Introdução: O que nos motivou?
O conhecimento especializado do professor é designado, pelos diferentes autores que o estudaram, como conhecimento profissional, conhecimento especializado ou conhecimento específico. Após Shulman (1986), o tema foi amplamente estudado em diferentes áreas e níveis de ensino, desde a educação infantil à educação superior. Na área das ciências são vários os estudos, nomeadamente no âmbito da biologia (ver VERDUGO-PERONA, SOLAZ-PORTOLEZ e SANJOSE-LOPEZ, 2017). Mas, quando se trata de identificar os aspetos que devem se incluídos no “pacote” que constitui o conhecimento do professor, os diferentes autores apresentam as suas versões também elas diferentes, apesar de haver aspetos comuns entre si. Apesar dessas diferenças, é comum o uso da designação PCK (Pedagogical Content Knowledge) para a referência a conhecimento do professor. O modelo consensual do PCK foi encontrado após a cimeira do PCK que decorreu em 2012 e surge publicado em 2015, por Gess-Newsome (GESS-NEWSOME, 2015). Este formato de PCK inclui não apenas o conhecimento pedagógico do conteúdo. Trata-se do conhecimento professional do professor no qual está incluído o PCK. Está também presente, no modelo, o processo de reflexão do professor face às estratégias ou face aos resultados com o objetivo de ter sucesso educativo, e como essa reflexão expoleta o uso do conhecimento.
Porém, o modelo consensual do PCK inclui aspetos do trabalho do professor que não são conhecimento, de acordo com o que é defendido pelo grupo de investigação de Huelva que detalhou ao pormenor o modelo do conhecimento especializado do professor de matemática com domínios, subdomínios e categorias. Seduzidos por esta especificidade, resolvemos investigar se os aspetos definidos neste modelo, tão específico da matemática, encontrava algum paralelismo na disciplina da biologia. Este trabalho é parte de uma tese de doutoramento da primeira autora, que caracterizou o conhecimento mobilizado por duas professoras no decorrer do ensino da reprodução das plantas e identificou conhecimento de três subdomínios: Conhecimento da Biologia, Conhecimento Pedagógico do Conteúdo e Domínio das Crenças. O que aqui apresentamos é apenas a caracterização de um dos subdomínios do domínio do Conhecimento da Biologia, o diz respeito ao Conhecimento dos Temas da Biologia.
Enquadramento teórico: O que sabemos sobre o conhecimento do professor?
A partir dos trabalhos de Shulman (1986/1987), surge uma corrente de investigação que estuda exaustivamente as categorias que podem ou não integrar o PCK. Também nas áreas das ciências surgiram trabalhos e modelos que pretendem ilustrar o conhecimento próprio e específico dos professores (GROSSMAN, 1990; DRIEL, VERLOOP e DE VOS, 1998; MAGNUSSON, KRAJCIK e BORKO, 1999; ABD-EL-KHALICK e LEDERMAN, 2000; DIJK e KATTMAN, 2007; PARK e OLIVER, 2008a, b; PARK e CHEN, 2012; LOUGHRAN, BERRY e MULHALL, 2012; ALAKE-TUENTER, BIEMANS, et al., 2013).
Destacamos o trabalho de Grossman (1990), que caracterizou o PCK em quatro domínios: Conhecimento e Crenças sobre os objetivos de ensino do tema, Conhecimento da compreensão, conceções e conceções alternativas dos alunos sobre um conceito em particular dentro de um tema, Conhecimento do currículo e dos materiais associados e Conhecimento de estratégias e representações instrucionais para o ensino de um conceito particular. Posteriormente Magnusson, Krajcik e Borko (1999) e Park & Oliver (2008b) definem também o PCK com alterações a respeito do modelo de Grossman (1990) e definem cinco domínios.
Os autores Park & Oliver (2008a, b), fazem um rearranjo das componentes apresentadas por Magnusson, Krajcik e Borko (1999) ilustrado na figura 1.
Enquanto que o modelo destes autores é vertical, partindo das orientações para o ensino da disciplina, o rearranjo de Park & Oliver transforma-o num modelo pentagonal, no qual os componentes ocupam os vértices da figura e influenciam os que lhe são próximos. Este modelo inclui também os conhecimentos e as crenças dos professores, como o modelo de Magnusson, Krajcik e Borko (1999), mas surgem referências a outros aspetos como a motivação, o interesse e as necessidades dos alunos que, em nosso entender, não constituem conhecimento especializado ou específico.
