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Revista de Educação Pública

Print version ISSN 0104-5962On-line version ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.30  Cuiabá Jan./Dec 2021  Epub Aug 13, 2021

https://doi.org/10.29286/rep.v30ijan/dez.12795 

Artigos

Epistemologias do sul e educação intercultural: contribuições da formação-ação-intercultural em Cuiabá-MT

Epistemologies of the south and intercultural education: contributions of intercultural training-action in Cuiabá-MT

Khellen Cristina Pires Correia SOARES1 
http://orcid.org/0000-0001-8413-250X

Beleni Salete GRANDO2 
http://orcid.org/0000-0002-5491-2123

Jonathan  STROHER3 
http://orcid.org/0000-0003-2274-8637

1Pós-Doutora em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Docente efetiva do Instituto Federal do Tocantins (IFTO).

2Pós-Doutora em Antropologia Social (2011) pela Universidade Federal de Santa Catarina. Docente efetiva da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

3Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).


Resumo

Tecemos contribuições à temática Direitos Humanos e Interculturalidade em tempos de pandemia, dialogando com os estudiosos da decolonialidade e interculturalidade crítica. A leitura da realidade pautada na pesquisa-ação traz as falas de participantes da formação contínua Ikuia-Pá: história e cultura bororo na perspectiva da educação intercultural na primeira infância. Neste contexto formativo nasce o “grupo-pesquisador” e a sistematização da metodologia “formação-ação-intercultural” que pretende descolonizar fundamentando-se em epistemologias do Sul em contraposição à colonialidade do saber/conhecimento. Conclui-se que as formações de professores demandam outras proposições teóricas que possam criar novas pedagógicas capazes de promover a educação intercultural crítica na escola.

Palavras-chave Educação Intercultural; Epistemologias do Sul; Formação de Professores; COEDUC

Abstract

We make contributions to the theme Human Rights and Interculturality in times of pandemic, dialoguing with scholars of decoloniality and critical interculturality. Reading the reality based on action research brings the speeches of participants in the Ikuia-Pá continuing education: Bororo history and culture from the perspective of intercultural education in early childhood. In this formative context, the “researcher group” was born and the systematization of the “training-action-intercultural” methodology, which seeks to decolonize based on epistemologies of the South as opposed to the coloniality of knowledge. It is concluded that teacher training demands other theoretical propositions that can create new pedagogies capable of promoting critical intercultural education at school.

Keywords Intercultural Education; Southern Epistemologies; Teacher Training; COEDUC

Introdução

Tendo por referência a temática dos direitos humanos e a educação intercultural, especialmente neste contexto de pandemia, em que as crianças pequenas, em Cuiabá-MT, há um ano, perderam os espaços socializadores da escola – creches e centros de educação infantil – o debate que trazemos visa dialogar com as vozes dos educadores destes espaços fundamentais de educação. Ao mesmo tempo, voltamo-nos à reflexão sobre como os saberes/conhecimentos da escola implicam outras possibilidades epistemológicas interculturais.

Consideramos neste diálogo que, “El mundo de hoy, está confrontado a grandes desafíos que van desde la preservación de nuestros ecosistemas, hasta cómo imaginar de vivir juntos una cohabitación social y cultural regida por un mínimo de respeto y de dignidad para todos”. (MARÍN, 2007, p.478).1

Vivemos tempos em que se reconhece, no cotidiano da sociedade brasileira, crescentes manifestações de reforço de desigualdade e de discriminação social e politicamente concebidas, que levaram e ainda levam à morte principalmente pessoas historicamente subalternizadas. Buscamos, aqui, falar de um movimento de resistência crível, no campo da construção de saberes alternativos, que possibilitem pensar criticamente teorias e metodologias estratégicas para a educação intercultural numa proposição crítica à colonialidade e à linha abissal de Boaventura de Souza Santos.

Dizemos resistência crível por, necessariamente, acreditarmos nos princípios estabelecidos pela educação intercultural em seu viés crítico, ou seja, cremos na perspectiva assumida e conceituada por Catherine Walsh (2009): a Interculturalidade Crítica. Essa perspectiva se apresenta como uma possibilidade de estabelecer uma leitura de mundo que perpasse pela compreensão da diferença e que fomente a reflexão mais complexa do vivido partilhado pelos corpos-marginalizados historicamente no Brasil.

A educação intercultural a qual nos referimos busca não apenas a apreensão de culturas diversas em seu recorte funcional, mas, sobretudo, ocupa-se da tentativa de ler as significações dadas às ações que assumem os diferentes atores em cada contexto na estrutura-colonial-racial. Assim, desvela-se a realidade social vivida ao mesmo tempo em que se constroem outras práticas sociais que potencializam o reconhecimento de si e das resistências fundamentais para a luta dos direitos e da humanização da sociedade.

Compreender a importância de se construir saberes no campo da educação intercultural é importante para promover outras e novas possibilidades de interação entre os corpos em relação na escola, especialmente os que vivem cotidianos de luta e que estão expostos à colonialidade do saber, do ser e do poder, que em nível local estão vulneráveis ao processo de mercantilização global da vida imposto pelo capitalismo atual. Portanto, alinhado ao processo de interculturalidade crítica que Walsh (2009, p. 4) define, no qual saberes e conhecimentos estão implícitos, no:

[...] proyecto político, social, ético y epistémico -de saberes y conocimientos-, que afirma la necesidad de cambiar no sólo las relaciones, sino también las estructuras, condiciones y dispositivos de poder que mantienen la desigualdad, inferiorización, racialización y discriminación. (WALSH, 2009, p.4)

No COEDUC, nos referenciamos em Walsh (2009) para compreendermos que a Interculturalidade Crítica, não alcançada na perspectiva de transformação social como um projeto político de mudanças nas estruturas sociais de poder, pode ser mobilizada a partir da Educação Intercultural, revendo os saberes/conhecimentos que perpassam as práticas educativas. José Marín (2017) subsidia a compreensão de que a Educação Intercultural é uma posição política e crítica que só pode ser realizada quando intencionalmente nos propomos a romper com o eurocentrismo construído historicamente no contexto colonial e que permitiu ter suas próprias culturas como referência de hegemonia, em suas palavras: “[...] de constituir se como la única perspectiva del conocimiento científico, al punto de constituir la norma y la referencia, en términos económicos, sociales, políticos, culturales e ideológicos.” (MARÍN, 2017, p.482).

