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Revista de Educação Pública

Print version ISSN 0104-5962On-line version ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.31  Cuiabá Jan./Dec 2022  Epub Apr 30, 2022

https://doi.org/10.29286/rep.v31ijan/dez.11279 

Artigos

Wahuiru Pakup: os sentidos da escola

Wahuiru Pakup: the meanings of school

1Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com estágio doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/Paris). Professora Adjunta da Universidade Católica de Petrópolis, integrando o Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UCP) e coordenadora do Grupo de Estudos em Educação, Cultura e Contemporaneidade (GRECCA/UCP).

2Mestre em Educação pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e pesquisadora do Grupo de Estudos em Educação, Cultura e Contemporaneidade (GRECCA/UCP).


Resumo

Este artigo apresenta um recorte de uma pesquisa cujo objetivo foi analisar os sentidos da escola para os Sateré Mawé. De caráter etnográfico, a pesquisa procurou empreender uma “descrição densa” das relações sociais e simbólicas observadas na Escola Municipal Indígena Wahuiru Pakup (Novo Sol), localizada na Terra Indígena Andirá-Marau, Comunidade Monte Salém, Maués/Amazonas. A observação participante no dia a dia das famílias – da farinhada às brincadeiras no rio com as crianças –, e a escuta ativa realizada com os interlocutores da pesquisa – o professor, os alunos e seus pais – possibilitou a compreensão dos sentidos da escola para a comunidade.

Palavras-chave Educação; Educação escolar indígena; Etnografia; Sateré-Mawé

Abstract

This article presents a excerpt from a research which objective was to analyze the meanings of school for the indigenous society Sateré Mawé. Ethnographic in character, the research sought to undertake a “thick description” of the social and symbolic relations observed at the Wahuiru Pakup Indigenous Municipal School (Novo Sol), located in the Andirá-Marau Indigenous Land, Monte Salém Community, Maués/Amazonas. Participant observation in the daily lives of families - from flour to playing in the river with children -, and active listening carried out with the research interlocutors - the teacher, students and their parents – enabled the understanding of the meanings of school for the community.

Keywords Education; Indigenous school education; Ethnography; Sateré-Mawé

Introdução

Eu nunca neguei ser Sateré Mawé mesmo quando fui estudar na cidade. Riam de mim. Mesmo assim eu nunca neguei, nunca fiquei abalado, porque Tupanã me fez Sateré Mawé e eu tenho orgulho disso. Karaxué, pai do professor da escola Wahuiru Pakup

O desejo diz: eu não queria ter de entrar nessa ordem arriscada do discurso (...) Michel Foucault

Este artigo é fruto de uma pesquisa cujo objetivo foi analisar os sentidos da escola para os Sateré Mawé. De caráter etnográfico, a pesquisa procurou empreender uma descrição densa (GEERTZ, 1989) das relações sociais e simbólicas observadas na Escola Municipal Indígena Wahuiru Pakup (Novo Sol), localizada na Terra Indígena Andirá-Marau, Comunidade Monte Salém, Igarapé do Atuca, Rio Pupunhal, município de Maués, no estado do Amazonas.1 A intensa imersão no campo e a observação participante (OLIVEIRA, 1996) no dia a dia das famílias, de seus ritos e práticas cotidianas – da farinhada às brincadeiras no rio com as crianças, passando pelo trabalho no roçado e as aulas na escola –, e a escuta ativa (BOURDIEU, 2012) realizada com os interlocutores da pesquisa – o professor, as crianças e seus pais, dentre outros parentes2 –, possibilitou a compreensão dos sentidos da escola para a comunidade.

Embora o homo academicus goste do acabado, como provoca Bourdieu (1989, p. 17) referindo-se ao monoteísmo metodológico que confunde “rigor” com “rigidez”, no decorrer da pesquisa evitou-se empreender “um discurso em forma, quer dizer, defensivo e fechado em si mesmo, um discurso que procure antes de mais nada esconjurar o medo da crítica”. Ao contrário: a intenção foi realizar uma pesquisa que oferecesse um registro de experiências a serem compartilhadas com aqueles que se interessam em compreender o que significa, para um indígena, ter que percorrer os “caminhos da escola” fora de sua comunidade de origem em busca de conhecimentos que permitam sua inserção nos espaços estratégicos de decisão – espaços nos quais são forjadas as políticas públicas que possibilitam ou, simplesmente, aniquilam os modos de existência dos povos ameríndios. Como explicou um de nossos interlocutores, Paini’i, que possui o dom da cura, com sua imensa sabedoria: “A pessoa que não lê não tem valor lá fora, a pessoa é desprezada. Nosso país é cheio de leis, eu sei porque o Tui’sa (líder da comunidade) disse, mas ela não enxerga a nós. Se nós não sabe ler, ela fica cega pra nós e desvaloriza a pessoa”.3

Estruturado em duas partes, o artigo aborda, na primeira, alguns aspectos dos processos não formais de educação entre os Sateré Mawé, especialmente aqueles fundados na observação atenta das práticas cotidianas e na escuta curiosa das histórias e mitos. Na segunda parte, apresenta diferentes relatos que revelam os sentidos da escola para a comunidade. Considerando que transcrever uma entrevista implica, em certa medida, reescrever o que foi dito não só com palavras, mas também com gestos, repetições, silêncios e desvio de olhares, dentre outras expressões de um corpo que fala e hesita, resolvemos, na transcrição, cometer o mínimo possível de “infidelidades que são sem dúvida a condição de uma verdadeira fidelidade” (BOURDIEU, 2012, p. 710), para tentar evocar, nessa passagem do oral para o escrito, algo do modo de falar dos Sateré Mawé, com sua cadência tão peculiar.

Em sua belíssima aula inaugural no Collège de France, Foucault (2012, p. 10) defenderia que o discurso não se reduz à tradução das lutas sociais ou dos sistemas de dominação, constituindo, também, aquilo pelo qual se luta; em suas palavras, o “poder do qual queremos nos apoderar”. Como afirmaria na ocasião, ao discorrer sobre as interdições que se cruzam na ordem do discurso, “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2012, p. 41). Ao analisar a falta de correspondência encontrada, não raro, entre o lugar social de indígena, no campo acadêmico, e as posições que se marcam em seu discurso acadêmico, Simas e Martins (2020, p. 190) observam que “o sujeito [indígena] do discurso se inscreve na formação ideológica acadêmica científica, ao utilizar a terceira pessoa para falar do seu próprio povo: os índios”. Conforme salientam, se o discurso acadêmico ainda tende a atrelar o “rigor científico” à ideia de “formalidade”, procurando evitar, em sua retórica, a explicitação da subjetividade ou das emoções do pesquisador em campo, o sujeito discursivo é levado a obliterar sua própria identidade étnica, não a marcando linguisticamente ao recorrer à terceira pessoa: “os Sateré-Mawé”. Meu povo.

