Introdução
Historicamente, nos países periféricos, as formas preponderantes de reprodução social caracterizam-se pela escassa democratização do acesso aos níveis mais elevados de escolarização. Desse modo, a oferta escolar tende a ser regulada para garantir às elites a formação propedêutica preparatória para o ensino superior, visando ao trabalho intelectual, e às classes populares é oferecida uma educação básica com poucos horizontes, quase sempre direcionada ao trabalho manual, o que resulta, na maioria das vezes, numa dualidade social de base educacional.
No Brasil, essa característica esteve presente desde o início da colonização, quando havia uma separação entre o percurso e o tipo de ensino ofertado para segmentos sociais diferentes. Essa situação perdurou ao longo do Império brasileiro (1822-1889). No final do século XIX, com a crise da mão de obra provocada pelo fim do tráfico internacional de escravos em 1850, com a lei Eusébio de Queiroz, o tráfico interno de escravos, em especial entre o Nordeste açucareiro e o Sudeste cafeeiro, não foi suficiente para suprir as demandas de trabalho para o novo setor econômico. Segundo Ribeiro (1990), a escolha pela imigração ocorreu como solução para o fim do trabalho escravo, confirmado pela lei Áurea, em 1888. Com a República instaurada em 1889, houve uma modificação na forma como eram vistos o trabalho, que passava a ser mais valorizado, e o trabalhador, cujo exemplo europeu era considerado superior ao nacional, fosse ele negro ou mestiço (Ribeiro, 1990).
Com o advento da República, não apenas o trabalho foi se modificando mas também a educação. Intelectuais republicanos oriundos de uma classe média letrada, como José Veríssimo (1857-1916), passavam a advogar um novo papel para a educação nacional. Em A educação republicana (obra publicada em 1890 com segunda edição ampliada em 1906), esse autor defendia a necessidade de um sistema orgânico de educação para o Brasil. Tal obra, todavia, deve ser vista no contexto da Primeira República e do novo papel que os seus defensores atribuíam à educação, sendo esse um período em que muitas reformas foram propostas, mas nem todas foram executadas (Carvalho, 2000).
No primeiro quartil do século XX, em São Paulo, surgiram experiências pedagógicas que direcionaram importantes mudanças na educação brasileira e, de forma singular, na formação profissional, culminando com modificações estruturais nas concepções e nas práticas pedagógicas vigentes1. Nesse sentido, destacam-se as experiências implementadas por Roberto Mange no Liceu de Artes e Ofícios (LAO-SP) a partir de 1924, com a incorporação do ensino metódico, da disciplina na execução do trabalho, da especialização das funções e da seleção dos alunos com base nos fundamentos do taylorismo e da psicotécnica. Essa experiência forneceu a Mange os elementos práticos para levar a cabo outra importante experiência de organização e implementação de práticas pedagógicas no campo da formação profissional, a qual encontrou lugar no Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (Cfesp). Instituído em 1934, o Centro superou o ensino profissional compulsório no Brasil e inaugurou a psicotécnica, passando a selecionar e formar, de modo sistemático, os futuros operários qualificados para o trabalho nas estradas de ferro por meio da aplicação dos princípios da racionalização.
Ainda nos anos 1930, como afirma Bryan (1983), uma série de iniciativas do governo Vargas buscava fortalecer o chamado ensino industrial, bem como visava a responsabilizar o setor empresarial pela formação profissional. No início dos anos 1940, o então Ministério da Educação e Saúde instituiu a Reforma Capanema, produzindo um programa de mudanças educacionais cujo intuito era instituir uma centralidade de orientações, de modo que houvesse uma sistematização do conjunto de procedimentos referenciais para todo o país (Bomeny, 2003). Essa ação pode ser vista dentro do ideário republicano, o qual inspirou as reformas realizadas desde o início do novo regime, em 1889. Nesse contexto, em 1942, é criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) pelo Decreto-Lei nº 4.048 (1942), obrigando a indústria a financiar esse tipo de oferta escolar, garantindo-lhe o controle pedagógico e administrativo do processo de reprodução da força de trabalho e excluindo os trabalhadores dessa gestão.
Juridicamente, apesar de sustentado por recursos compulsoriamente arrecadados das indústrias pelo Estado, com base no conjunto de trabalhadores na folha de pagamento, o Senai passou a ser administrado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), a qual passou a organizar e gerir as escolas de aprendizagem industrial2 em todo o país. À medida que a instituição se estabelecia nos estados mais industrializados do Brasil, do mesmo modo, configurava-se sua oferta formativa às demandas da indústria local com gestão tanto nacional quanto local, por meio das federações industriais, cujos presidentes também comandavam os conselhos regionais do Senai. Essa gestão direta dos empresários tinha como objetivo garantir a sintonia entre oferta e demanda, de forma que a aprendizagem industrial se definia em função das quantidades necessárias e nas áreas específicas da indústria local, podendo, ainda, ser voltada para a formação de menores mediante cursos de média ou longa duração, ou para formação de jovens e adultos por meio de curso de curta duração, ou ambas.
Esses processos de formação eram orientados por uma pedagogia específica muito influenciada pela implementação das séries metódicas ocupacionais herdadas do Cfesp, a qual serviu de inspiração para a organização do Senai e que incorporou novos elementos metodológicos, ao longo do seu desenvolvimento histórico, ao arcabouço do ensino ferroviário modelado por Roberto Mange (Medeiros, 1987).
Com efeito, o Senai tornou-se um importante espaço de ensino profissional, assumindo um papel de destaque na formação da mão de obra industrial brasileira. Segundo Beltrão Marques (2009, p. 175), ao mesmo tempo que inseria os alunos em “[...] um modelo formador disciplinar mais austero, pronto a preencher lacunas no condicionamento almejado, ampliando o conhecimento técnico [...]”, a instituição levava para o chão das fábricas as premissas da organização racional.