Com esses pressupostos, e pautados na crítica da colonialidade do poder e do conhecimento, que atravessa e subjuga as demais formas de conhecer e produzir culturas e educações, elaboramos uma proposta metodológica respaldada nos estudos decoloniais e no viver, com as diversas formas de ser, diferentes identidades e possibilidades, produtoras de culturas nos espaços escolares. Cultura no sentido de Freire (2008):

[...] a cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como o resultado de seu trabalho. De seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isso crítica e criadora, e não como uma justaposição de informes ou prescrições “doadas”. (Grifo do autor. FREIRE, 2008, p.117).

Com essa compreensão, o grupo de pesquisa Corpo, Educação e Cultura – COEDUC2, na Universidade Federal de Mato Grosso, assume a centralidade dos corpos nos processos de formação humana, promovendo ações de pesquisa-ensino-extensão, que possam potencializar de forma conflitiva a compreensão do corpo-pessoa que em sua totalidade (gênero, raça-etnia, estrutura socioeconômica, familiar, religiosa, física e outras identificações individuais e coletivas) é tecido nas práticas sociais que o educam mediado pela cultura. Freire (2009) nos auxilia a pensar que:

[...] negar o corpo é negar o que somos, é negar a própria vida. A escola nega o corpo, a religião nega o corpo, o quartel, o hospital, as instituições de modo geral, negam o corpo que somos. Se eu passar a vida negando o corpo que sou, como serei? Doente? Portanto, é preciso ensinar a ser corpo. (FREIRE, 2009, p. 158).

Assim, é pela inversão e pelo desvelamento da cultura escolar que desrespeita e desvaloriza os corpos-pessoas historicamente, desqualificando-os em suas humanidades, que assumimos a centralidade do corpo no trabalho intencionalmente proposto nas formações voltadas à Educação Intercultural para corpos-professores.

Com as diversas práticas formativas já realizadas pelo grupo de pesquisa nesta perspectiva decolonial e intercultural, no presente texto, estaremos trazendo um breve recorte de uma das formações de professores voltada à educação intercultural tendo como foco a história e a cultura bororo para aprofundarmos a compreensão dos referenciais de análise pautando as epistemologias do Sul. Para tal, trazemos algumas falas de educadores, coletadas por meio de questionário aplicado no início da formação, com participantes do Projeto “Ikuia-Pá”: história e cultura Bororo na perspectiva da educação intercultural na primeira infância (2018-2019), para trabalharmos os conceitos de Boaventura de Souza Santos especialmente na sua obra O fim do império cognitivo - a afirmação das epistemologias do Sul, de 2019.

A coleta dos dados é construída de forma dialógica com os participantes em cada fase do processo formativo, recorrendo aos referenciais da pesquisa-ação, para a qual o grupo de pesquisa coletivamente vai tecendo tanto os recursos didáticos quanto as estratégias de coleta de dados que subsidiam a própria formação e a formação dos colegas das unidades escolares com os quais refletem sobre as experiências.

O COEDUC tem respaldado suas ações-formativas voltadas às epistemologias indígenas tendo como referência pesquisas realizadas com o povo bororo e a parceria de José Marín, que, como pesquisador colaborador do grupo, em Cuiabá-MT, participa da formação de 2013 sobre a história e a cultura indígenas. Desta primeira ação formativa, concluímos que: “Nessa relação de ensinar-aprender efetivada no corpo, são geradas novas demandas cognitivas, nas quais o corpo que aprende é um corpo influenciado pelo encontro com o Outro, tendo seu potencial de agir aumentado e sua capacidade de se fazer sujeito que aprende.” (EICHHOLZ, 2015, p. 106).

Dessas aprendizagens em diálogo permanente com dois pilares – epistemologias indígenas e educação intercultural –, o COEDUC promove uma dinâmica cujos corpos-formadores e corpos-professores tecem o “grupo-pesquisador” que em 2019 sistematiza a metodologia criada: “formação-ação-intercultural”:

A formação-ação-intercultural [...] pauta-se em uma prática pedagógica intencional e planejada para ações que garantam na formação, a desconstrução de práticas educativas coloniais e racistas, além de promover a descentralização das relações autoritárias e hierarquizadas que colocam pessoas com diferentes experiências como desiguais e inferiorizadas – como a relação professor-aluno, por exemplo. A formação visa, assim, possibilitar a construção coletiva e individual de identidades que possam ser valorizadas e reconhecidas como potencial de saber e referência para a produção de conhecimentos interculturais e interdisciplinares. (GRANDO, 2019, p.19).

Neste processo formativo no qual tecemos uma metodologia própria, trazemos algumas falas dos questionários respondidos por 393 profissionais da Educação da rede municipal de Cuiabá-MT, coletadas no início da formação-ação continuada Ikuia-Pá. A quinta edição da formação contínua realizada pelo COEDUC, voltada para professores da Rede Pública de Ensino em Cuiabá, teve como foco a história e a cultura indígenas, enquanto a terceira foi especificamente sobre o povo bororo; as formações são feitas em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá (SME-Cuiabá).

Esta formação contínua teve como centralidade os conteúdos específicos sobre a história e a cultura bororo, a fim de atender a obrigatoriedade da Lei 11.645/08, que versa sobre os povos indígenas do Brasil. Para essa ação formativa, delimitamos os estudos sobre e com este povo ameríndio por consideramos sua ancestralidade territorial fundante na constituição da história e da cultura cuiabanas até a atualidade.

Descolonizando saberes: epistemologias do Sul e a Educação Intercultural

A legislação brasileira que inclui os povos indígenas, a exemplo da Constituição Federal de 1988, como ocorreu em outros países nesta década, resultam dos movimentos políticos dos povos ancestrais que lutam por reconhecimento de seus direitos e respeito às suas formas próprias de ser, educar, viver. No entanto, essas lutas traduzidas e apropriadas pelo poder do capitalismo em nível global, levam, especialmente para as políticas educacionais, uma interculturalidade funcional que se atrela à colonialidade já estruturada nas entranhas das práticas sociais e também na escola. (WALSH, 2009).

Em oposição a essa perspectiva funcional, a formação se fez nas vivências interculturais fomentadas no e pelo grupo de pesquisa pelas ações de extensão, ensino e pesquisa com diferentes grupos étnicos, de gênero, geracional e religioso, a fim de estabelecer uma escuta sensível das impressões e sentimentos, para propor uma ação formativa que tencionasse o que Santos (2019) considera epistemologias do Norte, ou seja o conhecimento ancorado nas premissas epistemológicas do pensamento crítico eurocêntrico e do pensamento conservador eurocêntrico, desvelando outra epistemologia, a epistemologia do Sul3. Estas

[...] referem-se à produção e a validação de conhecimentos ancorados nas experiências de resistência de todos os grupos sociais que têm sido sistematicamente vítimas da injustiça, da opressão e da destruição [...]. Trata-se de um sul epistemológico, não geográfico, composto por muitos suis epistemológicos que têm em comum o fato de serem conhecimentos nascidos em lutas contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. São produzidos onde quer que ocorram essas lutas, tanto no norte geográfico como no sul geográfico (SANTOS, 2019, p. 17).