Os autores Nitz, Nerdel e Prechtl (2010), recuam 30 anos à ideia inicial de Shulman (1986/1987), valorizando o Conhecimento do Conteúdo (Content Knowledge), o conhecimento em si mesmo e as características e o desenvolvimento da própria ciência. Atendem ainda às ideias do conhecimento profissional de Abel (2007) e Park & Oliver (2008a, b) e apresentam o conhecimento profissional do professor com dois grandes domínios: o Conhecimento do conteúdo (CK) e o Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (PCK).
Incluem no CK conhecimento como: (i) conhecimento de factos, conceitos, princípios, estruturas, quadros explicativos, (ii) conhecimento da linguagem científica, das representações simbólicas, verbais ou visuais do tópico e o (iii) conhecimento “além do conhecimento profundo da própria ciência”. No que diz respeito a este último aspeto, os autores incluem o conhecimento sobre as características do conhecimento científico e do seu desenvolvimento (NITZ, NERDEL e PRECHTL, 2010, p. 325). O PCK, segundo os autores, é conhecimento pedagógico geral e é usado para transformar o conhecimento do conteúdo em formas mais fáceis de compreender por parte dos alunos, que Chevallard (1985) refere como transposição didática. Inclui: o (iv) conhecimento sobre como os estudantes compreendem a ciência (integra o conhecimento das concepções dos alunos sobre o tópico e o conhecimento das dificuldades de aprendizagem); o (v) conhecimento de estratégias instrucionais (integra o conhecimento de estratégias instrucionais do tema ou tópico, o conhecimento de diferentes representações do tópico, assim como das vantagens e desvantagens do seu uso no contexto de ensino do tópico específico); e o (vi) conhecimento do currículo das ciências (integra o conhecimento do currículo horizontal, vertical e outros documentos orientadores).
Em 2015, Gess-Newsome apresenta o modelo consensual do PCK desenhado durante a cimeira realizada para o efeito, em 2012. Diferentes investigadores do PCK, entre os quais Julie Gess-Newsome, discutiram o conceito teórico do PCK e o resultado foi o modelo apresentado como figura 2. Este modelo designado como Conhecimento profissional do professor & Competências tem como base uma estrutura que suporta todo o conhecimento do professor. É originado pela investigação, pela formação inicial e pelas evidências das melhores práticas. Este conhecimento é traduzido no conhecimento profissional sobre os tópicos e é ampliado ou filtrado de acordo com as suas crenças e orientações pessoais dos professores, pelo conhecimento prévio ou pelo contexto no qual o professor tem de ensinar. O PCK só é revelado na prática, em sala de aula com os alunos. É um conhecimento em constante ajuste, no qual o conhecimento base é constantemente influenciado pelo contexto de ensino no momento. O modelo consensual inclui também as crenças, o conhecimento prévio e o comportamento dos alunos que amplificam ou filtram os seus resultados escolares.
De acordo com este novo conceito, o PCK passa a representar não apenas o conhecimento sobre didática, como indica o seu nome, mas o conhecimento profissional do professor, sendo que o PCK está nele incorporado.
No âmbito da disciplina da matemática, Autor 2 et al. (2018) apresentam um modelo do conhecimento especializado do professor (MTSK1). Este modelo mostra duas dimensões do conhecimento do professor: a pedagógica e a científica. Na componente científica, domínio do Conhecimento da Matemática (MK), estão contemplados três subdomínios: Conhecimento dos tópicos (KoT), Conhecimento da estrutura das matemáticas (KSM) e Conhecimento da prática matemática (KPM). Na componente didática, domínio do Conhecimento Didático do Conteúdo (PCK), estão também considerados três subdomínios: Conhecimento das características de aprendizagem das matemáticas (KFLM), Conhecimento do ensino das matemáticas (KMT) e Conhecimento dos standards de aprendizagem das matemáticas (KMLS). A terceira dimensão deste modelo é o domínio das crenças. Nele estão inseridas as crenças dos professores relativamente ao conteúdo e relativamente à aprendizagem e ensino da matemática. As crenças constituem o conhecimento pessoal do professor, as suas ideias construídas a partir da sua experiencia que condicionam o seu conhecimento e as suas opções pedagógicas.