Em que pese reconhecer a importância que a instituição alcançou ao longo dos anos, inclusive tanto por parte das empresas industriais como dos trabalhadores, muitas são as contradições que envolvem sua função social histórica, a qual, por vezes, tem recebido uma análise simplificadora. Por isso, buscamos, aqui, problematizar tal análise, apontando algumas nuances presentes no objeto de estudo que se vinculam mais à história regional, razão pela qual evidenciamos alguns aspectos das particularidades da constituição histórica dos modelos de formação do Senai-ES entre 1948 e 1992.
Nesse sentido, destacam-se os trabalhos de autores como Bolonha (1980); Bryan (1983); Medeiros (1987); Fonseca (1986); Cunha (2000); Morais (2003); Frigotto (1983); Muller (2009); Senai-SP (2012); Bennett (2015), que tratam historicamente do processo de formação profissional. Com o intuito de analisar pesquisas dos últimos vinte anos, empreendemos uma busca no site do Portal Periódicos Capes, por meio do descritor ‘senai’, do filtro de assunto ‘educação’ e do período ‘2000-2021’, que resultou em 37 artigos, dos quais a análise dos títulos e resumos nos possibilitou reconhecer 2 publicações que dialogavam com a nossa pesquisa: Teixeira e Lima (2019) e Marques (2009). A leitura na íntegra dos textos nos levou a conhecer outros trabalhos que abordam a especificidade do Espírito Santo: Lima (2007) e Teixeira (2018). A essas visões, modestamente, pretendemos oferecer outros elementos, de modo a complementar as análises sobre o presente objeto de estudo.
Nosso objetivo é analisar a constituição dos modelos de formação profissional no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial do Espírito Santo entre 1948 e 1992. O marco temporal se estabeleceu tendo em vista a instituição do Senai e a implantação das Séries Metódicas Ocupacionais no Espírito Santo (1948), além do declínio desse arcabouço pedagógico e da transição para outras práticas baseadas na pedagogia das competências (1992).
Tendo o materialismo histórico-dialético como pressuposto teórico, a partir das classificações propostas por Gil (2002), qualificamos este estudo como uma pesquisa descritiva-explicativa quanto aos seus objetivos, em razão de promover a descrição das características do objeto e de proporcionar condições favoráveis ao estabelecimento de relações entre variáveis, ao mesmo tempo que explicamos os fatores que determinam ou contribuem para a ocorrência dos fenômenos estudados, que são compreendidos por nós como modelos de formação. Concomitantemente, quanto aos procedimentos técnicos, trata-se de uma pesquisa bibliográfica, por ser desenvolvida com base em material já elaborado, permitindo, assim, a cobertura de uma gama ampla de fenômenos captados nas pesquisas publicadas. Além disso, o estudo consiste em uma análise documental, buscando questionar as fontes, conhecendo sua origem e a relação que estabelecem com seus produtores, bem como construindo interpretações acerca do que têm a dizer explícita ou implicitamente (Gil, 2002).
Tomamos as obras de Bryan (1983), Medeiros (1987), Lima (2007), Senai-SP (2012), Teixeira (2018), Teixeira e Lima (2019), assim como materiais didáticos para formação de instrutores3, relatórios anuais do Senai-ES4, documentos institucionais comemorativos, registros escolares e imagens institucionais como principais fontes para produção desta reconstrução histórica5. Esses documentos materializaram parte do registro histórico das práticas educativas, constituindo-se em documentos institucionais que evidenciam o interesse de seus elaboradores sobre o que deveria ou não aparecer no registro oficial do Senai no estado do Espírito Santo.
A partir das recomendações de Marc Bloch (2001) acerca dos procedimentos da observação histórica, bsucamos analisar as fontes criticamente, interrogando-as sobre o que pretendiam dizer e o que poderia ser captado nas entrelinhas, também levando em consideração não só a presença de determinadas informações mas também a ausência de outras, focalizando as continuidades, assim como as descontinuidades que atravessam a memória produzida, o que revela o modo como a instituição registra e/ou apaga suas ações e ideias ao longo do tempo (Bloch, 2001).
Assim, nossa análise tentou abordar a história para além de seus elementos estáticos e lineares, tomando a memória que se mostrou preservada e/ou destruída conforme os interesses e as relações de poder, pois “[...] tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele [...]” (Bloch, 2001, p. 79).
Nosso acesso aos documentos institucionais do Senai-ES se deu mediante ofício de solicitação à direção regional, que designou o fornecimento dos dados à gerência de educação profissional do departamento regional. Apesar do acervo pouco organizado e disperso, o acesso aos documentos institucionais digitalmente e o contato com empregados que detinham publicações comemorativas e registros fotográficos nos possibilitaram mapear, analisar e comparar documentos institucionais que, pelos dados e informações que forneciam, foram transformados em fontes de pesquisa. A relevância de cada documento foi estabelecida a partir do tensionamento entre os registros históricos da instituição e os processos de implementação dos modelos de formação.
Reconhecemos que, apesar de o passado não se modificar, o estudo sobre ele é algo em constante progresso, aperfeiçoando-se e transformando-se. Assim, cada fenômeno deve ser compreendido e explicado em seu tempo e nunca fora dele, porque esse é o plasma que envolve os processos e produtos humanos e os explica, é o seu lugar de inteligibilidade; é, portanto, fator essencial para a compreensão dos fenômenos históricos. Por isso, as fontes sempre estão embebidas de seu tempo, refletindo as questões de um determinado período histórico (Bloch, 2001).
Esses pressupostos teórico-metodológicos nos conduziram durante todo o estudo, o qual está organizado em duas seções, a saber: ‘a educação profissional no Senai-ES (1948-1992): um olhar para os modelos de formação’, na qual apresentamos nossa compreensão sobre os modelos de formação e como essa categoria se relaciona com as práticas pedagógicas adotadas pelo Senai ao longo do período estudado; e, em seguida, a seção ‘os modelos de formação do Senai-ES’, em que apresentamos nossa elaboração de periodização dos modelos do Senai-ES, sinalizando a instituição do modelo de formação monotécnico para menores (1948-1963); a coexistência dos modelos de formação monotécnicos para jovens e adultos e multitécnicos articulados com educação básica para menores (1963-1981); e o declínio do modelo multitécnico articulado com educação básica para menores e fortalecimento do modelo monotécnico para jovens e adultos (1981-1992).