Segundo o autor, as epistemologias do Norte também se fazem presentes nas “pequenas Europas” que são frequentemente dominantes na América Latina, no Caribe, na África, na Ásia e na Oceania, mas também reconhece que o Sul epistemológico se encontra igualmente no norte geográfico (Europa e América do Norte), reconhecendo-o nas lutas dos movimentos sociais.

Para pautar a compreensão acerca de lugares sociais marginalizados cuja possibilidade de vida para todos é fragilizada, Santos (2019) nos apresenta uma outra leitura da realidade como possibilidade de identificar as vozes e lutas específicas, fugindo da perspectiva hegemônica da colonialidade resultante dos processos históricos de políticas e economias que se impõem sobre grupos e nações, especialmente a vivida na atualidade brasileira. É uma leitura de mundo que nos permite desvelar e entender o mundo a partir da realidade vivida nas diferenças, reconhecendo todos os sentidos, significados e subjetividades ancoradas nas epistemologias do Sul. Importante compreender que as epistemologias do Sul possibilitam que os grupos sociais oprimidos representem o mundo como seu e nos seus próprios termos, pois apenas desse modo serão capazes de transformá-lo segundo as suas próprias aspirações.

Na perspectiva desse movimento epistêmico, é relevante conhecer as realidades das vidas dos que são oprimidos pelas imposições da colonialidade resultante dos processos colonizadores de ontem e de hoje, atrelados ao modo de produção socioeconômica capitalista, a fim de reconhecer que todas as vidas importam. É uma postura assumida diante das vidas negras e indígenas, abrindo-se a ouvir suas falas e relatos e compreendendo-as em seus modos de viver com afetividades, epistemologias, políticas e cosmovisões próprias, expressos em suas oralidades e escritas. Da mesma forma, podemos entender a potencialidade das vidas das mulheres, dos ribeirinhos ou dos ciganos, assim como de outras minorias, a partir do que dizem de suas lutas e resistências, para uma compreensão melhor de suas realidades tão diversas.

Considera-se assim, que há uma potência do local de fala destas minorias, das tantas experiências corporificadas no cotidiano que foram subjugadas, ignoradas e desvalorizadas por uma epistemologia dominante, experiências tantas elaboradas à margem da linha abissal. Ou seja, reconhecemos aqui a importância de se entender o modo de vida, a luta e a resistência de cada grupo ou comunidade a partir do olhar e da fala desses sujeitos, e não de interlocutores que, por vezes, têm suas lentes distorcidas pelas tantas influências das epistemologias hegemônicas (SANTOS, 2019).

Nesse sentido, buscamos ideias que surgem de práticas pedagógicas interculturais que são propostas a partir dos estudos decoloniais e das epistemologias indígenas com as quais dialogamos como parcerias em pesquisas e ações formativas voltadas à formação de professores em Mato Grosso. As vivências partilhadas de forma intercultural entre diferentes sujeitos no grupo de pesquisa COEDUC, nos auxiliam a pensar epistemologias alternativas que possam contribuir para o enfrentamento das lutas contra o capitalismo, a colonialidade das práticas sociais e culturais racistas e pautadas no patriarcado judaico-cristão. Este movimento político como educação busca contribuir com o enfrentamento ao processo de invisibilidade dos saberes e das práticas de grupos subalternos para o sistema econômico e social, nas quais se constroem histórias e sustentam vidas coletivas com eficiência epistêmica-afetiva-cultural.

Por compreender que a construção de uma prática pautada pelos princípios da educação intercultural exige um esforço insurgente em romper com a construção histórica e hegemônica ocidental que foi elaborada a partir do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado, heranças que se mantém na colonialidade das relações subjetivas atuais que excluem e desqualificam as formas de viver e ser indígena no Brasil, consideramos relevante trazer reflexões que questionem a construção histórica que define nossa sociedade como monocultural, monoracista e monoepistêmica.

Os escritos de Santos (2019) fundamentam o argumento de que a ciência moderna teve seu desenvolvimento centrado no norte global desde o século XVII, se apoiando na observação sistemática e na experimentação controlada, promovendo ações políticas efetivas de que todo o conhecimento científico é considerado superior frente aos demais conhecimentos, que, por sua vez, devem ser subalternizados assim como o são quem os produz e os detém. Como insurgência a esse monopólio e unilateralidade de se colocar no mundo, reconhece-se que em todos os contextos históricos e sociais, os humanos produziram e produzem suas epistemologias próprias, que são, como afirma Santos (2019, p.23), “[...] mais do que uma orientação crítica [... são] alternativas epistemológicas que possam fortalecer as lutas contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado.”. Sua proposição para pensar as alternativas construídas pelos grupos e povos subalternizados se sustenta na ideia de “[...] que não existe justiça social sem justiça cognitiva”, e são essas alternativas as efetivadas por pensamentos alternativos.

Pode-se afirmar que a vida se produz amalgamada às lutas coletivas nas quais se sustentam práticas por perspectivas epistêmicas próprias. Com isso, entendemos que, ao desvelarmos as epistemologias do Norte, deflagramos movimentos que, ao serem gerados dentro das instituições educacionais, promovem tensionamentos entre as epistemologias eurocêntricas e as epistemologias alternativas, potencializando na escola, foco do nosso trabalho aqui analisado, um lugar de luta para pensar a (re)existência a partir dos próprios grupos sociais nela constituídos.

O contexto da escola com a qual dialogamos aqui perpassa as vozes dos profissionais da educação questionados acerca dos conhecimentos sobre a história e cultura dos povos indígenas, bem como da importância em se trabalhar tais conhecimentos na escola. Em nossa análise dessas vozes, enfatizamos a perspectiva da educação intercultural como possibilidade insurgente de valorização dos saberes do Sul no tempo-espaço de produção da vida no centro geodésico da América do Sul, território do povo bororo onde hoje se localiza Cuiabá-MT.

Para as discussões que apresentamos neste texto, articulamos os dados da “formação-ação-intercultural” (GRANDO, 2019) do COEDUC com conceitos-chave elaborados por Santos (2019), de modo a compreender as epistemologias do Sul, que são: linha abissal, exclusão abissal e exclusão não abissal, sociologia das ausências, sociologia das emergências, ecologia dos saberes, tradução intercultural e artesania das práticas.