Em nosso entender, este modelo é o que melhor caracteriza o conhecimento do professor. Por um lado, só integra aspetos do conhecimento e é específico da disciplina em questão e por outro, está de tal forma detalhado que pode ser útil na identificação de conhecimento no momento de categorizar o conhecimento do professor quando ensina tópicos da biologia, apesar das diferenças entre as disciplinas. Neste sentido, apesar da existência de modelos do conhecimento do professor construídos a pensar no professor de ciência e no conhecimento que o caracteriza, usaremos como instrumento de análise o modelo do conhecimento especializado do professor de matemáticas (MTSK).
Aspetos metodológicos da investigação
Este trabalho é parte de um trabalho mais extenso que pretendeu identificar e caracterizar o conhecimento mobilizado por duas professoras quando ensinaram o tema da reprodução das plantas a crianças do 3º e 6º do ensino básico (homólogo ao ensino fundamental); e construir um modelo do conhecimento do professor quando ensina biologia (BTSK2). Os resultados que apresentamos aqui revelam a resposta a três perguntas de investigação:
i)Que conhecimento dos temas apresentam as professoras quando ensinam a “reprodução das plantas”, a crianças de 3º e 6º do ensino (com aproximadamente 8 e 11 anos de idade)?; ii)Como se caracteriza o conhecimento dos temas, mobilizado em aula, por estas duas professoras ao ensinar este tópico da biologia?; e iii) Como se define o subdomínio do Conhecimento dos Temas em Biologia?.
Como investigadores, abordamos este problema de investigação através do paradigma interpretativo de acordo com Muñoz-Catalán & Autor 3 (2016). É nosso objetivo obter uma compreensão profunda desta construção social que é o conhecimento especializado de dois professores quando abordam um tema da biologia. É uma investigação de natureza qualitativa. O desenho da investigação é um estudo de caso de acordo com Stake (2005), instrumental porque nos interessa aceder ao conhecimento para produzir parte de um modelo de conhecimento.
Os casos foram escolhidos entre os colegas de escola e grupo de disciplina numa dinâmica designada como efeito bola de neve (PATTON, 2002). Destacaram-se por serem as professoras que poderiam contribuir de forma mais significativa para este estudo (NIEUWENHUIS, 2007; PATTON, 2002). Uma das professoras é generalista, ensina todas as disciplinas do currículo do 3º ano de escolaridade (à exceção de inglês) e trabalhava, no momento do estudo, com crianças de 8 anos. A disciplina onde está incluído o tema “reprodução das plantas” é o Estudo do Meio. A outra professora com formação para o ensino das disciplinas de Matemática e Ciências Naturais ensinava, no momento do estudo, a disciplina de Ciências Naturais a uma turma de 6º ano, crianças com 12 anos de idade. Ambas as professoras tinham, à data da recolha da informação, 16 anos de experiência como professoras em escolas públicas, no Algarve, em Portugal.
Os instrumentos de recolha de informação foram principalmente a gravação em vídeo de 14 aulas, tempo durante o qual foi ensinado o tema. Esta escolha foi baseada na ideia de Rochelle (2000) de que a gravação em vídeo é um instrumento que preserva os aspetos de interação, incluindo a conversação, os gestos, etc. A par destas gravações foram realizadas entrevistas antes e depois das aulas com gravação áudio. O tipo de entrevista que escolhemos foi a semiestruturada (ARKSEY e KNIGHT, 1999), que prevê a construção da entrevista com um conjunto de perguntas estruturantes para orientar a conversa.
Como técnica de análise da informação recolhida, optamos pela análise de conteúdo (KRIPPENDORF, 2018; BARDIN, 2012), sendo que as informações foram agrupadas por temas de acordo com o seu significado (Anderson & Spencer, 2007) e mediadas por um instrumento já definido no âmbito do conhecimento especializado do professor de matemáticas (CARRILLO et al., 2018) e pelo próprio modelo em construção (BTSK). A perspectiva metodológica corresponde a uma aproximação Top-down Bottom-up (Grbich, 2013), e permitiu uma dupla análise da informação no decorrer da investigação: recolha e listagem teórica das informações disponíveis (Top-down) e observação e análise das aulas das professoras (Bottom-up), assumindo um aperfeiçoamento contínuo das categorias. A informação foi agrupada em quadros semelhantes ao que apresentamos de seguida (quadro 1) nas quais os excertos foram numerados, indicada a sua localização e a sua tradução numa frase que resumisse o conhecimento observado. No caso que apresentamos trata-se da unidade de contexto número 115, retirada da aula 1, da professora Beatriz (PB) e ocupa as linhas 12 e 13 na transcrição da aula. Traduz o conhecimento da professora sobre o facto da flor ser o órgão reprodutivo das plantas com flor, conhecimento esse integrado no subdomínio do conhecimento dos temas em biologia (KoBT3). Constitui o registo número 52 neste subdomínio. Para garantir a subjetividade procedemos à triangulação de dados e de investigadores (STAKE, 2005).