Mas como escrever a quatro mãos um artigo na primeira pessoa do singular? Penso/pensamos que sua escritura foi análoga à tecedura da peneira, processo delicado que será discutido adiante: entretecemos juntas as fibras de arumã, frase por frase, traçando diferentes grafismos segundo nossos diferentes pontos de vistas. Um perspectivismo em constante transformação: a floresta, a árvore, a canoa, o remo na água... em interação navegam os rios.

Tecendo a peneira, tecendo conhecimentos

Para os Sateré Mawé – meu povo – a educação institucionalizada é também uma forma de resistência, uma forma de aprender as artimanhas do branco para continuar existindo como indígena. Lembro-me da minha infância com minha avó: andávamos aproximadamente uma hora em uma trilha em meio à floresta densa (SANTOS, 2020). Íamos de paneiro (cesta indígena) nas costas ao encontro de meu avô que retornava da pescaria trazendo nosso alimento. Sentadas à sombra de uma cuieira – árvore que produz um fruto que serve como utensílio usado tanto no cotidiano quanto nos rituais indígenas –, ainda distante, eu reconhecia as remadas de meu avô, o harmonioso balé das correntezas do rio, do remo e de sua canoa. Naquela época eu não entendia o significado do ato, muito menos que este era um processo de transmissão de saberes.

Minha avó não sabia ler nem escrever; porém, tinha a sabedoria das florestas e rios e fazia a leitura do tempo através do sol e da lua. Meu avô, um autodidata, nunca teve a oportunidade de ir à escola. Aprendeu a ler sozinho e a fazer as operações básicas de matemática para poder lidar com os não indígenas, principalmente para negociar com os regatões que passavam de tempos em tempos, em seus barcos, abarrotados de novidades (leite em pó, açúcar em sacos de pano, sabão em barra, sal, entre outras mercadorias) às quais não tínhamos acesso na floresta. Ambos sabiam o valor da escola para a emancipação dos sujeitos e como forma de resistência.

Como explica Baniwa (2006), é pela educação escolar indígena – institucionalizada, com tempo e currículo definidos – que os povos indígenas se apropriam dos conhecimentos considerados “universais”, mas a partir de suas próprias demandas, para reforçar seus próprios projetos socioculturais:

A educação escolar indígena refere-se à escola apropriada pelos povos indígenas para reforçar seus projetos socioculturais e abrir caminhos para o acesso a outros conhecimentos universais, necessários e desejáveis, a fim de contribuírem com a capacidade de responder às novas demandas geradas a partir do contato com a sociedade global (BANIWA, 2006, p. 129).

A educação, em todas as sociedades e épocas, constitui um processo de socialização e incorporação da cultura que transcorre mesmo onde não há escola. O que chamamos “educação” faz parte do processo contínuo de trocas simbólicas que constituem o fundamento de toda sociedade. A educação indígena, sob esse aspecto, constitui o processo de transmissão de conhecimentos/saberes tradicionais, de geração em geração, por meio das relações históricas e socioculturais vivenciadas nas sociedades ameríndias (BRAND, 2012; BERGAMASHI & MEDEIROS, 2010). Esse processo é bem mais amplo do que o processo formal que ocorre na escola – “uma instituição própria dos povos colonizadores”, como lembra Baniwa (2006, p. 129).

Ao pensar a educação indígena, faço uma analogia com a prática de tecer a peneira. Durante o trabalho de campo fui presenteada por um parente da comunidade com uma peneira, tecida com fibras de arumã e pau-de-chuva de molongó. Para tecer a peneira e a capa que envolve o pau-de-chuva são utilizadas fibras de arumã e vernizes naturais, extraídos geralmente de árvores com seiva, ou do ingá, uma fruta regional que possui uma casca viscosa. Os traçados que compõem a peneira são muito simétricos, formando diferentes grafismos. A forma de tecer é simples e, ao mesmo tempo, complexa; demanda tempo, muita paciência e prática para conseguir entrelaçar as fibras de arumã simetricamente. Assim é a tessitura pedagógica dos curumins e cunhatãins: aprendendo desde pequenos pela observação e na prática. Ficam observando o que os adultos fazem e vão treinando desde cedo. Quando o pai vai caçar, leva os seus filhos para que possam aprender ao vê-lo em ação:

A educação na aldeia não segue os padrões de sala de aula, é um aprender sem pressa, na calma e sem tempo de relógio. Ensinar a pescar, a remar, a fazer a roça, a produzir a farinha, a construir a casa, tecer a palha, preparar o pajauaru, caiçuma, bejú, a cantar, dançar, a fazer o artesanato, a respeitar a cosmologia do povo, a silenciar e ouvir os conselhos dos mais velhos, a curar com ervas, a sentir as energias boas vindas da natureza e das pessoas, etc.; são lições que se aprendem desde o raiar do dia (KAMBEBA, 2020, p. 62-63).

É assim que os curumins e cunhantãins são ensinados no cotidiano, comendo os alimentos; observando seus pais, irmãos mais velhos, avós e outros membros da comunidade, inclusive nas brincadeiras. São ensinados também quando a mãe vai para o roçado, leva seu bebê de poucos meses em seu paneiro, ata uma rede de dormir ou faz um buraco no chão, forra com folhas de bananeira e o coloca ali, enquanto trabalha por perto. O mesmo ocorre na farinhada, quando o bebê fica junto à mãe, sobre suas pernas, enquanto descasca a mandioca. A educação indígena é feita pela observação das práticas cotidianas, vinculada à realidade da vida na comunidade. O conhecimento transmitido pelos indígenas não é dado de uma vez; constitui um processo de construção análogo à tecedura de uma peneira, que começa ao nascer.

Histórias, mitos e lendas também fazem parte desse processo. A educação Sateré Mawé é caracterizada por histórias narradas através de grafismo, no Puratin (Remo Sagrado), que é lido ou contado pela pessoa mais antiga da comunidade. O Puratin, além de ser uma arma sagrada para a defesa e a proteção contra o mal, prevê os acontecimentos futuros – os bons e maus auspícios. Também significa a compreensão da vida social Sateré Mawé; nele está inserido o Sehaupóri:

Sehaupóri, na língua Sateré, significa literalmente “coleção de mitos”, que são as histórias, mitos e lendas gravados no Puratin, remo sagrado e símbolo maior da identidade cultural do povo Sateré-Mawé, Neste instrumento estão registradas as histórias tradicionais de nossa nação, ao longo dos séculos (...) é o livro da sabedoria, para ler e para crer; para entender o significado da vida humana e o significado mais profundo: o de ser Mawé (YAMÃ, 2007, p. 11).