Linha abissal e vidas indígenas: desafios epistemológicos da formação

Com o propósito de romper com a tentação da imagem refletida, que por vezes coloca pessoas diversas para se identificar com uma estrutura dualista e binária da imaginação ocidental, é que trazemos para análise o conceito de linha abissal. A ideia é entender este conceito, bem como identificar a construção histórica da ciência que, alicerçada na observação sistemática e na experimentação controlada, é uma criação da modernidade ocidentalocêntrica, descoincidente, discordante e divergente de outras “ciências” elaboradas em lugares outros e culturas outras. Um exemplo são os conhecimentos comprovados e validados nas experiências milenares dos povos ameríndios que garantiram a sustentabilidade coletiva frente aos desafios impostos por humanos, natureza e não humanos.

Por valorizar o conhecimento gerado e vivido em práticas sociais concretas é que aproximamos os conceitos de linha abissal, exclusão abissal e exclusão não abissal a fim de dialogarmos com as epistemologias experienciais das pessoas, profissionais da educação que estão no cotidiano da escola.

Tenho defendido que a ciência moderna, em especial as ciências sociais modernas, incluindo as teorias críticas, nunca reconheceram a existência da linha abissal. [...] não reconheceu o colonialismo enquanto forma de sociabilidade que é parte integrante da dominação capitalista e patriarcal e que por isso não terminou quando o colonialismo histórico chegou ao fim. [...]. No âmago dessa imaginação modernista existe a ideia de humanidade como totalidade construída com base num projeto comum: direitos humanos universais. Essa imaginação humanista, herdeira do humanismo renascentista, não conseguiu perceber que, uma vez combinado com o colonialismo, o capitalismo seria intrinsecamente incapaz de abdicar do conceito do sub-humano enquanto parte integrante da humanidade [...]. Na modernidade ocidental não há humanidade sem sub-humanidade. Na raiz da diferença epistemológica há uma diferença ontológica. (SANTOS, 2019, p. 41-42)

Seguindo essa leitura das ciências modernas entendemos que estas preconizaram a possibilidade de emancipação da humanidade, por meio de mecanismos pautados em princípios generalizados a serem reivindicados institucionalmente, tendo em conta uma ideia de igualdade que desconsidera os processos coloniais históricos e a crueldade do estado liberal como aparato fundamental do capitalismo, que rouba os direitos e a concretude das vidas indígenas cotidianamente.

Nesse sentido, Santos (2019, p.42) destaca a importância de Franz Fanon4 como grande denunciador desta linha abissal entre a metropolitanidade e a colonialidade, sendo destacada inclusive em uma perspectiva ontológica da linha abissal: a zona de não-ser por ela criada e que produz a ideia basilar que subjaz as epistemologias do Sul.

Essa colonialidade que perpassa e se mantém nas práticas sociais sobre os povos indígenas, como herança do Brasil colonial, são evidenciadas dentro do espaço escolar, como desvelam as falas dos educadores no questionário. Dentre elas, destacamos:

“O pouco que sei foi muito vago, pois a cultura indígena nunca foi de muita importância nas grades curriculares.” (Profissional 5, vespertino)

“Não tive muito acesso à leitura que fala sobre o índio.” (Profissional 10 vespertino)

“No Brasil nós temos pouco conhecimento sobre os povos indígenas, não sabemos nada sobre eles.” (Profissional 19, vespertino)

“Os livros didáticos não falam nada sobre essa cultura que é ampla, gostaria de conhecer e aprofundar meus conhecimentos.” (Profissional 130, vespertino)

Essas respostas dos dados iniciais da formação-ação Ikuia-Pá referiam-se ao conhecimento sobre a história e a cultura dos povos indígenas dos professores e demais profissionais da Educação Infantil, em sua maioria, com formação em curso superior, e nos revelam a realidade de perpetuação da zona de não ser, designada aos povos originários do Brasil.

As poucas falas destacadas desvelam o processo de invisibilidade de toda uma população brasileira reconhecida por suas mais de 280 formas de ser indígena, presentes em todos os estados. Em Mato Grosso, existem 43 povos distribuídos em todas as regiões, inclusive no Parque Nacional do Xingu, onde as lideranças e a população ali residente são internacionalmente conhecidas.

Essa invisibilidade estrutural pode ser entendida com a sociabilidade colonial que construiu a ideia do mundo do “eles”, cuja existência é inimaginável em equivalência ou reciprocidade, uma vez que não são totalmente humanos. (SANTOS, 2019). Esse imaginário construído desde a invasão europeia nos territórios ameríndios foi se consolidando, sendo reforçado cotidianamente nas práticas pedagógicas e nas ciências que insistem na invisibilidade de suas epistemologias e de suas ciências próprias, embora sejam, ambas, recursos fundamentais para a produção das ciências modernas euro-américa-centradas.

Importante reconhecer que esse processo de exclusão é ao mesmo tempo abissal e inexistente, dificultando um processo de inclusão. Trazer este entendimento para o universo da educação é uma potência fundante ao nosso ver, pois compreendemos a escola como lugar de reprodução da sociedade e de disputa de poder, sendo, assim, um espaço-tempo moderno da colonialidade do ser, do poder e do saber.

Porém, a partir dos referenciais da decolonialidade e da perspectiva da interculturalidade crítica, a escola configura-se como espaço fundamental para a reelaboração e ressignificação das práticas sociais voltadas à humanização das pessoas e da sociedade. Essa perspectiva compreende a escola como lugar de luta e resistência, um espaço-tempo de visibilidade dos saberes que historicamente renunciaram às matrizes epistêmicas da colonialidade. Na perspectiva das epistemologias do Sul, é relevante entender que há uma linha abissal que estabelece que "deste lado da linha" vidas importam e "do outro lado da linha" vidas não importam ou mesmo não existem:

Do outro lado da linha as exclusões são abissais e a sua gestão ocorre através da dinâmica de apropriação e violência; a apropriação das vidas e dos recursos é quase sempre violenta, e a violência visa, direta ou indiretamente, à apropriação. Os mecanismos envolvidos evoluíram no tempo, mas mantêm-se estruturalmente semelhantes aos do colonialismo histórico, nomeadamente, aqueles que envolvem regulação violenta sem contrapartida da emancipação. (SANTOS, 2019, p.43).