A educação profissional no Senai-ES (1948-1992): um olhar para os modelos de formação
Um exame estrutural das práticas pedagógicas do Senai-ES deve considerar, principalmente, o período que vai de 1948 a 1992, pois a documentação garimpada e sistematizada por Teixeira e Lima (2019), Teixeira (2018) e Lima (2007) afirmam e reafirmam esses marcos históricos de início e de crise da instituição. Mas, para tanto, faz-se necessário o uso da categoria de análise ‘modelo de formação profissional’, que se constitui como chave explicativa e síntese dos elementos estruturantes da oferta escolar delineada a partir dos elementos históricos que explicam objetivos educativos, conteúdos, metodologia de ensino, público-alvo e duração dos cursos.
Para isso, consideramos necessário apresentar uma especificidade pedagógica que permeia toda prática formativa do Senai. Trata-se do desenvolvimento e da implementação das Séries Metódicas Ocupacionais (SMO) para a formação/preparação da mão de obra industrial, arcabouço metodológico que se estrutura e se define, ao mesmo tempo, como modo de ensinar, conteúdo curricular e material didático.
Segundo o Senai-SP (2012), uma SMO surge a partir de um detalhamento minucioso do conjunto de ações quzze compõe as atividades de uma ocupação profissional e/ou profissão que se pretende ensinar. Nesse processo, o trabalho em determinada área e/ou subfunção profissional é decomposto em funções e tarefas. Essas, por sua vez, são pormenorizadas como operações que, depois, são novamente decompostas em passos e subpassos para os quais são identificados não só procedimentos como também instrumentos e materiais a eles inerentes e requeridos para sua correta execução. As tarefas e operações são classificadas segundo seu grau de complexidade e sua frequência de execução. Esse processo de decomposição é estudado pedagogicamente, para que sejam selecionados os itens que constarão no currículo do curso (Senai-SP, 2012).
Ainda segundo o Senai-SP (2012, p. 63-64),
É oportuno entender por que se utiliza o título Série Metódica Ocupacional (SMO). Série, por ser composta de uma sequência de operações. Metódica, por ser desenvolvida de forma sistemática, das operações mais fáceis às mais difíceis. Ocupacional, por envolver as operações representativas de uma ocupação.
Por meio da análise da ocupação em processos de trabalho, o Senai estabelece sua SMO com quadro-programa (desenho curricular), quadro analítico (sistematização das tarefas e das operações), folha de tarefa (relação das operações na ordem em que devem ser cumpridas), folha de operações (instruções sobre os passos e subpassos a serem executados na realização da tarefa) e folha de informações tecnológicas (conteúdo adicional à tarefa em estudo).
Destaca-se o chamado quadro analítico (Figura 1), o qual, dentre os materiais componentes de uma SMO, explicita, nos seus mais detalhados pormenores, as atividades a serem realizadas pelos alunos aprendizes de tornearia mecânica, o que permite uma visão geral do processo de sistematização e sequência das tarefas e operações e da relação entre elas. Essa metodologia de ensino prático precisa ser relacionada com os demais elementos do processo de formação profissional e, para tanto, operamos a ideia de modelos.
Para Fontes (1997, p. 356), os modelos visam a “[...] representar relações ou funções que ligam as unidades de um sistema [...]”, as quais, por sua vez, são constituídas a partir de inter-relações e entrelaçamentos de elementos, perfazendo um determinado conjunto. Ao construir um modelo, parte-se do pressuposto de que uma generalização prévia deve permitir “[...] uma explicação abrangente de um fenômeno ou grupo de fenômenos” (Fontes, 1997, p. 356). Todavia, ainda que um modelo jamais seja idêntico à realidade observada, ele nos permite “[...] captar a dinâmica - movimento de um conjunto - ou estrutura - das formas de articulação de um grupo de fenômenos” (Fontes, 1997, p. 356).
Com efeito, compreendemos que o estabelecimento dos modelos de formação profissional do Senai-ES, como categoria analítica, possibilitou-nos capturar o movimento da realidade por intermédio de uma elaboração cognitiva, bem como dialogar com nossa base teórica e com os dados empíricos relativos ao que concebemos no bojo dessa categoria analítica. Ao mesmo tempo, o uso dessa categoria viabilizou a realização de uma classificação histórica das práticas educativas que ocorreram no âmbito da instituição, no período estudado. Para fins desta análise, utilizamos as definições de modelos de formação monotécnicos e multitécnicos propostos por Teixeira (2018) e Teixeira e Lima (2019), considerando, entretanto, uma periodicidade diferente6, tendo em vista a historicidade e as particularidades da instituição entre os anos de 1948 e 1992.
Denomina-se modelo de formação monotécnico a preparação profissional para o exercício de uma ocupação industrial específica que deriva de uma ocupação mais ampla, cujos conteúdos direcionam-se às atividades profissionais daquela função específica. Nesse modelo, a carga horária tem duração variável entre 200 e 800 horas, e o público-alvo é formado por jovens e adultos em processo de formação inicial, de requalificação e de aperfeiçoamento profissional. Esses cursos não garantiam, na mesma matrícula e no mesmo espaço formativo, a integração ou a articulação com os processos de escolarização, exigindo, na maioria das vezes, apenas a conclusão da educação equivalente ao atual ensino fundamental (5º ano) para fins de (re)inserção e/ou de permanência no emprego/posto de trabalho. No âmbito do Senai-ES, são exemplos desse tipo de formação monotécnica os cursos de preparação de torneiros, soldadores, ajustadores, caldeireiros e serralheiros, os quais derivam da profissão mais ampla de mecânico geral (Teixeira, 2018).
