Introdução
As formas de constituição das imagens dos professores se metamorfoseiam de acordo com as projeções de sentimentos de amor e ódio feitas por alunos, no transcorrer das relações estabelecidas dentro e fora dos ambientes escolares. Ao lado do afeto atribuído à figura do mestre, do preceptor e, posteriormente, do professor, muitas vezes considerado como modelo a ser seguido, também pode ser observado a identificação do educador como uma espécie de carrasco que precisaria ameaçar os alunos com algum tipo de punição para que estes focalizassem sua atenção e se concentrassem no aprendizado dos conteúdos estudados.1
A impossibilidade dos alunos de atribuir exclusivamente sentimentos de amor ou ódio aos seus professores não significou que, historicamente, seria dirimida a prevalência de um em relação ao outro, sobretudo se fossem considerados os procedimentos violentos, por assim dizer, didático-metodológicos empregados pelos educadores para fazer valer o respeito do alunado. Diante deste quadro, talvez não fosse exagerada a assertiva de que, no histórico dos vínculos estruturados entre os professor e alunos, predominasse um tipo de imago2 negativa sobre a profissão de ensinar. Não por acaso, pululam no imaginário escolar instrumentos, tais como a palmatória e o chapéu de asno, utilizados para obter a submissão imediata do aluno cujo comportamento fosse classificado como inadequado pelo professor.
No caso da palmatória, um artefato de madeira, com uma esfera circular de cinco furos em forma cruz em sua ponta, prevalecia a dor física decorrente das pancadas feitas pelos professores nas palmas das mãos dos alunos ditos relapsos, embora não pudesse ser apartado o sofrimento psíquico derivado da humilhação de ser penalizado desta forma diante de todos os outros colegas de classe. Já o aluno, que era obrigado pelo professor a ficar em pé no canto da sala de aula com um chapéu de asno na cabeça, também padecia fisicamente, pois não tinha a permissão de sentar-se durante toda a aula. Porém, neste caso, muito provavelmente a agonia desinente do aviltamento psicológico prevalecia sobre a dor física, pois o riso de escárnio da turma de alunos, legitimado e insuflado pelo professor, continuaria a ecoar na mente do aluno muito tempo depois do término da aula.
Mesmo com o questionamento, ou mesmo a proibição, dos usos da palmatória e do chapéu de asno, estruturou-se a imagem da profissão de ensinar associada a tipos de interdições psíquicas tais como as do professor-carrasco; do que exerce sua soberba ao desconsiderar o raciocínio elaborado pelo aluno; do que impõe autoritariamente sua vontade a despeito das objeções apresentadas pelo corpo discente; do profissional que, digamos, não joga limpo, na medida em que se apresenta como alguém interessado em objetivamente transmitir conteúdos ao alunos, mas que, na primeira oportunidade, os pune por tê-los rotulados em função de um determinado comportamento indesejado. São várias as designações aversivas que podem ser empregadas aos professores, designações estas que, como preconceitos reais, permanecem atuantes, mesmo com o término, ou intenso arrefecimento, das condições objetivas que as engendraram, tal como nos casos da palmatória e do chapéu de asno que, gradativamente, vão perdendo espaço nos ambientes escolares. A despeito das idiossincrasias históricas, concernentes à aplicação de tais instrumentos em vários países e épocas, nota-se que a justificativa de seus usos se fundamentava na identificação imagética do professor como uma espécie de modelo a ser seguido, cuja relação verticalizada com os alunos lhe oportunizava controlar a, por assim dizer, transmissão dos conteúdos que deveriam ser assimilados pelos alunos. Se este raciocínio for correto, como seria possível refletir sobre a imagem do professor quando os meios de comunicação de massa, sobretudo a Internet, propiciaram ao alunado acessar as informações em quaisquer tempos e espaços? A figura do professor poderia ainda ser imageticamente considerada como crucial para o desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem? Justamente as composições destas perguntas estimularam a elaboração do objetivo deste artigo: refletir sobre as características da imagem do professor nos tempos da chamada relação computacional ubíqua. Todavia, antes que a respostas destas questões sejam concebidas, seria relevante refletir sobre as características imagéticas da figura do professor nos períodos que antecederam a revolução microeletrônica das últimas décadas do século XX.
Os tabus históricos e a imagem do professor como figura de autoridade
No início do texto: “Tabus sobre o professor”, Adorno (1903-1969) exprime ao leitor sua perplexidade diante da repulsa de seus melhores alunos universitários diante da possibilidade de se tornarem professores quando concluíssem seus respectivos cursos. Justamente este espanto o motivou a refletir sobre a hegemonia das representações aversivas inconscientes ou pré-conscientes que pairavam sobre a profissão de ensinar, as quais foram designadas como tabus sobre o professor (ADORNO, 2000). Com efeito, o pensador frankfurtiano percebeu que, historicamente, foram produzidas tais representações que se sedimentaram no imaginário coletivo, ao mesmo tempo em que, paulatinamente, “perderam sua base em grande medida, mas que, como preconceitos sociais e psicológicos, persistem teimosamente e, por sua vez, tornam-se forças atuantes na realidade, tornam-se forças reais” (ADORNO, 2000, p.158,159). Ou seja, a despeito da crescente resistência quanto à aplicação de castigos físicos nas salas de aula, a imagem do professor como o verdugo que pune persistiu de forma tão contundente que se tornou, em termos filosóficos, quase que uma “segunda natureza”, como se punir fosse algo absolutamente inerente à profissão de ensinar.
