta do presente artigo. Vale, pois, destacar aqueles estudos que enfatizam a articulação entre cultura e política centrando a análise na atuação de intelectuais na promoção de novas ideias políticas por intermédio de editoras e revistas (Deaecto & Mollier, 2013). Destaca-se também o impacto do impresso na sociedade. Agente de processos revolucionários, ele também pode se tornar uma leitura perigosa para jovens leitores como mulheres e crianças (Rivalan Guégo, 2007), não só por seu conteúdo, mas também pelo seu formato, vide as críticas sofridas pelas revistas em quadrinhos durante os anos 1940-1950, tidas como de má qualidade pela qualidade duvidosa do papel, das imagens e letras e dos seus enredos (Nyberg, 1998). No limite, o impresso torna-se, pois, um agente perigoso da história e, subversivo, torna-se alvo privilegiado de censura e repressão (Darnton, 2016). A própria Quimantú foi um dos primeiros locais atacados após o golpe de 11 de setembro de 1973, que levou à derrocada do projeto político da UP e à ascensão da Junta Militar ao poder (Dorfman, 2016).
O presente artigo analisa, em um primeiro momento, o processo de formação da Quimantú em articulação com os debates sobre o papel da cultura e dos livros na sociedade chilena e seu lugar na agenda política da UP. Sua linha editorial é discutida a partir de uma breve apresentação das principais publicações da editora. Em seguida, foca na análise de algumas obras infanto-juvenis voltadas para crianças e jovens, em especial revistas em quadrinhos, por serem publicações direcionadas a leitores em formação e que, por isso, mais explicitamente sujeitos a um percurso formativo proporcionado pela leitura, e algumas das disputas em torno dos projetos editoriais e políticas por detrás desses materiais. A partir de tais análises, destacam-se elementos que permitem discernir algumas das características e peculiaridades históricas presentes na política cultural da UP. Para embasar a argumentação, o artigo lança mão de fontes impressas - jornais, livros e revistas - e fontes orais.
Políticas de formação de leitores e a formação política de leitores: debates públicos sobre uma editora estatal
A iniciativa de se estabelecer uma editora do Estado não pode ser atribuída unicamente à posse de Salvador Allende em novembro de 1970. Esse foi um projeto que surgiu de debates anteriores e foi tratado por diversos agentes sociais como um elemento a ser construído ao longo do governo da UP. Contudo, a questão do livro foi efetivamente assumida como um problema de Estado apenas durante o governo da UP (Subercaseaux, 2010), ainda que não contasse com uma política cultural bem definida a respeito. Partia de ‘ideias-força’, voltadas para o acesso irrestrito à cultura e à defesa do patrimônio nacional, assumindo o Estado como palco privilegiado de elaboração e desenvolvimento de políticas culturais. Cabe situar brevemente tais discussões.
Uma referência ao tema pode partir de 1967, quando Salvador Allende, senador pelo Partido Socialista (PS), apresentou um projeto de lei reivindicando que a editora Andrés Bello2 passasse a trabalhar com outro horizonte editorial. Segundo a proposta, a editora deixaria de se centrar em obras jurídicas, manuais de ensino e outros trabalhos de divulgação da legislação e das ciências sociais e jurídicas chilenas para publicar obras com menor custo, o que “[...] redundaria especialmente em benefício das camadas modestas da população” (Allende, 1967 apud Bergot, 2004, p. 4, tradução nossa)3 . Tal mudança “[...] contribuiria para amplificar os horizontes intelectuais e culturais da nação, facilitando a educandos e estudiosos, e a leitores em geral, o acesso às grandes fontes do pensamento nacional e universal” (Allende, 1967 apud Bergot, 2004, p. 4, tradução nossa)4. O projeto não foi aprovado, mas demonstra a importância de uma política editorial para a educação e a democratização da sociedade chilena (Bergot, 2004).
A defesa de uma editora estatal encontrou maior força entre trabalhadores ligados ao mundo do livro na medida em que a perspectiva socialista defendida pela UP ganhava força na disputa eleitoral de 1970 (Bergot, 2004, 2005). Defendeu-se a criação do Instituto Nacional del Libro em evento chamado El libro y la dependencia cultural, patrocinado pelas Ediciones Universitarias de Valparaiso, ligada à Universidad Católica. Durante a campanha e em diálogo com o Ministério da Educação, os objetivos do instituto seriam “[...] promover e fomentar racionalmente o livro nacional, planificar e aplicar os meios adequados à melhor difusão e distribuição do livro chileno e obter condições que permitam e facilitem da melhor forma a publicação de obras de criação literária ou de trabalhos científicos e técnicos (Instituto Nacional del Libro, 1970, p. 6, tradução nossa)5”.
Alguns nomes da intelectualidade chilena também se engajaram nos debates sobre a cultura e a produção editorial. Em uma série de palestras sobre a ‘responsabilidade social dos meios de comunicação’, Armand Mattelart, estudioso belga radicado no Chile, associou diretamente os meios de comunicação de massas à institucionalidade política, o que tornaria inócua qualquer iniciativa transformadora com base nos marcos da sociedade burguesa, uma vez que “[...] em uma sociedade burguesa [...] a classe dominante domina direta ou indiretamente o que os ditos meios de comunicação entregam à massa receptora” (El Mercurio, 1970, p. 17, tradução nossa)6. Somente no momento em que as organizações de massa passem a constituírem-se não como receptoras, mas emissoras das mensagens é que se viabilizaria uma autêntica comunicação de massas emancipadora (Jornada del Colegio…, 1970)7.
Em um documento publicado na edição de dezembro de 1970 na revista de crítica cultural Cormorán, um grupo de escritores e intelectuais - entre os quais se destacam o poeta Enrique Lihn e o escritor Ariel Dorfman - defendeu ser necessário assumirem o papel de ‘vanguarda do pensamento’. Para tal, realizaram uma série de reflexões a respeito da superação do ‘subdesenvolvimento e da dependência’ no campo cultural. Defenderam a criação de uma Corporación de Fomento de la Cultura e de um Instituto del Libro y Publicaciones, que teria como função assessorar uma eventual editora do Estado quanto aos títulos adequados para a população, tendo como norte a crítica à cultura burguesa (Política cultural - documento, 1970).