Por outro lado, o modelo de formação multitécnico visa à formação/preparação do estudante para o exercício de uma profissão principal, mais ampla, ou para agrupamentos de ocupações da mesma profissão. Possuem carga horária com duração entre 800 e 1.200 horas e seu público-alvo são os jovens em processos de formação básica. Da mesma forma que os cursos monotécnicos, esses também não garantiam a integração (na mesma matrícula e no mesmo espaço formativo) com processos de escolarização, mas possibilitavam sua articulação (com duas matrículas em um ou mais espaços formativos), exigindo, para fins de inserção no emprego/posto de trabalho, na maior parte das vezes, a conclusão do primeiro ciclo do ensino fundamental. Seguindo o exemplo dado anteriormente, a formação de mecânico geral (incluindo as ocupações de torneiro, soldador, ajustador, caldeireiro, serralheiro ou combinações entre essas) está no âmbito da formação multitécnica (Teixeira, 2018).
Os modelos de formação do Senai-ES
Para examinarmos o processo histórico de implementação das práticas pedagógicas do Senai-ES, tomamos como fatos relevantes a delinear os marcos temporais do desenvolvimento histórico da instituição em tela, os quais são: a) a operacionalização das atividades na Escola Ferroviária João Neiva (EFJN) e a implementação das SMO no Espírito Santo, em 1948; b) a inauguração da primeira unidade em sede própria, a Escola de Aprendizagem Jerônimo Monteiro (EAJM), localizada em Vitória/ES, e a criação de um centro de treinamento no mesmo espaço para atender à indústria local, que demandava cursos de formação continuada para seus empregados, em 1963; c) a reestruturação e a aprovação pelo Conselho Estadual de Educação do Espírito Santo (CEE-ES), em 1973, da aprendizagem industrial para menores, com formato multitécnico, unindo a habilitação profissional ao núcleo comum de formação, em decorrência da promulgação da Lei nº 5.692 (1971); d) a inauguração da primeira escola com oferta exclusiva de cursos monotécnicos para adultos, sem a formação multitécnica para menores, o Centro de Formação Profissional Jones dos Santos Neves, localizado em Serra-ES, em 1981; e) a inauguração da segunda escola sem aprendizagem multitécnica articulada com educação geral, o Centro de Formação Profissional Hélcio Rezende Dias, localizada em Vila Velha-ES, em 1992 (Teixeira, 2018).
A partir desses marcos, estabeleceu-se uma periodização pela qual apresentamos nossa reconstrução histórica da constituição dos modelos de formação profissional no Senai-ES, bem como sua transição de um período para outro: i) instituição do modelo de formação profissional monotécnico para menores (1948-1963); ii) coexistência dos modelos de formação profissional monotécnicos para jovens e adultos e multitécnicos articulados com educação básica para menores (1963-1981); iii) declínio do modelo multitécnico articulado com educação básica para menores e fortalecimento do modelo monotécnico para jovens e adultos (1981-1992).
A institucionalização do modelo monotécnico de formação profissional para menores (1948-1963) no Espírito Santo é caracterizada pela oferta hegemônica, nas escolas, da aprendizagem industrial para menores, em parceria com a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Esse período tem como principais marcos temporais o início das ações do Senai no Espírito Santo (1948) e a inauguração da EAJM com um centro de treinamento para aperfeiçoamento de empregados da indústria no Espírito Santo (1963).
Um acordo entre o Senai-ES e a CVRD foi estabelecido em 1948 para formação de aprendizes ferroviários na EFJN, em Ibiraçu-ES, que tinha capacidade para formar até 50 alunos por ano. A atuação do Senai restringiu-se ao que ocorria nessa unidade até 1952, quando um outro acordo foi estruturado prevendo o empréstimo de um galpão para instalação de outra escola no município de Cariacica-ES e a incorporação da EFJN. No mesmo ano em que o novo acordo foi assinado, foram iniciadas as atividades de formação na Escola de Aprendizagem Pedro Nolasco (EAPN), com cursos na área de metalmecânica para menores, além dos denominados ‘preliminares’, para nivelamento e seleção de aprendizes. Essa segunda escola possuía capacidade para atender até 250 aprendizes por ano (Senai-ES, 1987a).
O objetivo dos processos formativos nessas duas escolas era preparar aprendizes para atuação em um único posto de trabalho a partir das demandas da CVRD. Por isso, a formação realizada era do tipo monotécnico. Nas escolas, o Senai-ES formava torneiros mecânicos, marceneiros, eletricistas, caldeireiros, torneiros de madeira e ajustadores-torneiros. A produção das duas escolas beirava a 300 matrículas anuais em aprendizagem industrial (Senai-ES, 1955).
Os currículos dos cursos dessa formação do tipo monotécnico eram constituídos por disciplinas da educação geral (Português, Matemática e Ciências), com objetivo de dar a base que os aprendizes precisariam para cursar as disciplinas da formação profissional, sem, entretanto, vinculação com a educação básica; e da formação profissional (Tecnologia, Desenho e Prática Profissional), com enfoque prático e baseado em SMO. O currículo era ministrado por diferentes professores, inclusive na formação profissional (Senai-ES, 1956).
As disciplinas tinham objetivos claramente definidos. Em Português, a finalidade era ‘ensinar o educando a falar com desembaraço e correção’; em Matemática, ensiná-lo a desenvolver o raciocínio utilizando problemas reais ligados ao ofício em aprendizagem; em Ciências, fazer o aluno conhecer os fenômenos e materiais da natureza despertando seu interesse pela observação, pelas experiências e pelo exame das matérias-primas do meio industrial; em Tecnologia, apresentar materiais, processos industriais e ferramentas de trabalho relacionados ao ofício do aprendiz; em Desenho, introduzir o aluno nos conhecimentos essenciais para que compreendesse suas peças de trabalho e, em Prática Profissional, o aluno realizava a série metódica relativa à sua ocupação. Todo o processo de ensino era realizado nos ambientes simulados do Senai-ES, sem qualquer tipo de alternância das atividades práticas na empresa contratante dos menores (Senai-SP, 1992).