Resultados: O conhecimento especializado do professor para o ensino dos temas.
Apresentamos uma proposta de caracterização do conhecimento do professor, sobre os temas, quando ensina o tópico reprodução das plantas (representado no trapézio cor-de-rosa da figura 3), denominado Conhecimento dos Temas da Biologia. É composto por cinco categorias:
a). Conhecimento de conceitos da biologia e de exemplos associados;
b). Conhecimento sobre leis, princípios e teorias da biologia;
c). Conhecimento de procedimentos e técnicas de observação em biologia;
d). Conhecimento de modelos relacionados com o conteúdo da biologia;
e). Conhecimento de factos e fenômenos biológicos.
Ao longo da apresentação destas cinco categorias iremos colocar em evidência os aspectos comuns e não comuns com as categorias do subdomínio homólogo da matemática estabelecendo pontes entre os dois modelos.
Categoria: Conhecimento de conceitos da biologia e de exemplos associados.
Os conceitos são uma abstração verbal elaborada a partir da observação de inúmeros casos particulares (WATT e VAN DEN BERG, 2002) e integram o conjunto de conhecimento de um professor de ciências (LOUGHRAN, BERRY e MULHALL, 2012; ALAKE-TUENTER, BIEMANS, et al., 2013). A importância do conhecimento profundo sobre os conceitos por parte do professor de ciências surge nos trabalhos de Van Dijk & Kattmann (2007) e de Park & Chen (2012), não só pela preocupação para que o professor tenha um bom domínio sobre eles, mas que também compreenda os constrangimentos relacionados com a sua aprendizagem por parte dos alunos.
Relativamente às práticas observadas em sala de aula, verificamos o surgimento natural de definições de conceitos. Ao longo do ensino do tema, as explicações foram, muitas vezes, dadas em associação com as definições, mas também acompanhadas de exemplos.
P: E agora vamos fazer dois pontos e dizer o que é que está no embrião. A radícula, caulículo e folhas primárias ou futuras folhas. Nós vamos também descobrir mais tarde que os cotilédones (…) eles são como reservatórios onde tem o alimento que a semente precisa; que a semente precisa para fazer o seu primeiro crescimento. Por agora já terminámos. Damos por encerrada a sessão das experiências e das plantas. [U17] (LUÍS, 2019)
Nesta primeira passagem (unidade de referência número 17, [U17]) é revelado o conhecimento de uma das professoras sobre o conceito de embrião da planta. Ela indica o nome dos órgãos que nele se incluem e acrescenta a função dos cotilédones na semente dizendo que são os reservatórios nutritivos da semente. O extrato seguinte é referente a uma aula de nível mais avançado, 6º ano. Nele, a professora apresenta aos seus alunos como pode ocorrer a polinização das flores.
P: Temos o grão de pólen. O grão de pólen ou pode cair diretamente nesta flor, não é? E chama-se polinização direta ou autopolinização. Ou então pode ser transportado, e já vamos ver como é que pode transportado, até outra flor. E consoante, se for uma flor da mesma planta é polinização indireta se for uma flor de outra planta é polinização cruzada. [U139]
A professora conhece como ocorre a polinização diferenciando a polinização direta, indireta e cruzada. A sua declaração esclarece sobre a definição destes três conceitos quando refere que a polinização direta, também designada por autopolinização, ocorre com os órgãos da mesma flor. A polinização indireta ocorre com flores da mesma planta e a polinização cruzada dá-se entre flores de plantas distintas.
Apresentamos ainda um terceiro extrato que consideramos relevante pelo facto de incluir um exemplo na definição de pseudofruto: “P: E o recetáculo vai dar origem ao pericarpo. Aqui para o caso da maçã. A maçã é considerada por alguns, pelos botânicos um pseudofruto.”[U174].