Allende também não se furtou do debate sobre os meios de comunicação no Chile durante sua campanha à presidência: ao apontar que o “[...] comércio da notícia é uma coisa de extraordinário benefício pecuniário [...]”, Allende destacou que a América Latina era refém das vontades das agências de notícias estrangeiras, que “[...] dosam o leite de que precisamos para pensar, colocando a cor e matizando as reportagens como querem”. Sugeriu a possibilidade de discutir a organização de cooperativas de comunicação, por se tratar de atividade laboral mais horizontal e afeita às reinvindicações dos trabalhadores. Além disso, apontou ser uma “[...] grande esperança pessoal e nacional que El Mercurio deixe de ser somente a linha de frente para defender os interesses de um dos clãs mais poderosos do Chile para que se converta em um diário que defenda alguma vez os interesses do Chile e dos chilenos” (El comercio de la noticia, 1970, p. 09, tradução nossa)8.
No mês seguinte à declaração de Allende, representantes sindicais dos trabalhadores do jornal Clarín manifestaram ‘apoio ao triunfo popular’ que significaria a vitória eleitoral de Allende e entregaram a ele uma petição para que o diário fosse convertido em uma cooperativa. Ressaltando que não pretendia agir como uma espécie de empresário de trabalhadores da imprensa, Allende reforçou seu compromisso com a liberdade de imprensa, defendeu a participação ativa dos funcionários na organização e direção das empresas e afirmou que providenciaria a mediação do conflito entre funcionários de Zig-Zag e os donos da editora junto ao seu futuro ministro do Trabalho (Cooperativa en “Clarín”…, 1970, p. 16).
Em 6 de novembro de 1970, três dias após a posse de Salvador Allende como presidente eleito do Chile, os funcionários da editora Zig-Zag declararam greve por ampla maioria de votos (Albornoz, 2005). Entre desenhistas, roteiristas e operários das oficinas de impressão, a ampla adesão dos funcionários da Zig-Zag à greve serviria de argumento contra aqueles que apontavam o caráter estritamente político da paralisação das atividades, iniciada alguns dias após a chegada da Unidad Popular ao poder (Niegan cariz político…, 1970, p. 08). Foi o caso do apresentador de TV, Claudio Orrego Vicuña, que teria afirmado serem as reivindicações dos grevistas absurdas e inviáveis, o que indicaria tratar-se de uma paralisação para fins estritamente políticos. Sergio San Martín replicou os ataques de Orrego Vicuña, convidando-o a discutir o tema junto aos colegas de imprensa no sindicato da Zig-Zag (La Nación, 1970)9.
Ponderações sobre o caráter ‘político’ da greve na Zig-Zag também foram apresentadas por membros de comitês parlamentários democrata-cristãos. As ressalvas que faziam à greve se baseavam na possibilidade de ela causar interrupções a algumas de suas publicações, o que violaria o “[...] direito do povo de ser informado livremente” (Complicaciones en el conflicto…, 1970, p. 22, tradução nossa)10. O argumento foi reforçado por longa carta da assinada por ‘Empresa Editora Zig-Zag S.A.’ à população e publicada em 22 de novembro, na qual se afirmava que “[...] se pretendesse uma finalidade política ulterior com este conflito, ele acima de tudo violaria as garantias constitucionais e de liberdade de expressão [...]” (Zig-Zag a la opinión pública, 1970, p. 42, tradução nossa)11.
Uma suposta declaração de Fernando Barraza, integrante do comitê da Unidad Popular e do comitê de greve, publicada no El Mercurio, ajudaria a aumentar a polêmica. Ela apresentava os interesses que estariam presentes na greve, sinalizando a favor do controle estatal da produção editorial. A Barraza foi atribuída a declaração afirmando “[...] que o fundo do problema era esclarecer se a edição de livros e textos escolares deve seguir na empresa [Zig-Zag] ou passar a mãos do Estado” (Complicaciones en el conflicto…, 1970, p. 22, tradução nossa)12. Barranza desmentiu a reportagem (Prosiguen gestiones…, 1970).
A tensão em torno de uma eventual estatização forçada da editora permaneceu, levando a seguidas declarações do sindicato na imprensa a respeito do caráter estritamente econômico e trabalhista da greve. Salários defasados e acordos descumpridos ditaram a tônica da argumentação do movimento grevista - ainda que, ao se recordar dos acontecimentos do período em depoimento cedido para a pesquisa, um operário de formação comunista do setor de impressões tenha ressaltado que a greve foi motivada pela defesa da construção de uma produção cultural alinhada à política da UP (Tarifeño, 2013). As negociações entre trabalhadores e donos da empresa, mediadas pelo Estado, prosseguiram sem grande êxito inicial, o que gerou uma série de especulações no El Mercurio acerca das reais intenções do governo nas negociações (Suscrita venta al Estado…, 1971; Inquietud suscita…, 1971). Jornal tradicional e de grande circulação no Chile, El Mercurio apresentava, a partir da greve em Zig-Zag, a linha política que o periódico assumiria ao longo dos anos de UP, que consistiu em uma campanha de oposição sistemática ao governo Allende (Dooner, 1989).
Diante das greves e de acusações de endividamento e prática de monopólio, decidiu-se pela formação de uma editora do Estado a partir da Zig-Zag. A solução para se levar a cabo essa decisão foi a compra dos seus ativos que incluíam espaço físico, maquinário e algumas das revistas que apresentavam fraca vendagem. Alguns dos títulos obtidos foram Hechos Mundiales, Estadio, Confidencias, Telecran, Saber Comer, Far West, Jinete Fantasma, Espía 13, El Siniestro Doctor Mortis, Intocable, Jungla, Agente Silencio, Guerra...! e 5 por Infinito. Além disso, o Estado assumiria as dívidas e manteria os funcionários da editora. Os antigos proprietários da Zig-Zag teriam direito a continuar com os títulos de maior sucesso comercial como a revista em quadrinhos Condorito, a revista de variedades Ercilla e o semanário informativo Vea, além de títulos do universo Disney, como Disneylandia, Tío Rico, Tribilín e Rosita (Bergot, 2004). A Zig-Zag também teria a impressão dessas publicações garantida em contrato, sob a responsabilidade da editora estatal.