Para ingressar na formação profissional monotécnica ofertada nas duas unidades, o aprendiz passava por um processo de seleção, que incluía escolaridade mínima (equivalente ao quinto ano do ensino fundamental), desempenho satisfatório em conhecimentos de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências e destreza manual (Senai-DN, 1984).
O relatório anual de 1955 destacou que:
Durante o ano de 1955 foram elaboradas, aplicadas e corrigidas 580 provas bimestrais e 290 provas finais, além da aplicação e correção de 16 Cartas de Ofícios e 150 testes de seleção, dados estes referentes à Escola de Aprendizagem Pedro Nolasco que funciona em regime das Escolas SENAI. Na Escola de Aprendizagem João Neiva, que funciona em regime ferroviário, foram aplicadas e corrigidas 168 provas de escolaridade e 90 testes de seleção, além da aplicação e correção de 13 cartas de ofícios (Senai-ES, 1955, p. 1).
Para garantir um padrão na formação dos aprendizes, o Senai fazia uso das SMO, como evidenciam os relatórios anuais de 1955, 1956 e 1957, inclusive com a prática de formação de professores e instrutores em outros estados, que tinham como objetivo a apropriação de conhecimentos sobre o método, os currículos e os materiais didáticos, bem como para consolidação do modelo de formação profissional tradicional (Senai-ES, 1956).
Nos relatórios anuais do fim da década de 1950, o Senai-ES afirmou que enviou a São Paulo “[...] o instrutor-chefe e uma professora de Ciências da EAPN” (Senai-ES, 1956, p. 2) para estágio, com intuito de ampliar seus conhecimentos; enviou a Minas Gerais o professor chefe da mesma unidade escolar para um estágio de formação (Senai-ES, 1957), além do orientador de ensino e do assistente-diretor dessa mesma escola para participarem do Seminário de Supervisão dos Programas Escolares em Minas Gerais, no ano de 1958 (Senai-ES, 1958). Os relatórios anuais analisados evidenciam registros similares de forma recorrente.
O intercâmbio de experiências pedagógicas ocorria com vistas a manter uma unidade nacional em todo o processo de ensino. Em 1955, por meio desses intercâmbios de formação, o Senai-ES tomou conhecimento de um tipo de oferta de aprendizagem chamada de ‘frequência alternada no sistema fábrica-escola’. Nele, o aluno/aprendiz permanecia parte do tempo na escola de formação profissional e parte na empresa. Esse sistema foi implantando nos Senai de São Paulo e do Espírito Santo no ano seguinte. Assim, o aluno/aprendiz passou a permanecer na escola Senai nos dois primeiros anos de formação e nas empresas contratantes no terceiro ano (Senai-ES, 1955).
Em 1959, com a criação da Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes), o Senai-ES teve seu Conselho Regional (CR) instituído. Regimentalmente, o presidente da federação é o presidente do conselho regional do Senai. Portanto, a proximidade desse órgão normativo tornou-se um ponto de inflexão no que diz respeito à oferta formativa do Senai-ES, especialmente em função da obrigatoriedade de ter que submeter, para aprovação do conselho regional, seu plano de trabalho e orçamento. A partir da criação da Findes, a instituição passou a ser demandada no sentido de ofertar cursos de aperfeiçoamento para os trabalhadores industriais.
Segundo o Senai-ES (1959), esse ‘fato auspicioso’, referindo-se à criação da Findes, garantiu que os industriais se reunissem sete vezes “[...] durante o exercício, sempre sob a Presidência do Dr. Américo Buaiz” (Senai-ES, 1959, p. 1). As reuniões desse Conselho fomentaram as deliberações de ampliação da oferta de cursos e de programas de qualificação profissional para jovens e adultos, bem como de aperfeiçoamento de seus quadros internos, além de acelerar o processo de construção de uma unidade em sede própria, uma vez que as duas escolas existentes funcionavam em prédios cedidos pela CVRD e tinham parte considerável de sua oferta formativa voltada às demandas do setor ferroviário.
Conforme o Senai-ES (1963, p. 1), o “[...] exercício de 1963 marcou profundas transformações no Departamento Regional do Espírito Santo [...]”, no qual foi empreendida uma ‘reestruturação interna e externa’. A referência diz respeito a três aspectos significativos naquele ano: a) à estrutura, que foi ampliada com a instituição da sede própria localizada em Vitória/ES, incluindo aquisição de equipamentos para oficinas de cursos que não eram ofertados na escola EAPN; b) ao organograma, que foi modificado e ampliado para atender às demandas da nova unidade, que também seria sede administrativa do departamento regional, centro de treinamento para as indústrias e escola de aprendizagem; c) à política de ensino, que teria como objetivos tanto a formação inicial de aprendizes e de jovens e adultos como o seu aperfeiçoamento.
Sobre tais mudanças, o Senai-ES (1963, p. 1) esclarece que, “[...] para maior objetividade no atendimento das necessidades do ensino profissional em todos os seus níveis e áreas [...]”, passaria a manter dois órgãos: a EAJM e o Centro de Treinamento (CT) - Figura 2. A primeira ofertaria cursos e programas para a formação profissional de menores, jovens e adultos, e o segundo, em regime de cooperação com as empresas, levaria o ensino profissional aos que já se encontravam no exercício de atividades industriais. Tanto na EAJM como no CT (figura 2 ), as ações poderiam ocorrer no próprio local de trabalho ou na escola (Senai-ES, 1963).
A análise dos relatórios anuais do Senai-ES nos permite afirmar que os registros buscaram evidenciar, a todo tempo, que seu conteúdo retratava com ‘fidelidade a realidade do ano’ e que, nesse período (1948-1963), institucionalizou-se um modelo monotécnico de formação profissional para menores baseado em SMO, arcabouço pedagógico que se consolidou no Espírito Santo a partir da realização das ações de formação dos menores e de professores e instrutores, os quais fizeram estágios e cursos de preparação em outros estados onde as SMO já estavam consolidadas (especialmente São Paulo e Minas Gerais).