As histórias são conhecimentos repassados de geração em geração para que o grupo mantenha viva sua cultura e suas crenças. Como explica Munduruku (2004, p.7): “Os conhecimentos de nossos avós foram deixados para nossos netos de forma oral como uma teia que une o passado ao futuro. Essa fórmula pedagógica tem sustentado o céu no seu lugar e mantido os rios e as montanhas como companheiros de caminhada para nossos povos”. Essas histórias são narradas quando as mães, avós ou irmãos e irmãs catam piolho uns dos outros – uma demonstração de afeto, tanto de quem cata quanto de quem é catado. Nesse momento também estão educando: conselhos são dados; advertências são feitas; explicações sobre a vida são sussurradas ao pé do ouvido... São momentos riquíssimos da pedagogia indígena; momentos fundamentais para o desenvolvimento integral dos curumins e cunhatãins.

Com efeito, como já notava Silva (1999, p. 64) desde os anos 90, ao analisar a agência dos professores indígenas na discussão de políticas públicas para uma educação escolar indígena autônoma, as “pedagogias indígenas constituem valores fundamentais, que devem também orientar os trabalhos escolares e a elaboração de uma política indígena de educação escolar”. Ao considerar essa pedagogia dos rios e das florestas, tão cedo incorporada e parcialmente relegada em meu habitus clivado (BOURDIEU, 2005), interrogo: como analisar algo tão complexo e, ao mesmo tempo, tão simples, tal qual a tecedura de uma peneira com fibras de arumã? Como estranhar práticas outrora tão familiares – como fala DaMatta (1978, p. 04), referindo-se à dupla tarefa do etnólogo – para poder analisá-las, mas agora já engerada (transformada) em pesquisadora?

Engerando-se (transformando-se) em puruwei (professor)

A comunidade Monte Salém fica localizada à margem esquerda do Igarapé do Atuca, Rio Pupunhal. Na Terra Indígena (TI) Andirá-Marau. Nela residem 18 famílias, contando com aproximadamente uma centena de pessoas – entre crianças, adultos e idosos. A comunidade é uma das poucas cuja localização fica próxima à sede do município de Maués.

Objetivar a própria subjetividade, durante a imersão no trabalho de campo, constitui um processo complexo e, por vezes, confuso: demanda um esforço constante de reflexividade reflexa (BOURDIEU, 2012, p. 694) não apenas sobre as condições de produção dos nossos dados de pesquisa, como também sobre a nossa própria posição no campo acadêmico e os interesses, confessos e inconfessos, que temos em relação a nosso objeto de estudo. Objetivar a própria subjetividade, como nota Bourdieu (1989, p. 51), exige um esforço para romper com as “aderências e adesões mais profundas e mais inconscientes, justamente aquelas que, muitas vezes, constituem o ‘interesse’ do objeto estudado para aquele que o estuda, tudo aquilo que ele menos pretende conhecer na sua relação com o objeto que ele procura conhecer”. Nesse sentido, voltar ao meu universo social de origem, depois de tantos anos de um distanciamento que não foi somente geográfico, representou, usando a metáfora de DaMatta (1978), uma espécie de “viagem vertical” na qual me defrontei com aspectos insuspeitos de minha própria trajetória social e acadêmica.

Empreender a escuta ativa e metódica (BOURDIEU, 2012, p. 695) de meus interlocutores, nesse contexto, significou mais do que estabelecer uma comunicação “não violenta”; representou também, em certa medida, compreender teoricamente o violento processo pelo qual muitos de nós passamos ao inserirmo-nos no sistema de ensino.

Parenta, eu nasci aqui nesta comunidade, estudei até a 4ª serie, que agora mudou para 5ª serie, aqui mesmo. Meus pais falavam que eu tinha que estudar para ter um futuro melhor, eu não entendia direito o porquê disso”. Assim Wará (origem de todo conhecimento, fonte de vida, o guaraná) inicia seu relato. Morador da própria comunidade, ele é o único professor da escola. É um “professor leigo”, isto é, sem habilitação específica para o exercício do magistério no nível de ensino em que atua.

Lá na escola eu aprendia outras coisas: matemática, português, ciências... e reforçava o sateré. O sateré só era para reforçar mesmo, porque papai sempre falou que nossa língua é importante e lá em casa só fala na gíria [sateré]. Nós fala português quando tem gente de fora. Quando terminou o estudo aqui, tive que ir morar na cidade para continuar os estudos, porque era meu sonho ser professor e do meu pai e da minha mãe também. Foi difícil parenta, muito difícil, quase volto. Sentia saudades de tudo daqui, de tudo. Mas eles falavam tem que aguentar, tem que estudar [seus olhos ficam marejados e a voz embarga]. Tem que ser alguém na vida. Eu continuei lá na cidade estudando, morando às vezes na Casa do Índio, às vezes na casa de conhecidos para poder estudar. Eu não via a hora de chegar as férias para eu voltar para casa (WARÁ, 2019).

Enquanto Wará narrava sua trajetória para continuar os estudos e ter acesso à educação formal, não pude conter a emoção. Estávamos sentados à sombra de uma árvore nos arredores da comunidade. Enquanto ele falava com a voz embargada, as lágrimas molhando seu rosto, foi inevitável me ver espelhada naquilo que me era confiado, pois ele estava narrando as minhas próprias experiências na escola:

Assim foi minha vida, indo e vindo da comunidade para Maués e de Maués para comunidade, da 5º serie até eu me formar no Ensino Médio. Quando eu estava estudando na escola lá na cidade eu não era eu mesmo, tinha que ficar quieto pra ninguém falar comigo e perguntar da onde eu era. Prestava atenção em tudo que os professores falavam na aula, eu não falava muito, só quieto, porque só os professores sabiam que eu era indígena, os meus colegas não. Quando tinha que perguntar alguma coisa que não tinha entendido, eu levantava a mão e ia até a mesa do professor e falava baixinho pra ele, ou esperava todo mundo sair da sala e falava com o professor. Porque se falar alto a pessoa ouve e sabe que a gente é indígena e começa a caçoar da nossa cara, fala que a gente é índio, pitiú, que é burro e outras coisas que deixa triste, e eu não gostava disso e para evitar, eu ficava sempre quieto no meu canto. Eu via o que os colegas que não são indígenas faziam com meus parentes, isso não queria que fizessem comigo não (WARÁ, 2019).