O governo da UP ressaltou em diversas oportunidades que não era sua intenção estatizar a editora Zig-Zag de maneira a desagradar seus antigos donos. Na ocasião do processo de estatização, Jorge Arrate, então diretor do Instituto de Economia da Universidad de Chile, foi designado para mediar as negociações entre os trabalhadores e os donos da editora Zig-Zag. Ele dá o seguinte depoimento:
‘Tenho um projeto’, disse Allende, com esse tom de voz e essa forma particular de enfatizar a pronúncia das palavras. Tenho vontade de formar uma grande editora pública, e a empresa Zig-Zag encontra-se em dificuldades, explicou. E adicionou: ‘Quero que você compre essa empresa para fundar uma editora pública e que o faça corretamente. Esta é uma empresa de ideias, e eu não quero que passe pelo Ministério da Economia porque, se isso ocorrer, vão dizer que é uma expropriação’ - tal fato acontecia naquele momento com uma empresa de lã que gerou muita polêmica. ‘Quero que esta negociação seja um assunto à parte e quero que pague a eles o justo, que deixe a ambos satisfeitos, e sua missão é obter, ao término da negociação, uma carta onde eles manifestem sua concordância com os termos desta negociação’ (Arrate, 2007 apud Bastidas, 2007, p. 4, tradução nossa, grifo do autor)13.
O anúncio de inauguração da nova editora ocorreu em 12 de fevereiro de 1971, data em que se celebrava o Dia da Imprensa no Chile, por ocasião do 159º aniversário do primeiro jornal chileno, La Aurora de Chile. Na ocasião, Allende chegou a declarar em discurso que a nova editora se chamaria Camilo Henríquez, em homenagem ao editor do pioneiro jornal, associado à luta pela independência do Chile e ao combate à tirania colonial (“Operación Verdad” recorrerá América apud Fontaine Talavera & Pino, 1997). Essa não foi, contudo, a denominação adotada para a editora, logo batizada de Quimantú, expressão que significa ‘sol do saber’ em mapudungum, idioma mapuche.
As razões precisas para tal mudança não foram encontradas, mas algumas especulações sobre seus motivos podem ser levantadas: em primeiro lugar, explica-se pela importância que a UP atribuía à integração entre as classes sociais e os diversos grupos étnicos que compunham o Chile; além disso, a expressão é oriunda do idioma falado por um grupo indígena símbolo de resistência histórica perante invasores externos, dado que os mapuches foram dos poucos povos indígenas que mantiveram independência e controle territorial ao longo da colonização espanhola (Bengoa, 2000). Por fim, é possível se conjecturar também sobre as vinculações cristãs de Camilo Henríquez, que afastavam seu nome das pretensões laicizantes da editora.
Há uma série de simbolismos que merecem ser ressaltados e que ajudam a dimensionar o papel da Quimantú no governo Allende. Inaugurada no Dia da Imprensa, a nova editora tinha como símbolo um sol, como a irradiar a luz do saber sobre a sociedade chilena. E seu nome, retirado do idioma de povos originários que não se deixaram abater pelo conquistador estrangeiro, aponta na direção de uma resistência cultural.
Perfil editorial e principais publicações da Quimantú
A iniciativa de se manter uma editora estatal para publicar livros e revistas alinhadas às perspectivas políticas que norteavam a grande aliança de esquerda no poder causou profundo impacto na sociedade chilena. Estima-se que mais de 12 milhões de livros tenham sido publicados pela editora até o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 - e isso sem se mencionar publicações de caráter efêmero, como revistas de variedades ou revistas em quadrinhos, geralmente quinzenais e de difícil contabilidade (Bergot, 2004). Tais números impressionam se contrastados com os dados das publicações de outras editoras da época. Segundo Luis Merino Reyes, então presidente da Sociedade de Escritores do Chile, até 1970 os livros costumavam apresentar tiragens médias de cerca de 3.000 exemplares. Iniciativas da Quimantú como a coleção Quimantú para todos, por exemplo, logo conseguiriam alcançar cifras totais de mais de dois milhões de exemplares. Algumas obras individuais contaram com tiragens de até 50 mil exemplares (Política cultural para Chile, 1971).
Abaixo segue tabela 1 elaborada por Marília Antunes em sua dissertação de mestrado sobre a coleção Cuadernos de Educación Popular, organizada por Martha Harnecker e Gabriela Uribe, voltada à popularização de conceitos chave do materialismo histórico e direcionada a trabalhadores chilenos.
Publicação | Categoria | Número de volumes | Ano | Tiragem (Exemplares/Título) | Preço (Escudos) |
---|---|---|---|---|---|
Minilibros111 | Coleção | 55 | 1972 - 1973 | 50.000 a 100.000 | Eº8 e Eº15 |
Quimantú para todos | Coleção | 47 | 1971 - 1973 | 30.000 a 50.000 | Eº 12 e Eº30 (vol. simples) Eº60 (vol. duplo) |
Cordillera | Coleção | 23 | 1971 - 1973 | 5.000 | |
Cuncuna | Coleção | 20 | 1971 - 1973 | 10.000 a 30.000 | Eº10 |
Nosotros los chilenos | Coleção | 47 | 1971 - 1973 | 50.000 | Eº12 e Eº24 |
Cuadernos de Educación Popular | Coleção | 13 | 1971 - 1973 | 30.000 a 100.000 | Eº 5 |
Clásicos del Pensamiento Social | Coleção | 19 | 1972 - 1973 | 5.000 a 10.000 | |
Camino Abierto | Coleção | 32 | 1971 -1973 | 5.000 a 10.000 | Variável (Eº32 e Eº35) |
Chile Hoy | Revista | 65 | 1972 - 1973 | Variável (Eº10 a Eº50) | |
La Quinta Rueda | Revista | 9 | 1972 - 1973 | Variável (Eº15 a Eº50) | |
La Firme | Revista | 61 | 1971 -1973 | Variável (Eº 1,50 a Eº15) | |
Paloma | Revista | 22 | 1972 - 1973 | Variável113 | Variável (Eº30 a Eº55) |
Cabrochico | Revista | 70 | 1971 - 1972 | Variável (Eº3,50 a Eº15) | |
Onda | Revista | 53 | 1971 - 1973 | Variável (Eº7, 50 a Eº80) |
Fonte: Antunes (2017, p. 61-62).