Conhece e apresenta a definição de pseudofruto, que é assim designado devido ao seu modo de formação excecional. Apresenta uma descrição sintética do conceito e acrescenta um exemplo. Revela o conhecimento que tem de conceitos e de exemplos associados à reprodução das plantas.
Este tipo de conhecimento coincide, na sua essência com a definição usada pela investigadora Escudero-Ávila (2015) para caracterizar uma das categorias do MTSK, a categoria “Conhecimento das propriedades e fundamentos atribuíveis a um conteúdo matemático”, e é com ela que estabelecemos a primeira ponte entre o modelo BTSK e MTSK, figura 4.
Esta categoria, do BTSK, foi designada como "Conhecimento de conceitos da biologia e de exemplos associados" e é descrita como o conhecimento das definições que caracterizam os conceitos biológicos e dos exemplos que ajudam a defini-los, sejam eles apresentados nos manuais escolares ou sejam resultado da trajetória individual dos professores.
Categoria: Conhecimento sobre leis, princípios e teorias da biologia.
Desde o ponto de vista da biologia, existem as propriedades específicas que permitem definir os conceitos (como na matemática) e já contempladas na categoria anterior, mas também existem as propriedades mais globalizantes que constituem as teorias, as leis e os princípios. As leis são facilmente aceites se nos referirmos à ciência, mas geram polémica se pretendermos justificar a existência de leis na biologia. Lorenzano (2011), expõe os argumentos de diferentes filósofos e investigadores a favor e contra a aplicação da designação “Lei” nesta disciplina aprofundando o conceito da própria natureza das leis. São vários os autores e argumentos usados para justificar os pontos de vista sobre o uso da designação “Lei” e da sua aplicação à biologia. Tendo presente que é um tema sensível, considerámos as leis em biologia como “regularidades do mundo natural que são conhecidas por nós e que foram colocadas em apropriadas formas linguísticas (enunciados).” (LORENZANO, 2011, p. 59), mesmo que possam eventualmente não cumprir todos os critérios e não constituam uma lei fundamental.
Entre a teoria e um princípio sobressai a diferença entre o número de factos que abraça, sendo que um princípio envolve um grupo mais limitado (HARLEN, 2003). Considerando a importância dada, em ciências, às leis, teorias e princípios, entendemos a criação de uma categoria para as mesmas que designamos por: Conhecimento sobre leis, princípios e teorias da biologia e caracterizamos como sendo o conhecimento, do professor, relativamente a leis, princípios e teorias relacionadas com tema em estudo. As evidências deste conhecimento foram encontradas na seguinte passagem.
P: A semente o que precisa é de água, agora de início, de humidade, para começar a germinar. Depois se quiserem plantar o feijão põem um bocadinho de terra e põem lá o feijão já... Mas atenção à água. Não podes colocar muita, mas com pouquinha também não é suficiente, é preciso um mínimo para que a semente consiga germinar completamente. [U184] (LUÍS, 2019).
Neste caso a professora sabe que a água é a condição necessária para a germinação, mas também que a quantidade de água pode condicionar a ocorrência do fenómeno. Indica claramente que é necessária a presença de uma quantidade mínima de água para que o processo de germinação se conclua. Esta declaração revela o seu conhecimento sobre a Lei de Leibig o Lei do Mínimo que diz, em traços gerais, que o fator deficitário, ou aquele que está em menor quantidade, condiciona o evento. Pela sua importância no momento de explicar ou justificar a definição de um conceito também esta categoria está próxima, em definição, da categoria “Conhecimento de propriedades e fundamentos atribuíveis a um conteúdo matemático” do modelo da matemática, como ilustra a figura 5.
A categoria, do MTSK, integra o conhecimento que pode ser adaptado a duas categorias do BTSK, como ilustram as figuras 4 e 5. Mas, o conhecimento que comporta não se esgota aqui. Esta categoria inclui ainda as justificações que atribuem significado aos conteúdos, as explicações e demonstrações. Em biologia, as demonstrações têm uma natureza muito prática e manipulativa, associada à observação e a materiais específicos. Por este motivo, o conhecimento de demonstrações não foi incluída em nenhuma das categorias do BTSK já apresentadas, mas sim noutra categoria que apresentaremos já de seguida e denominamos por Conhecimento de procedimentos e técnicas de observação em biologia.
