Introdução
A escola era na rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia – uma segunda-feira, do mês de maio – deixei-me estar alguns instantes na rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant´Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão (ASSIS, 1986, p. 159, grifo nosso).
Em o Conto da escola, o jornalista, romancista, cronista, contista, dramaturgo, poeta, novelista, crítico e ensaísta Machado de Assis, um dos maiores expoentes da literatura mundial nos traz algumas reflexões da escola. Um sobradinho de pau, a escola era um amontoado de grade de pau. No conto a escola de um modo ou de outro externava para o pai de Manchado de Assis, um homem ríspido e intolerante o sonho de uma grande posição comercial, daí a importância do ler, do escrever e do contar para um Machado de Assis caixeiro, um sonho, uma escola. A escola do Rio de Janeiro da primeira metade do Século XIX.
Sem dúvidas o Século XIX foi um período de muitos avanços científicos, um tempo em que o curso da revolução científica-tecnológica trouxe efeitos turbulentos no fluxo das transições das condições materiais de reprodução e dos cotidianos.
Nos aspectos políticos o Brasil de meados do XIX encontrava-se em disputas, seja por meio das diversas rebeliões que agitavam o país, seja pela redefinição das tendências políticas que sustentariam os grandes partidos imperiais. Um dos destaques mencionados por Carvalho (1996), entre as décadas de 1840 e 1850, diz respeito a representação do Partido Conservador que na ocasião significava uma coalizão de proprietários rurais e burocratas do governo que se uniu a grandes comerciantes preocupados com as agitações urbanas. Já o Partido Liberal reunia, principalmente, proprietários rurais e profissionais liberais. É dentro do contexto de sublevações diversas e “confrontos” das elites políticas que a escola mencionada por Machado de Assis se configurou. Uma escola que não apresentava muitas das características advindas da revolução científica-tecnológica, mas era necessária para manutenção da ordem.
Talvez a ideia de construir o Estado Nacional tenha se destacado frente a importância da educação, os motivos são diversos, entre os quais destacam-se: a composição de um grupo, integrantes das elites com objetivos semelhantes, seja por fatores da homogeneidade da formação e da profissão comuns. A maioria dos integrantes das elites tinha formação superior, um elemento de unificação poderoso por três razões de acordo com Carvalho (1996): em primeiro lugar, em um contexto em que poucas pessoas tinham acesso a instrução, a elite era uma ilha de letrados em quase totalidade de analfabetos. Em segundo lugar, porque a formação superior se dedicava aos estudos jurídicos que supostamente auxiliaria na constituição de um eixo de conhecimentos e habilidades para a constituição do Estado. E por fim, porque as faculdades de direito se resumiam até a Independência do Brasil, aos cursos da Universidade de Coimbra e, depois, às Faculdades de São Paulo e Olinda/Recife, daí havia uma espécie de concentração geográfica e formação que incutia ideias comuns.
Falar sobre Escolas rurais na região amazônica: traços da política e administração pública em Rondônia, corresponde apresentar o contexto político de produção da ideia de escola, principalmente no meio rural. São aspectos de processos de ensino que perduram.
No Brasil, parte significativa das elites eram constituídas de magistrados o que acarretou maior vínculo do próprio grupo político que assumiu o poder e foi, ao mesmo tempo, se constituindo no Brasil pós-independência. A formação de uma elite que possuía características básicas de unidade ideológica e de treinamento que não estava presente nas elites de outros países, foi um dos pontos que nos chamou atenção. Porém, a seleta formação acadêmica e os conhecimentos dos operadores do direito não se fizeram suficientes para a implementação de um Estado responsável pelo direito à educação.
[...] enfocar o processo de escolarização ao longo do período imperial impõe, necessariamente, a relativização do Estado. A presença do Estado não apenas era muito pequena e pulverizada como, algumas vezes, foi considerada perniciosa no ramo da instrução. Há que considerar, também, que nem a própria escola tinha um lugar social de destaque, cuja legitimidade fosse incontestável. Foi preciso então, lentamente, afirmar a presença do Estado nessa área e também produzir, paulatinamente, a centralidade do papel da instituição escolar na formação das novas gerações (FARIA FILHO, 2003, p. 135-136).
As dificuldades encontradas pelos governantes podem em certa medida justificar a falta de atenção sobre os fazeres da instrução pública, porém inferimos que a falta de investimentos financeiros e a restrita atenção dispensada ao trato da instrução pode e se constituiu por uma das escolhas dos próprios governantes. Fato que nos remete ao contexto econômico de meados de XIX, uma vez que as mudanças estruturais carecem de melhorias também no ramo da educação.
1850 não assinalou no Brasil apenas a metade do século. Foi o ano de várias medidas que tentavam mudar a fisionomia do país, encaminhando-o para o que então se considerava modernidade. Extinguiu-se o tráfico de escravos, promulgou-se a Lei de Terras, centralizou-se a Guarda Nacional e foi aprovado o primeiro Código Comercial. Este trazia inovações e ao mesmo tempo integrava os textos dispersos que vinham do período colonial. Entre outros pontos, definiu os tipos de companhias que poderiam ser organizadas no país e regulou suas operações. Assim, como ocorreu com a Lei de Terras, tinha como ponto de referência a extinção do tráfico. [...] esboçavam-se assim, nas áreas mais dinâmicas do país, mudanças no sentido de uma modernização capitalista; ou seja, nasciam as primeiras tentativas para se criar um mercado de trabalho, da terra e dos recursos disponíveis (FAUSTO, 1998, p. 197).
Mudar a “fisionomia” do país significava inseri-lo no contexto da modernidade, porém inicia-se também um processo de crises, dentre elas o início do movimento republicano e os atritos do governo imperial com o Exército e a Igreja. Junto a esse debate o problema da escravidão gerou desgastes na relação entre Estado e suas bases sociais de apoio.
A escola tem sido chamada a responder às inúmeras apostas da modernidade. Espera-se que o alargamento do leque das oportunidades escolares não apenas amplie as habilidades humanas úteis à economia, mas também torne os indivíduos e as sociedades melhores e mais ‘civilizados’ (VALLE, 2014, p. 17).