De fato, o histórico das execuções de punições físicas e/ou psicológicas pode ser observado desde os tempos da Antiguidade greco-romana. Cenas de mestres açoitando alunos na Grécia de 490 a.C. eram cotidianamente retratadas nos vasos decorativos (MANACORDA, 1989), assim como os golpes de sandália feitos pelos mestres e pelo paedagogus nos alunos considerados indisciplinados (LEGRAS, 2008, p. 21). Séculos depois, Agostinho (304 d.C. – 430 d. C.), considerado um dos principais nomes da Paidéia cristã, clamava para que não fosse açoitado na escola, mas quando este castigo se tornava inevitável, “as pessoas mais velhas e até os meus próprios pais, que, afinal, não me desejavam mal, riam-se de meus açoites – o meu maior e mais penoso suplício”. (AGOSTINHO, 1999, p. 47).
O fato é que as práticas dos castigos físicos progressivamente vão se tornando objeto de questionamento, sobretudo pela razão de que não surtiam os efeitos desejados, haja vista o fato de que, na ausência do professor–agressor, os alunos agredidos voltavam a executar os mesmos comportamentos indesejados. Uma das primeiras vozes que se ergueu contra os castigos físicos foi a de Montaigne (1533-1592). “Eliminai a violência e a força; não há nada, em minha opinião, que degenere e estupidifique tão fortemente uma alma bem-nascida” (MONTAIGNE, 2002, p.247), aconselhava o filósofo francês aos preceptores de meados do século XVI. Ao constatar a ineficácia referente ao emprego dos castigos físicos, Montaigne também se insurgiu contra o denominado saber livresco, calcado na soberba que inchava a alma “em vez de ampliá-la” (MONTAIGNE, 2002, p. 207). Ao renovar as características da denominada “pedagogia do exemplo”, Montaigne enfatizou a importância do papel do preceptor em açular o aluno a compreender e experimentar as substâncias das palavras. Ou seja, não haveria o menor sentido em memorizar conceitos arrogantemente expostos, como símbolo de um indefectível pedantismo. Em vez disso, o preceptor deve motivar o aluno a elaborar o próprio julgamento das coisas, de modo que o preceptor “escute o discípulo falar por sua vez” (MONTAIGNE, 2002, p. 224).
É interessante observar o modo como o educador se transforma num exemplo de conduta para os alunos também nos escritos de Locke (1632-1704): “De todos os modos de instruir a criança, de formar seus costumes, o mais simples, fácil e eficaz é o de colocar, diante de seus olhos, o exemplo do que se deseja que ele pratique ou evite” (LOCKE, 1986, p. 116). Mais adiante nos seus “Pensamentos sobre a educação”, o filósofo inglês assevera que: “Não há nada, com efeito, que penetre o espírito dos homens mais doce e profundamente do que o exemplo” (LOCKE, 1986, p. 116). Desta forma, o educador precisa se conscientizar da importância de coadunar as premissas de seu discurso com suas práticas. Se houver um hiato entre a teoria e a prática, imediatamente os alunos perceberão a discrepância e terão sérias dificuldades em direcionar ao educador o sentimento de confiança, que é tão caro à instauração do elo pedagógico entre tais
agentes educacionais. Neste sentido, também Locke foi crítico da aplicação dos castigos físicos, pois não serviriam para nada, caso fossem desacompanhados do incremento do sentimento de vergonha dos alunos. Esta ênfase de Locke quanto ao sentimento de vergonha é acompanhada de uma ambiguidade que deve ser mencionada: se, por um lado, a constatação de que a vergonha seria muito mais eficaz, pois permaneceria presente nos corações e mentes dos alunos, promovendo assim um térreo fértil para vicejar a supremacia da dor derivada das punições psicológicas frente às físicas, por outro lado, a vergonha também foi considerada como o sentimento moral por excelência.
Se Locke pode ser identificado como um dos principais pensadores do século XVII sobre a condição do educador como modelo identitário do aluno para o desenvolvimento de sua conduta moral, já no século XVIII destacaram-se sobremaneira Rousseau (1712-1778) e Kant (1724-1804). Com efeito, Kant, fundamentado na crítica de Rousseau à educação hipócrita que se espraiava pela França da época, assim denunciou a presença hegemônica da aparência de moralidade:
Mediante a arte e a ciência, nós somos cultivados em alto grau. Nós somos civilizados até a saturação por toda espécie de boas maneiras e decoro sociais. Mas ainda falta muito para nos considerarmos moralizados. Se, com efeito, a idéia de moralidade pertence à cultura, o uso, no entanto, desta idéia, que não vai além de uma aparência de moralidade (Sittenähnliche) no amor à honra e no decoro exterior, constitui apenas a civilização (KANT,1986, p. 19).
Esta fissura entre civilização e cultura – ou seja, entre a fachada moral, que se materializa nos hábitos que caracterizam alguém como civilizado, tal como o decoro exterior e as boas maneiras, e a moralidade substancialmente cultivada e experimentada – encontra sua correspondência na esfera educacional. Quando as informações são absorvidas muito mais para dissimular o aprendizado, que é repetido em qualquer situação de convenção social, do que fomentar no aluno a sensibilidade que lhe capacite refletir sobre as consequências de seus comportamentos em relação aos outros, então predomina o que Kant definiu como aparência de moralidade. Justamente como contraponto a tal esta aparência, Kant enfatiza a importância de se vivenciar substancialmente a moralidade, na esfera educacional, por meio do enfrentamento dos educadores em relação a seguinte questão: de que forma seria possível fomentar o exercício da liberdade entre os alunos, em meio ao constrangimento da obediência das leis atuantes nos ambientes escolares? (KANT, 1996).