O segundo período, caracterizado pela coexistência dos modelos de formação profissional monotécnicos para jovens e adultos e multitécnicos articulados com a educação básica para menores (1963-1981), é caracterizado pelo financiamento governamental para formação de mão de obra industrial e para seu aperfeiçoamento, principalmente decorrente do processo de industrialização espírito-santense.
O Programa Intensivo de Preparação da Mão de Obra Industrial (Pipmoi), criado em 1963, impulsionou a formação rápida de profissionais para a indústria para adequar os trabalhadores às novas tecnologias e prepará-los para novas atitudes de trabalho e novas relações de produção. Tanto o Senai como as empresas industriais receberam recursos federais para alcançar esse fito (Barradas, 1986).
Desse modo, os cursos rápidos, característicos da formação monotécnica, foram financiados e ampliados nesse período. Tais cursos e programas de qualificação e aperfeiçoamento profissional possuíam cargas horárias que variavam entre 200 e 675 horas, no caso dos primeiros, e entre 10 e 350 horas, nos aperfeiçoamentos. Ambos passaram a ser cada vez mais procurados pelas empresas industriais, segundo relatórios anuais (Senai-ES, 1971).
Ao mesmo tempo que diversificava e ampliava sua oferta formativa, no fim da década de 1960, o Senai executou mudanças, em âmbito nacional, no currículo da aprendizagem industrial, adotando uma formação multitécnica em detrimento da monotécnica, tradicional e característica da instituição, inclusive pela defesa que esta fazia para que houvesse especialização dos aprendizes (Senai-SP, 2002).
Assim, no Senai-ES, a formação dos aprendizes tornou-se multitécnica e a oferta formativa centralizou-se nas ocupações mais amplas e na preparação em Mecânica Geral, Eletricidade, Mecânica de Automóveis e Marcenaria. Todos os programas passaram a ter 3.200 horas no ambiente simulado do Senai e mais 1.980 horas na empresa contratante, totalizando 5.180 horas de formação em aprendizagem industrial.
Esse processo ampliou a formação dos aprendizes para além da preparação monotécnica, expandindo-a com a inclusão das tarefas típicas do ofício e de suas ocupações derivadas, seja por obedecerem ao mesmo processo industrial, seja por serem executadas nas mesmas máquinas, ou ainda por constituírem parte do serviço (Senai-SP, 2002).
Tanto na aprendizagem industrial dos menores como nos cursos de qualificação e aperfeiçoamento profissional para jovens e adultos, a SMO continuou a ser a linha mestra do processo formativo. Segundo o Senai-ES (1965, p. 8), o aprendiz deveria reavaliar “[...] todas as tarefas da série metódica do ofício recebendo também os ensinamentos das disciplinas correlatas, cálculo técnico, desenho técnico e tecnologia”, para que pudesse fazer seu estágio na empresa como ‘elemento ativo de produtividade’. De maneira semelhante, “[...] os demais cursos deveriam ser executados de modo que os alunos cumprissem uma série metódica de tarefas práticas, conforme operações básicas do ofício em qualificação ou aperfeiçoamento” (Senai-ES, 1965, p. 8).
A oferta característica das formações monotécnicas e multitécnicas se consolidou com base na SMO, fazendo com que o Senai-ES se constituísse em principal instituição de formação da mão de obra da indústria e para a indústria no Espírito Santo.
Os grandes investimentos que chegaram ao estado nos anos 1970 exigiram do Senai-ES uma maior diversificação de sua oferta formativa e a ampliação de sua atuação tecnológica e geográfica. As políticas modernizantes e de melhoramento da infraestrutura do estado dos anos 1960 e 19707 pavimentaram o processo de industrialização do período, que inclui a construção do Porto de Tubarão e das usinas de pelotização de minério de ferro da CVRD, instituição da Samarco Mineração S.A., da Aracruz Celulose, da Companhia Souza Cruz Indústria e Comércio, do Grupo Lorentzen, da Billerud-Uddeholm, do Grupo Moreira Sales e da Companhia Vera Cruz Agroflorestal, além da Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST), que começava suas obras em 1973 (Fortunato, 2011).
Para atender à indústria em seus pleitos, especialmente no que diz respeito ao seu aperfeiçoamento interno, em diversos cargos e níveis, a instituição criou unidades de ensino que mantinham cursos característicos da formação multitécnica e monotécnica, financiadas com recursos próprios e, principalmente, com os provenientes do Departamento Nacional, órgão de administração do Senai em todo o território brasileiro.
Segundo o Senai-ES (1970, p. 2, grifo do autor),
No ano passado foi nossa maior preocupação, ajustar nossa metodologia de ensino às exigências do mercado de trabalho capixaba. Assim sendo, toda uma experimentada equipe de jovens técnicos pôs-se a um trabalho de reformulação de nossa sistemática. A inovação fundamental constitui-se na inclusão de adultos nos cursos diurnos de formação intensiva e na abertura de novas vagas nos cursos noturnos de formação, aperfeiçoamento e especialização de adulto bem como o aumento do atual número de vagas para menores aprendizes. Seria, com efeito, inadmissível que no instante em que, em nosso país, grandes parcelas do ‘produto social’ são destinadas a aumentar a capacidade do sistema educacional, tanto sob o aspecto quantitativo, como qualitativo, operássemos abaixo de nossa capacidade efetiva.
Assim, em 1970, foi inaugurado o Centro de Formação Profissional Mário Rezende (CEPMR), em Cachoeiro de Itapemirim e, em 1973, o Centro de Formação Profissional Eurico de Aguiar Salles (Cepeas), em Linhares, que entrou em “[...] plena operação em 1975” (Senai-ES, 1975, p. 10). As duas escolas tinham sua oferta formativa composta tanto por cursos monotécnicos, para jovens e adultos, como por multitécnicos, para aprendizes.
Ainda em 1973, a educação geral supletiva foi incluída no currículo da aprendizagem industrial, nacional e local, possibilitando a elevação da escolaridade e caracterizando o modelo de formação multitécnico articulado com a educação geral. O Parecer nº 105/1973 e a Resolução nº 38/1973 do CEE-ES foram favoráveis e aprovaram o plano de curso da aprendizagem industrial do Senai-ES vinculado à educação geral supletivada8 (Lima, 2007).