Neste complexo cenário, à escola implica assumir um “lado da linha”. Mesmo colocando o indígena na zona do não ser e de todas as violências racistas sofridas pela colonialidade tão atual, algumas ressignificam suas práticas para história social, vista sob outras lentes, como se evidencia nas falas de alguns participantes da formação Ikuia-Pá:

“Minha unidade trabalha com a cultura indígena, estamos trabalhando identidade, cultura e costume indígena.” (Profissional 64, vespertino)

“Conheço um pouco porque nossa unidade está trabalhando com os alunos sobre o povo bororo.” (Profissional 129, vespertino)

“Já é o terceiro ano que vamos trabalhar com esse projeto sobre os indígenas.” (Profissional 165, vespertino)

A constatação é de que alguns profissionais já reconhecem uma ação efetiva de formações sobre e com os bororo. Porém, na perspectiva das epistemologias do Sul, é relevante entender que há uma linha abissal que estabelece que "deste lado da linha" vidas importam e "do outro lado da linha" vidas não importam ou mesmo não existem: “[...] A prioridade epistemológica dada pelas epistemologias do Sul às exclusões abissais e às lutas contra elas deve-se ao fato de o epistemicídio causado pelas ciências modernas eurocêntricas ter sido muitíssimo mais devastador no outro lado da linha abissal”. (SANTOS, 2019, p.44).

Para o sociólogo, qualitativamente existem diferentes tipos de exclusão, e as diferentes pessoas que lutam e resistem não são vidas que importam, não são vidas que existem, que possam ser um ser humano como “nós”. Daí que, “deste lado da linha”, nós temos exclusões não abissais e “do outro lado da linha” elas sofrem exclusões abissais (SANTOS, 2019, p.46).

“Não conheço sobre a vida dos índios.” (Profissional 120, vespertino)

“Não conheço sua cultura, ideologia, religião.” (Profissional 166, vespertino)

“Não conheço sobre a cultura a vida dos índios a alimentação.” (Profissional 179, vespertino)

“Não conheço sobre a vida dos índios”. (Profissional 187, vespertino)

Essas falas refletem muito da realidade brasileira que não reconhece a diversidade das vidas indígenas que habitam muito proximamente de seus locais, ocupados pelas cidades, inclusive considerando que as histórias locais trazem muitas memórias recentes dos contatos e das disputas pelos territórios tradicionais, assim como as notícias destas lutas são, no Brasil, manchetes na mídia. Essa invisibilidade das vidas, identificadas nas pesquisas, são foco dos estudos empreendidos nas formações cujas culturas específicas, cosmologias e formas próprias de viver e organizar as redes solidárias e familiares, passam a compor a compreensão da história e da cultura local no enfrentamento ao colonialismo epistemológico.

Isso implica, em nossa perspectiva acadêmica, uma demanda urgente de outras epistemologias e outras formações de educadores, pois, ao considerarmos que a linha abissal produziu os marcadores das diferenças entre “eles” e o “nós”, os povos indígenas foram colocados na figura da não existência, ou então na existência em outro tempo, cristalizando no imaginário social das pessoas que suas vidas são passiveis de eliminação porque são selvagens. Essa animalização da pessoa-indígena como um estereótipo escancara a perversidade do colonialismo, mas evidencia a necessidade de reconhecer que, para além do estado colonial, estamos em uma sociedade impregnada de colonialidade sustentada nas práticas sociais cotidianas pela cultura, inclusive pela cultura escolar hegemônica e monocultural. Propor uma nova perspectiva pedagógica visa desvelar as relações de poder no saber, construindo outras possibilidades que se abrem à educação intercultural crítica.

A sociologia decolonial e a escola como território de (des)encontros

A escola é reconhecida como o segundo grupo social ao qual a criança tem acesso. Nesse território simbólico escolar temos um encontro de saberes, que a criança traz consigo e que vai se misturar aos saberes dos adultos que a acolhem para complementar sua educação e juntos construírem uma trajetória escolar. A trajetória constitui-se de saberes mediados pelos adultos, que vão desde saberes pessoais, saberes da formação escolar, saberes da formação profissional, saberes dos livros, materiais e programas didáticos, aos saberes das experiências em sala de aula.

Segundo a sociologia das ausências, com a qual dialogamos neste texto, assim se instaura a cartografia da linha abissal que produz o processo de exclusão, concreta e simbólica, por determinar a não existência da vida fora das imposições coloniais que funcionam “[...] sob a forma de colonialismo de poder, de conhecimento e de ser [...] em conjunto com o capitalismo e o patriarcado [...] a fim de tornar certos grupos de pessoas e formas de vidas [...] radicalmente perigosos, em suma, descartáveis ou ameaçadores” ( SANTOS, 2019, p.49).

Vale destacar que, para outros estudos decoloniais, não se trata de colonialismo na situação atual, na qual essa invisibilidade se fundamenta, mas sim de uma colonialidade que, herdeira da ação política e econômica de uma nação sobre/contra outra, cria formas de pensar e conhecer. Portanto, essa perspectiva política impacta na perspectiva epistemológica, materializando nas práticas, inclusive educativas, a desumanização do outro que foi historicamente oprimido e rejeitado em sua identidade e diversidade humana. Nisso, compreendemos que a cultura autoritária, machista e patrilinear brasileira impacta na formação das mulheres e dos homens que são educadores de crianças, e que, mais evidentemente na escola, reproduzem a colonialidade massificada na cultura hegemônica. Isso nos leva a questionar suas formações como professores e a propor experiências formativas capazes de problematizar e criar espaços potencializados para outras epistêmicas capazes de reconhecer a vida e o conhecimento do outro e da nossa própria brasilidade ameríndia.

Diante desse desafio, o COEDUC propõe que a escola se constitua como um espaço-tempo de investigação, de crítica, de experimentos, de encontro com a diversidade de vidas e histórias, revendo sua trajetória eurocêntrica e monocultural, como expressam os seguintes saberes dos educadores:

“Conheço pouco da cultura indígena, no Brasil nós temos muito pouco conhecimento sobre os povos indígenas, não sabemos nada sobre eles.” (Profissional 19, matutino) 

“Conheço pouco da cultura indígena, por não ter muito acesso à leitura que fala sobre o índio.” (Profissional 10, matutino)

“Conheço pouco da cultura indígena, não conheço muito, porque minha infância quase não ouvia falar na escola.” (Profissional 48, matutino)

“Conheço pouco da cultura indígena, não tenho muito conhecimento, nunca tive contato com os povos indígenas.” (Profissional 76, matutino)

“Conheço pouco da cultura indígena, infelizmente não tive acesso às produções e conhecimento da etnia indígena limitando o que é divulgado na mídia.” (Profissional 116, matutino)

Esse pouco saber reflete a realidade das práticas, dos saberes e do reconhecimento das pessoas-indígenas do “outro lado” da linha abissal. Ao nos propormos a criar espaços de rompimento com esse “não saber”, criamos um movimento no sentido da valorização simbólica, analítica e política de formas de ser e de saberes que a sociologia das ausências revela estarem presentes no outro lado da linha abissal.