A escola no centro das atenções, pelo menos foi o que percebemos diante do projeto de modernidade instituído, contudo as permanências das características daquela escola de pau, um sobradinho feito para atender a qualquer preço as crianças ainda se faz presente em outros contextos. Machado de Assis ao mencionar que “a escola era na rua do Costa, um sobradinho de grade de pau”, nos demonstra o quanto a modernidade tardia e seletiva produziu a escola rural na perspectiva da ordem e do progresso social, mas qual ordem e qual progresso social?
Do Império para a República a proposta de uma educação pensada a partir dos preceitos da modernidade se fez presente, porém em áreas rurais a escola era de algum modo a representação de parte dos interesses das elites agrárias.
Muitos os projetos de educação da República foram pensados e edificados a partir das ruínas das escolas do Império, consideradas atrasadas e ineficazes, de acordo com Nagle (2009), ocorreu uma espécie de fervor ideológico pela federação e consequentemente pela educação.
A pesquisa objetivou analisar parte do processo histórico de constituição da escola rural amazônica no contexto brasileiro de fins do Século XX ao início do XXI. O recorte temporal inicial se justifica pela própria constituição do estado de Rondônia no começo da década de 80 do Século XX e suas ações sobre a educação. Já o ano de 2019 compõem o período final a partir de resultados obtidos no censo escolar – resumo técnico do estado de Rondônia divulgado em 2020.
Os debates sobre educação extrapolaram o recorte inicial de modo e melhor analisar os preceitos da escola rural.
O eixo das problematizações diz respeito ao modelo de escola rural pensado e instituído no estado de Rondônia. Historiar a educação é fator relevante para melhor compreensão sobre os modelos de escola como asseveraram Barros e Pacífico (2018).
A investigação contou com variadas fontes históricas, entre elas os documentos do Ministério do Interior - Boletim Estatístico Educacional elaborado pela Divisão de Estatística e Pesquisas Educacionais do Território Federal de Rondônia, o III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto do MEC (III PSECD) do Governo Federal, a Revista Documental do Conselho Estadual de Educação de Rondônia e narrativas de professores rurais. “Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho” (CERTEAU, 2006, p. 81, grifo do autor). O segundo trabalho corresponde a operacionalização, o refinamento e o fazer do historiador da educação.
As fontes históricas identificadas e estudadas correspondem aos elementos essenciais para a produção de sentidos para a História da Educação rural no contexto da região Amazônica, Norte do Brasil. De acordo com as fontes coletadas e analisadas percebemos que as escolas rurais rondonienses foram criadas e compuseram o quadro de precariedades e ausências de políticas educacionais. Uma recorrência de acordo com Barros; Ferreira (2020b).
A categoria prioritária da pesquisa foi obtida por meio das análises dos dados de campo e corresponde a escola rural.
Uma escola da República
A República brasileira foi o sinal de modernização, nas palavras de Faoro (2007) institui-se uma política de mudança por meio da ideologia ou pela coação, algo bem distante da perspectiva da “lei natural”.
Na modernidade, a elite, o estamento, as classes – dizemos, para simplificar, as classes dirigentes – coordenam e organizam um movimento. Não o dirigem, conduzem ou promovem, como na modernização. A modernização, quer se chame ocidentalização, europeização, industrialização, revolução passiva, via prussiana, revolução do alto, revolução de dentro, ela é uma só, com um vulto histórico, com muitas máscaras, tantas quantas as das diferentes situações históricas. Talvez se possa dizer, ainda, que a modernização, ao contrário da modernidade, cinde a ideologia da sociedade inspirando-se, mais na primeira do que na segunda. (FAORO, 2007, p. 125-126).
Por um lado, o Império e a modernidade, por outro lado a República e a modernização. Historiar a educação é também entender que cada contexto social se relaciona como outro. Modernidade e modernização foram as luzes escolhidas em determinados momentos. Segundo Benjamin (2012), o historiador estabelece conceitos na condição de parâmetros para o melhor entendimento dos fatos.
A palavra apócrifa de um evangelho – aquilo com que atinjo cada um é o instrumento com que o sentencio – lança uma estranha luz sobre o Juízo Final. Lembra o apontamento de Kafka: o Juízo Final é a lei marcial. Mas acrescenta-lhe mais alguma coisa: de acordo com aquelas palavras, o Juízo Final não se distinguiria dos outros. Seja como for, essa palavra do evangelho fornece o cânone para um conceito de presente que o historiador toma como seu. Cada momento é o do julgamento de certos outros momentos que o precedem (BENJAMIN, 2012, p. 191).
Benjamin (2012), nos traz ao debate conceito de presente, e dentro deste tempo inserimos as representações da escola republicana. A escola do tempo republicano instaurou ritos, espetáculos e celebrações, de acordo com Souza (1998) a escola se articulou com o projeto prometéico de civilização da nação brasileira. Uma representação de parte dos processos de avanços da sociedade, seja nos aspectos econômicos, sociais, tecnológicos, científicos e políticos. “A escola pública emerge dos sentidos dessa relação intrínseca – é uma escola para a difusão dos valores republicanos e comprometida com a construção e consolidação do novo regime” (SOUZA, 1998, p. 27, 28). O que se esperava da “nova” escola a reboque da construção e/ou representação do novo regime?
Nas pesquisas que realizamos foi possível verificarmos que o debate do projeto prometéico não se vinculou unicamente na transição do regime imperial para o republicano. Para melhor entender a escola e suas realidades a categoria cultura escolar na condição representante de elementos dos cotidianos escolares (material e simbólico) estabelecem interlocução entre o passado e o presente. Nesse sentido, a história do estatuto socioprofissional dos professores primários rurais, parte dos processos formativos, dos modos de recrutamento, da carreira, dos salários e das condições de trabalho são variáveis importantes para o melhor entendimento daquilo que significou e significa a escola rural. Barros; Ferreira (2020a) abordaram sobre as condições de trabalho de professores e professoras rurais.