Em A Miséria do Mundo, ao discutir os procedimentos para a realização de uma escuta ativa e metódica de nossos interlocutores, Bourdieu (2012) refere-se às “condições de felicidade” que a entrevista pode proporcionar àquele que consente em compartilhar com o pesquisador seus pontos de vista e experiências. Como nota, esse momento pode se apresentar – sobretudo para aqueles que socialmente são raramente vistos, ouvidos e considerados – como uma ocasião excepcional de:

(...) se explicar, no sentido mais completo do termo, isto é, de construir seu próprio ponto de vista sobre eles mesmos e sobre o mundo, e manifestar o ponto, no interior desse mundo, a partir do qual eles veem a si mesmos e o mundo, e se tornam compreensíveis, justificados, e para eles mesmos em primeiro lugar (BOURDIEU, 2012, p. 704).

Para o autor, esse processo poderia ser considerado como uma espécie de “auto-análise provocada e acompanhada”, no decorrer da qual o entrevistado, de forma muitas vezes intensa e dolorosa, conseguiria expressar “experiências e reflexões há muito reservadas ou reprimidas” (BOURDIEU, 2012, p. 705). Ao considerar os sentimentos que em mim provocou o relato de Wará, penso que de certa forma empreendemos juntos esse processo de autoanálise, pois reconhecer em seu relato minha própria experiência diante da escola, me permitiu compreendê-la melhor.

Enquanto estudava na escola da floresta/rural – porque na minha época todas as escolas eram consideradas rurais –, junto com os parentes, não sabia o que era preconceito, por mais que convivêssemos com não indígenas. Depois que fui estudar na sede do município de Maués é que também me defrontei com o preconceito e a discriminação. Precisei deixar o convívio com a minha família, com tudo o que me era familiar, e esconder minha origem para amenizar o sofrimento experimentado na escola. E de certa forma essa estratégia funcionou, pois nasci de pele “branqueada”. No entanto, presenciei meus parentes Sateré Mawé muitas vezes sofrerem preconceitos por não saberem responder a determinadas perguntas em sala de aula ou por terem dificuldade de falar português. Essa foi uma das razões pelas quais eu não me identificava como Sateré Mawé, pois as pessoas usavam expressões pejorativas, tais como “os índios fedem”; “são preguiçosos”; “não sabem falar direito”; “são pitiús”; “cometem pequenos furtos de objetos e comida” – quando, na perspectiva indígena, pegar algo de alguém, principalmente comida, não é furto, pois somos ensinados a partir de uma perspectiva de coletividade, nada é individual, tudo é de todos. E os não indígenas não entendem, pois têm o indivíduo, e não o grupo, como valor central (DUMONT, 1992). No entanto, quando conhecia alguém e sentia que podia confiar, que não seria hostilizada, eu falava que era Sateré Mawé. Meus hábitos alimentares, minha forma de falar – aquele português arrastado, aquela sonoridade da fala cantada, tão peculiar aos parentes que falam português – nunca negaram minha ancestralidade.

Em sua pesquisa de doutorado, intitulada Os argonautas do Baixo Amazonas, Ávila (2016) descreve a violência simbólica a que os povos indígenas e ribeirinhos são submetidos:

Não demorou muito para que a violência simbólica perpetrada diariamente contra ribeirinhos e indígenas em Maués me afetasse profundamente. O estreitamento das relações e a empatia que devia a eles unido a manutenção de uma relação diária com seu cotidiano me fizera testemunhar, e em alguns casos experimentar, a profunda violência de várias ordens (simbólica, material e às vezes até física) a que esses grupos são submetidos. (...) Zequinha, um meio indígena (filho de mãe sateré) me confidencia que é impossível viver entre os dois mundos – o da cidade e o do interior. Viver entre eles é dispendioso e quase impraticável, tanto pelos gastos excessivos com o transporte para atravessar as grandes distâncias entre as comunidades e a cidade, quanto o custo emocional de viver como uma espécie de estranho, de pária, ou de sub-cidadão. Sua esposa vive na cidade para estudar e ele admite não ter essa coragem. Dona Joana, também me confirmou o problema. Conta que um dos seus filhos quando estudava na cidade queria todo o fim de semana estar na sua comunidade. Possivelmente uma atitude de adaptação e defesa em relação ao meio inóspito que se obrigava a estar (ÁVILA, 2016, p.61-62).

Como nota o autor, as desvantagens impostas aos povos indígenas e ribeirinhos são cumulativas na relação com os não indígenas, afetando profundamente nossas vidas, sobretudo na cidade, e a construção de nossa identidade: “A falta de dentes, as condições do vestuário, a fala, a maneira de portar-se a mesa, de comer, as técnicas corporais, o biótipo indígena, os calos nas mãos são atributos de um estigma bastante aparente, posto que baseado na visualidade dos corpos do interior” (ÁVILA, 2016, p. 61-62). Com efeito, se não é possível “esconder a origem interiorana”, como diz o autor, é porque do habitus – história naturalizada na materialidade dos corpos, cultura corporificada nas estruturas mentais – faz parte, também, a hexis corporal, essa espécie de memória somática que trai nossa origem social (BOURDIEU, 2005).

Em Maués eu já percebia o preconceito; contudo, foi somente ao mudar para Manaus com o objetivo de cursar a Universidade que senti de forma intensa a discriminação, a tal ponto que pouco antes de terminar a graduação, adoeci. Ainda assim, esse processo foi parte determinante para minha trajetória acadêmica; para a compreensão da dinâmica das relações sociais entre os não indígenas e, principalmente, para conseguir sobreviver a essa violência simbólica. O conhecimento pode ser libertador, arrebentando as amarras que historicamente se tentou impor às sociedades indígenas, menosprezando suas respectivas culturas. Se na Universidade adoeci, também aprendi a lutar, a ter orgulho de ser indígena Sateré Mawé e a me reconhecer como parte desta sociedade. Voltemos ao relato de Wará:

Depois que eu terminei o ensino médio, a escola aqui ficou sem professor. Ninguém queria dar aula aqui, porque como a senhora viu, é desse jeito. Aí meu pai falou com o Tui´sa que eu tinha terminado o ensino médio, que podia dar aula. Meu pai e o Tui´sa reuniu a comunidade e perguntou se aceitavam. Todos aceitaram. Eles foram na cidade na Secretaria de Educação levando a ata de reunião e a secretaria me colocou aqui para ser professor. Tive uma semana de treinamento para dar aula. Lá me deram os livros e o material para trabalhar com as crianças. E mês sim, mês não, tem treinamento pedagógico para a gente aprender a trabalhar no multisseriado. Como a senhora viu, é muito difícil (WARÁ, 2019).

Wará conta que ser professor era um sonho e que ficou muito feliz em realizá-lo: “jamais imaginaria que iria dar aula para meus próprios irmãos e para os parentes”. Ele fala também de sua luta para conseguir ampliar e melhorar a escola – “se chove e a chuva é com vento, não consigo dar aula porque molha os cadernos, molha os alunos, a chuva varre pra dentro do tapiry, molha e derruba tudo” – e conta que já conseguiu carteiras novas – “porque as carteiras que tinha aqui já tinha mais de vinte anos de uso, desde que me entendo por gente”.