A sociologia das emergências dedica-se à positividade dessas exclusões, considerando as vítimas de exclusão no processo de rejeição da condição de vítimas, tornando-se pessoas resistentes que praticam formas de ser e de conhecer na sua luta contra a dominação. [...]. Com a resistência e a luta, surgem novas avaliações de condições e experiências concretas que ressignificam subjetividades individuais e coletivas. [...], que surgem sob a forma de práticas materiais ou simbólicas, afirmam-se sempre de modo holístico, artesanal e híbrido, reconhecendo assim a presença multidimensional da exclusão e da opressão (SANTOS, 2019, p. 53- 54).

Ao buscar elucidar as relações sociais desiguais e tóxicas promovidas, a sociologia das emergências busca ressignificar a realidade de perda de existência, valorizando as experiências sociais intensas, ricas e inovadoras. Nessa perspectiva, compreendemos que o COEDUC, com sua proposta metodológica da formação-ação-intercultural, promoveu, junto aos educadores da primeira infância, respostas epistemológicas decoloniais conjuntamente aos adultos que educam as crianças pequenas nas instituições de ensino, exercitando diferentes papeis, sendo predominantemente assumidos pelas mulheres: professor, cuidador, apoio administrativo e de serviços gerais, vigia, gestor.

Nessa formação, voltamo-nos às “ruínas-sementes” apropriadas no movimento contra hegemônico e lhes damos vida por serem essas “fontes de dignidade e de esperança num futuro pós-capitalista e pós-colonial”; como afirma Santos (2019), são emergências:

[...] Trata-se de conceitos, filosofias e práticas desenvolvidas pelos grupos sociais dominantes para produzir a dominação moderna de que os grupos sociais oprimidos se apropriam, ressignificando-os, refundando-os, subvertendo-os, transformando-os criativa e seletivamente de modo a convertê-los em instrumentos de lutas contra a dominação. [...]. As zonas libertas possuem uma natureza performativa, prefigurativa e educativa. Consideram-se utopias realistas ou melhor, heterotopias. O seu objetivo é criar, aqui e agora, um tipo diferente de sociedade, uma sociedade liberta das formas de dominação que prevalecem no presente (SANTOS, 2019, p. 56-57).

A ideia é criar saberes no campo do respeito às diversidades, rompendo com as superestruturas do capitalismo e do patriarcado, alimentadas pela colonialidade do pensar e viver. Promover a sociologia das emergências almejando novas práticas pedagógicas, tendo a educação intercultural como centro deste processo, nos aponta caminhos em direção à apropriação das “ruínas-sementes” capazes de promover as zonas libertas da hegemonia nesta sociedade racista e excludente.

Quando questionados, mulheres e homens que educam crianças nas escolas – em creches e centros de educação infantil de Cuiabá-MT – sobre o sentido dos conhecimentos indígenas, nossos parceiros deste processo nos respondem sobre a importância da formação que leva o conhecimento sobre a história e cultura dos povos indígenas:

 

“Porque faz parte da nossa cultura e nas escolas pode ter crianças que descendem indígenas.” (Profissional 176, matutino)

“Para que possamos trabalhar a diversidade e a inclusão dos povos indígenas.” (Profissional 177, matutino)

“É uma de nossas culturas de Mato Grosso, principalmente para combater o preconceito que está em todos os lugares.” (Profissional 179, matutino)

“É bom está por dentro da cultura e é muito importante para sabermos lidar com a diferenças.” (Profissional 02, matutino)

“Sim, pois é também a nossa cultura e devemos saber passar da melhor forma para nossos alunos.” (Profissional 05, matutino)

“Trabalhar desde cedo com as crianças o preconceito, o racismo, somos iguais e diferentes, o respeito a com o todo.” (Profissional 11, matutino)

“Porque é uma cultura rica, tem grandes conhecimentos para passar para nossa.” (Profissional 15, matutino)

O exercício dos profissionais da educação deve ter a intenção de romper com a modernidade/colonialidade e deve investir em outras possibilidades de ser, estar, pensar, saber, sentir, existir e viver-com (WALSH, 2013, p. 19). Nesse processo, são enfatizadas as aprendizagens não apenas no campo conceitual das informações, mas também das significações dadas ao que se aprende por cada sujeito em relação. Por meio dos significados atribuídos, criam-se espaços de diálogo e de construção do conhecimento que valorizam os contextos nos quais foram constituídas tais aprendizagens.

Walsh (2009) faz um chamamento para considerarmos a Interculturalidade Crítica como uma possibilidade transgressora do problema estrutural-colonial-racial que se materializa no cotidiano das relações na sociedade do capital, inclusive nas escolas. A autora assume tal perspectiva enquanto uma ação político-pedagógica, pois atende aos interesses das lutas das sociedades subalternizadas, como é o caso dos povos indígenas. Ao trazer as lutas para o relevo das discussões educacionais, no sentido da descolonização, as práticas orientadas pelo viés crítico da educação intercultural podem ser compreendidas, também, como um ato pedagógico-político ao considerar tal perspectiva enquanto práxis que busca a transformação das estruturas, instituições e relações sociais consolidadas pelas matrizes eurocêntricas, mascaradas pelas propostas de Interculturalidade de recorte funcional.

Contrapondo o contexto em que se situa a Interculturalidade Funcional, que se limita ao atendimento dos ideais neoliberais, dando uma falsa impressão de inclusão, quando, na realidade, age de forma intensa e feroz nas esferas do saber e do ser, privilegiando uns em detrimento das diferenças do outro e ocultando as desigualdades que se estruturam e se mantêm em seu interior enquanto lógicas de poder, defendemos a Interculturalidade Crítica (WALSH, 2009).

Ao aproximarmos o entendimento da interculturalidade das epistemologias do Sul, estamos exercitando a busca por pensamentos alternativos, para questionar a construção epistemológica do pensamento crítico eurocêntrico, sem deixar de reconhecer suas contribuições. Porém, também abrimos espaço para o (re)conhecimento de outros saberes, elaborados em contextos de resistência, por povos e comunidades que foram, ao longo de séculos, silenciados e marginalizados.