Falar da escola rural, contudo, é relembrar parte da cultura escolar que despertou pouca visibilidade, talvez por carregar uma representação negativa à medida que suas instalações na maioria das vezes foram e são precárias ou provisórias. A escola rural nos diversos cantos do Brasil e em diversos contextos temporais carregou e ainda carrega similaridades, a exemplo da estrutura física de tábuas, escolas de uma sala só e pouco espaçosa, materiais pedagógicos rudimentares ou inexistentes e muitas vezes uma escola multisseriada. Uma verdadeira colcha de remendos, onde formas e cores se misturam, tecidos de todos os tamanhos e texturas. Tudo isso nos demonstra o quanto a escola rural pejorativamente taxada como escolinha da roça se fez presente nas políticas de Estado e nos projetos de modernidade e modernização.
Contudo, as transformações sociais rumo ao moderno transcorreram sob as marcas da exclusão, tornando evidentes as contradições nesse processo. Sobre a educação, embora sua expansão tenha se fundado no discurso da igualdade, de fato, ao se ofertar atendimento diferenciado para os segmentos urbano e rural, hierarquizou-se o acesso ao ensino público, privilegiando categorias sociais (SILVA, 2017, p. 269).
As transformações políticas e econômicas ocorridas no bojo do regime não agregaram a escola rural como foco de suas ações, embora o Brasil do início do XX ainda possuía maior contingente populacional no meio rural. Parece-nos que a escola rural não despertava muito interesse das administrações públicas, seja no âmbito municipal, estadual ou até mesmo federal.
A escola primária republicana instaurou ritos, espetáculos, celebrações. Em nenhuma outra época, a escola primária, no Brasil, mostrara-se tão francamente como expressão de um regime político. De fato, ela passou a celebrar a liturgia política da República; além de divulgar a ação republicana, corporificou os símbolos, os valores e a pedagogia moral e cívica que lhe era própria. Festas, exposições escolares, desfiles dos batalhões infantis, exames e comemorações cívicas constituíram momentos especiais na vida da escola pelos quais ela ganhava ainda maior visibilidade social e reforçava sentidos culturais compartilhados. Eles podem ser vistos como práticas simbólicas que, no universo escolar, tornaram-se uma expressão do imaginário sociopolítico da República (SOUZA, 1998, p. 241).
A escola como representação de um regime político, essa síntese revela a ideia de reordenar a população de modo a assegurar os valores e a pedagogia moral e cívica. Introduzir novos hábitos condizentes a uma sociedade civilizada, agregou a “mentalidade” da República. Se por um lado a escola imperial significava o atraso, na República a escola deveria ser a representação do discurso moralista dos médicos e higienistas, dos avanços e do progresso.
A escola imperial foi alvo de constantes críticas dos médicos devido a sua falta de asseio, ao mobiliário inadequado e a métodos que expunham os alunos à fadiga. Isso motivou a construção de novas edificações escolares higiênicas, como os grupos escolares, a disseminação de métodos didáticos que incentivavam a atividade dos alunos e a introdução das disciplinas higiene, ginástica e educação física no currículo das escolas normais, primárias e secundárias (VEIGA, 2007, p. 261).
Pelo menos em tese a escola da República deveria superar parte dos diversos problemas advindos do Império, porém um dos eixos centrais da nova etapa foi sem dúvida a tentativa de combate a anomalia de uma sociedade recém-saída da escravidão. Evitar os vícios, a vagabundagem e a prostituição era parte dos compromissos dos princípios médicos que ditavam as regras para a organização da escola republicana diante do projeto instituído. Nessa perspectiva de propagandear um Brasil diferente, o meio rural era o local em que habitavam os matutos, os caipiras e os jecas, adjetivos do homem que não se adequava aos novos tempos e que pelo fato de residirem no campo carregavam uma pecha. Para muitos só havia um lugar em que a modernidade se destacava - a cidade. O outro lugar, o campo era espaço de atraso, complexa situação que corroborou para a manutenção da ordem e dos modelos de educação. A ideia de dicotomia entre superior e inferior incutia no imaginário social uma disputa, daí o processo de migração possivelmente era intensificado, e em alguns momentos o êxito rural era o sinônimo de busca pela ideia de progresso.
Matutos, caipiras, jecas: certamente era com esses olhos que, em 1950, os 10 milhões de citadinos viam os outros 41 milhões de brasileiros que moravam no campo, nos vilarejos e cidadezinhas de menos de 20 mil habitantes. Olhos, portanto, de gente moderna, ‘superior’, que enxergava gente atrasada, ‘inferior’. A vida da cidade atrai e fixa porque oferece melhores oportunidades e acena um futuro de progresso individual, mas, também, porque é considerada uma forma superior de existência. A vida do campo, ao contrário, repele e expulsa (NOVAES; MELLO, 1998, p. 574).
No excerto acima podemos verificar que o meio rural ou campo brasileiro carregou a pecha de atrasado, ou melhor, os sujeitos que pelo simples fato de residirem no campo eram tachados de arcaicos. Porém, a estrutura social do campo nos demonstra que a oligarquia de latifundiários advinda da exploração do trabalhador controlava a propriedade de terra, ou os meios de produção e gerava riquezas diversas. Os latifundiários capitalistas compunham os quadros das elites dirigentes do país.
Percebemos em Mendonça (1997), a ideia do discurso de modernização na condição de diversificação agrícola, além de possíveis apropriações que os agentes políticos estabeleciam no intuito de incentivar o processo de crescimento mercantil percebido como caótico. Em outras palavras, uma redefinição da agricultura na economia brasileira.
O caráter da produção em larga escala e o reaquecimento da agricultura no Brasil ocuparam parte dos discursos, fosse por meio da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), que integrava proprietários agrários insatisfeitos com as questões econômicas ou por parte dos governos que instituíram diversas reformas objetivando evitar o caos econômico, de forma que Mendonça (1997, p. 78) referenda que “a terra, desta feita, era pensada como fundamento de transações financeiras rápidas o bastante para dar suporte a uma acelerada capitalização do campo [...].” Para os trabalhadores rurais que compunham a base significativa da pirâmide etária restava poucas alternativas, pois o campo brasileiro foi rentável para poucos, em específico para as elites agrárias.
