Introdução
Nos últimos anos, a situação da Pós-Graduação pública no Brasil tornou-se crítica, rompendo um ciclo de expansão e investimentos ocorrido no início do século. Qualquer pesquisa pelos termos “ciência” e “Brasil” nos mecanismos de busca da internet retorna centenas de matérias e notícias sobre o cenário desafiador que passamos, não apenas em termos de investimentos, mas também de formulação de políticas públicas, de perseguição ao trabalho de cientistas e docentes, de ataques sistematizados contra instituições de ensino e pesquisa e seus profissionais.
A deterioração do cenário brasileiro é tão expressiva que, em 2019, o Brasil foi capa da 5ª edição do relatório Free to Think1, que monitora a perseguição a acadêmicos e a universidades em todo o mundo (SAR 2019). As capas das edições dos 4 anos anteriores foram ocupadas por Irã, Turquia, Paquistão e Egito. O Brasil foi novamente citado nos relatórios de 2020 e 2021 (SAR 2020; 2021), confirmando temores de intervenções e perseguições, com denúncias e exemplos de medidas tomadas pelo governo Bolsonaro como forma de atacar a ciência e perseguir universidades, docentes e cientistas.
Em novembro de 2021, participei da mesa “A Pós-graduação e a Pesquisa: sobre enfrentamentos e ressonâncias na produção acadêmica”2, ocorrida no Seminário de Educação (SemiEdu 2021) da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Alinhada com o tema do evento, a mesa trouxe discussões sobre a pós-graduação pública, sobre a educação no meio digital, sobre os desafios e impactos causados pela COVID-19, e sobre democracias sufocadas e resistências. As discussões desenvolvidas com a audiência e com colegas da mesa é que dão forma e corpo a este texto e que embasam as minhas reflexões.
Assim, neste artigo trago o meu entendimento sobre o cenário em que estamos, e chamo a atenção para a necessidade de trabalharmos para mudar — e, em alguns pontos, resgatar — os sentidos e propósitos de práticas, estruturas e entendimentos existentes em nosso sistema de pós-graduação pública. O principal argumento que eu desenvolvo é que há pontos críticos que precisam ser discutidos e trabalhados, pois são limitantes e não fazem mais sentido para a nossa pós-graduação pública (se é que um dia fizeram). Dentre estes pontos, destaco a necessidade de revermos nosso entendimento sobre a avaliação e a produção dos programas, reforçarmos nosso foco na educação, reconhecermos as diferentes identidades dos programas, e investirmos na ciência aberta. Se esses pontos não forem trabalhados, continuaremos com uma estrutura distorcida que não nos permitirá avançar efetivamente mesmo com melhorias nos quadros político e econômico.
Este artigo está organizado da seguinte forma: na Seção 2, situo a minha visão de mundo com relação a minha formação, atuação profissional e orientação político-pedagógica, de modo que a pessoa leitora saiba de onde falo e o que me fundamenta. Na Seção 3, apresento algumas constatações e críticas que caracterizam o modo como enxergo o cenário atual e, na Seção 4, apresento e discuto 10 pontos que considero críticos para avançarmos na nossa pós-graduação pública. Na Seção 5, retomo os principais tópicos abordados no artigo e apresento minhas considerações finais.
Quando falo de educação neste texto, estou cobrindo as questões de ensino e formação, mas não me restringindo a elas. Destaco que este artigo é um texto de opinião e posicionamento em que seu autor expõe o que pensa e como pensa sobre determinado tema. Este texto não tem como propósito apresentar um panorama da situação da pós-graduação pública no Brasil, nem apresentar uma realidade objetiva: o texto necessariamente apresenta a visão e experiência do seu autor, refletindo seus valores, preocupações e questionamentos.