Exatamente esta indagação de Kant remete para a reflexão sobre a necessidade deque os alunos internalizem em si a disciplina necessária para que as leis dos contratos escolares sejam respeitadas, como condição de que possam exercer a liberdade de, inclusive, questioná-las caso se revelem inadequadas ou defasadas. Neste ponto reside uma das mais importantes constatações de Kant a respeito da Aufklärung, ou seja, do esclarecimento como elemento-chave para a emancipação do indivíduo de sua condição de ser menor, de ser tutelado: o fato de que determinados limites não só não obstam o esclarecimento, como também estimulam o seu desenvolvimento. Contudo, estes mesmos limites, representados também pelo estabelecimento da lei moral, precisam ser conjuntamente elaborados, pois “aquilo que deve ser moralmente bom não basta que seja conforme à lei moral, mas tem também que cumprir-se por amor desta mesma lei (KANT, 1995, p. 27). Evidentemente, a elaboração conjunta de tais leis, assim como a internalização da disciplina que permita com que os alunos exerçam a liberdade de poder se manifestar de acordo com seus juízos de valores, necessita da participação de um educador que se disponibilize a ouvir o que os alunos têm a dizer; que desça, por assim dizer, de seu pedestal e dialogue como alunado.
Rousseau defendeu esta aproximação entre educador e alunos da seguinte forma: “Gostaria que ele (o professor) pudesse ser ele próprio criança, se possível, que pudesse tornar-se o companheiro de seu aluno e angariar sua confiança partilhando seus divertimentos” (ROUSSEAU, 1992, p.28). Daí a exaltação do filósofo genebrino em relação aos mestres que deveriam oportunizar aos alunos o exercício da denominada liberdade bem orientada. Ou seja, a liberdade usufruída pelo aluno de se sentir capaz de encontrar as respostas de suas questões, as quais não são meramente dadas pelos professores: “(...) sedes virtuosos e bons, que vossos exemplos se gravem na memória de vossos alunos até que possam entrar em seus corações” (ROUSSEAU, 1992, p.93).
Ainda que por meio de outro procedimento didático, Herbart (1776-1841), na sua “Pedagogia geral”, também enaltece a figura do professor como exemplo para a formação do caráter, a saber, a capacidade do aluno rememorar as experiências passadas e exercer racionalmente sua vontade, na medida em que tal exercício implicasse na reflexão sobre como o seu agir interfere no agir do outro. Saber escolher racionalmente, e não de forma impulsiva e inconsequente, caracterizaria o aluno como portador de caráter. Para tanto, de acordo com Herbart, o professor exerceria papel fundamental ao exortar no aluno a pertinência de ser disciplinado:
A disciplina não deve tocar erradamente a alma (...) O educando não se lhe deve opor interiormente de modo nenhum, nem mover-se em diagonal como impelido por duas forças. Mas donde receber uma receptividade aberta e límpida, se não da crença da criança na força e intenção benéfica do educador? E como poderia um comportamento frio, estranho e de repulsa, conduzir a essa crença? – A disciplina só tem razão de ser na medida em que uma experiência interior aconselha aquele, que lhe está submetido a suportá-la com agrado (HERBART, 2003, p. 186).
De forte inspiração kantiana, Herbart tinha plena consciência que o aluno se submeteria aos preceitos disciplinares, derivados dos tirocínios físico e mental, caso se reconhecesse como interventor, como sujeito de seu processo educacional/formativo. Evidentemente, isso não ocorreria no tempo do desejo do aluno, mas sim corresponderia a um processo gradual e contínuo de amadurecimento. Porém, no transcorrer deste processo, os esforços físico e mental seriam compensados, na medida em que o próprio aluno percebesse o quão progredira em direção a se tornar um adulto de caráter, em termos herbartianos. E o professor contribuiria muito para tal, uma vez que pudesse antecipar aos alunos, na condição de figura de autoridade, os “objetivos do homem futuro” (HERBART, 2003, p. 43). Seguindo esta linha de raciocínio, Kerschensteiner (1854-1932) assim definiu qual a principal característica do educador: “é o ser humano que, de forma deliberada ou não, influencia a vida espiritual do próximo quanto à ascensão a uma existência superior” (KERSCHENSTEINER, 1927, p. 3).
Duas décadas após estas considerações de Kerschensteiner, o elogio da liberdade, possibilitada pela incorporação da regulamentação de leis morais, foi acentuado por Durkheim da seguinte forma: “É sob a ação das regras morais, através de sua prática, que adquirimos o poder de sermos mestres de nós mesmos, o que consiste na verdadeira liberdade” (DURKHEIM, 2008, p. 67). Novamente, para que a lei moral possa ser internalizada torna-se decisiva a presença do professor como figura de autoridade, a fins de que se realize a obediência consentida por parte do alunado: “Por autoridade devemos entender a ascendência que exerce sobre nós toda a força moral que reconhecemos como superior a nós” (DURKHEIM, 2008, p. 44). A percepção do aluno, concernente à autoridade moral do professor, lhe possibilitaria constatar que o preço pago pela internação das regras morais compensaria todo o empenho de se disciplinar para poder aprender e, futuramente, também ensinar. A direção verticalizada desta relação entre professor e alunos prevaleceu historicamente no decorrer das atividades referentes aos processos de ensino e aprendizagem, como pôde ser observado, haja vista o fato de que o educador detinha o controle do acesso às informações que seriam posteriormente metamorfoseadas em conceitos. Mas, como tal vetor poderia ser direcionado na sociedade da chamada cultura digital, na qual as informações estão disponíveis em quaisquer tempos e espaços? Qual seria a imagem do professor nos tempos da relação computacional ubíqua? Estas questões serão respondidas a seguir.