Restava sempre a saída de ‘aventurar-se’ na fronteira agrícola em movimento. O deslocamento permanente da fronteira agrícola, nestes anos que vão de 1950 a 1980, tornou-se possível porque o Estado foi construindo estradas de rodagem e criando alguma infraestrutura econômica e social (eletricidade, polícia e justiça, escolas, postos de saúde etc.) nas cidades que foram nascendo ou revivendo na ‘marcha para o interior do Brasil’. Nos anos 50, o trabalho na agricultura do Norte do Paraná atraiu muitos migrantes, bem como na ‘abertura’ de terras em Goiás e no que seria hoje o Mato Grosso do Sul. Depois, nos anos 60 e 70, intensificou-se o movimento em direção à fronteira norte, ao Mato Grosso, Rondônia, Amapá, Sul do Pará e Sul do Maranhão. Mas na fronteira, aqueles pobres migrantes se encontrariam sempre com a habitual violência dos grandes proprietários ou dos ‘grileiros’, cheios de capangas, protegidos pelos governos, prontos para desalojá-los, para jogá-los para terras mais distantes e piores (NOVAES; MELLO, 1998, p. 580. Grifo nosso).
O processo de deslocamento, de “aventurar-se na fronteira agrícola em movimento” corroborou para a reafirmamento do poder político das elites agrárias e a expansão das áreas até então não exploradas, o estado ou terras de Rondônia foi uma das alternativas de exploração no circuito capitalista no meio rural.
A aceleração da migração foi considerada, entre outros fatores, como consequência imediata do asfaltamento da Rodovia Porto Velho-Cuiabá e de outras estradas. Outro fator de migração foi a campanha feita pelo governo de Rondônia retratando o novo estado como o ‘El Dorado’ na região Amazônica para agricultores sem-terra e outros tantos marginalizados da sociedade. Também outro fator considerado relevante para o aumento da migração foi a crise econômica atravessada pelo país em meados dos anos de 1980. Muitas pessoas das áreas urbanas das regiões do centro-sul migraram para Rondônia em busca de trabalho e com ilusão do ouro em garimpos recentemente descobertos, além de outras atividades agrícolas (PACÍFICO, 2010, p. 103).
A busca pelo “El Dorado” intensificou o processo migratório para a região Norte do Brasil, de território a estado de Rondônia, Pacífico (2010) nos traz alguns exemplos que estabelece desde o sonho pela descoberta do “El Dorado” que diz respeito a ações orquestradas pelos próprios governantes até a extração de ouro por meio dos garimpos ilegais no curso do Rio Madeira e outros afluentes.
O Norte e a escola rural
Resta-nos melhor entender o que significou a escola nesse modelo de expansão territorial para o Norte do país. Trazemos a hipótese que o Território Federal do Guaporé nesse conjunto representou mais um projeto de civilização embora em contexto diferente ao que Souza (1998) estabeleceu.
Nesse conjunto as ações no campo da educação são anunciadoras de novas aspirações na estrutura econômica como meio de acumular riquezas e ampliar sua participação na esfera política. A partir daí, processa-se no Estado e no município diversas “reformas” educacionais inspiradas em modelos em circulação e representados por diversas facetas de grupos intelectuais e políticos.
Em fins da primeira metade do Século XX, em específico o ano de 1943 institui-se a criação do Território Federal do Guaporé. Treze anos depois foi criada a Lei número 2.731 de 17 de fevereiro de 1956 que estabeleceu a denominação do Território Federal do Guaporé para Território Federal de Rondônia. Já em fins de 1982 cria-se o estado de Rondônia. Podemos perceber que o estado de Rondônia foi criado recentemente.
O município de Porto Velho que hoje é a capital do estado de Rondônia, foi criado em 02 de outubro de 1914, pertencente ao estado do Amazonas. Sua história confunde-se com a história do próprio estado.
A história do município de Porto Velho confunde-se com o início da história do próprio Estado, já que foi ele o palco do ‘desenvolvimento’ inicial, do hoje, Estado de Rondônia. Este tem em sua memória muitas histórias construídas. Histórias que vão do horror ao trágico – entre outras, como aquelas ligadas à construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré; à devastação das florestas e assassinatos dos povos indígenas, justificado pela necessidade de um modelo de desenvolvimento econômico do Território/Estado; desumanização do ser humano e destruição do espaço natural em virtude dos garimpos, e; os conflitos e massacres na luta dos pequenos agricultores pela terra – até às conquistas – como a resistência e luta dos, também, povos indígenas pelos seus direitos e pela manutenção de suas culturas; a luta incessante dos migrantes por vida e dignidade (PACÍFICO, 2010, p. 100).
As tensões estabelecidas diante do recém estado de Rondônia e suas diversas histórias que “vão do horror ao trágico” compõem os artefatos da memória. No jogo de manutenção das culturas a escola também se fez e se faz presente. O estado e a educação, quais os indícios dos modelos de escolas para o meio rural em Rondônia?