Visão de mundo
Desde 2016 tenho atuado como docente de graduação e pós-graduação no Departamento de Informática (DInf) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e desde 2017 atuo na coordenação da Pós-Graduação em Informática da UFPR. Devido às atividades de coordenação, participo do colegiado do programa e atuo em diferentes fóruns de escopo local, regional e nacional, como o Fórum Nacional dos Coordenadores de Programas em Computação e o Fórum dos Programas de Computação do Estado do Paraná. Essa atuação na pós-graduação tem me possibilitado experienciar os processos de avaliação dos programas, participar de planejamentos, conduzir e colaborar com ações estratégicas, e participar de discussões com profissionais de diferentes áreas sobre o histórico, a situação, os desafios, as possibilidades, a finalidade e o sentido da pós-graduação pública em um país como o Brasil. É impossível pensar na pós-graduação pública sem reconhecer que o Brasil é um país de desigualdades extremas, com uma grande parcela da população sem acesso aos recursos básicos para uma vida digna e aos direitos garantidos pela Constituição Federal (BRASIL 1988) e promovidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU 1948), dentre eles a educação de qualidade.
Desenvolvi minha formação na graduação em instituição privada de ensino, e minha formação em nível de pós-graduação em universidades públicas, com mestrado na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Essa experiência favoreceu meu entendimento sobre a importância de políticas públicas que possibilitem o acesso e a permanência de discentes em níveis de graduação e pós, seja via programas como o PROUNI, seja via bolsas de demanda social como as oferecidas pela CAPES. Minha experiência como pesquisador visitante na Universidade de Reading, no Reino Unido, me permitiu refletir sobre a finalidade e as condições da pós-graduação em outros países e sobre as particularidades da realidade brasileira.
Também tenho atuado como editor-chefe do Journal on Interactive Systems (JIS) e da Revista Horizontes (revista de divulgação), mantidos pela Sociedade Brasileira de Computação (SBC). Ambos os veículos disponibilizam conteúdo de forma gratuita, sendo ações da SBC para promover a ciência aberta e de qualidade a diversos públicos. Mais do que o entendimento e experiência com a edição de um periódico científico e de uma revista de divulgação, a atuação nesses veículos tem contribuído para a minha visão sobre temas e questões relevantes sobre ciência, educação, tecnologia e sociedade, em especial sobre a necessidade e a importância de ações que promovam a ciência aberta e o acesso participativo e universal das pessoas ao conhecimento (BARANAUSKAS & DE SOUZA 2006).
Documentos de base
Em termos de entendimento sobre o nosso papel enquanto docentes de programas de pós-graduação em universidades públicas no Brasil, busco entendimento em diferentes documentos que devemos conhecer e que devem informar nossa prática. Na sequência, chamo a atenção para alguns dos mais importantes.
A Magna Charta Universitatum (MCU 1988) é uma declaração e afirmação dos princípios fundamentais sobre os quais a missão das universidades deve ser baseada. Assinada por centenas de universidades ao redor do mundo, o primeiro princípio é a independência: a pesquisa e o ensino devem ser intelectualmente e moralmente independentes. O segundo princípio é que o ensino e a pesquisa (e, aqui no Brasil, a extensão) devem ser indissociáveis, engajando estudantes na busca pelo conhecimento. O terceiro princípio caracteriza a universidade como um local de livre investigação e debate, aberto ao diálogo e com rejeição à intolerância. Conhecer a Carta Magna é fundamental para termos lucidez sobre nosso papel enquanto docentes de universidades públicas e sobre como devemos estruturar nossos programas de pós-graduação, tanto para que eles estejam alinhados aos princípios da carta, quanto para identificarmos, resistirmos e nos mobilizarmos frente a opressões que atentem contra esses princípios.
A atualização da carta em 2020 (MCU 2020) destaca a responsabilidade das universidades de se envolver e responder às aspirações e desafios do mundo e das comunidades que servem, com o propósito de beneficiar a humanidade e de contribuir para a sustentabilidade. A autonomia intelectual e moral é entendida como pré-condição para o cumprimento dessas responsabilidades com a sociedade — e como algo que precisa ser defendido vigorosamente pelas próprias instituições, pois a liberdade acadêmica é a força vital de uma universidade.