A cultura digital e as retaliações dos alunos em relação à profissão de ensinar
Se na história das relações estabelecidas entre professores e alunos sobressaiu o controle dos educadores referente a quando e como as informações seriam transmitidas para os alunos, imagine uma sociedade na qual os alunos teriam em mãos uma máquina que caberia no bolso da calça, e que seria capaz de lhes fornecer todos dados desejados em quaisquer tempos e espaços. Após o histórico de administração de informações feito pelos educadores, como os alunos se sentiriam diante da possibilidade de acessar o que desejassem saber, por meio do manuseio de computadores de bolso na forma de smartphones? Talvez fosse inevitável a sensação de empoderamento narcísico nunca antes vivenciada, ao menos se for considerada a magnitude de tal sensação advinda do modo como as informações podem ser obtidas no contexto da cultura digital. Não que tal possibilidade de acesso informacional, destituído de qualquer tipo de controle, seja característica exclusiva da sociedade cujas vidas das pessoas se digitalizam em praticamente todas as relações. Na verdade, desde a invenção do telégrafo em 1835 consolidou-se as bases de um sistema de comunicação que impossibilitaria o controle exclusivo em relação ao acesso e transmissão de informações. O impulso elétrico do telégrafo, que descarnou a informação, ou seja, que fez com que a troca de informações dispensasse os esforços humanos e animais que outrora a sustentaram, “Levou-nos a um mundo de simultaneidade e instantaneidade que foi além da experiência humana (POSTMAN, 2005, p. 84-85).
Este mundo de simultaneidade e instantaneidade balizou-se tanto na fundamental democratização referente ao acesso informacional, quanto na propalação de notícias fragmentadas e descontextualizas (as chamadas tataravós das atuais fake news). De lá para cá, recrudesceu ainda mais o contato com informações que já não mais poderiam ser objeto de domínio exclusivo das autoridades parentais e professorais. A verdade de que o estabelecimento da censura, feita por tais autoridades em relação ao contato das crianças com informações transmitidas pelo rádio e, posteriormente, pela televisão, tinha como principal escopo procurar adequar os programas às faixas etárias de seus expectadores, não pode dirimir o fato de que estas mesmas crianças, em muitas ocasiões, granjeavam o acesso aos frutos proibidos simplesmente porque era impossível controlar totalmente o quando e onde poderiam adquiri-los.
Mas não há como comparar as simultaneidade e instantaneidade das trocas informacionais propiciadas pela televisão com as da Internet e seus computadores. Quando os chamados computadores pessoais de mesa (Pcs - personal computers) deixaram se ser exclusivamente instrumentos de trabalho nos ambientes das empresas e universidades, e se transformaram num tipo de aparelho doméstico cada vez mais presente na residências das pessoas, gradativamente avigorou-se a nova ontologia social de que ser significaria ser midiática e eletronicamente percebido, primeiramente por meio das presenças virtuais através dos e-mails, e depois pela atuação contínua nas redes sociais (TÜRCKE, 2002).
Mas o computador de mesa ainda se assemelhava, de certa forma, à televisão, sobretudo porque, quando era desligado, o indivíduo também se desconectava do mundo, por assim dizer. Evidentemente, já eram incomparáveis os tipos de conexões proporcionados pelos respectivos contatos informacionais da televisão e o computador de mesa. Contudo, ambos como que permaneciam em seus espaços e, portanto, não acompanhavam seus usuários, a não ser quando fossem novamente utilizados. Mas justamente o uso dos Pcs já anunciava aquilo que estaria por vir: uma revolução nascedoura dentro da revolução microeletrônica. Ou seja, se a revolução microeletrônica teve como seu ícone o computador de mesa, justamente o surgimento do smartphone fez com que caísse por terra uma expressão afeita à aurora da disseminação dos PCs: “eu ainda não me conectei”. Pois exatamente a portabilidade e a tecnologia Wi-Fi dos smartphones fizeram com que o impedimento da conexão ubíqua, derivado da estrutura física dos computadores de mesa, e mesmo dos notebooks, simplesmente não mais existisse.
De lá para cá, o smartphone gradativamente se transmuta numa espécie de prolongamento do corpo humano, a ponto de seu proprietário afirmar que este aparelho tem a mesma relevância que um braço ou uma perna (GLOTZ, P., BERTSCHI, S. & LOCKE, C, 2005; GOGGIN, 2007). Torna-se realmente difícil mensurar, como se isso fosse possível, o prazer que provém da sensação do indivíduo poder se conectar onde e quando quiser com qualquer pessoa, bem como obter qualquer tipo de informação almejada. Além disso, é possível expressar o que se pensa, avaliar, classificar, julgar e sentenciar comportamentos e atitudes alheias por meio do clique de um ícone, ou da exposição de um comentário nas redes sociais através destes aparelhos e demais gadgets eletrônicos digitais.