A partir das ideias de Bloch (2001), um dos documentos analisados por nós foi o Boletim Estatístico Educacional elaborado pela Divisão de Estatística e Pesquisas Educacionais, de responsabilidade da Secretaria de Educação e Cultura, vinculada ao Território Federal de Rondônia – Ministério do Interior. O documento foi produzido em 1981, antes da criação do estado de Rondônia com intuito de levantar o perfil Sociocultural de Rondônia. A meta estabelecida foi a “realização de uma pesquisa no meio rural a fim de identificar os recursos naturais e socioeconômicos da zona rural, visando subsidiar a elaboração de cartilhas e livros de 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries do 1º grau, no período: maio a novembro de 1981, em todos os municípios de Rondônia.” O Boletim apresenta 172 páginas, uma espécie de livro datilografado contendo textos, tabelas e questionários. Seu formato é similar a folha de papel A4 e seu estado de conservação é bom. Traz a assinatura do diretor da Divisão de Estatística e Pesquisas Educacionais, o Sr. Isaias Vieira dos Santos. Nos agradecimentos faz menção aos professores rurais de seguinte forma: “agradecemos aos professores rurais pela colaboração, a boa vontade e a seriedade demonstrada no decorrer desse trabalho”. Neste ponto inferimos que os professores do quadro do magistério rural nos anos 80 do século XX eram em número significativo, mesmo após todas as mudanças nos contextos socioeconômicos de migração e do êxodo rural. O Boletim é um documento oficial produzido para auxiliar programas educacionais destinados ao meio rural.
A elaboração deste projeto é fruto da preocupação da Secretaria de Educação e Cultura de Rondônia em dar continuidade aos programas educacionais voltados para o meio rural, dentre os quais incluem-se estudos e pesquisas que visam promover o conhecimento dos grupos populacionais da zona rural de Rondônia, em vários aspectos (BOLETIM ESTATÍSTICO, 1981, p. 5).
O Boletim é uma espécie de projeto, capaz de subsidiar a partir de dados estatísticos sobre o meio rural, setores das administrações públicas para o repensar do currículo e dos programas de ensino destinados para as escolas rurais. A proposta também trata de “mapear” o perfil sociocultural do Território Federal de Rondônia nas vésperas da criação do estado de Rondônia, no Norte do Brasil.
O projeto visa também dar continuidade aos programas de pesquisa já desenvolvidos pela Divisão de Estatística e Pesquisas Educacionais (DEPE) voltados para o meio rural e que incluem: uma pesquisa de campo já realizada, cujos resultados subsidiarão a Divisão de Currículos e Programas, nas elaboração de propostas curriculares para o meio rural, e um projeto de pesquisa denominado ‘Perfil Sócio-Cultural de Rondônia’, que será levado a efeito em duas etapas - numa primeira, o levantamento do modus vivendi das etnias e culturas regionais e, numa segunda, o presente trabalho (BOLETIM ESTATÍSTICO, 1981, p. 5).
Nos chamou atenção na proposta apresentada pela Secretaria de Estado da Educação a ideia de vincular o levantamento do modus vivendi das etnias e culturas regionais a construção de um currículo, neste ponto inferimos que o levantamento dos dados foi de responsabilidade do governo, mas visava o mapeamento a partir das escolas situadas nos diversos municípios do Território Federal. Daí constatamos que havia uma vinculação entre os trabalhos sobre educação rural de responsabilidade do governo do Território Federal de Rondônia juntos às secretarias municipais. Talvez neste ponto o princípio da municipalização apresentado por Gonçalves Neto e Carvalho (2012) não se aplica, pois, os municípios estavam à mercê do próprio Território. Outro detalhe não menos importante diz respeito a ideia de que no ano de 1981 surge a necessidade de repensar o currículo e o programa de ensino destinados para as escolas rurais. Embora a ação tenha importância, externamos que na década de 30 do Século XX já circulava no Brasil o debate sobre o ruralismo pedagógico, ou seja, uma campanha de adequação destas às particularidades regionais como demonstrou Lima (2009). “A educação no meio rural é um tema que vem sendo amplamente debatido, a partir da importância e da prioridade a ele atribuído, pelo III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto do MEC” (BOLETIM ESTATÍSTICO, 1981, p. 10).
A justificativa que ampara a proposta de coleta de dados a partir do III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto do MEC (III PSECD) é arriscada, os motivos são vários, entre eles destacamos o próprio contexto histórico de elaboração do III PSECD, i) crise dos anos 80, ou esgotamento do “milagre econômico”, fim da proposição desenvolvimentista; ii) problemas sociais diversos gerados a partir dos anos de chumbo e provenientes do processo de acumulação de riquezas; iii) reabertura democrática e rearranjo político pela disputa do poder. A partir dos fatores acima mencionados vemos que as propostas de projetos e/ou planos carregavam também forte papel ideológico, daí o III PSECD estar inserido na perspectiva de manutenção ideológica.
Ao verificarmos o documento/texto do III PSECD, no que tange ao meio rural, encontramos: “A primeira linha programática é a educação no meio rural, buscando um dos focos mais acentuados de pobreza no País” (BRASIL, 1980, p.15). No trecho é perceptível a ideia que na área rural encontra-se as menores taxas de escolarização e os elevados índices de repetência e evasão. Outro detalhe também descrito no documento é sobre as dificuldades de adequação da educação às particularidades da população campesina. Por fim, menciona-se a complexidade em garantir escolas de acordo com as necessidades socioeconômicas locais. Já no Boletim de 1981, encontramos similaridades do mesmo debate.
A maioria absoluta dos estudiosos sobre o assunto reconhecem que um primeiro passo a ser dado no sentido de sanar as graves deficiências da educação na zona rural no Brasil é a elaboração de currículos e materiais de leitura apropriados. Esse reconhecimento, a nível ideológico, já pode ser considerado fundamental, uma vez que se apoia na ideia de que a unidade nacional está formada por pluralidade de culturas com características próprias, as quais, vivendo em meios ambientes específicos, estabeleceram formas de ver e dominar o mundo, que devem ser conhecidas e respeitadas. Considerando-se que as sociedades rurais-agrícolas têm valor diferente das sociedades urbano-industriais, fica claro que há antagonismo de linguagem entre ambas, e que conteúdos curriculares concebidos sem levar em conta essa constatação estão fadados ao fracasso (BOLETIM ESTATÍSTICO, 1981, p. 10. Grifo nosso).
Não há diferenças significativas ao analisarmos os documentos em tela, o Boletim de 1981 sendo uma produção endereçada para subsidiar a elaboração de conteúdos e programas de ensino para a educação básica rural aborda alguns conceitos entre os quais se destacam: meio rural, recursos socioeconômicos, universo vocabular, folclore e proto-tecnologia. Um dos exemplos é “[...] o levantamento do universo vocabular é de suma importância para a confecção de materiais de leitura para a zona rural, porque reflete, da forma mais direta possível, o mundo real dessas populações” (BOLETIM, 1981, p. 18).