A carta também destaca o dever de ensinar e promover o desenvolvimento ético de investigação com integridade, produzindo resultados seguros, confiáveis e acessíveis. A universidade tem o dever de estar sintonizada com o desenvolvimento global e, ao mesmo tempo, integrada plenamente a comunidades e ecossistemas locais, assumindo papéis de liderança. A carta reconhece a educação como um direito humano que deve estar disponível a todas as pessoas, e defende as universidades como espaços não discriminatórios, inclusivos e abertos à diversidade, ancorando-se em princípios de equidade e justiça. A carta reconhece que é papel das universidades acolher e se envolver com diversas vozes e perspectivas, incluindo pessoas e comunidades que possam ter dificuldade de acesso ao ensino superior devido a circunstâncias de inequidade.
Outros três documentos necessários são a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU 1948), a Constituição Federal (BRASIL 1988) e o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal (BRASIL 1994).
No âmbito nacional, a Constituição de 1988 estabelece bases legais para que os compromissos representados pela Carta Magna vigorem. O Art. 205 apresenta a educação como um direito de todas as pessoas e destaca seu papel para o pleno desenvolvimento da pessoa e para o seu preparo para o trabalho e para o exercício da cidadania. O Art. 207, por sua vez, garante a autonomia universitária: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Esses dois artigos também são coerentes com o Art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. (ONU, 1948).
Finalmente, como Servidor Público Federal, destaco a importância de se conhecer e refletir sobre o Código de Ética do Servidor Público. Dentre suas diversas determinações, o código estabelece o dever de “h) ter respeito à hierarquia, porém sem nenhum temor de representar contra qualquer comprometimento indevido da estrutura em que se funda o Poder Estatal”, e “i) resistir a todas as pressões de superiores hierárquicos, de contratantes, interessados e outros que visem obter quaisquer favores, benesses ou vantagens indevidas em decorrência de ações imorais, ilegais ou aéticas e denunciá-las”. O código também determina que é vedado ao servidor público “e) deixar de utilizar os avanços técnicos e científicos ao seu alcance ou do seu conhecimento para atendimento do seu mister”.
Esses documentos deixam explícito o nosso papel nas universidades, a nossa responsabilidade enquanto docentes, e o nosso dever de zelar por um espaço de diálogo, aberto às diversidades, livre de pressões e interesses indevidos, que produza conhecimento de qualidade, que seja atento às demandas globais e situado na realidade local, que promova a educação e a ciência para a formação plena das pessoas, visando o exercício da cidadania e a contribuição para uma sociedade mais justa. Conhecer esses documentos, debater sobre eles, e trazê-los para as nossas realidades diversas são ações que temos a responsabilidade de conduzir. Esse debate informado deve servir como base para (re)afirmarmos nosso papel, definirmos nossas estratégias e ações, nos posicionarmos, e nos (re)conhecermos enquanto educadoras e educadores de instituições públicas brasileiras.
Orientação teórica
Em termos conceituais, minha visão de mundo é informada pelas obras de muitas pessoas, sendo que algumas precisam ser explicitadas aqui pois influenciam muito na forma como entendo a realidade e atuo sobre ela.