Mas, talvez nada seja mais narcisicamente prazeroso do que a capacidade atual de captação, controle, manipulação e exibição de imagens e comentários facultado pelo manuseio dos recursos tecnológicos destes computadores de bolso. Diante deste cenário, escolher o que postar nas redes sociais porta consigo outra ambiguidade que precisa ser considerada: se, por um lado, manifestar universalmente determinado ponto de vista pode suscitar o debate profícuo que incita novas reflexões, por outro lado, a exibição da escolha banal, e moralmente desengajada, pode fazer com que se desenvolvam situações convenientes para a difusão do preconceito delirante. Ao analisar as tendências hegemônicas de manifestações de opiniões nas redes sociais, tal como o Facebook, Türcke asseverou o seguinte:
Quando os comportamentos de escolha coletivo e individual deixem de se tornar especiais, tal como no caso do dia da eleição dos representantes legais da população, mas sim são como que comemorados diariamente e, portanto, não mais em relação à especificidade de se escolher um governo, pois pode-se escolher tudo, então a própria esfera pública tendencialmente se nivela à cotidianidade. E é exatamente isso que ela não consegue suportar. Furiosamente, a esfera pública abre suas comportas para todos os estados emocionais pessoais, atitudes e preferências que buscam possibilidades de articulação e se atracam a tudo que a oportunidade lhes oferece (TÜRCKE, 2019, p. 123).
A exposição da fúria narcísica do internauta ocorre quando as comportas dos diques dos contratos sociais, atinentes à observância e respeito aos direitos humanos, são abertas de tal modo que se esfacelam as diretrizes dos engajamentos morais outrora internalizados. Todavia, a menos que se trate de um aglomerado social hegemonicamente formado por psicopatas, torna-se insuportável para o indivíduo escolher-se narcisicamente o tempo todo, fato que este que o impele a projetar o próprio descontentamento na figura do outro:
Na verdade, ninguém consegue, no ato de escolha binária, encarar seguidamente a frustração do contato com a própria falta de substância, com a renúncia contínua de si mesmo diante da falta de responsabilidade e do desengajamento moral quanto às outras pessoas. Isso é absolutamente insuportável. Consequentemente, a explosão da fúria narcísica em relação ao outro é uma formação reativa do indivíduo que não pode assumir que tem sempre que continuar escolhendo o seu próprio vazio, seja por meio do like, seja pelo dislikes (ZUIN, 2021, p. 124).
Na sociedade da cultura digital, são muitas as formas e contextos nos quais ocorre a exposição da fúria narcísica projetada no outro. Em relação ao cenário educacional, uma destas exposições avulta-se cada vez mais: as práticas de cyberbullying cometidas por alunos contra professores. Certamente, não foi coincidência o fato de que as postagens de imagens e comentários humilhantes em relação a professores se alastraram justamente a partir do momento em que os smartphones se transformaram em objetos de consumo de massa. Já no final da primeira década do século XX, irrompiam na rede social Orkut centenas de comunidades de alunos que atacavam os professores: “Eu tenho/tive um professor F.D.P”, “Eu já tive um professor F.D.P”, “Odeio professor Filho da Puta”, “Eu odeio professora malcomida”: estas foram algumas dessas comunidades virtuais compostas por milhares de alunos que registravam e compartilhavam suas experiências pessoais através dos comentários majoritariamente depreciativos, aviltantes e sexistas. Se o Orkut pôde ser identificado como a rede social mais utilizada para as postagens de práticas de cyberbullying de alunos contra professores, ao menos até 2014 quando foi desativada pela empresa Google, é interessante observar que, gradativamente, a rede social YouTube se torna o principal locus de postagens das imagens e comentários humilhantes de alunos em relação aos professores.
Em algumas postagens de videos, nota-se nitidamente que todas as etapas do cyberbullying foram planejadas por seus perpetradores. Já em outras situações, as imagens de professores achincalhados foram imediatamente percebidas e registradas pelos celulares de alunos e, posteriormente, postadas no YouTube. Feita intencionalmente o não, em todas as postagens destas imagens pulsa o desejo de que elas se tornem virais, ou seja, de que se espalhem cada vez mais, de preferência para outros países que não o de origem. Especificamente em relação ao cyberbullying cometido contra professores, destaca-se um video com imagens e centenas de comentários humilhantes sobre um professor brasileiro que perde a paciência, arranca o celular da mão de uma aluna e o arremessa com toda a força no chão da sala de aula, esmagando-o imediatamente. Esse video já foi acessado mais de 2 milhões de vezes desde 2008.
O interessante em relação a esse video é o fato de que foi repostado com um título escrito na língua inglesa, com o seguinte resultado: ele já foi visualizado mais de quinhentas mil vezes e obteve dezenas de comentários escritos em inglês. Decerto que a maior parte dos internautas, que acessaram este video viral, e registraram seus comentários afrontosos na língua inglesa, não compreenderam as palavras que foram ditas na língua portuguesa. Porém, eles sabiam que se tratava da humilhação de um professor, de modo que se pode identificar indícios de que a imagem do professor se transformou num alvo global de humilhação e depreciação. Além deste caso, é relevante enfatizar que, se as palavras cell phone e teacher forem escritas no mecanismo de busca do YouTube, serão acessados dezenas de videos, cujas imagens de professores humilhados, e que destroem ou apreendem os celulares de alunos, foram registradas e postadas por alunos de escolas de vários países. Deste embate do professor em relação ao celular, pela captura do foco de atenção dos alunos, realça-se a denominada concentração dispersa:
Na sociedade atual, torna-se cada vez mais difícil, para não dizer insuportável, fixar a concentração em determinada informação durante algumas dezenas de segundos. O ritmo alucinante das distrações que continuamente se alternam, na medida em que nossos olhares são atraídos por estímulos audiovisuais expostos por telas omnipresentes, parece estar fazendo com que a própria capacidade de concentração seja radicalmente transformada, de tal modo que a dispersão se torna parte de sua constituição (ZUIN, 2017, p. 135).