De acordo com o Senai-ES (1975, p. 12-13), o novo currículo da aprendizagem industrial multitécnica foi organizado com as disciplinas da educação básica, “[...] Português, Matemática, Ciências, Estudos Sociais, Educação Moral e Cívica, Desenho, Educação Artística e Educação Física [...]”, e da ‘formação especial’, que inclui Tecnologia e Prática Profissional.
O fim dos anos 1970 e início dos anos 1980 foram marcados por uma grande demanda da indústria por trabalhadores qualificados, especialmente em cursos de curta duração, conforme registrou o Senai-ES, em 1980. No mesmo período, a instituição viu-se com problemas financeiros. Buscando solucioná-los, optou por reduzir seu quadro de pessoal, além dos programas de formação que, costumeiramente, eram realizados. Nessa perspectiva, passou a reconsiderar os custos que tinha com a oferta de seus cursos e programas de ‘primeira linha’, como a formação multitécnica com educação básica para aprendizes, principalmente pela sua duração (Senai-ES, 1980).
Outra medida adotada pela instituição foi a implementação do sistema de ensino modular, que tinha como elementos fulcrais a instrução individualizada, a autoinstrução e a formação personalizada. Outros departamentos regionais do Senai haviam inserido esse sistema para aproveitar o tempo de seu pessoal docente e possibilitar a ampliação das matrículas (Senai-ES, 1980).
Desse modo, o período entre 1963 e 1981 foi marcado por uma série de mudanças internas decorrentes do cumprimento de dispositivos legais que vigoraram na ocasião e, em especial, em função do contexto político e econômico. Em todo o estado, é possível notar significativo avanço na oferta das modalidades voltadas à formação e ao aperfeiçoamento dos trabalhadores industriais, focalizando o aumento da produtividade das empresas. Além dessas mudanças, verificam-se importantes implementações curriculares e metodológicas na aprendizagem industrial, tais como a inserção do ensino supletivo, a atualização das SMO e a transformação do programa da aprendizagem industrial de monotécnico para multitécnico com educação geral.
A crescente demanda ocasionada pela intensificação da industrialização do Espírito Santo, somada aos problemas financeiros pelos quais a instituição vinha passando, fez com que o Senai-ES optasse pela oferta de cursos com menor investimento, mais rápidos e que poderiam ser comercializados mais facilmente, dada a industrialização em curso. Assim, em 1981, foi inaugurado o Centro de Formação Profissional Jones dos Santos Neves, cuja oferta formativa compunha-se, exclusivamente, de cursos de qualificação e aperfeiçoamento de trabalhadores industriais, característicos da formação monotécnica para jovens e adultos.
A criação dessa unidade indicou uma ruptura com os processos de formação mais longos, característicos da formação multitécnica articulada à educação básica, que vinham sendo realizados pela instituição nas três unidades de ensino criadas nos anos 1960 e 1970. Conforme asseveram Teixeira e Lima (2019) e Teixeira (2018), esse marco inaugura a fase do declínio do modelo multitécnico articulado com educação básica para menores e do fortalecimento do modelo monotécnico para jovens e adultos (1981-1992).
As matrículas totais do Senai-ES no ano de 1981 evidenciam o impulsionamento e o fortalecimento da formação monotécnica (3.546) em detrimento da formação multitécnica (1.298). Essa assimetria na oferta formativa foi aprofundada ao longo dos anos 1980 e no início dos anos 1990, na medida em que a instituição enfrentava problemas relacionados ao seu financiamento, tanto em nível local como em nível nacional, como se evidenciou em relatório (Senai-ES, 1981).
Objetivando reduzir as despesas com a elaboração e com a atualização das SMO, o Senai-DN descentralizou o procedimento de ‘formulação e reformulação’, que se processava a partir da reunião de instrutores de diversos departamentos regionais até a conclusão da tarefa, o que gerava reclamações por parte dos departamentos regionais que ficavam sem seus instrutores para ministração das aulas. Visando a “[...] solucionar o problema, o Senai-DN resolveu que as SMO seriam elaboradas ou reelaboradas nos diversos departamentos regionais, sempre sob a supervisão e com a colaboração periódica e oportuna de técnicos de outros departamentos” (Senai-ES, 1983, p. 9-10). Em 1983, o Senai-ES atualizou a SMO de Mecânica de Automóveis.
Em 1984, segundo o Senai-ES, o material foi finalizado e entregue ao departamento nacional em “[...] arte final, pronto, para impressão” (Senai-ES, 1984, p. 9). A partir de 1985, os alunos passariam a aprender com o novo material didático atualizado pelos docentes deste estado (Senai-ES, 1984).
No bojo do que trata a Lei nº 7.044 (1982), que revogou a compulsoriedade do ensino profissionalizante de 2º grau, e considerando as dificuldades financeiras que vinha enfrentando9, a partir de 1984, o CEPJSN passou a ofertar a formação multitécnica dos menores aprendizes sem a educação geral, tendo no currículo, exclusivamente, a formação profissional (Tecnologia e Prática Profissional), conforme a ocupação para a qual estavam sendo formados os aprendizes (Senai-ES, 1984, p. 16).
O Senai-ES afirma que
O Centro de Formação Profissional Jones dos Santos Neves é, no Espírito Santo, o único centro do Senai, onde que até então, os cursos de Aprendizagem Industrial não têm equivalência ao ensino de primeiro grau. Nele, os cursos ministrados objetivam, apenas, a formação profissional [...]. O aluno concluinte recebe o certificado de Aprendizagem Industrial ao completar dois anos de estudo, isto é, um ano dentro do Centro de Formação Profissional Jones dos Santos Neves, e um ano de estágio numa empresa industrial como complementação da aprendizagem (Senai-ES, 1984, p. 16).