Como descrever a escola dos curumins e das cunhantãins? Imagine uma escola em que a sala de aula não possui paredes, portas, janelas; que o chão seja de terra batida; que não tenha banheiros, nem masculino e nem feminino; que não possua energia elétrica, sendo a sua fonte de iluminação somente a luz do sol... Lugar onde as abelhas Jataí-da-Terra fixam sua morada, apossando-se do formigueiro abandonado para fazerem sua colmeia, bem ao lado das carteiras usadas pelas crianças. Assim é a Escola Municipal Indígena Wahuiru Pakup – onde “as formigas de fogo ferra a curumizada e eles param de prestar atenção”, como conta Wará.

É assim que são as coisas por aqui”, prossegue após uma pausa, refletindo sobre as dificuldades que enfrentou, quando era criança, para percorrer os caminhos da escola, e como é importante para a curumizada ter uma escola na própria comunidade. Ao recordar seus antigos sonhos, Wará avalia que seus projetos mudaram:

Agora meu sonho mudou, quero fazer faculdade de Pedagogia para ficar melhor e poder ensinar os parentes. Até agora parece um sonho, de ser professor, que agradeço a Tupanã todos os dias. Quero que os parentes consigam avançar nos estudos, tenha um futuro melhor e voltem pra cá para ajudar, aqui nossa comunidade, porque nós precisa muito e que eles não passem pelas mesmas coisas que eu passei (WARÁ, 2019).

Os caminhos da escola para os curumins e cunhantãins

Segunda-feira, 5h. Os primeiros raios de sol incidem sobre o capim rasteiro e a folhagem das árvores. A algazarra dos passarinhos e de outros bichos ressoa pela comunidade. Os curumins e cunhantãins levantam sem precisar que os chamem: pegam os pequenos pelas mãos; os bebês vão no colo, amparados apenas por uma das mãos, pois na outra vai um balde, panela ou cuia com sabão. Saem correndo até o rio para tomar banho e buscar água para suas mães e outras mulheres fazerem a primeira refeição do dia, logo após o ritual da bebida sagrada, o Çapó. Ao retornarem do banho, vestem suas melhores roupas, penteiam seus cabelos e colocam seus chinelos – que são utilizados apenas em ocasiões especiais. E ir à escola é uma dessas ocasiões. Após a refeição matinal reúnem em suas sacolas o material escolar, esperam outros curumins e cunhantãins que moram próximo e, juntos, caminham até a escola. Outros vêm em suas canoas, remando cerca de 15 a 30 minutos. As crianças que vão a pé caminham sobre o capim macio e rasteiro, ainda molhado do orvalho que caiu à noite. Arrastam seus chinelos sobre o capim, gotículas respingam em seus pés, que aos poucos ficam molhados. Olhando para o lado esquerdo as crianças avistam o rio de águas escuras e calmas, que refletem as árvores que ladeiam suas margens e o sol brilhante. Virando a cabeça para o lado direito é possível ver as casas, algumas árvores frutíferas e a capoeira ao fundo. Logo à frente está a escola. Os que vêm pelo rio cortam com remadas cadenciadas suas águas, que refletem a imagem do movimento de seus corpos ao levantar os remos no ar e voltar a mergulhá-los para impulsionar a canoa. Chegando ao porto que dá acesso à escola, arrumam seus remos dentro das canoas e as amarram sob a sombra das árvores para protegê-las do sol. Pegam suas sacolas e bolsas com seus materiais escolares, calçam seus chinelos ou sapatos, e sobem por uma pequena trilha até chegar a seu destino: a escola.

Os curumins e cunhantãins conhecem os caminhos que podem ser percorridos por terra ou nos rios, tanto no período de cheia como na vazante. Eles conhecem os detalhes desses caminhos, cada passo trilhado até chegar à escola. Caminhos que nunca são feitos sozinhos, existe sempre uma companhia: os pais, os animais de estimação, os pássaros ou outros seres que habitam as matas e rios, pois os Sateré Mawé acreditam que tudo na natureza constitui uma extensão deles mesmos. Enquanto trilham os caminhos da escola, esses curumins e cunhantãins também são acompanhados de seus sonhos – que não deixam de ser, também, os de seus pais, irmãos, tios, avós; talvez, de toda a comunidade. Sonhos que muitas vezes estão escondidos no mais íntimo: “como bichos no fundo do rio”, como me disse uma cunhantãim; você sabe que estão lá, mas não os vemos. E muitas vezes, jamais os veremos. Ao caminhar e navegar em suas canoas, durante a minha imersão no campo, quando já estavam familiarizados comigo, pude apurar o olhar e o ouvir para compreender não apenas o que me diziam – “nós só fala quando nós quer, e nós fala com a senhora porque nós gosta, a senhora entende” –, como também para perceber o que era revelado no silêncio. Sonhos narrados, vislumbrados, sentidos.

Sonhos como o de Hwariá (gavião), que me confiou durante uma brincadeira no rio, entre um mergulho e outro, que queria ser professor para não precisar trabalhar na roça: “Aprender a ler, estudar é muito importante hoje em dia, pra crescer e poder trabalhar fora da roça. Sonho ser professor aqui ou na capital. Ser professor é muito bom, é bonito; vê o professor é daqui (...)”. Ou os de Ipohyk (flor): “eu vou pra escola, pra aprender e no futuro ser uma missionária pra viver viajando e ajudar os outros igual uma haryporia (mulher) que apareceu aqui, ela era bonita [risos]”. Outros sonhos não chegam a ser verbalizados, são apenas intuídos nos gestos, nos movimentos de seus corpinhos. Pude observar Sahu-Wato (tatu grande), que ao caminhar para a escola, tocava as plantas, tirando uma folha e cheirando, colocando em sua boca para sentir o gosto; a forma com que olhava para cada árvore, e seus gestos, desvelavam o sonho de um dia ser pajé/curandeiro/pegador de ossos ou até mesmo um parteiro.

Sonhos que caminham ou navegam junto com os curumins e cunhantãins até a escola. E com eles retornam. Como esse:

Eu gosto da escola, eu já sei lê, já sei escrever, não falto, só faltei quando fiquei moça. Eu quero estudar e se formar pra ser alguma coisa, professora ou médica, ajudar minha comunidade, ajudar os outros, e viajar muito. Só não quero deixar de falar a nossa língua, pra não esquecer daqui. Acho bonito (KAWRÉ, 2019).