Se for correto o raciocínio de que a dispersão passa a fazer parte da própria capacidade de concentração, de tal maneira que se torna cada vez mais intolerável estabilizar a atenção na leitura de textos para que haja o tempo necessário de elabora-los conceitualmente, então compreende-se o porquê do foco das agressões online dos alunos, em escala global, se deslocar para a imagem do professor: trata-se da figura que, historicamente, foi a responsável por fomentar, através de práticas disciplinares e, até mesmo, punitivas, a permanência da concentração do alunado quanto aos conteúdos estudados.
No caso das relações estabelecidas entre professores e alunos, não por acaso os alunos do ensino básico e superior elegem o professor como alvo de exposição de tal fúria narcísica por meio da postagem nas redes sociais, sobretudo o YouTube, de imagens e comentários humilhantes. É como se eles e elas dissessem: “Por muito tempo fomos obrigados a aceitar, muitas vezes de forma impositiva e punitiva, as exigências dos professores de que nos concentrássemos disciplinarmente nos conteúdos aprendidos nas salas de aula. Agora que nos sentimos tecnologicamente empoderados, chegou a nessa vez de revidar”. Somam-se a estas práticas de cyberbullying contra educadores, ao menos em parte, as atuais manifestações de estudantes universitários sobre docentes nos sites de avaliação tal como o Ratemyprofessors.
Criado em 1999 por John Swapceinski, os usuários do site: Ratemyprofessor. com., avaliam os desempenhos dos professores universitários de países tais como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido. Ao se deparar com uma escala qualitativa de 1 a 5 de categorias tais como “leveza” (a capacidade do professor de dialogar sobre o conceitos apresentados e não de impô-los aos alunos), “clareza” (a habilidade do professor de apresentar a matéria de modo compreensível, evitando, portanto, ser prolixo) e “presteza” (a habilidade do professor de estar sempre presente e não evitar responder as perguntas dos alunos, mesmo que não saiba as respostas de imediato), o aluno pode tanto quantificar o desempenho do professor, quanto recomendar, ou não, o docente para futuros alunos do mesmo curso. Por fim, o aluno pode escrever um comentário sobre quaisquer aspectos comportamentais dos professores em até 350 caracteres.
Diante desta possibilidade do aluno também se “professorar”, por assim dizer, é interessante observar o modo como hodiernamente as hierarquias entre as referências de autoridade e seus respectivos subordinados são, cada vez mais, esfaceladas. Não que este fenômeno seja restrito aos tempos atuais, pois já em meados do século 20, no apogeu da denominada revolução técnico-científica, já se falava da preeminência da “sociedade sem pai” (MITSCHERLICH, 2003). O mesmo fênomêno foi observado por Postman que relaciona, no seu livro: “O Desaparecimento da infância“, os acessos às informações, principalmente por meio do rádio e da televisão, com o recrudescimento da indissociabilidade entre as fases infantil e adulta, o que faz a distinção entre grupos etários parecer insuportável, assim como também se torna praticamente inaceitável a “ideia de uma ordem social hierárquica” (POSTMAN, 2005, p. 102).
Postman já havia observado a presença cada vez mais constante do não reconhecimento dos mais jovens em relação às figuras de autoridade parentais e escolares já no apogeu do rádio e, principalmente da televisão. Entretanto, na sociedade da cultural digital, esta constestação atinge níveis inéditos, sobretudo quando se compara o acesso às informações possibilitados pela televisão e pela Internet, sendo que, não por acaso, a própria televisão atualmente se torna um computador na forma da Smartv. Seguindo esta linha de raciocínio, Mau observa que“embora os atuais sistemas de avaliação virtuais não promovam uma revogação das redes de relações hierárquicas, eles podem certamente fazer com que elas se tornem mais simétricas” (MAU, 2019, p. 89).
Os atuais ratings de educadores, feitos por estudantes de vários países, aferem as performances de seus professores, de tal maneira que estes julgamentos podem se tornar decisivos para a permanência, ou não, de um determinado docente em relação à universidade que o emprega. Afinal, em meio à sociedade do espetáculo que vigora nos dias atuais, a imagem da universidade não pode correr o risco de ser consunstanciada à de um docente mal avaliado nos ratings, tal como no caso do Ratemyprofessor. com. Ou seja, de acordo com esta lógica de classificação feita pelos alunos, tornam-se equivalentes os quesitos relacionados aos procedimentos didáticos empregados e a aparência física dos educadores (FELTON, J., MITCHELL, J. & STINSON, M., 2004).
Se outrora os professores eram avaliados pelos alunos tanto por meio de instrumentos formais (tal como no caso da aplicação de questionários de desempenhos), quanto informais (os comentários sobre professores que eram registrados nas portas dos sanitários das escolas e universidades, por exemplo), atualmente as apreciações dos alunos e estudantes a respeito das imagens de seus professores podem ser acessadas e visualizadas em quaisquer lugares do mundo e em qualquer tempo. Além disso, esta avaliações permanecerão ininterruptamente registradas na Internet, engendrando o fenômeno da avaliação eterna, seja na forma do desempenho acadêmico, seja em relação ao cyberbullying cometido por alunos sobre o professor. No entanto, os professores também possuem meios para reagir, na medida em que utilizam cada vez mais recursos digitais para a avaliação do comportamento estudantil.