Sobre o perfil das publicações, Bergot percebe aspectos ‘didáticos e pedagógicos’ e um ‘claro compromisso político e secular’ comum a todas elas, mas sugere organizá-las em três blocos temáticos:
- popularização da produção literária chilena e universal para crianças e adultos: Minilibros, Quimantú para Todos, Cordillera e Cuncuna;
- disseminação de temas e valores diretamente ligados ao debate político das esquerdas: Camino Abierto, Cuadernos de Educación Popular e Clásicos del Pensamiento Social;
- discussão de temas ligados ao cotidiano e à cultura nacional de forma geral: ‘Nosotros los chilenos’ (Bergot, 2004).
A maior parte dos estudos dedicados às publicações de Quimantú priorizam coleções de livros, como ‘Nosotros los chilenos’ (Marinello, 2008) e Cuardernos de Educación Popular (Antunes, 2017). As coleções de revistas, por sua vez, seguem pouco investigadas. Tais publicações conferem à editora maior complexidade desde o ponto de vista das políticas editoriais e da sua organização. Tendo por princípios comuns a formação de leitores como uma política editorial e a formação política de leitores como uma política cultural, Quimantú é, no fim das contas, uma editora que busca publicar livros de formação política e clássicos da literatura mundial sem deixar de lado outros formatos e públicos tão variados como revistas em quadrinhos e revistas voltadas ao público feminino, por exemplo. Sugere-se a seguinte classificação para as revistas:
- revistas voltadas para fornecer noções de história e dos problemas da vida política chilena: Ahora, Chile Hoy, La Firme, La Quinta Rueda e Mayoría; - revistas para públicos segmentados - mulheres, jovens e crianças - buscando desconstruir padrões de comportamento e consumo tidos como burgueses: Cabrochico, Estadio, Paloma e Onda.
Era comum veicular-se que os livros de uma coleção como Minilibros tinham custo equivalente ao de um maço de cigarros. Feitos para caberem no bolso de uma calça de trabalhadores, vendia-se também uma troca de hábitos a favor da saúde da população mais humilde, preocupação recorrente no período. As revistas tinham preços similares aos dessa coleção, quando não eram mais baratos, apesar das oscilações inflacionárias e dos custos de manutenção dos títulos.
Para se tratar da atuação de Quimantú na formação de leitores, vale discutir as reformulações sofridas pelas revistas em quadrinhos tendo-se em vista a formação de “homens novos” desde a infância.
Reformulações de revistas em quadrinhos na editora Quimantú.
Fase de duração breve, os primeiros meses de Quimantú foram um momento de avaliação e organização do material que permaneceu na editora após o acordo com Zig-Zag. Quais títulos deveriam permanecer ou ser cancelados e o estabelecimento de uma orientação política e editorial para as revistas em quadrinhos foram os temas discutidos no período de fevereiro a junho de 1971.
De início, a opção assumida foi a de se manter todas as publicações que restaram das negociações de novembro de 1970, realizando-se alterações pontuais no conteúdo de alguns títulos para, em seguida, se decidir se deveriam ser canceladas ou não. Alguns títulos não sobreviveram a essa primeira avaliação, como Confidencias, El siniestro Dr. Mortis e 007 James Bond, por exemplo (Rojas Flores, 2016). Mesmo não se referindo precisamente às revisões em revistas de histórias em quadrinhos (HQs), o depoimento de Arturo Navarro é ilustrativo da forma como se organizava a análise de conteúdos e eram propostos novos caminhos às publicações assumidas por Quimantú. Responsável pela revisão de revistas, o sociólogo chileno relata a situação de Confidencias, revista de contos femininos. A partir de um ‘ponto de vista estruturalista’ que mantinha na época, Navarro propôs substituir as traduções de histórias de amor norte-americanas e
[…] introduzir uma revolução, que foi inserir fotonovelas. Fotonovela é a mesma novela de amor, mas com fotografias. Para minha chefe pareceu muito interessante a fotonovela, mas ela me disse: ‘Bem, bem. Quem poderá fazê-las?’ ‘Eu’! Eu tinha um coletivo, como diriam agora, de companheiros de Sociologia, Psicologia, vários deles fotógrafos, um grupo universitário de artes que se chamava ‘Sexta Experiência’. Então convoquei meus amigos e colegas da ‘Sexta Experiência’ para criar a fotonovela (Navarro, 2013, tradução nossa, grifo nosso)14.
Questionado sobre o resultado comercial dessa modificação, Navarro prontamente afirma que isso resultou no fim de Confidencias; um ‘desastre’, nas suas próprias palavras. Cientes de que propunham um novo formato para um tipo de público específico - ‘pessoas maiores, mulheres, românticas, adultas’ -, Navarro e seu grupo universitário decidiram também inovar no conteúdo das próprias fotonovelas da revista. Como exemplo de uma das intervenções, consta a história de uma bela jovem de classe média que se apaixona por dois jovens, um rico e outro pobre - este último, interpretado pelo próprio depoente. Toda a narrativa gira em torno dos dilemas da moça para escolher entre um e outro até que, na última página, ela pergunta em pensamento: “[...] bem, e com quem irei ficar?”. Nesse momento, surge na fotonovela o próprio fotógrafo, que responde: “[...] eu não sei com quem você irá ficar! Decida você!” (Navarro, 2013). Fim da história.