Como movimento de reflexão para pensar outras estruturas de conhecimento sobre os povos indígenas, os profissionais da educação dizem:

“É importante cambiar e transformar conhecimento sobre a cultura indígena.” (Profissional 46, matutino)

“Porque precisamos saber a história dos povos que iniciaram nosso país.” (Profissional 59, matutino)

“Devemos apropriar da nossa história e conhecer o respeito da nossa verdadeira origem.” (Profissional 68, matutino)

“É importante, pois de acordo com o currículo as escolas devem trabalhar e implementar a lei 11.645/08.” (Profissional 72, matutino)

As expressões dizem da necessidade de decolonizar o pensamento até então consolidado sobre os povos originários. O primeiro passo é reconhecer-se marcado pela colonialidade do pensar, do sentir e do fazer educador, o que é sustentado pela estrutura-colonial-racial na qual fomos produzidos. O segundo passo é incorporar práticas pedagógicas novas que se contrapõem à esta estrutura, cientes da postura assumida frente às dinâmicas de produção da vida humana, opondo-se à não existência do “eles”.

Como perspectiva que possibilitaria criar possibilidades de intervenções pedagógicas fundamentadas no viés crítico sobre as discussões das relações étnico-raciais, amplificando histórias e culturas indígenas, é que visualizamos a educação intercultural em Walsh (2009) ou a tradução intercultural em Santos (2019) como delimitações teórico-metodológicas que interculturalizariam as práticas na escola, na educação e, por fim, no Estado, de modo a promover a decolonialidade que marca as características que nos fazem uma sociedade ainda colonial (WALSH, 2009).

A ecologia de saberes e a tradução intercultural são ferramentas que convertem a diversidade de saberes, que se faz visível pela sociologia das ausências e pela sociologia das emergências. O pensamento pós-abissal tem por premissa a ideia da inesgotável diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento para além do conhecimento científico. Isso implica renunciar qualquer epistemologia geral (SANTOS, 2019).

O pensamento pós-abissal traz a ideia de que a diversidade do mundo é inesgotável e de que não possuímos uma epistemologia adequada para essa pluridiversidade de conhecimentos. A ecologia de saberes pode provocar duas situações que têm perspectivas diferentes. A primeira, seria num sentido da desconstrução das raízes eurocêntricas e a segunda, num sentido de valorização, interação e produção de outros conhecimentos científicos a partir da ecologia de saberes, bem como a validação e a reconstrução de saberes não científicos advindos dos diversos cotidianos de luta e resistência.

Ao trazer para a realidade da escola o entendimento da ecologia de saberes, abre-se espaço para o conhecimento das diversas pessoas que fazem parte do território escolar e que carregam consigo bagagens de lutas e resistências dos seus lugares/territórios outros. O desafio do espaço-tempo simbólico construído nas relações entre pessoas que ocupam e produzem este território escolar é provocar a alteridade como princípio orientativo para tecer diálogos capazes de elaborar novos interconhecimentos.

Na medida em que compreendemos que a tradução intercultural nos leva para o lugar do questionamento da dicotomia entre saberes – por exemplo: o científico versus o saber indígena –, potencializamos o rompimento hierarquizado para fomentar a emergência de construções de conhecimentos escolares no campo da interculturalidade. Em nossa pesquisa-ação-intercultural, evidenciamos o reconhecimento do necessário questionamento e promoção intercultural com os participantes da formação Ikuia-Pá.

  

“Existem muitas diferenças no ambiente escolar principalmente o racismo e isso é o devemos acabar, com esse preconceito.” (Profissional 165, matutino)

“As diferenças existem em todos os espaços, mas a necessidade de homogeneização da escola, está deixando marcas profundas na identidade e cultura dos educandos e perdendo sua função social.” (Profissional 115, matutino)

“Dentro do espaço escolar temos crianças com diferentes etnias e culturas e precisamos inseri-las no processo de ensino-aprendizagem.” (Profissional 125, matutino)

“Eu acho que toda a população brasileira tem uma miscigenação de raça e devemos saber delas.” (Profissional 111, matutino) 

Vemos em suas falas sobre o espaço-tempo escolar, educadores revelam a reprodução da estrutura social e as mazelas e benesses da colonialidade, nos mobilizando a responder a demandas como: que tipos de relacionamentos são possíveis entre pessoas com saberes diversos? Como promover a tradução intercultural? Quem são os tradutores interculturais e quais suas motivações? Como construir saberes a partir da tradução intercultural?

Desse diálogo imbricado, no qual o grupo-pesquisador se coloca ouvindo as falas a seguir ao mesmo tempo em que se observa e se reconhece nelas, pois também somos um grupo de professoras e professores em formação, tramamos com fios diversos de nossas práticas e dos estudos decoloniais embebidos pelos conhecimentos indígenas, respostas que aqui, caracterizamos como processos de ecologias das práticas e de tradução intercultural.

“Não vejo como diferente, vejo todos com igualdade.” (Profissional 163, matutino)

“Entendo como riquezas, privilégios, pois o que são consideradas diferenças são oportunidades culturais e étnicas-raciais, que enriquecem a construção do conhecimento e social.” (Profissional 167, matutino)

“Temos que valorizar a cultura de todas as etnias, pois assim conhecemos melhor outras culturas e as diferenças, temos que valorizar, pois ninguém pode desvalorizar o saber.” (Profissional 127, matutino)

“Respeito as diversidades dentro da escola.” (Profissional 176, matutino)

“É muito importante trabalharmos as diferenças em sala de aula, conviver com a diversidade e saber respeitar cada uma delas.” (Profissional 177, matutino)

“É muito importante, através da escola que as crianças irão aprender novas culturas e costumes diferentes.” (Profissional 109, matutino)

Ao reconhecermos a importância potencializadora das experiências da ecologia de saberes e da tradução intercultural, nos confrontamos com as falas que aqui se contrapõem às respostas anteriores do não conhecimento e do não movimento da construção dos saberes interculturais na escola. Esse contexto se percebe diversificado pela presença de pessoas de outras etnias, que tem ciência da obrigatoriedade da inclusão de conteúdos sobre a história e a cultura indígenas e que reconhecem a falta de materiais adequados. A ausência desses conteúdos nas formações manteve-se no confortável lugar da colonialidade que atravessa a cultura escolar eurocêntrica e monocultural.