De Edward T. Hall (1959) eu trago o entendimento de cultura como uma forma de comunicação e a ideia de que nós, seres humanos, nos comunicamos e operamos em três níveis: Informal, Formal e Técnico. O nível Informal representa os mais diversos aspectos da vida diária, pessoal e em comunidades, incluindo nossos valores, hábitos, preferências, costumes, etc. O nível formal representa aspectos que possam ser explicados, definidos ou representados, normalmente com normas e regras que substituem intenções e significados subjetivos. Finalmente, o nível técnico representa aspectos que são, de algum modo, “automatizáveis”, procedimentos, mecanismos, tudo o que seja auditável, reprodutível — nem tudo o que está no nível técnico é científico, mas tudo o que é científico está no nível técnico. Além dos 3 níveis, Hall propõe 10 áreas chamadas de Sistemas de Mensagem Primários que seriam capazes de ajudar a entender e representar culturas de forma estruturada. Ao propor 3 níveis e 10 áreas, Hall argumenta explicitamente que ele escapa da bipolaridade e de análises restritas a duas dimensões. Eu tenho trabalhado com a combinação desses 3 níveis e 10 áreas, resultando em pelo menos 30 aspectos relevantes para analisar (ou projetar) um determinado contexto ou situação — por exemplo: questões informais, formais e técnicas dos materiais utilizados, dos recursos de segurança, das formas de interação em um ambiente educacional.
De Ronald Stamper (2001) e da Semiótica de Pierce (SANTAELLA, 2017) trago o entendimento de que a realidade é subjetiva e socialmente construída. Stamper ainda oferece uma estrutura para os três níveis propostos por Hall (1959), entendendo que o nível técnico é um subconjunto do nível formal, que é um subconjunto do nível informal que, por sua vez, é um recorte de um todo maior e mais complexo. De Maria Cecília Calani Baranauskas (2014) trago o entendimento de que a construção de qualquer artefato técnico requer o entendimento do nível informal para então proceder ao nível formal que permitirá a construção desse artefato; e a compreensão de que o artefato técnico tanto é influenciado pelos níveis informal e formal, quanto os influencia de volta, impactando a sociedade. Dessa autora, também trago o entendimento de que a construção de qualquer artefato deve ser feita de forma participativa, inclusiva e socialmente responsável tanto em termos de processo (forma de fazer) quanto em termos de produto (artefatos produzidos). Assim, se efetivamente queremos uma pós-graduação que faça sentido à nossa sociedade e que contribua com a educação, a ciência e a tecnologia, é necessário que sejamos capazes de entender o contexto situado em que existimos e atuamos, construindo um entendimento compartilhado sobre nosso propósito, nossa identidade, nosso papel e nossas contribuições.
Finalmente, em Freire (2019) procuro o pensamento crítico para entender e transformar a realidade em que nos situamos. Esse pensamento crítico cobre meus questionamentos sobre a educação, como o entendimento de que a educação autêntica “não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2019, p. 116), e reconhece o diálogo como elemento essencial. Das reflexões sobre a obra de Freire, entendo a necessidade de promovermos uma formação para o pensamento crítico na pós-graduação, com uma educação libertadora, consciente do contexto em que existimos, das forças que sustentam e perpetuam opressões, da responsabilidade que temos enquanto docentes e discentes de instituições públicas de ensino e pesquisa em um país como o Brasil. Entendo que devemos transformar a nossa realidade, e que essa transformação precisa necessariamente promover a justiça social, a igualdade de direitos, a qualidade de vida e a dignidade humana. Sem entendermos (e envolvermos) o contexto em que existimos e as partes interessadas que o constituem, e sem nos preocuparmos com os desafios que enfrentamos enquanto sociedade, continuaremos construindo espaços em que pessoas em situação de desvantagens não conseguem entrar e permanecer, e continuaremos pensando e construindo estruturas opressivas que fazem da pós-graduação um espaço elitista.
O cenário da pós-graduação pública
A ciência brasileira é produzida em grande parte nas universidades por meio de seus programas de pós-graduação e centros de pesquisa. Entre 2002 e 2014, o país registrou expansão em seus índices de investimentos em ciência, em expansão das universidades públicas — inclusive nas zonas de menor desenvolvimento, em envio de estudantes e docentes para trabalho e estudo no exterior, em fomento para projetos de pesquisa e desenvolvimento. Nos últimos anos, porém, houve retrocesso generalizado e os avanços de décadas de investimentos se encontram fortemente ameaçados ou já foram perdidos.