O que me chamou atenção, durante um desses trajetos de volta, foi perceber os medos que também carregam consigo. Enquanto caminhávamos, conversando e rindo, alguém do grupo, passando a mão no braço dessa cunhantãim que havia acabado de me confiar seu sonho, perguntou, “no outro ano tu não vai tá com nós aqui, vai pra cidade estudar lá?”. Seu semblante imediatamente mudou: ela pareceu triste e respondeu “areken’e kahato (tenho muito medo), não sei, não quero”. A pergunta incomodou tanto que Kawré (reflexo da lua na água, lua cheia) ficou calada até o fim do percurso.

Os caminhos da escola são divertidos, mas não são fáceis. Enquanto percorrem suas trilhas, as crianças comentam os assuntos abordados nas aulas, planejam o que farão ao chegar em casa ou, ainda, conversam sobre o cotidiano, contam piadas e riem muito, correm uns atrás dos outros. “Tu viu aquele, mato? Não tem aqui”; “será que existe isso?”; “Aprendeu aquilo difícil?”; “será que é verdade que aquele bicho entra pelo nosso pé e vai pra dentro da gente, se é verdade nós tinha morrido [risos]”. Nem sempre o conteúdo faz sentido: em uma aula de ciências sobre “verminose, vírus, fungos e bactérias”, por exemplo, os alunos não paravam de rir baixinho enquanto o professor tentava explicar a matéria. Para não atrapalhar a aula, depois que o professor terminou a explicação uma das crianças levantou a mão e falou desconfiada, “há’ã, olha já puruwei, como isso entra no nosso pé, é igual pulga?”. O professor assentiu com a cabeça. Foi perceptível, na expressão incrédula das crianças e nos risos, que elas não tinham acreditado que aquilo fosse possível; a explicação do professor não fazia o menor sentido.

Os (des)caminhos da escola e seus sentidos

Puruweira (professora), sou pegador de desmentidura, pegador de osso e rezo crianças com quebranto, mal olhado, faço parto desde 10 anos... Nasci com esse dom”. É assim que Paini’i (sacerdote de Tupanã, espírito do Bem e da cura) inicia o seu relato. Fui à sua casa, levada por outro parente, para que ele cuidasse de uma velha “rasgadura” (rompimento de fibras musculares) que adquiri ainda na infância, e que tinha voltado a incomodar depois de participar das farinhadas na comunidade. Como há anos não carregava cestos cheios de mandioca, água para tirar a tapioca e o tucupi, e tanta lenha para torrar a farinha, meu corpo acabou sentindo. Quando terminaram os procedimentos necessários para costurar a rasgadura, perguntei há quanto tempo ele exercia esse dom. Foi assim que começou nossa conversa; observei que ele fazia um esforço para se expressar em português, falando pausadamente e pensando em cada palavra que iria proferir

Casei com 20 anos, tive 5 filhos vivos com minha mulher e dois morreu curuminzinho, de quatro meses. Tenho dois filho estudando, eles tem que estudar. Meu pai falava que no tempo antigo era valorizado pelo trabalho; hoje em dia é diferente, a pessoa só é valorizado se estudar, se não estudar não tem emprego. Eu estudei 1 ano, aprendi a ler e assinar meu nome, foi bom. É triste não saber ler, mesmo que a pessoa não seja formado, a gente pode se comunicar e saber o que é aquele pontinho pretinho no papel branco, esse pontinho pretinho tudo fala. Tu vê parente, minha mulher fala alguma palavra português, ela não sabe ler e nem assinar o nome, é triste (...). Eu sempre falo pra meus filho, que tem que estudar, porque ai ele tem escolha pra decidir o dom que ele tem. Pode escolher e eu como pai não posso obrigar meu filho a fazer alguma coisa que ele não quer. O meu dom além de pegar desmentidura e outras coisas que já falei é andar no mato, pegar sa’ry, caçar, pescar, fazer roça, fazer farinha, mas mesmo ainda não sendo idoso, já sinto o peso do trabalho e da idade quase alcançando o céu. Em casa eu falo a língua materna pra que meus filhos não esqueça, eu valorizo. Se Tupanã me deu essa língua para que eu vou ter vergonha de falar, mesmo agora que nós não tem mais o nosso RANI, nós tem só a língua, esse é nosso registro agora. Eu guardo na minha cabeça o que meu pai me ensinou, eu aprendi com ele fazer tipiti, paneiro, peneira, canoa, remo, caçar, pescar, colher castanha no mato, fazer farinha, tarubá, caxiri, aprendi tudo que um guerreiro tem que saber. Eu gosto de viver aqui, é tranquilo, sossegado, diferente da cidade (PAINI’I, 2019).

A sua fala revela a amplitude das transformações ocorridas no modo de vida local: se no tempo antigo – tempo dos avós de seus avós, evocado por seu pai – a pessoa Sateré Mawé era “valorizada pelo trabalho”, hoje a pessoa só é valorizada socialmente pela escolaridade porque, caso contrário, “não tem emprego”. Como vemos, trata-se de todo um modo de organização social profundamente afetado – expresso nesse relato pelas categorias trabalho e emprego, completamente distintas. Essas transformações nos modos de existência das sociedades tradicionais, especialmente a dos povos indígenas, como nota Brand (2012), são decorrentes da interferência governamental e não-governamental em seus territórios de origem, provocando uma série de problemas em relação à sustentabilidade dessas populações. Se Paini’i aprendeu com o pai tudo o que um guerreiro precisa saber – “fazer tipiti, paneiro, peneira, canoa, remo, caçar, pescar, colher castanha no mato, fazer farinha, tarubá, caxiri” a caça e a pesca, hoje, já não são como eram antes. Elas começam a escassear, como conta Watyamag (tucandeira, formiga utilizada em um ritual de passagem), a mãe de Wará:

Eu casei com 15 anos, tenho 35 anos eu acho, tenho 11 filhos. Coloquei meu filho tudo pra estudar pra eles ter futuro, um trabalho melhor, que não seja tão difícil assim como o meu e o do pai deles, porque agora aqui é difícil pra encontrar comida, não tem mais caça e nem peixe como antes, tudo fica difícil. A roça ainda dá melhor (WATYAMAG, 2019).

Conversei com Watyamag enquanto caminhávamos, à tarde, voltando de uma lida na roça. Foi em sua casa que fiquei por mais tempo, pois sempre que passava mais de três dias com outros membros da comunidade, Watyamag e seus filhos iam me chamar para ajudar em alguma atividade. Penso, agora, que na maior parte das vezes era somente por conta da companhia, para ter alguém para ouvi-la; ou então, para depois se gabar com as outras mulheres que tinha passado mais tempo com a puruweira – e rirem juntas, contando umas para as outras as experiências que vivenciaram enquanto eu estava com elas. Porque depois de estabelecida a relação de confiança, eu também era interrogada sobre os mais diversos assuntos: “Como é na cidade grande, essa que tu mora?”; “Que tem lá? São pávulos?”; “Por que tu não ter filho?”; “Como mulher? Como homem? Ta’iro ta so’nã” (como se relacionam sexualmente?). Nessas trocas, bastava uma pergunta ou comentário para que a conversa fluísse.