O enredo da fotonovela é relatado por Navarro num tom bem-humorado que destaca como era uma “[...] felicidade completa ter uma grande editora [...] à sua disposição para publicar as loucuras que você queria”. Navarro não perde de vista, porém, que tal autonomia se justificava em razão das prioridades editoriais assumidas por Quimantú. Além de tais experimentações terem ocorrido em um momento de mudança em que novas pessoas e ideias iam se incorporando à Quimantú, as revistas eram consideradas de menor importância comercial, quando comparadas às obras de literatura e livros de orientação política. Publicados em largas tiragens, os livros logo se tornariam uma das marcas de Quimantú. Por fim, Confidencias e outras revistas mantidas em Quimantú já não vendiam muito bem, quando publicadas por Zig-Zag, o que as autorizava a sofrerem alterações que pudessem torná-las mais atraentes ao leitor ou, no mínimo, finalizadas após um desfecho de inovações estéticas (Navarro, 2013).
A passagem acima aponta, por um lado, para a ideia mais ampla de Quimantú enquanto espaço dinâmico e em construção de debates e criações. Por outro lado, a completa autonomia obtida por Navarro e demais responsáveis por Confidencias indica o papel secundário e mesmo uma desconfiança em relação a publicações efêmeras como fotonovelas - e possivelmente revistas em quadrinhos. Afinal, uma editora autorizar tamanhas alterações formais e de conteúdo sem maiores problemas sinaliza a necessidade de transformação radical de tais formas de expressão.
Outra discussão presente em Quimantú pode ser apreciada a partir dos estudos sobre comunicação e imperialismo cultural realizados na época pelos intelectuais Ariel Dorfman e Armand Mattelart. Não é intenção aqui se realizar uma análise extensiva da trajetória desses estudiosos, já bem desenvolvida por Zarowsky (2009) ao tratar de Mattelart, por exemplo, tampouco se mapear o conjunto da sua produção sobre esses temas durante os anos 1960 e 1970 no Chile. Porém, ressalte-se o fato de Para leer al Pato Donald, trabalho que os tornou conhecidos e que deve boa parte de suas reflexões ao contexto chileno, não ter sido publicado pela editora estatal, mas por uma editora universitária em Valparaíso (Dorfman & Mattelart, 1971). As discordâncias presentes no interior da Quimantú em torno das teses do livro foram centrais para que a obra não fosse publicada em Quimantú, inicialmente procurada para tal:
Nós apresentamos o livro a uma seção de Quimantú onde tínhamos mais vinculação - o seu diretor era um tipo que pertencia ao Partido Socialista. Ele tratou de pedir aos seus colegas para ver se poderia ser possível a publicação deste livro por Quimantú [...]. Então, a única solução para a gente publicar nosso livro foi lançá-lo pela Universidad Católica de Valparaiso, que poderia publicá-lo rapidamente. [...]
Porém, você sabe, tudo isso era tratado com muita discrição. Não saía a público esse tipo de coisa, pois seria como confessarmos as tensões no interior de Quimantú. E isso seria era muito ruim [...].
Nós apresentamos o livro por Quimantú também por uma questão de cortesia, pois tínhamos muitas dúvidas das possibilidades políticas dele ser aceito lá (Gomes, 2013, p. 208-209).
O mesmo não ocorria, por exemplo, na edição de livros. Jorge Arrate, em seu depoimento, revela que
Houve alguns episódios interessantes. Por exemplo, nos livros, onde estavam Alejandro Chelén e Joaquim Gutiérrez - que era como colocar um neto de Stálin junto a um neto de Trotsky - Alejandro propôs publicar a História da Revolução Russa, de Leon Trostky. E ardeu Tróia. Allende teve que intervir para resolver o impasse, e intercedeu no assunto decidindo que o livro deveria ser publicado (apud Bastidas, 2007, p. 8, tradução nossa)15.
O caso de El siniestro Dr. Mortis vale menção. Sob a direção de Quimantú, as revistas passaram a publicar menos HQs carregadas de sangue e violência. Em seu lugar, lançaram materiais para a difusão de conhecimento por meio da ficção científica. Isso não impediu que a série fosse cancelada meses depois. Os motivos para isso não são de todo certos; questionado sobre eventuais censuras sofridas em Quimantú, o autor Juan Marino indica que
Houve conflitos, devido a mentes que não deviam estar nos lugares de mandos em que foram colocados. Porém, pese a todos os esforços dessas pessoas, não puderam eliminar algumas de minhas três histórias em quadrinhos, pois elas eram quem sustentavam economicamente a Empresa Quimantú, ex-Zig-Zag. Quiseram censurar Jungla, por exemplo, e enviaram um sociólogo, homem de grande cultura (atualmente nos Estados Unidos, trabalhando muito bem), que logo soube que essa HQ era um trabalho de pesquisa, consulta e apoio da Embaixada da Índia, desistindo de meter a mão nos argumentos (Juan Marino…, 2014, tradução nossa)16.
O resultado desses embates pode ser percebido nas orientações encaminhadas para os quadrinhos de Quimantú. A partir de uma reorganização inicial, que envolveu a análise e o esgotamento do material que restara de Zig-Zag, uma primeira publicação própria para crianças foi publicada. Trata-se da revista Cabrochico No ano seguinte à formação de Quimantú, as revistas mantidas de Zig-Zag sofreram importantes mudanças editoriais em um segundo momento, entre abril e maio de 1972, das quais importa destacar a consolidação das propostas apresentadas inicialmente e o estímulo da participação popular para se definir os rumos de cada historieta. Além disso, editava-se o material estrangeiro que contivesse ‘conotação negativa’, ‘ofensivas ou perturbadoras’. Buscava-se diálogo interno por meio de uma ampla reestruturação interna do setor responsável pelos quadrinhos, levando à estruturação de um ‘Departamento de Historietas’ composta por sociológos, pedagogos, desenhistas e roteiristas; e de uma abertura para o público, que poderia julgar a qualidade das revistas por meio de ‘talleres populares’, compostos por membros de outros setores produtivos da editora, além da interação com outros grupos sociais - dentre os quais chama a atenção, entre outros, o caso das Forças Armadas e dos Carabineros avaliando mérito e qualidade de revistas em quadrinhos (Rojas Flores, 2016).