No Boletim de 1981 há tabelas/quadros sobre o quantitativo de unidades escolares do ensino de 1º grau na zona rural nos municípios mais populosos do Território Federal de Rondônia: Em Porto Velho 69 escolas, Ariquemes 181 escolas, Ji-Paraná 298 escolas, Cacoal 225 escolas, Pimenta Bueno 95 escolas, Vilhena 134 escolas e Guajará Mirim 75 escolas, totalizando 1.077 escolas rurais. Destas 582 participaram da pesquisa que gerou o Boletim de 1981, um quantitativo de 50% da totalidade. Ao focarmos as buscas por dados específicos do município de Porto Velho encontramos alguns problemas, o primeiro diz respeito a ausência de importantes distritos que compunham o próprio município e o segundo a falta de dados específicos sobre o próprio município de Porto Velho. O destaque vai para o distrito de Calama, pertencente a Porto Velho, o único a ser mencionado no documento em que o processo de colonização se diferenciou das demais localidades ao longo da BR 364.
A ocupação do Vale do Madeira, muito antiga, configura cultura com características próprias, influenciada pelo elemento indígena. [...] é evidente que a maioria das pessoas chegou aos lotes de suas residências atuais de barco ou de canoa. Houve quem chegasse ‘a pé’. Foram citados também ‘de batelão’ e ‘de rabeta’ (BOLETIM, 1981, p. 118).
Já sobre a estrutura físicas das escolas, as paredes de madeira se destacam, o cedro foi a madeira mais utilizada para construção de escolas, apenas em 5 comunidades as escolas eram de alvenaria, as demais de madeira. “Usualmente as madeiras de lei são usadas na construção de casas. Para a construção de escolas as comunidades preferem, na sua maioria, madeiras de menor valor” (BOLETIM, 1981, p. 163). Neste ponto percebe-se que a construção de escolas ficava por conta da própria comunidade, o poder público sequer foi mencionado. Em fins do Século XX nos deparamos com problemas parecidos aos do Século XIX em que Machado de Assis mencionava a situação da escola que estudava.
No item sobre nutrição encontramos o número de 45 escolas que compunham o distrito de Calama, e segundo dados contidos no Boletim de 1981 todas as escolas recebiam merenda escolar. Outro destaque foi a significativa presença de parteiras nas comunidades, dada as dificuldades de deslocamento para a sede do município, algo em torno de 150 km seguindo o curso no Rio Madeira (de barco, rabeta, voadeira, lancha, canoa, batelão ou etc.). A metade dos informantes mencionou a presença de curandeiros que fabricavam os próprios remédios. Fica-nos evidente a diversidade de problemas apontados e a ausência de resultados no formato de políticas públicas para amenizar ou resolver os desafios enfrentados pela população ribeirinha. Para nossa surpresa o povo foi taxado como portador de “consciência mágica” a partir de uma interpretação de Paulo Freire:
Quanto a ideologia, e a mentalidade desses grupos é tipicamente aquela que Paulo Freire chama de ‘consciência mágica’: em que o povo dispõe do simbolismo para justificar as causas dos problemas, ficando no conformismo em função de princípios dogmáticos. Os colonos agradecem a Deus e ao Governo pelo pouco que tem, e põem na conta dos seus pecados suas adversidades (BOLETIM, 1981, p. 160).
O Boletim de 1981 por ser um documento de autoria dos secretariados do Governo do Território Federal de Rondônia, que estabelece a lógica de se eximir de toda e qualquer responsabilidade, faz críticas infundadas a partir do levantamento/pesquisa realizado. Ao mencionar o conceito de “consciência mágica” a partir de uma visão negativa se esquece que Freire (1981) estabelece a ideia de ação/reflexão a partir da relação sujeito/objeto.
[...] posto diante do mundo, o homem estabelece uma relação sujeito-objeto da qual nasce o conhecimento que ele expressa por uma linguagem. Esta relação é feita também pelo analfabeto, o homem comum. A diferença entre a relação que ele trava neste campo e a nossa é que sua captação do dado objetivo se faz via preponderantemente sensível. A nossa, por via preponderantemente reflexiva. Deste modo surge da primeira captação uma compreensão preponderantemente ‘mágica’ da realidade. Da segunda, uma compreensão preponderantemente crítica. Como toda compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde, a uma ação, a uma compreensão preponderantemente mágica corresponderá também uma ação mágica (FREIRE, 1981, p. 67).
Embora o III PSECD do MEC tenha servido de base para a elaboração do Boletim de 1981, não encontramos documentos no arquivo do Palácio Getúlio Vargas que comprovasse a efetivação de um currículo que agregasse as especificidades da Região Norte. Até o momento os órgãos responsáveis pela educação rural no município de Porto Velho não disponibilizaram nenhum material para consulta que permitam averiguar se de fato ocorreram alterações no currículo e no programa de ensino das escolas rurais.
O III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto do MEC chama atenção para o fato de que é necessária a inclusão de elementos de ordem antropológica nos currículos da Região Norte, onde coexistem populações indígenas e colonos. Essa noção estereotipada que o colono tem do índio tem levado a desastrosas consequências nocivas e o processo educacional poderia interferir, visando sanar o problema, o que pode ser feito através de ideias básicas lançadas no currículo (BOLETIM, 1981, p. 162. Grifo nosso).
É possível observarmos que o conflito entre colonos e índios se destaca, mas os dados apresentados no Boletim de 1981 não são suficientes para afirmarmos que a tensão se restringe entre índios e colonos por diversos motivos, entre eles: o que se entende por colono? É o sinônimo de elites agrárias? É o sinônimo de trabalhadores sem a posse da terra? O que se esconde nas linhas do mencionado documento é o conflito agrário entre grileiros e trabalhadores rurais. Entre grileiros e índios. Sintetizar o debate ao conflito entre colonos e índios é algo simples e conveniente para o poder público, mas não representa a verdade.