A fuga de cérebros já é uma realidade: cientistas das mais diversas áreas estão deixando o país por condições de trabalho no exterior. Porém, embora o corte de recursos esteja entre as causas, a novidade dos últimos anos é a perseguição e difamação sistemática sofrida pelas universidades públicas. Desde 2018, as universidades públicas têm sido objeto explícito de ataques e difamação por membros do atual governo, inclusive do próprio Ministério da Educação. Puska et al. (2020) citam alguns exemplos, como acusações de “balbúrdia”, produção de drogas, corrupção de recursos, e pornografia para citar apenas alguns casos. Com estratégias de produção e disseminação das chamadas fake news, as universidades foram desmoralizadas e vilanizadas antes mesmo do corte de recursos se intensificar com o desaparecimento das bolsas e dos editais de fomento à pesquisa. Se a falta de recursos já era uma realidade com a qual docentes, discentes e cientistas precisavam lidar, a desmoralização da ciência e das instituições públicas de ensino e pesquisa, ocorrida de forma continuada no governo Bolsonaro, tornaram o cenário insustentável.
É neste contexto de desmanche da pós-graduação pública que, durante o SemiEdu, destaquei que o título da mesa traz dois itens em que estamos falhando: enfrentamentos e ressonâncias. Faltam enfrentamentos quando estamos há mais de 3 anos passando por um processo de ataque e desmoralização sistematizado, organizado e pouca (ou nenhuma) resposta ou reação efetiva foi dada. Embora ocorram ações e reações, elas normalmente são isoladas e pontuais. Nossas universidades, programas e sociedades emitiram notas de repúdio normalmente lidas apenas por seus membros (quando muito), com pouca ou nenhuma articulação e organização efetiva para investigar e responsabilizar os envolvidos. Faltam ações concretas e organizadas para proteger a autonomia garantida pela constituição. Faltam ações nas mais diversas esferas, incluindo a esfera jurídica, para enfrentar e coibir o ataque sistematizado.
Na minha leitura do cenário que passamos, uma das principais razões para a nossa falta de enfrentamentos é a insistência no entendimento equivocado de que a educação pública não é tratada com prioridade e de que há incompetência nos cargos políticos e técnicos que estão coordenando a educação, a pós-graduação, a ciência e a tecnologia. Darcy Ribeiro já denunciava que não temos uma crise de educação no país, temos um projeto de educação. E esse projeto agora não está apenas mantendo uma educação pública insuficiente, ele está destruindo, subvertendo valores, descredibilizando a educação pública. Não se trata de falta de prioridade e não se trata de incompetência ou descaso: estamos vivendo uma destruição intencional do nosso sistema de ensino público para favorecer outros interesses.
Não há caos no método de conduzir a educação e a ciência pelo atual governo: o caos é o método. Com o caos produzido constantemente nas mais diversas frentes, as tentativas de ressonância e de mobilização são enfraquecidas. Há sempre um novo problema ocorrendo, um novo incêndio a ser gerenciado. Há intervenções nas universidades, há desrespeito à liberdade acadêmica. Há sempre uma pessoa com currículo duvidoso sendo nomeada para cargos estratégicos, e há sempre currículos fraudados dominando o noticiário ao mesmo tempo em que as instituições públicas são atacadas.
Um exemplo concreto de estratégia de caos efetivamente empregada está nas incertezas da avaliação quadrienal dos programas de pós-graduação geradas por instabilidades na CAPES. Há quase dois anos, a ficha de avaliação dos programas e o novo Qualis são as principais preocupações das coordenações dos programas nos fóruns em que tenho participado em nível local e nacional na área da Computação. Nesse meio tempo, as bolsas foram reduzidas, os editais de financiamento à pesquisa sumiram, a procura de estudantes pela pós-graduação despencou, a pesquisa na universidade pública foi atacada e explicitamente desmoralizada, e nenhum desses problemas recebeu mais atenção do que entender como os programas e docentes seriam avaliados. Resultado: o desmonte da pós-graduação avançou sem encontrar enfrentamentos efetivos e a avaliação quadrienal foi interrompida por ordem judicial e, recentemente, retomada sem a garantia de que seus resultados possam ser divulgados. A estratégia do caos teve sucesso, nos mantendo ocupados com a avaliação quadrienal enquanto corremos o risco de não termos muito o que avaliar nos próximos anos.