Em fins de 1972 observa-se um terceiro e último momento, marcado pelo recuo nos conteúdos políticos, talvez em resposta à queda nas vendas. O encerramento da revista Cabrochico em dezembro desse ano é representativo desse quadro (Rojas Flores, 2016). Projetos para fortalecer a seção de revistas em quadrinhos seguiram em andamento e foram interrompidos em setembro de 1973, quando a Unidad Popular foi retirada à força do poder.
Cabrochico: valores para a infância numa sociedade em disputa
A revista Cabrochico foi lançada no mercado em junho de 1971, com a proposta de ser a principal publicação de quadrinhos para crianças em idade pré-escolar; alcançou 70 números até o cancelamento, em dezembro de 1972. O caráter engajado da linha editorial da Cabrochico e sua periodicidade quinzenal - com um breve período de publicações semanais - estão entre os fatores que colocaram a publicação no foco da análise. Cabrochico é entendida como um modelo para as publicações de revistas em quadrinhos na Quimantú, formato que mereceu bastante atenção pela editora (Rojas Flores, 2016; Gomes, 2018).
Ao lado de desenhistas, roteiristas e trabalhadores das oficinas de impressão, professores universitários como o sociólogo Patricio García e o arquiteto, escritor e filósofo Saúl Schkolnik integravam a equipe editorial. Contava-se também com a colaboração do Departamento de Educación Preescolar de la Universidad de Chile. Tais filiações foram ressaltadas no seu editorial de estreia e em um suplemento especial presente no quinto número. Apresentar a formação intelectual de seus editores servia para expressar que a revista seguiria uma linha editorial que primava pela desmistificação do mundo, pela razão, pela crítica social e pelo esclarecimento das crianças acerca da realidade chilena:
Cabrochico, uma revista ‘real para as crianças chilenas’, nasce para entregar ao público infantil uma escala de valores novos, cujo ambiente seja completamente o do Chile e não o de outros países, com costumes e tensões totalmente diferentes dos nossos, como é, por exemplo, aquela que entregam aos seus filhos as publicações infantis que nos chegam diariamente por meio do estrangeiro.
Esta nova revista, editada pela Quimantú, Editora Nacional, pretende romper definitivamente com a alienação e o processo de influência negativa que exerce o sistema sobre as mentes infantis que, sem quase se darem conta, adquirem a ambição pelo dinheiro [...] ou a crença de que existe o mundo mágico das fadas e dos duendes. Basta destacar para isso alguns dos personagens principais que participam das histórias em quadrinhos que entram pela nossa fronteira: o multimilionário Tio Patinhas [...] e a série do Superman, passando por James Bond, até pela fada da Cinderela (Cabochico, 1971a, p. 2, tradução nossa, grifo do autor)17.
Em seu editorial de estreia, Cabrochico assumia o desafio de travar uma luta pelos imaginários infantis. Seus editores pareciam demonstrar ciência de que a batalha pelos símbolos faz parte da trajetória humana. Socialmente limitados, eles exerceram papel catalisador das esperanças e anseios dos diversos grupos que compõem dada sociedade (Backzo, 1985).
A modificação do imaginário infantil para a consolidação do socialismo deveria se dar também pelo esclarecimento das estratégias de alienação direcionadas às crianças até aquele momento. Um dos caminhos assumidos nos primeiros números de Cabrochico foi explicitar os limites e as contradições de alguns conhecidos contos de fadas para, então, apresentar versões críticas deles. Eram os anticuentos:
Os contos clássicos refletem muito bem a posição do sistema. Aparecem personagens muito simpáticos, com adjetivos que enfatizam a cada instante sua simpatia ou beleza. Quem se esconde por trás deste simpático personagem pode ser um canalha, um bandido. Por exemplo, o Gato de Botas: arrivista, mentiroso, traidor, assassino [...] esse é o herói infantil da burguesia.
‘Cabrochico’ quer mostrar para a criança o que realmente há por trás desse herói infantil, de uma maneira muito simples: fazendo com quem ela mesma descubra (Cabrochico, 1971a, p. 31, tradução nossa, grifo autor)18.
Os roteiros dessas adaptações eram de Saúl Schkolnik e os desenhos, de início, ficaram sob os cuidados de Luis Jiménez. Figura durante muito tempo esquecida dentro da história das HQs chilenas, Jiménez era militante do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), organização de esquerda que defendia ações armadas como parte do processo de tomada revolucionária do poder e que manteve apoio, com muitas ressalvas e críticas, ao governo da UP. Dias após o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, Jiménez foi detido e tornou-se mais um desaparecido do regime; seu paradeiro é desconhecido até o presente momento (Montealegre, 2011).
A produção de quadrinhos em Quimantú teve de dialogar com as práticas da linguagem das HQs entre seus leitores. Nesse sentido, são fatores a se destacar na trajetória de Jiménez a sua atuação em revistas humorísticas sem vinculação política explícita ao longo dos anos 1960 e a influência direta sofrida pela estética das HQs de Albert Uderzo e René Goscinny, criadores da série Astérix, que abordava temas contemporâneos adaptando-os ao universo da Roma Antiga (Montealegre, 2011). Essa parece ser também a tônica adotada por Jiménez em suas versões para contos de fadas clássicos como Gato de botas, que integra a edição de estreia de Cabrochico (Cabrochico, 1971a). A história de Charles Perrault, na qual um gato lança mão de diversas artimanhas e estratégias para que seu amo fique rico e se case com uma princesa, é logo apresentada como um elogio à ganância e à mentira como motores na perseguição desmedida por um falso êxito na vida. O amo permanece a maior parte do tempo indiferente e atônito diante das investidas de seu gato. Não satisfeito, o gato passa a ludibriar também alguns camponeses que trabalhavam no castelo do seu amo. Eles, porém, logo percebem que foram enganados e, indignados, decidem se organizar coletivamente para dar um fim às ações do gato (Cabrochico, 1971a). As maldades do Gato de Botas poderiam ter um ponto final na tomada de consciência alcançada pelos camponeses. O que se observa de fato é que a reviravolta nesse quadrinho apenas se conclui quando o amo se cansa de todas as mentiras promovidas pelo seu gato. Num rompante de consciência, ele sai da sua apatia inicial, posiciona-se criticamente e decide revelar para todos o que realmente acontece, para a alegria dos camponeses e dos funcionários explorados de seu castelo (Cabrochico, 1971a).