Em nossas atividades de captação de fontes históricas sobre o ensino rural em Porto Velho nos deparamos, na Biblioteca do Conselho Estadual de Educação Professor Abnel Machado de Lima, com duas publicações periódicas do próprio Conselho, é a revista Documental nº 8 e 10. Os demais volumes não foram encontrados, a revista é uma espécie de prestação de contas sobre os atos do Conselho Estadual de Educação, traz em seu escopo pareceres, resoluções, indicações e portarias. Tudo indica que era uma publicação anual. Aqui trazemos apenas dois fragmentos, um é sobre o parecer nº 012/CEE/RO87, tendo como relatora a Sra. Magna França de Queiroz, o texto trata da aprovação do “Projeto para o Ensino de 1º Grau, referente aos recursos do Salário-Educação, do município de Porto Velho”, o documento está divido e apresenta as seguintes partes/itens: i) histórico; ii) análise; iii) voto da relatora; iv) conclusão da câmara de planejamento e v) decisão do plenário. Sobre a matéria em pauta houve aprovação por unanimidade. O item trata da aplicação dos recursos do Salário-Educação em conformidade com o projeto elaborado pela prefeitura e em consonância com o Decreto nº 38.374/83, a Lei nº 5692/71 e Decreto nº 91.791/85 que dispõem sobre o estatuto do magistério municipal.
O valor total do projeto é de Cz$ 16.982.100,00 (Dezesseis milhões, novecentos e oitenta e dois mil e cem cruzados). Suas ações estão voltadas para a construção, ampliação e recuperação de unidades escolares, treinamento de docentes e supervisões, aquisição de material didático, equipamentos para as zonas rural e urbana (DOCUMENTAL, 1990, v. 10. p. 122-123).
O Conselho Estadual de Educação atuava em consonância com o poder municipal, no excerto acima não há distinções sobre os valores a serem destinados para as escolas rurais e as urbanas. Mas em seu contexto é possível inferirmos que a situação de ambas não eram as melhores. O parecer foi aprovado por unanimidade pela Câmara de Planejamento em Sessão Plenária de 12 de fevereiro de 1987, embora a publicação da revista seja de ano diferente. Ressaltamos que nessa ocasião o estado de Rondônia já estava criado e havia número significativo de escolas rurais. Nas revistas analisadas não constaram nenhuma inferência sobre constituição de novos currículos e nem sobre programas de ensino para as escolas rurais. Nos chamou atenção a descrição de outro município, o de Jaru/RO, sobre a aprovação de funcionamento de nada menos do que 51 escolas rurais. No parecer de nº 036/CEE/RO/87, de 7 de outubro de 1987 temos o seguinte:
As cinquenta e uma escolas rurais de Jaru oferecem condições de ensino quase idênticas. São escolas construídas em madeira e cobertas de brasilit. O estado de conservação varia de ótimo a bom. Os terrenos medem, em média, 2.500 m². As salas de aula da escola medem, em média 48m², o que corresponde às necessidades.
A merenda escolar é distribuída pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura local a cada mês e a confecção e preparo corre por conta dos professores.
Quanto ao material didático, utiliza-se em todas as escolas o quadro negro e outros materiais fornecidos pela SEMEC, tais como apostilas, cartolinas, etc.
Os professores são, na sua maioria, leigos. Cursam, contudo, o Projeto Logos II, que é praticamente obrigatório para todos os professores leigos (DOCUMENTAL, 1990, v. 10. p. 28. Grifos nosso).
Jaru foi criado como Município por meio da Lei 6.921, de 16 de junho de 1981, localizado na Região central do estado de Rondônia, é um munícipio recente e em fins dos anos 80 do Século XX instituiu de acordo com a Revista Documental nº 10, 51 escolas rurais. Jaru é um dos exemplos que encontramos na documentação histórica sobre o que representa as escolas rurais. Os destaques no excerto acima enfatizam as condições físicas das escolas – madeira, a merenda escolar de responsabilidade do professor – preparo, o material didático disponibilizado para o trabalho em sala de aula – apostilas e cartolinas e a formação dos professores – leigos. Essa é uma das realidades que se multiplicam nos diversos municípios de estado de Rondônia no Norte do Brasil.
De acordo com o IBGE, censo de 2007 o município de Porto Velho apresentava o total de 126 escolas rurais (11 estaduais e 115 municipais) e 97 escolas urbanas (46 estaduais e 51 municipais). Nessa lógica o número de escolas rurais era superior as urbanas, porém poucos indícios encontramos na documentação sobre as escolas rurais de Porto Velho.
Em entrevistas com professores de escolas rurais do município de Porto Velho, constatamos no tempo presente diversos dos problemas anunciados nos documentos já apresentados e explicitados por Barros e Ferreira (2020b).
Eu já trabalhei em uma escola rural há 32 km daqui, atravessava esse rio das Garças, mas só que a gente entrava lá no km 21, e andava mais 11 km até chegar na escola [...]. Eu já trabalhei em uma escola que era assim um “L”, assim fora a sala de aula era tudo aberto, que nem aí na varanda, o sol ia chegando dentro da sala e no quadro e eu ia virando, para não pegar sol nas crianças, eu ia virando, o quadro ia andando de acordo com o sol que ia subindo. Já trabalhei dois anos em uma escola assim, tudo aberto, sem nada, só tinha giz, só, só giz, não tinha livro, não tinha nada, nada mesmo. Sobre a merenda eu a deixava na minha casa, porque na escola não poderia deixar, era tudo aberto, eu fazia a merenda na minha casa e a levava a uns 30 e poucos km de bicicleta (Entrevistado/a 1. Entrevista concedida a Suelen Cristina S. P. Dias. Porto Velho, 11 out. 2018).