Por fim, ao nos referirmos à artesania das práticas de Santos (2009), que “[...]Trata-se de um trabalho muito específico que mantém a universalidade a distância; não perde de vista que o seu objetivo é lutar pela libertação contra o capitalismo, colonialismo e patriarcado [...]” na formação ao trazer os saberes/conhecimentos bororo como epistemologia do Sul, o fazemos reconhecendo as heranças da sua estrutura matrilinear que valoriza a mulher e a educação da criança, rompendo com as amarras das epistemologias do Norte, sendo esta uma potencialidade de “luta política” capaz de ser “[...] testemunho desse objetivo e seja ela própria, uma zona libertada” (2019, p. 62-63). Quanto aos saberes/conhecimentos, os professores e demais educadores da infância reconhecem outras histórias e lutas sociais que teceram o território mato-grossense e vivem entrelaçados a essa herança ancestral territorial indígena.

Considerações insurgentes

Entendemos que as falas dos participantes da formação Ikuia-Pá refletem a necessidade de descolonização das epistemologias e das práticas formativas a fim de potencializarmos a perspectiva libertadora nas escolas. Isso que viria a facilitar a compreensão de nós mesmos após séculos de submissão, desmembramento e alienação, como nos traz Santos (2019).

As epistemologias do Sul integram-se ao pensamento descolonizador, entendendo que esse processo deve ser necessariamente anticapitalista e anti-patriarcal. Vale destacar que há nas relações históricas coloniais uma dinâmica política de poder que se inscreve nas subjetividades e na produção do conhecimento de tal forma que continua impactando as relações sociais, as educações e as culturas, mesmo após os rompimentos com as estruturas administrativas de poder. Isso para afirmar que não é a ciência moderna a responsável pela produção destas perspectivas colonialistas, nem pelas estruturas racistas e patriarcais produzidas na sociedade, embora as respaldassem historicamente nas relações coloniais.

Isso posto, neste trabalho, reconhecemos, com apoio de Santos (2019) e em diálogo com outros autores decoloniais, especialmente aqueles dedicados aos estudos decoloniais latino americanos – como Freire (2008; 2009), Walsh (2009; 2013) e Marín (2017) –, como a escola pode romper com as raízes históricas da colonização que impregnou as ciências e as epistemologias homogeneizadoras que perpassam a colonialidade e a cultura escolar. Esta última, insiste em pautar os saberes/conhecimentos universalizados na racionalidade ocidental/eurocêntrica e em desprezar as ancestralidades dos saberes/conhecimentos ameríndios e africanos.

A “formação-ação-intercultural” é uma das possibilidades a serem criadas como resposta de enfrentamento contra hegemônico à estrutura-colonial-racial, como tem sido sistematizado coletivamente pelo grupo de pesquisa COEDUC (GRANDO, SOARES, 2016; GRANDO, PINHO, PIPI, 2018; GRANDO, CHAPARRO, STROHER, 2020; GRANDO, STROHER, CAMPOS, 2020).

Ao aproximarmos os estudos decoloniais, as epistemologias do Sul (SANTOS, 2019) e a proposta do grupo pesquisador, que estabeleceu diálogo com os 393 profissionais da Educação Infantil da rede municipal Cuiabá-MT, nos foi permitida uma reflexão teórica que nos possibilita dizer que o mundo ocidental eurocentrado e definidor de uma humanidade única invisibilizou os povos indígenas, os colocando na zona abissal da não existência, negando a eles a condição de humanidade, igualdade e justiça de que têm direito como cidadãos brasileiros.

Por outra perspectiva, com Walsh (2009) e Marin (2017), identificamos a relevância da proposta do COEDUC para a formação-ação-intercultural do Ikuia-pá como um espaço de conquistas de direitos. Por potencializarmos a visibilidade e a valorização das epistemologias indígenas no contexto de suas territorialidades, assim como das crianças com seus educadores adultos na escola, ao acessarem histórias e culturas outras, reconhecem-se em suas humanidades e lutas, deixando a zona do “não ser”.

Como possibilidade de questionarmos as exclusões abissais, não abissais e a sociologia das ausências no âmbito da educação escolar, vemos a “formação-ação-intercultural” do COEDUC como uma proposta insurgente, construída em um caminhar epistêmico coletivo que traz a compreensão do processo histórico desleal e segregado que não reconheceu ou valorizou as vidas e os saberes dos indígenas brasileiros.

Conclui-se que, em uma perspectiva da sociologia das emergências, a educação poderia investir em qualificar seus profissionais, trazendo epistemologias alternativas, como as epistemologias negras e indígenas, para iniciar um processo de tradução cultural e reconhecimento dos saberes subalternizados, nos quais grande parcela dos profissionais da educação se reconheceriam no Brasil, que é pluriétnico e pluricultural.

Assim, para o exercício de sulear, é necessário acessar as coletividades e os saberes que compõem o pluriverso da escola, buscando a artesania das práticas e o envolvimento dos grupos no processo de luta e resistência contra a colonialidade sustentada numa perspectiva patriarcal. Por isso, enfatizamos a compreensão da Educação Intercultural pelo seu viés crítico de produção e de ação que deve ser consciente, política e educadora dos corpos-pessoas. Ao ser pautada na diferença como intencionalidade didática, os processos estabelecidos nas instituições educacionais precisam revelar o que foi escondido por séculos, pois é no plano da visibilidade e da inclusão das diversas humanidades que os direitos serão iguais. Essas novas e ancestrais estratégias confrontam o que nos formou como corpos-sujeitos-colonizados.

Referencias

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WALSH, C. Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2013. [ Links ]

1José Marín proferiu a conferência de abertura do SEMIEDU 2020, como tema: Direitos Humanos e Educação Intercultural em Tempo de Pandemia, nos auxiliando a pensar a construção de saberes no campo da educação intercultural.

2O grupo de pesquisa, criado em 2004, inicia com as ações formativas a partir da pesquisa com os bororo e com a proposição da educação intercultural a partir das perspectivas epistêmicas indígenas. O grupo desenvolve suas pesquisas como ações interculturais e formativas pautadas nos conflitos inerentes ao reconhecimento e à valorização das diferenças como princípio de igualdade e humanização, e promove, nos processos formativos, experiências interculturais compartilhadas com diferentes atores sociais em níveis de formação variados assim como as demais identidades individuais e de grupos sociais. Informações disponíveis em: https://www.coeducufmt.org/.

3As epistemologias do Sul “ocupam” as concepções hegemônicas de epistemologia, a que chamo epistemologias do Norte. Apesar de recorrerem à dicotomia norte-sul, as epistemologias do Sul não são simetricamente opostas às epistemologias do Norte no sentido de oporem um conhecimento válido exclusivo a um ou outro.

4FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008.

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