A partir dessa ação de esclarecimento, Pedro reforça o senso de coletividade camponesa desde sua condição de explorados: munidos das ferramentas de trabalho, eles direcionam o olhar ao rei, que rapidamente decide fugir do local. Subentende-se que o reino, então, provavelmente passará para as mãos do povo. Está selado o compromisso entre as classes populares e o indivíduo: posturas políticas como a conscientização e a tomada de posicionamento coletiva diante das contradições e injustiças do mundo caminham ao lado de iniciativas de lideranças individuais que se levantam da apatia generalizada para guiar as ações das massas.
A mudança no enredo do clássico conto El gato con botas procura ressaltar, de início, a honestidade e a coletividade como valores fundamentais, em vez do egoísmo e do individualismo desmedidos que se veem nas atitudes do gato. Essa reorientação, bastante evidente ao longo da HQ, é coerente com as colocações do editorial de abertura de Cabrochico, bem como com as idealizações gerais do governo da UP para a cultura.
Outro anticuento é dedicado à releitura de Branca de Neve e os sete anões19. A versão de Luis Jiménez e Saúl Schkolnik merece ser aqui descrita em seus pormenores. Ela se inicia com uma jovem ‘preguiçosa’, que “passa os dias deitada na cama”, para preocupação de seu pai e de sua madrasta. Seguindo recomendação de seu espelho mágico, a madrasta pede a um caçador que leve Branca de Neve ao bosque para caminhar um pouco. Insatisfeita com o passeio obrigatório, a menina logo se perde e vai parar na casa dos sete anões, que, ao retornarem de um dia duro de trabalho, deparam-se com seus pratos vazios e suas camas bagunçadas pela jovem.
Perdida, ela aceita o convite dos anões para permanecer com eles na floresta, sob a condição de que aprenda atividades como cozinhar e limpar a casa. Logo, a menina se torna prendada e responsável. A notícia se espalha pela floresta até chegar aos ouvidos de sua madrasta, que, desconfiada e surpresa, decide ir ao seu encontro. Para não ser reconhecida, disfarça-se de bruxa e leva algumas maçãs para presentear a esforçada enteada. As maçãs, porém, fazem mal à Branca de Neve, que fica desacordada até o momento em que um príncipe se aproxima de seu leito, desperta-a com um beijo e se declara apaixonado por ela. Branca de Neve recusa a intervenção brusca do príncipe, pois apaixonar-se sem mal conhecer a outra pessoa é algo que apenas ‘acontece nos contos tolos para crianças pequenas’. Ele termina por levá-la de volta à casa de seus pais e os dois tornam-se, por fim, ‘muito amigos’.
A transformação radical no enredo de Blanca Nieves y los siete enanitos se justifica pelas preocupações da Quimantú em promover novas ideias para a construção de um ‘novo homem’, nos marcos do governo socialista chileno. O trabalho honesto também é aqui tomado como um valor a ser levado em alta conta: em El gato con botas, ele aparece na figura dos camponeses, em contraste com o gato ambicioso que não se esforçava para conseguir nada por mérito próprio; nesta HQ, ele se apresenta por meio da superação do comodismo que dominava Branca de Neve.
Cabe destacar a forma como a personagem principal é retratada na página de abertura da HQ (Montealegre, 2011). “Caprichosa e malcriada [...]”, na maior parte do tempo Branca de Neve “[...] permanecia deitada em sua cama sem fazer nada”. Seu quarto mostra desorganização e ela sorri com certa displicência enquanto sua madrasta a observa, preocupada, atrás da porta. A tomar por essa cena inicial e pelas suas roupas, calças jeans boca de sino e sapatos plataforma, ela parece representar uma típica jovem rebelde chilena (Montealegre, 2011, p. 54, 56).
O debate sobre a atuação e sobre as representações dos jovens durante o governo da UP é extenso e não pode ser desenvolvido nos limites deste artigo (Tamayo, 2004, p. 71-94; Quadrat, 2010, p. 520-562). Mas vale destacar que a representação da jovem Branca de Neve apresenta homologias com abordagens presentes em outras publicações associadas ao campo das esquerdas, como em edição da série ‘Nosotros los chilenos’, publicada por Quimantú, dedicada a descrever os jovens chilenos, e na revista Ramona, voltada às culturas jovem e pop de fins dos anos 1960 e início dos anos 1970. Esses contextos têm em comum uma visão do jovem como um ente não dotado de questões próprias, mas compreendido apenas a partir da sua inserção em determinada classe social; criticavam-se aqueles que não dedicavam a devida atenção aos estudos, que se alienavam no rock importado da Inglaterra e em festas e que não reconheciam os esforços de trabalhadores e da classe política com os rumos do país (Tamayo, 2004, p. 71-94).
Nessa adaptação, o espelho ainda é o conselheiro, mas a madrasta é considerada uma boa pessoa, a bruxa é apenas uma fantasia, suas maçãs não são envenenadas e a Branca de Neve não se apaixona tão facilmente. Ao lado da expectativa de se modificar o imaginário infantil por meio da desmistificação de conhecidos contos de fadas, caminhavam nas entrelinhas as concepções ligadas a temas como o papel do povo e das lideranças na tomada de consciência revolucionária e a emancipação por meio do trabalho. Em Blanca Nieves y los siete enanitos, também chamam atenção atribuições associadas ao trabalho feminino: para a personagem principal, emancipar-se significou ter de reconhecer o valor de uma série de atividades associadas aos afazeres domésticos, para a alegria dos sete anões (Montealegre, 2011).