Acima a narrativa de um dos professores de uma sala de aula rural multisseriada no município de Porto Velho, a realidade a que se refere na entrevista é “nua e crua”, faz parte de um contexto de fragmentação de ações públicas das administrações sobre a educação. O fragmento de entrevista é mais um número para os dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas sem amparo das administrações públicas responsáveis pelos sistemas de ensino. As condições de funcionamento das salas de aula no meio rural não são as melhores, Dias (2017) e Barros et al. (2020) mencionaram parte dos desafios enfrentados por professores e professoras rurais no contexto amazônico.
A escola rural de uma sala só e multisseriada ainda é uma das realidades na região Amazônica, sua estrutura física normalmente é de madeira, dificilmente possui água potável encanada, depende do poço e de diversos outros fatores para funcionar, sobretudo da coragem e determinação dos professores e das professoras que sempre assumiram e assumem diversos atributos porque acreditam na educação.
Os professores e as professoras rurais assumiram e assumem um ideal pedagógico de força, de coragem e de resistência para levar aos povos da floresta – rurais/ribeirinhos importantes conhecimentos. Enfrentam desafios, resistem e recriam ações na condição de táticas a partir de Certeau (2002).
A seguir apresentamos parte de uma da entrevista. É possível verificarmos que há um esforço particular para manter a escola rural ribeirinha em condições de funcionamento, mesmo com recursos próprios. Percebemos uma atitude consolidada na ação/reflexão para solucionar os desafios de educar crianças em áreas rurais/ribeirinhas.
A escola rural ribeirinha é de uma sala só, é multisseriada, ao todo são 45 crianças que estudam aqui. A escola não tem aquela estrutura que a gente espera que tivesse, mais assim, a gente tenta adaptar tudo. A gente tenta adaptar e fazer do nosso jeito. Para roçar a escola eu mesmo pago do meu bolso, eu cuido da escola. Nos finais de semana quando aparece alguma coisa eu venho para a escola e faço. Tem toda uma dificuldade, mas a gente vai se adaptando. Antes de iniciar esse ano [2019] carregamos tudo da escola, porque a água ficou bem próximo daqui. Então para não acabar com o pouco que a gente tem é preciso tirar tudo para outro lugar. Passamos duas semanas carregando as coisas da escola. Aí a gente sai daqui com as coisas da escola dentro da voadeira [tipo de embarcação pequena], foram diversas idas e vindas, até que a voadeira quebrou. [...] passávamos com as coisas da escola dentro das baixas para não estragar nada do pouco que a escola tem. Não poderíamos perder nada né (Entrevistado/a 2. Entrevista concedida a Josemir Almeida Barros. Porto Velho, 25 nov. 2019).
A pesquisa, como se espera, mostrou parte dos desafios de professores e professoras rurais em região de floresta, expôs os contextos pelos quais o fazer docente se consolida sem a participação direta da administração pública.
Os dados estatísticos sobre o Censo da Educação divulgados em 2020 por meio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, traz diagnóstico sobre as escolas rurais e aponta para problemas já mencionados por nós e conhecidos pelas autoridades administrativas responsáveis pelos sistemas de ensino público.
Verificamos a falta de ações político-pedagógicas para potencializar as políticas de educação rural ainda fragmentadas, realidade presente em diversas localidades do Brasil. Barros (2013), nos apresentou os diversos problemas vinculados aos fatores econômicos, políticos e sociais ao nos deparamos com as mazelas das escolas rurais.
Considerações finais
Muitas são as adversidades que acompanham a educação rural no Brasil, percebemos as precárias escolas, muitas vezes distantes umas das outras, além da própria dificuldade de comunicação, ausência de estradas que viabilizem o melhor deslocamento das crianças e dos jovens. Ao tratamos do interior da escola percebemos também a falta de recursos pedagógicos necessários e adequados. Por vezes o problema da falta de professores com formação também adequada para lidar com os processos pedagógicos tende a se repetir.
No contexto da pesquisa desenvolvida sabemos que o crescimento populacional de Rondônia a partir da década de 70 do Século XX teve diversas repercussões nos aspectos sociais, neste ponto os sistemas de ensino careciam de auxílios diversos. De lá para cá as demandas por recursos financeiros suficientes para o atendimento das escolas rurais foram aumentando, porém, o restrito avanço nas políticas públicas educacionais não foi o suficiente para sanar os problemas. Atualmente percebemos a defasagem entre as ações de atendimento aos serviços de ensino para as escolas rurais e a demanda sempre crescente por novas possibilidades de manutenção das escolas e qualificação de seu efetivo, ou seja, dos professores das escolas rurais.
O modelo de escola instituído em terras rondonienses se destaca pelas ausências de parâmetros técnico-científicos e sobretudo fragilidade das políticas públicas sociais, embora em alguns momentos haja esforços do poder público para mapear parte das características da população e do próprio território/estado em questão. A escola rural de hoje pode até carregar a ideia de democratização, no entanto é algo aparentemente mais justo que no passado.
A escola rural é o resultado da racionalização da educação, mesmo diante da diversificação de situações e das diferenças sociais em terras rondonienses, a unicidade do modelo urbano de escola ainda prevalece em diversas localidades.
Ainda se faz presente o modelo de escola rural pensado pelo poder público sem a participação efetiva de seus integrantes – alunos, comunidades e professores. Alunos oriundos de classes populares no meio rural continuam a experimentar diversas dificuldades para acessar e permanecer em escolas rurais. De todo modo a escola é algo sonhado e desejado por muitos.
Affonso Romano de Sant’Anna, nascido em Belo Horizonte, em 1937, jornalista, professor, cronista, poeta e ensaísta nos apresenta uma crônica intitulada de Porta de Colégio em Macedo (2012), diz assim: “passando pela porta do colégio, me veio uma sensação nítida de que aquilo era a porta da própria vida. Banal, direis. Mas a sensação era tocante. Por isto, parei, como se precisasse ver melhor o que via e previa.” Fica-nos o desejo de que a escola rural possa ocupar o lugar de ser vista e entendida em sua constituição, lugar onde as culturas se entrelaçam a outros bordados, a escola de fato é a vida!