O julgamento algorítimo maquinal como suporte das avaliações dos professores
Na cultura digital, os gadgets eletrônicos digitais não estão sendo utilizadas somente para que os alunos se sintam empoderados, a ponto de achincalhar seus professores através das postagens de imagens e comentários agressivos no YouTube e outras redes sociais. Os softwares de câmeras extremamente sofisticadas são também acionados para que a tríade vigiar, premiar e punir seja revitalizada pelos professores também nos ambientes escolares, notadamente nas salas de aula.
Com efeito, já há escolas na China que fazem uso dos softwares da câmera de imagem ótica transdérmica, cuja sofisticação tecnológica permite fazer com que informações do fluxo sanguíneo facial sejam “interpretadas”, de tal forma que são identificados os estados emocionais dos alunos (WILLIANSON, 2017). Por meio do uso desta tecnologia, torna-se possível fazer com que as informações coletadas das faces dos alunos sejam enviadas imediatamente para os celulares ou notebooks dos professores e pais. Estes dados informacionais são classificados e analisados algoritmicamente pelo software da câmera, de tal maneira que os professores e pais imediatamente recebem o resultado do julgamento maquinal. Assim, alunos classificados como atentos, confusos ou distraídos tornam-se passíveis de ser premiados ou punidos pelos seus respectivos professores, cujo juízo professoral do alunado tende a se fundamentar hegemonicamente através do uso desta tecnologia algorítmica de reconhecimento facial. Face a este contexto, surge a seguinte questão: “De que modo a consciência moral dos alunos poderá ser gradativamente elaborada, uma vez que se deparam com o fato de seus professores fiarem seus julgamentos por meio desta tecnologia algorítmica de reconhecimento facial?”.
Esta questão não pode ser absolutamente respondida, haja vista o fato do emprego de tal tecnologia nos ambientes escolares ainda ser muito recente. Não obstante, nota-se como se avulta uma espécie de arrefecimento da consciência moral do alunado, na medida em que os professores utilizam os recursos tecnológicos hodiernos não apenas para referendar, como também para elaborar os julgamentos sobre os comportamentos dos alunos no decurso das atividades do processo de ensino e aprendizagem.
Ao invés do professor se empenhar para fomentar a sensibilização dos alunos, por meio do incentivo à reflexão sobre as consequências dos rótulos preconceituosos que um aluno impinge nos colegas, por exemplo, torna-se muito mais eficiente punir o aluno, cujo sorriso algoritimicamente interpretado como sarcástico, pelos softwares das câmeras de reconhecimento facial, identificariam a presença da intenção de ridicularizar algum colega na sala de aula.
Mas, a partir do momento que o professor desiste do ato formativo concernente ao processo de sensibilização cognitiva, bem como do enfrentamento das dificuldades de realiza-lo no trato com os alunos, então muito provavelmente o alunado também abdicará de reconhecer na imagem do professor um profissional relevante para sua formação. Pois se este procedimento se tornar efetivamente hegemônico, há que se questionar o seguinte: qual seria o significado do professor se reconhecer e ser reconhecido como figura de autoridade pelos alunos, caso seu julgamento moral fosse exclusivamente alicerçado nos dados maquinal e algoritimicamente obtidos? Será que, neste contexto, seria digitalmente revigorada a aparência de moralidade do aluno, que aprenderia a dissimular uma expressão facial compatível a algum comportamento desejado pelo professor, ao invés de experimentar substancialmente a moralidade no trato com seus colegas e professores?
Evidentemente, não se pode desconsiderar o potencial emancipatório da tecnologia algorítmica de identificação, avaliação, classificação e exposição dos dados. Tal como foi destacado anteriormente, torna-se possível, nos dias atuais, obter quaisquer informações em quaisquer espaços e tempos por meio do uso das tecnologias digitais de informação e comunicação. Ao enfatizar justamente este aspecto emancipatório técnico, Marcuse (1898-1979) já havia criticado os programas de caráter antitecnológico da seguinte maneira: “toda propaganda a favor de uma revolução anti-industrial serve apenas àqueles que veem as necessidades humanas como subproduto da técnica. Os inimigos da técnica rapidamente se aliam à tecnocracia terrorista” (MARCUSE, 1999, p. 101).
Ao se revitalizar este raciocínio de Marcuse na sociedade da cultura digital, tornam-se evidentes as benesses que podem ser obtidas através da tecnologia algorítmica de captação e interpretação de dados: desde poderosos sensores que conseguem compilar algoritimicamente as informações que permitem avisar os sistemas de segurança sobre possíveis enchentes em pontos estratégicos de uma cidade, até escolas que compartilham, por meio de objetos conectados entre si, informações sobre quaisquer assuntos em tempo real, caracterizando a denominada Internet das coisas3 (ZHANG, 2012; GREENGARD, 2015).
Todavia, é na sociedade na qual se pode lembrar de tudo que novas formas de esquecimento são estabelecidas, na medida em que a recuperação algorítmica de quaisquer informações é feita de forma a apartá-las dos contextos históricos em que foram engendradas, tomando-as como se fossem absolutas e totalmente independentes entre si.