Branca de Neve transforma seu comportamento sob o comando da trupe de anões trabalhadores: chega a recusar os galanteios ‘tolos’ do apressado príncipe e torna-se uma pessoa que inspira orgulho na família. Ao encontrar sua madrasta, curiosa por saber se os boatos sobre uma menina trabalhadora realmente correspondiam à sua enteada até então perdida, ela limpava um tapete estendido num varal, por exemplo. Percebe-se que, aparentemente, as discussões ligadas a temas como o feminismo, de grande força ao longo dos anos 1960 (Scott, 1992), pouco ecoaram nas disputas pelo imaginário para a construção de uma nova sociedade chilena desde a infância (Kunzle, 1978, p. 119-133).
A leitura sobre os jovens presente nesta HQ é crítica a uma postura escapista perante as contradições do mundo. Tal perspectiva orientava a política editorial de Quimantú para outras publicações em quadrinhos, adaptando-se às especificidades de cada gênero narrativo. Em editorial publicado no quinto número de Cabrochico, a orientação da equipe responsável pelos quadrinhos na Quimantú a respeito das HQs de terror é apresentada num suplemento voltado aos pais. Abaixo, algumas perguntas às mães (Figura 1):
Considerações finais
Com o golpe de 1973, Quimantú teve suas portas fechadas e seus livros e revistas foram queimados em praça pública:
Todos sabíamos, por fontes diversas, que durante a primeira semana os militares fascistas, junto com a tomada do poder, entregaram-se devotamente à tarefa de usurpar a cultura. Com entusiasmo, com fervor de viciados em drogas, queimaram toneladas de livros que se encontravam no depósito da Editora Quimantú (Dorfman, 2016, p. 10, tradução nossa)20.
Entrava em operação o que Errázuriz e Leiva Quijada (2012) definiram como a ‘transformação da memória visual’. Não apenas projetos políticos e sociais ligados à UP seriam desmantelados dali para frente, mas também imagens e símbolos que remetessem aos anos de transformação social e ao projeto político da UP. A queima de livros não deixou de ser registrada em fotografias, configurando-se em um registro visual do silenciamento desse período da história. E, conforme testemunham algumas memórias da época, a queima de livros (Figura 2) incluiu acervos privados, fosse por invasão de casas e apartamentos por militares (Volk, 2020), fosse pela destruição deliberada de livros e revistas para se evitar investidas militares, como descrevem tupamaros uruguaios no Chile (Jorge Pancera & Fernández Huidobro, 2003).
A editora foi tomada meses depois e passou a se chamar editora Gabriela Mistral. O novo governo manteria algumas séries de Quimantú, não sem antes editar conteúdos de forma a aproximá-los de um elogio ao militarismo, excluindo os créditos autorais (Erráruriz & Leiva Quijada, 2012). Por exemplo, era comum que as revistas em quadrinhos reproduzissem mensagens como “[...] a pátria amanheceu em setembro [...]”, “[...] as Forças Armadas salvaguardam nossa soberania [...]” e “[...] por hoje, amanhã será um grande dia para o Chile” (El Manque, 1973-1974, p. 17, 31, 34, tradução nossa)21.
O artigo buscou destacar as complexas relações desenvolvidas durante um projeto de defesa por transformação cultural por meio de livros e leituras, porém este nem sempre foi bem aceito, pois a proposta “desmistificadora” assumida pela editora teve de confrontar-se com um mercado de impressos já consolidado. Ainda que alguns trabalhadores não tenham percebido grandes diferenças entre suas atividades na editora Zig-Zag e na nacionalizada Quimantú, uma vez que as dependências, maquinários e os trabalhadores se mantiveram os mesmos (Hurtado, 2005), isso não elimina o fato de que outros se sentiram incomodados com a presença de ‘intelectuais’ nas dependências da editora a interferirem no conteúdo das publicações. Sobre eles recai a culpa pela adoção de medidas que não foram bem recebidas pelo público. As polêmicas em torno do projeto editorial da Quimantú estão vivas ainda hoje. Sobre o tema, afirma Navarro que,
[...] numa sociedade como a chilena, apenas o fato de difundir cultura é - usando os termos da época - ‘revolucionário’. Não é necessário tergiversar conteúdos. Se há algum texto que não compartilhe da linha da coleção, simplesmente que não se publique, porém não se deveria jamais alterar um texto que era vastamente conhecido pelas gerações precedentes (Navarro, 2007, tradução nossa, grifo do autor)22.
A experiência da editora Quimantú permanece forte na memória cultural chilena. Fortemente associada aos anos de UP, lembrar sua breve trajetória é posicionar-se, também, contra o ‘apagão cultural’ que se seguiu aos anos de ditadura. É o que sugere o curta-metragem ‘Diamela Eltit’, dirigido por Gloria Camiruaga e que se dedica a registrar Eltit enquanto lê trechos de seu romance ‘Por la patria’ nas ruínas da editora fechada (Llanos, 2010). Mais recentemente, o diretor chileno René Ballesteros parte em uma busca envolvendo sua mãe, então desaparecida desde o golpe de 1973, a partir de uma coleção desaparecida de livros de Quimantú, único legado deixado pela mãe aos seus filhos. O filme La quemadura, de 2010, representa o esforço de Ballesteros, nascido em 1975, em processar os fragmentos e as ruínas de um passado em suspenso, posto que o desaparecimento de sua mãe, os silêncios familiares e a coleção incompleta de livros da Editora Quimantú apontam para a incompletude de um tempo ao qual o diretor se vê enredado (Ros, 2012).
A editora também inspira projetos editoriais em atividade no Chile do século XXI, como a retomada de uma coleção como ‘Nosotros los chilenos’ pela editora LOM. Mais recentemente, um coletivo autônomo e sem vínculos com a editora dos anos 1970 descobriu que não havia registros ativos em torno do nome Quimantú, optando por dialogar com seu legado editorial ao chamar o novo empreendimento editorial, voltado a publicações de esquerda, de Quimantú (Rabasa, 2019). Entre erros e acertos, Quimantú segue viva como uma utopia editorial.