Esse modelo menos custoso, sem a educação básica, e que ampliava a capacidade de produção da instituição, foi implementado nas novas unidades do Senai-ES criadas em 1986 (Centro de Formação Profissional Albano Franco, em Colatina) e em 1992 (Centro de Formação Profissional Hélcio Rezende Dias, em Vila Velha). As escolas criadas até os anos 1970 continuaram com a aprendizagem multitécnica articulada com educação básica até 1992, ano em que se oficializou a descontinuidade da oferta nesse modelo nas escolas de Vitória, Cachoeiro de Itapemirim e Linhares. O objetivo era elevar a venda de serviços educacionais (Senai-ES, 1992).
Na primeira metade da década de 1990, o Senai passou a rediscutir nacionalmente o seu modelo de formação profissional baseado em SMO, considerando que essas séries haviam sido implementadas para promover e atender à produção taylorista-fordista, num contexto de intensa reestruturação produtiva e de inovação tecnológica. O Senai-DN assumiu o discurso da formação polivalente dos trabalhadores industriais, afirmando que diferentes capacidades seriam exigidas dos trabalhadores na produção pós-fordista, pois, enquanto a produção fordista requeria a capacidade de cumprir tarefas simples e repetitivas, a disciplina, a obediência às instruções, o trabalho individual e isolado e os conhecimentos técnicos especializados e limitados, a produção pós-fordista preconizava a necessidade de o trabalhador ter capacidades de iniciativa, de tomada de decisões, de realização de tarefas variadas e complexas, de identificação e resolução de problemas a partir de uma perspectiva global do processo de trabalho, de adaptação às mudanças e de conhecimentos técnicos transferíveis (Senai-DN, 2013).
Objetivando colocar-se no mesmo compasso que a indústria, a instituição defende, para superar a ‘crise’ do seu modelo tradicional de formação baseado nas SMO e buscar a formação de um trabalhador polivalente, uma formação profissional com base em competências. Desse modo, o Senai passou a discutir, internamente, seu modelo de formação profissional, procurando reformulá-lo para se adequar à produção flexível, com vistas à formação de um suposto trabalhador industrial de novo tipo.
Notadamente, as dificuldades financeiras enfrentadas pela instituição e que vinham sendo percebidas desde os anos 1980, em decorrência da falta de financiamento advinda dos programas de qualificação profissional do governo federal, fizeram com que o Senai repensasse seus modelos de formação profissional, optando pela realização prioritária de cursos mais rápidos com menor custo operacional e que pudessem ser vendidos. Nesse sentido, a oferta da formação do tipo monotécnico de qualificação e aperfeiçoamento de jovens e adultos se impôs em detrimento da formação multitécnica com educação básica para menores, provocando consequências, inclusive, no arcabouço metodológico característico da instituição, ou seja, nas SMO, fundamentalmente em razão do tempo que elas exigiam tanto para sua elaboração como para a execução das atividades práticas que determinavam.
Considerações finais
A análise dos relatórios anuais do Senai-ES entre 1948 e 1992, de seus documentos institucionais nacionais, locais e de São Paulo, bem como as referências bibliográficas que analisamos, nos levam a concluir que, em sua gênese, a instituição estava ligada aos seus modelos tradicionais de formação aqui descritos como monotécnicos e/ou multitécnicos baseados em Séries Metódicas Ocupacionais (SMO), concebidas no contexto da produção taylorista-fordista. Posteriormente, e fundamentalmente no início dos anos 1990, estabeleceu-se uma crise financeira à qual o Senai atribui caráter pedagógico, que provocou o esvaziamento do ‘saber-fazer’ da SMO, que viria a ser substituído pelo ‘saber-ser’ da Pedagogia das Competências, visando, também, a atender à produção flexível.
A análise dos modelos de formação profissional implementados ao longo da história do Senai-ES, no período estudado, apresenta permanências e descontinuidades que combinam, de modo específico, metodologias de ensino, conteúdos, públicos-alvo e objetivos educacionais. Em determinados momentos históricos, os modelos implementados possibilitaram: uma formação especializada focada na destreza manual e na formação de uma única ocupação para as profissionais industriais (formação monotécnica de aprendizes, de 1948 a 1963); um processo de formação um pouco mais abrangente que aquele cujo intuito era, unicamente, desenvolver a destreza manual (formação multitécnica com educação básica para menores aprendizes, de 1963 a 1981), em coexistência com processos monotécnicos rápidos para jovens e adultos; uma formação profissional sem educação básica e encurtada para menores e o predomínio de processos de formação aligeirados para jovens e adultos (declínio do modelo de formação multitécnica com educação básica e fortalecimento da formação monotécnica).
Nos dois primeiros momentos, o Senai-ES operou na lógica de formar para o mercado e, no último período, a partir da mudança no mercado, a instituição buscou se adequar à nova lógica para se manter no ritmo do desenvolvimento industrial do período, ao mesmo tempo que experimentava a redução de seus recursos, optando pelo mercado da formação (Lima, 2007).
Ponderamos que a ‘crise’ dos modelos tradicionais do Senai-ES constituiu-se em discurso necessário às mudanças que este entendia como necessárias, tanto para se adequar à produção flexível como para resolver problemas relacionados ao seu financiamento.
Consideramos que a análise dos documentos nos permite entender a tal ‘crise’ do modelo de formação de caráter multitécnico de cursos gratuitos baseado nas SMO, cujos objetivos educacionais fundamentam-se no ‘aprender a fazer’ dos aprendizes, além de ter possibilitado a constituição de um novo modelo de formação de caráter predominantemente monotécnico de curso pago com base em novas metodologias direcionadas ao desenvolvimento do ‘saber ser’ e do ‘aprender a aprender’, tendo como público os jovens e adultos.
Por fim, afirmamos que, nesse processo, evidenciam-se os deslocamentos tanto do conceito de qualificação para a noção de competências como da ‘formação para o mercado’ e para o ‘mercado da formação’, esvaziando o projeto de um ensino para o emprego e assumindo um ensino para a empregabilidade (Lima, 2007).