Categoria: Conhecimento de procedimentos e técnicas de observação em biologia
O conhecimento em biologia está frequentemente associado ao conhecimento sobre o trabalho prático, mesmo que nem sempre se refiram as distintas possibilidades dos trabalhos. Hodson (1998) define este tipo de atividades e Leite (2001) faz uma caracterização bastante detalhada de cada uma delas. Os trabalhos práticos são as atividades em que os alunos estão ativamente envolvidos podendo esta participação ser psicomotora, intelectual ou afetiva (LEITE, 2001). Integra-se o trabalho de laboratório, que implica a utilização de material de laboratório e trabalho de campo, que pressupõe a saída ao exterior. Ambos os trabalhos, de laboratório ou de campo, podem ser desenvolvidos sob uma abordagem experimental e ser cumulativamente classificados como trabalho experimental (HODSON, 1998). De acordo com as características enunciadas sobre o trabalho prático, incluímos aqui as atividades práticas desenvolvidas pelos professores para demostrar algo aos alunos: as demonstrações (MAGNUSSON, KRAJCIK e BORKO, 1999).
Se refletirmos sobre o conhecimento que um professor deve ter relativamente ao trabalho prático e atividades demonstrativas, podemos perguntar-nos sobre se conhece o funcionamento do microscópio, se sabe em que circunstâncias deve usar a lupa binocular em vez do microscópio, em que momento pode recorrer a uma chave dicotómica, como se procede na reprodução por estaca ou que corante deve usar para pintar as paredes de uma célula vegetal; para indicar só algumas das perguntas possíveis.
Na passagem seguinte, revela-se o conhecimento sobre o microscópio.
E: (…) Estava a pensar, também hoje, pôr aquilo [anteras maduras] do microscópio mas com este tempo assim…
e: Vocês não têm um elétrico?
E: Não. E o que estava ali elétrico ainda era pior que os outros. Hum, não sei. Logo vejo a melhor forma de me orientar.. [U209], (LUÍS, 2019).
É evidente que o professor sabe usar o microscópio e conhece a sua capacidade para aumentar e tornar perceptível uma antera madura. Por outro lado, é claro o seu conhecimento sobre a limitação dos instrumentos disponíveis na escola, pois na sua maioria têm espelho e não uma lâmpada.
Quando se refere ao estado do tempo e indica que pode limitar a observação plena que pretende, revela esse conhecimento profundo do instrumento. Reconhece que a luz que chega ao espelho dos microscópios pode não ser suficiente e que os microscópios elétricos, com lâmpada incorporada, desempenham melhor essa função.
Esta categoria é designada como Conhecimento de procedimentos e técnicas de observação em biologia e inclui, como o nome indica, o conhecimento sobre os procedimentos, técnicas e instrumentos de observação. A busca de similaridades com o modelo MTSK, leva-nos a indicar uma outra categoria pelo caráter mais prático: “Conhecimento dos procedimentos matemáticas associados a um determinado conteúdo”, figura 6.
Também esta categoria, como acontece na sua homóloga da matemática, se refere ao saber fazer, às competências práticas, como e quando se pode utilizar ou fazer determinado procedimento.
Categoria: Conhecimento de modelos relacionados com o conteúdo da biologia.
Os modelos de célula, de planta completa ou de flor são representações usadas na biologia para ilustrar o objeto de estudo. Uma das professoras observadas por nós recorreu ao modelo de flor para ensinar as suas partes constituintes: “A: Que flor é esta, professora; P: Não sei identificar... Mas também não têm que representar flor nenhuma! É um esquema que tem as principais partes da flor, para identificar e estudar. Vá vamos lá.” [U117]
A professora não reconhece que a planta que serviu de inspiração à elaboração do modelo apresentado no manual escolar, mas confirma que se trata de um modelo. Nas suas palavras: um esquema. Acrescenta que é uma ferramenta para facilitar o estudo por parte dos alunos e a compreensão dos conceitos.
Outra evidência do mesmo conhecimento foi encontrada na mesma aula. Mas, desta vez, trata-se de um modelo do ovário em corte vertical: “P: Sim é o ovário, é um corte do ovário, um corte assim e depois vê-se aqui os óvulos.” [U135] (LUÍS, 2019).