Watyamag fala sobre seus filhos e a luta para que tivessem acesso à educação escolar e, ao mesmo tempo, mantivessem viva a língua materna:

Eu coloca eles estudar, porque eu estudei até a 3ª ano, a língua materna é falada todos os dias com meus filhos, porque ser índio é falar a língua e tenho orgulho; Sateré que é Sateré tem que saber falar a língua. O português é pra falar com pessoas que vem de longe. Eu amo minha língua, nunca neguei ser índio sou índio mesmo. Sinto muito orgulho e alegria de ter um filho professor, ele nunca se atrasou nos estudos, ele é obediente, nunca me deu trabalho, sempre ensinei pra ele não ter vergonha de ser Sateré-Mawé. Dois dos meus filhos já casaram, o segundo e minha filha mais velha, eu fiquei triste porque não queria mais estudar pra ter um trabalho mais leve, que trabalha sentado. Eu falava que era para estudar, não arrumar mulher, homem cedo, agora é só trabalhar: fazer roça, fazer casa, agora falo para não fazer muito filho como eu, só 4, 5, 6, já tá bom, porque é muito difícil alimentar todo mundo (WATYAMAG, 2019).

Nesses relatos percebemos as expectativas em relação à escola. Do ponto de vista dos pais, seus filhos precisam ter acesso à educação escolar para obter outros conhecimentos, além daqueles que já lhes são próprios, “porque aí ele tem escolha pra decidir o dom que ele tem”; ou então, “pra ter um trabalho mais leve, que trabalha sentado”. O desejo de cada pai e mãe ouvidos durante a pesquisa é que seus filhos se apropriem dos conhecimentos que a escola oferece para que tenham uma profissão que possa ser exercida na comunidade e em benefício da comunidade; que essa apropriação seja para o fortalecimento da própria cultura, principalmente da língua materna. Como explica Kambeba (2020, p. 63), “é preciso saber ler e escrever e a aldeia entende que a criança deve estudar na escola do “branco” para contribuir com o povo na luta pelo respeito e direitos institucionais e legais aos povos”. Com efeito, como disse o Tui’sa, o líder da comunidade, em uma de nossas conversas:

Eu acho que a nossa escola aqui da comunidade tem que ser melhor, algo melhor pra nossas crianças. Estudar pra aprender e voltar pra nossa comunidade e ajudar. Pra ser professor, enfermeiro, porque a gente precisa aqui. Aprender pra ajudar os parentes daqui. Assim como é nosso professor, ele foi, mas voltou pra comunidade; é importante isso, porque ele conhece aqui, sabe como funciona e é bom nossos parentes voltar pra cá pra ajudar (TUI’SA, 2019).

Ao mesmo tempo em que ressalta a importância da educação escolar para a comunidade, o Tui’sa lamenta o fato de que os que se vão para prosseguir os estudos não raro acabam esquecendo a língua materna, fundamental, como afirma, para a expressão identitária dos Sateré Mawé:

Só fico triste porque esse parente que sai daqui da comunidade e vai estudar fora daqui, deixa de falar a língua materna, isso não é bom. Porque hoje nós não pode mais tirar nosso RANI, então pra comprovar que somos Sateré-Mawé temos que falar nossa língua materna. Nós tem o compromisso sagrado de passar pra nossos filhos nossa língua materna e tudo que a gente sabe, que foi passado pelos antigos pra nunca ser esquecido, para que viva como nosso rio e mata (TUI’SA, 2019).

Assim como os demais, Karaxué (sabiá, um dos guardiões do paraíso dos Sateré Mawé), o pai de Wará, também enfatiza o papel fundamental da língua materna como forma de resistência cultural, ressaltando cumprir esse “compromisso sagrado”, como diz o Tui’sa, com seus próprios filhos:

Eu nasci aqui mesmo no Atuca/Pupunhal, eu sempre falei sateré, depois de muito tempo eu aprendi um pouco de português, meus pais sempre só falavam o sateré em casa. Meus pais são Sateré lá dá área do Alto Marau, longe, bem longe, quase dois dias de viagem de barco, agora pensa de canoa [risos]. Eu sou pai do professor e o agente de saúde aqui na comunidade graças a Tupanã [fala carregada de orgulho, os olhos brilham]. Eu tive foi sorte, porque estudei até a 7ª. Em casa eu só falo a língua com meus filhos pra eles não esquecer a língua, ainda mais agora que não tiram mais RANI, e nossa língua é nossa marca de ser indígena, ser Sateré Mawé (KARAXUÉ, 2019).

Como vemos, ao mesmo tempo em que a educação escolar é valorizada – foi por ter estudado que se tornou agente de saúde – sua fala revela preocupação com as transformações que, de seu ponto de vista, estariam ocorrendo no modo de vida da comunidade, especialmente com a atração que a cidade exerceria sobre os mais jovens.

Só fico triste porque as coisas mudaram muito; mesmo a gente morando na Reserva Indígena, nossos filhos quando vão pra cidade estudar, aí eles começa a procurar mais os não índios, as coisas de branco, tatuagem, brinco, não quer mais fazer pintura de indígena, só de branco; não quer mais falar a língua. É bom que o mais jovem valoriza a fala e a nossa escrita. Aqui em casa eu falo da importância de manter nossos costumes e procuro viver e comer o alimento nosso, comer formiga, cará, peixe, caça, tatacá, o sapo tuntun que dá no mato, a gente tirar ele do poço, que tem no meio do mato mesmo, tomar todo dia o Çapó, porque nós não é Sateré-Mawé sem Çapó, nos nasceu dele. Meu sonho mesmo era que tivesse uma escola aqui mesmo até se formar, pra não precisar ir pra cidade. Porque depois que vai pra cidade a curumizada não quer mais voltar. Fico feliz, meu filho quis voltar e agora é professor aqui. Acho que ele quer fica aqui sendo professor (KARAXUÉ, 2019).