Exatamente este tipo de procedimento conduz à análise fragmentada da informação, cuja descontextualização pode ser determinante para transformá-la na chamada fake news, ou seja, na notícia falsa capaz de suscitar a produção de julgamentos preconceituosos, machistas, homofóbicos e sexistas, entre outros. Por isso, é na sociedade da cultura digital que o julgamento do professor sobre determinada informação algoritimicamente obtida precisa ser feito por meio da análise contextual em que ela foi produzida, de modo a fazer com que o uso da máquina não promova a elaboração de um julgamento absolutamente instrumental, mas sim fundamentado na intervenção humana que recupera e repensa o nexo espaço-temporal em que o ato de julgar foi composto.
Conclusão
Quais são as características da imagem da profissão de ensinar, na sociedade das vidas digitalizadas? Em tempos nos quais os alunos dispõem do controle informacional nunca antes imaginado, ao que tudo indica, a tendência predominante é a de que utilizem seus gadgets eletrônicos digitais para postar imagens e comentários depreciativos sobre os professores nas redes sociais, ou mesmo julgá-los como excelentes ou péssimos profissionais por meio dos ratings, tal como no caso do site Ratemyprofessor.
Ao que parece, o julgamento dos alunos de que não mais necessitam de seus professores, pois podem obter quaisquer informações em quaisquer tempos e espaços, propaga-se numa velocidade compatível à da Internet. É interessante observar o modo como a sensação de empoderamento dos alunos concerne ao fato de identificarem majoritariamente o professor como um profissional que teme perder seu posto de autoridade educational diante do sortilégio da, por assim dizer, autoridade do aparelho celular. Muitos dos comentários humilhantes postados pelos alunos no YouTube enfatizam este possível pavor dos professores de transmitir uma imagem de profissionais obsoletos, para usar uma linguagem maquinal, diante do poder algorítmico de identificação, classificação e interpretação do mecanismo de busca do Google, e que é acessado por meio dos celulares.
Porém, os professores também retaliam seus alunos, seja através de comentários jocosos, que são postados nas redes sociais como respostas às agressões sofridas nos ambientes virtuais, seja por meio do uso da tecnologia algorítmica de reconhecimento facial capaz de identificar, classificar e interpretar as emoções e os estados de espírito dos alunos. A tendência é a de que prepondere um sistema de punição e premiação de comportamentos que arrefeça a possibilidade do aluno se sensibilizar frente ao outro, de modo que o medo da penalidade e a satisfação vaidosa de ser premiado se sobreponham ao exercício da consciência apta a refletir moralmente sobre si, bem como a respeito das possíveis consequências de seu comportamento em relação ao outro. “Em lugar do desejo de agir bem, cultivamos o gosto da luta e da vaidade”, já observara criticamente Leif em relação à análise das práticas de punição e recompensa presentes no cotidiano escolar da década de 1950 (LEIF, 1953, p. 148).
Se, historicamente, as aplicações de castigos e elogios sempre se fizeram presentes nas relações estabelecidas entre professores e alunos, faz-se necessário enfatizar o fato de que, na denominada sociedade métrica (MAU, 2019), na qual todas as relações sociais tornam-se passíveis de ser algoritmicamente quantificadas4, também o liame entre professores e alunos, não se exime desta logística interacional, quer seja por meio dos likes e dislikes diante das imagens dos educadores postadas nas redes sociais, tais como nos casos do YouTube e do Facebook, quer seja nas pontuações obtidas pelos professores em relação às suas aparências físicas e performances realizadas nas salas de aula, e que são postadas nos ratings acessados em quaisquer tempos e espaços.
Diante deste quadro, caberia a pergunta: seria ainda possível conservar a imagem do professor como uma autoridade educacional? Evidentemente, uma resposta que se limitasse apenas à análise das características idiossincráticas do professor não poderia abranger a complexidade da situação em voga. Pois atualmente a cultural digital condiciona cada vez mais a presença do questionamento das estruturas hierarquicamente verticalizadas entre professores e alunos.
Frente ao cenário de que todas as informações são passíveis de ser acessadas onde e quando se desejar, um outro vetor da relação entre educadores e educando se afirma: o da diretividade horizontal. Ou seja, engendra-se um contexto no qual o professor, ao expor diretamente sua opinião sobre determinado tema que está sendo debatido com os alunos, fomenta que estes não tenham receio de expor o que pensam, de modo a, inclusive, elaborar determinados raciocínios que provocam o educador a rever aquilo que anteriormente pensava sobre o tema.
Se a troca de informações e raciocínios entre ambos acontecer desta maneira, a inevitável produção de novos conceitos pode muito bem suscitar nos professores e alunos (nas condições de agentes educacionais, de interventores) a sensibilização necessária para a revitalização do engajamento moral que faz com que ambos se respeitem e reflitam sobre as consequências de seus comportamentos dentro e fora das salas de aula. Ao invés da aparência de moralidade, derivada do medo da punição ou da satisfação vaidosa do prêmio recebido, haveria o espaço para a efetivação da ética e da moral que considera o outro como determinante para a configuração da própria identidade: “a verdadeira lei do espírito é achar a satisfação em seu próprio exercício” (DEWEY, 1947, p. 115-116).
Se, historicamente, o aluno foi estimulado a conservar o professor transformado em si, quando devolvia ao educador ainda mais do que recebera no transcorrer da aula, na sociedade da cultura digital o professor conserva também o aluno transformado dentro de si. Talvez assim a imagem do professor recupere sua característica de autoridade educacional, justamente porque ele se reconhece na autoridade do aluno, o mesmo aluno que se vê também presente no raciocínio reelaborado do educador. Mais do nunca, na cultura digital, a apresentação dos objetivos do homem futuro deixa de ser verticalmente feita pelo professor e passa a ser horizontal e dialogicamente elaborada com e não para os alunos5.