Apesar de ser um outro modelo, de um órgão diferente da planta, mantém-se o padrão, um corte vertical para que possa ver-se o seu interior, um órgão convertido no esquema para facilitar a compreensão.
Esta categoria encontra uma relação muito próxima com a categoria "Conhecimento dos registos de representação associados a um conteúdo matemático” do MTSK, na medida em que esta também se refere ao "conhecimento sobre a existência de distintos registos nos quais se pode representar um determinado conteúdo (...) assim como o conhecimento dos símbolos e vocabulário adequado associado às ditas representações (...)", Escudero-Ávila (2015), figura 7.
Nesta categoria incluímos o conhecimento do professor relativamente aos modelos existentes, o conhecimento da simbologia e vocabulário associado às representações, mas também das limitações que lhes são inerentes a este tipo de representação. É importante referir ainda que nesta categoria pretende-se analisar o conhecimento do professor relativamente aos modelos e representações do conteúdo e não compreender se é conhecedor da sua potencialidade como recurso didático.
Categoria: Conhecimento de factos e fenômenos biológicos;
No documento de 2007 da Academia Nacional das Ciências (NAS4), a palavra fenómeno é recorrente, assim como "fenómeno natural" ou "evento". Os fenômenos ou processos biológicos consistem na sequenciação de factos, dados ou evidências resultantes das observações efetuadas e às quais se atribui significado e validade (NOVAK e GOWIN, 1996), relacionados através de argumentos como “quando” ou “como”.
Encontramos evidências deste conhecimento no próximo excerto: “P: O musgo não dá flor, é uma planta que não dá flor. Os fetos também, não dão flor. Mas as roseiras dão flor, os nenúfares, a papoila que vimos no texto hoje de manhã, dá flor. A maior parte das plantas que nós conhecemos dão flor”. [U30], (LUÍS, 2019)
É evidente o seu conhecimento sobre estes factos. O facto do musgo e do feto serem plantas sem flor e as rosas, os nenúfares e as papoilas fazerem parte do grupo das plantas com flor. Na passagem seguinte a evidência é relativa ao conhecimento de um fenómeno e de outro facto.
P: Chiu! Vamos lá ver o que é que acontece. Quando os grãos de pólen chegam ao estigma, estão a ver? Chegam aqui ao estigma, o próprio estigma tem uma substância pegajosa que pega os grãos de pólen. Eles vão começar a germinar, a germinar, a desenvolver, a crescer. Forma, a que se chama, o tubo polínico, que é isto, até ao óvulo, do qual sai a célula sexual masculina que se encontra depois com a célula sexual feminina que está dentro do óvulo. Portanto a fecundação é a união da célula sexual masculina com a célula sexual feminina. [U152] (LUÍS, 2019).
Neste troço, a professora revela o seu conhecimento sobre o fenómeno da germinação do grão de pólen e detalha o que ocorre desde que este cai no estigma da flor até que as células sexuais masculinas, contidas no tubo polínico, encontram o óvulo. Todo o processo é detalhado até culminar na fecundação. Quando se refere à fecundação revela também o seu conhecimento sobre este facto: “a fecundação é a união da célula sexual masculina com a célula sexual feminina”. Ao longo das aulas, encontramos evidências relativamente ao conhecimento sobre a sequência de acontecimentos que ocorrem na flor até à fecundação: polinização, germinação do grão de pólen e finalmente fecundação. Este conhecimento é integrado noutra categoria a que chamamos Conhecimento de factos e fenômenos biológicos e integra o conhecimento de factos e fenômenos associados ao tema da biologia.
Os processos biológicos são próprios da biologia e, por esse motivo, não têm correspondência com a disciplina da matemática ou com o modelo MTSK. Reforçamos esta ausência de relação através da figura 8.
Não obstante, os factos, mencionados aqui também estão presentes na matemática e têm o mesmo atributo: são irrefutáveis. Seja na matemática ou nas ciências, um facto é uma afirmação aceite como verdadeira que não é questionável, porque são assumidas como tal.