Esses relatos evidenciam os inúmeros desafios com os quais se defrontam os Sateré Mawé para manter a própria cultura, tanto entre os que vivem nos territórios demarcados como entre os que vivem na cidade. De fato, como observou Sobrinho (2010) em sua pesquisa na comunidade Waykihu (estrela), no bairro da Redenção, em Manaus, as crianças Sateré Mawé, em seus modos de viver a infância, em suas brincadeiras e cantos, reafirmam sua identidade étnica. Ainda que nunca tenham participado efetivamente de uma farinhada, elas “cantam” a farinhada, evocando, com seus gestos, as diferentes etapas dessa prática que constitui a celebração simbólica do laço social que sedimenta o grupo. “Só quem entende de farinha... venha peneirar aqui... Todo povo de Maués... venha peneirar aqui...”. Assim, no próprio canto das crianças da cidade – que conclama “todo o povo de Maués” –, os Sateré Mawé resistem, e ainda que suas formas de existência tenham sido profundamente alteradas, elas persistem. Como nota Sobrinho (2010, p. 31) “na contramão deste genocídio programado, estão cada dia mais vivas e presentes no seio de suas comunidades, apesar dos severos processos de subalternização ainda construídos nas relações sociais”.

Como expressar o quanto esses relatos me tocaram, remetendo-me, a cada escuta, à história da minha família e à minha própria trajetória? Como ser fiel a tudo o que me foi confiado, a tudo o que os parentes consentiram em dividir comigo durante a pesquisa?

Hary (avó), 72 anos, é a avó de Wará. É também a mulher mais idosa da comunidade. Todos a respeitam por sua imensa sabedoria, adquirida ao longo dos anos. Quando o Tui’sa precisa tomar alguma decisão importante, é a Hary que ele recorre, assim como os demais membros da comunidade. É Hary quem conta as histórias antigas de nossos ancestrais para as cunhantãins e curumins. É Hary quem auxilia Paini’i na realização dos partos... Hary é uma mulher doce e muito discreta. E muito observadora também: fica atenta a todos e a tudo o que acontece na comunidade. Gosta de estar na casa onde mora o neto, sempre leva presentes – comida ou um colar novo que ela mesma confecciona –, como demonstração de seu afeto e orgulho por ter um neto professor. Tive o privilégio de poder ouvir Hary:

Escola mesup meikowo mi tuwehum waku [escola hoje para cá me deixa muito feliz, é muito bom]. Hã eu nasceu no Alto Marau, longe, muito longe, lá bem na cabeceira, Marau. Não aprendeu ler, não aprendeu riscar no coisa branco, escrever no papel aquele pritinho que fala, só aprendeu falar, assim [fez sinal com as mãos para simbolizar pouco] língua branco, lá só aprendeu com matemu’e da roça, uy, miú [refere-se a tudo o que aprendeu com a mãe] e tudo Tupanã que Mesup puruwei me tuwehum, fala língua matemu’e [risos; gesticulando muito, refere-se com orgulho ao fato de Wará ser um professor que fala a língua materna] (HARY, 2019).

Considerações finais

Sei bem, agora, qual era a voz que eu gostaria que me precedesse, me carregasse, me convidasse a falar e habitasse meu próprio discurso.

Michel Foucault

Este artigo teve como objetivo apresentar algumas notas etnográficas da pesquisa sobre os sentidos da escola para os Sateré Mawé – meu povo. Dentre os desafios que essa experiência proporcionou – no decorrer da qual me defrontei com a necessidade de estranhar o que me era familiar e, ao mesmo tempo, de tornar familiar o que já me era, há muito, estranho (DAMATTA, 1978) – talvez o maior deles tenha sido recordar o espírito da partilha e da coletividade, espírito esse que, com minha saída há tantos anos do meu universo social de origem, havia adormecido ou silenciado.

Reconhecer esse fato foi frustrante. Tinha adormecido ou silenciado os ensinamentos do meu avô e de minha avó. O fato me fez repensar o quanto a cultura dos não indígenas já está sedimentada em meu habitus, configurando minha percepção, meus esquemas de pensamento e ação, meu sentimento do mundo... Essa clivagem me havia feito esquecer, momentaneamente, o que significa ser Sateré Mawé.

Ao longo da pesquisa, contudo, pude recordar a pedagogia dos rios que, assim como tudo na comunidade, traz aprendizado. Nossa relação com os rios é como o sangue que corre em nossas veias, vai além da vida: as águas são sagradas, pois fornecem os peixes para o miú (comida/comer), saciam nossa sede, nos levam a outros lugares, nos conduzem à escola. Nos rios fluem os conhecimentos, são transmitidas informações importantes de quando e como plantar nossas roças. No movimento dos rios o tempo acontece e promove a relação entre o material e o simbólico: “quando a cheia é grande, quando os rios vazarem a fartura também será grande”, predizia minha avó.

Quando saí de lá, os ensinamentos dos rios estavam incorporados em mim; ao regressar, pude analisar essa pedagogia indígena com outro olhar. Esse árduo reconhecimento de lugar, de minha identidade; esse exercício de trazer à memória os costumes de meus avós e de minha língua materna, me fizeram compreender que por mais saberes não indígenas que eu tenha e possa vir a ter, nenhum deles me fará pertencer à sociedade dos não indígenas. Ao contrário: o caminho percorrido nos rios de minha infância, durante a pesquisa, me fez perceber que as minhas raízes são mais fortes que o aculturamento que a sociedade não indígena tentou impor. Que por mais que tenha saído do meu lugar de origem, jamais deixarei de ser Sateré Mawé.

Mas como recortar, em um artigo, uma pesquisa feita de tantos reencontros e desencontros, na qual procurei descrever os caminhos da escola e os sonhos que as cunhantãins e curumins carregam nesse trajeto? Em que procurei compreender os caminhos trilhados pelos pais para que seus filhos pudessem ter acesso à escola na própria comunidade? Apesar do que não pode ser descrito nos limites de um artigo – e nem mesmo de uma pesquisa – espero ter colaborado para o registro dessas memórias e sonhos que me foram confiados, demonstrando a luta dos Sateré Mawé pelo direito à escola.

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1Os nomes de nossos interlocutores foram alterados para garantir o sigilo ético necessário à pesquisa, que observou os procedimentos recomendados pela Associação Brasileira de Antropologia.

2Usamos o termo parente em itálico por se tratar de uma categoria nativa, utilizada pelos povos indígenas entre si, não obstante sua diversidade linguística/cultural, como forma de se reconhecerem coletivamente enquanto indígenas. Não se trata, portanto, de uma referência a laços de consanguinidade.

3Durante o trabalho de campo optamos por conferir nomes indígenas Sateré Mawé aos nossos interlocutores, que ajudaram em sua escolha e os aprovaram: “bom, parenta, muito bom”, “porque lembra antigamente”. “Paini’i” significa “Sacerdote de Tupanã, espírito do Bem e da cura”. O significado dos demais nomes aparecerão entre parênteses ao longo do texto.

Recebido: 11 de Outubro de 2021; Aceito: 25 de Fevereiro de 2022

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