O cenário da pós-graduação pública (incluo aqui a educação e a ciência) é um cenário de terra arrasada. A partir de 2023 o país estará sob o governo que for eleito agora em 2022 caso o rito democrático seja devidamente respeitado. Porém, independente de quão bom seja o cenário que se delineará para o próximo ano, é impossível desfazer ou reverter o mal já gerado. A pós-graduação pública precisa ser entendida como um ecossistema vivo que requer cuidados constantes para que se desenvolva: mesmo que um tratamento seja realizado, não há como desfazer os danos gerados e o sofrimento já enfrentado. Há apenas como tratar o problema e seguir a partir do estado atual.
Da mesma forma que ocorreu com os crimes ambientais nos casos de Mariana e Brumadinho, não há como desfazer os danos causados na pós-graduação nos últimos anos simplesmente porque é impossível voltar no tempo e mudar o curso dos eventos. Não há como recuperar o tempo perdido e as pesquisas não desenvolvidas. Não há como recuperar estudantes que abandonaram (ou que deixaram de ingressar) seus mestrados e doutorados, as pesquisas que teriam desenvolvido, os resultados que teriam obtido, as contribuições que teriam gerado e que continuariam gerando com a formação recebida. Não há como recuperar o trabalho desenvolvido por cientistas que decidiram buscar condições de atuação no exterior, muitas vezes porque o país não é capaz de absorvê-los(as), ou recuperar pesquisas que tiveram que ser interrompidas por falta de recursos. Não há como desfazer os impactos gerados pelo descrédito da opinião pública e pela promoção de comportamentos hostis e negacionistas.
Podemos estimar impactos em indicadores específicos, como a quantidade de pessoas tituladas, de artigos científicos, de patentes etc., porém não somos capazes de conhecer a totalidade dos danos desencadeados e do bem que deixou de ser gerado. Podemos fazer projeções, mas não teremos como saber qual futuro melhor foi jogado fora quando a educação pública passou a ser tratada como inimiga.
Pontos críticos: desafios e oportunidades
O cenário que delineei na seção anterior, sem investimentos, sem perspectivas da avaliação quadrienal, sem políticas efetivas de valorização da pós-graduação pública, evidencia distorções, problemas e pontos críticos que precisamos discutir e (re)pensar na forma como estruturamos e conduzimos nossos programas. Nesta seção, apresento alguns desses pontos e discuto o porquê devemos trabalhá-los agora, precisamente neste momento desafiador que estamos passando. Alguns desses pontos têm a ver com esquemas de avaliação que causam ou perpetuam distorções e, também, com questões culturais que não fazem mais sentido (se é que um dia efetivamente fizeram). Os pontos não são exaustivos e nem universais, mas já servem como exemplo do que precisamos colocar em discussão e ação.
Reconhecer e cultivar a Identidade de cada programa
É preciso que nosso corpo docente, discente e administrativo tenha um entendimento compartilhado sobre o que significa ser um programa de pós-graduação em uma universidade pública no Brasil e, mais especificamente, no contexto situado em que o programa existe. Este talvez seja o ponto mais crítico a ser trabalhado, pois mais do que declarações de objetivos, visão e missão, ele tem a ver com a cultura de um programa — e cultura se cultiva permanentemente.