Conclusões e considerações finais
A análise das observações das aulas permitiu o encontro de cinco categorias dentro do subdomínio referente ao Conhecimento dos Temas da Biologia (KoBT): Conhecimento de conceitos da biologia e de exemplos associados, Conhecimento sobre leis, princípios e teorias da biologia, Conhecimento de procedimentos e técnicas de observação em biologia, Conhecimento de modelos associados ao conteúdo da biologia e Conhecimento de factos e fenômenos biológicos. Estas categorias tomam forma através do contraste com a literatura de investigação e é possível visualizar um paralelismo entre o modelo do Conhecimento Especializado do Professor quando ensina tópicos da Biologia (BTSK) e o modelo da matemática (MTSK), no que diz respeito a este subdomínio.
A categoria Conhecimento dos conceitos da biologia e de exemplos associados é descrita como o conhecimento das definições que caracterizam os conceitos biológicos e os exemplos que ajudam a defini-los, e está fortemente relacionada com a categoria Conhecimento das propriedades e fundamentos atribuíveis a um conteúdo matemático, pois ambas integram as propriedades específicas que permitem caracterizar um objeto, mas não é a única. Outra categoria do BTSK está associada a esta do MTSK, a categoria Conhecimento sobre leis, princípios e teorias da biologia que inclui, como o nome indica, o conhecimento das leis, dos princípios e das teorias relacionadas com o tema reprodução das plantas (quadro 1). A razão que nos levou a separar em duas categorias diferentes do conhecimento, que no modelo da matemática está na mesma categoria, prende-se com a grande importância atribuída pela comunidade cientifica às leis, teorias e princípios.
As demonstrações, incluídas no modelo da matemática nesta categoria (Conhecimento das propriedades e fundamentos atribuíveis a um conteúdo matemático), ficaram integradas noutra categoria do KoBT distinta das duas já aqui referidas, juntamente com o conhecimento relativo ao restante trabalho prático. Referimo-nos à categoria Conhecimento de procedimentos e técnicas de observação em biologia. Na disciplina de biologia, o estudo está muito associado à manipulação de instrumentos que, pela sua complexidade, obrigam ao conhecimento de técnicas específicas. Por isso, no KoBT definiu-se uma categoria específica.
Esta categoria, Conhecimento de procedimentos e técnicas de observação em biologia, é caracterizada como o conhecimento dos procedimentos, das técnicas e dos instrumentos de observação, e diz respeito ao saber fazer, à atividade prática. Tem, devido ao conhecimento que integra, grande proximidade com a categoria Conhecimento dos procedimentos matemáticos associados a um determinado conteúdo do modelo de Carrillo et al. (2018).
O conhecimento de modelos enquanto representações de conceitos da biologia surge na categoria Conhecimento de modelos associados ao conteúdo da biologia e inclui o conhecimento do professor a respeito dos modelos, esquemas ou representações, assim como dos termos associados, que servem como ferramenta facilitadora da compreensão de um conceito, mas não da sua potencialidade enquanto recurso didático. Encontra uma relação direta com a categoria Conhecimento dos registos de representação associados a um conteúdo matemático e apresentam a mesma definição.
A última categoria do KoBT apresentada: Conhecimento de factos e fenômenos biológicos, consiste no conhecimento da sequenciação de factos, dados, evidências resultantes de observações em biologia e às quais se atribuem significados, sem correspondência no modelo homólogo.
Que implicações e aplicações tem a caracterização do conhecimento do professor relativamente ao conteúdo? Enquanto investigadores e professores importa-nos refletir sobre o conhecimento que devemos ter para ensinar este tópico da biologia, que aspetos devem ser considerados. É a tomada de consciência das diferentes vertentes que integram o conhecimento dos tópicos e remete-nos a uma preparação de aula mais direcionada a um processo de autoanálise contínuo.
O impacto pode ser maior se considerarmos a sua aplicação à formação inicial de professores ou aos programas de formação contínua ou desenvolvimento profissional. A formação inicial e contínua de professores, bem como os programas de desenvolvimento profissional devem ter em conta as diferentes vertentes do conhecimento. Neste artigo, em particular, referimo-nos ao conhecimento dos tópicos, que é manifestamente insuficiente, mas é um ponto de partida de reorganização dos programas de formação.
Atendendo ao anteriormente exposto, é evidente a necessidade de publicar o modelo do Conhecimento Especializado do Professor quando ensina Tópicos da Biologia (BTSK) e apresentar os restantes subdomínios que o compõem. Só assim é possível a visão completa do conhecimento mobilizado pelos professores durante o ensino do tema da reprodução das plantas.