É preciso clareza sobre a realidade em que se atua e sobre qual o nosso papel nessa realidade. Sem um entendimento compartilhado sobre essa identidade, valores e propósitos, os programas se tornam apenas um agrupamento de pessoas trabalhando em diferentes temas e publicando artigos. E essa não só é uma visão pobre como também é perigosa, pois compromete a autonomia e a potencialidade dos programas, facilmente convertendo-os em instrumentos que reproduzem problemas que deveriam resolver e opressões que deveriam combater.
A questão da identidade permeia todos os demais pontos que trago porque, em um país como o Brasil, com dimensões continentais, de grande diversidade, com problemas estruturais, e marcado por desigualdades extremas em todos os aspectos possíveis, há cenários muito variados que requerem programas de pós-graduação com identidades muito diferentes.
A identidade de um programa precisa ser coerente com o seu contexto situado, sendo socialmente consciente e responsável. Só assim é possível que a atuação dos programas seja transformadora de sua realidade — de forma igualmente consciente e responsável. Apenas conscientes de sua identidade é que os programas poderão parar de se pautar por regras, métricas e esquemas que não fazem sentido para as suas realidades e com os quais jamais conseguirão entrar em conformidade — não sem desfigurar sua identidade, desvirtuar seu propósito, perder sua relevância. Conscientes de sua identidade, os programas são capazes de pautar o seu próprio rumo, com um planejamento situado e coerente com o entendimento do papel único da universidade pública na educação, na pesquisa e na atuação para a transformação da realidade em benefício não apenas da sociedade, mas de toda a vida.
Focar na educação
Um programa de pós-graduação tem como propósito a educação de pessoas; a formação para o pensamento crítico e responsável; a formação de pessoal qualificado para o ensino, a pesquisa e o desenvolvimento de ponta em suas respectivas áreas. A produção científica e técnica, i.e., publicações em veículos de alto impacto, patentes, prêmios etc., são consequência do processo de formação na pós-graduação: são resultado de uma educação de excelência que ocorre em ambientes adequados para que as pessoas produzam, construam e reconstruam.
Um programa de pós-graduação deve ser um terreno fértil para que a educação floresça e para que as pessoas se desenvolvam de forma plena. Embora isso pareça óbvio, muitas das distorções e problemas que enfrentamos são causados pela insistência nociva de se entender, estruturar, conduzir e avaliar programas de pós-graduação como se fossem institutos de pesquisa — i.e., como se o foco primário fosse a produção científica em vez da educação.
Essa falta de foco explícito na educação reflete uma falta de entendimento da identidade do programa, e se traduz em problemas estruturais, como grades curriculares essencialmente técnicas ou instrumentalistas que não preparam a pessoa para o pensamento crítico, criterioso e responsável. Em texto publicado na revista Nature, Gundula Bosch (2018) argumenta que muitos currículos de doutorado visam formar cientistas estritamente focados que mais parecem especialistas de laboratório do que pensadores(as) críticos. A autora defende a necessidade de trazermos de volta o “ph” (philosophy) ao PhD, e advoca pelo que ela chama de 3 Rs da pesquisa: rigor, reprodutibilidade e responsabilidade. Isso significa que estudantes devem aprender a aplicar rigor ao projeto e à condução de suas pesquisas; devem aprender a ver seus trabalhos pelas lentes da responsabilidade social e ética; e devem pensar criticamente, comunicar melhor e, assim, melhorar a reprodutibilidade — ou o rationale da pesquisa para entender o porquê ela foi conduzida como foi e quais seus resultados.
Perguntas que devemos nos fazer: como nossos programas promovem isso? Como favorecemos o desenvolvimento do pensamento crítico, rigoroso e responsável, e a preocupação ética com as ações (não) tomadas? Como educamos para que cientistas tenham consciência de seu papel e responsabilidade na sociedade? Estamos formando pessoas realmente capazes de lidar com os problemas que estamos enfrentando? Nos programas de pós-graduação em computação que conheço, são raros os casos em que há disciplinas relacionadas à filosofia da ciência e à ética em pesquisa, ou outras iniciativas que promovam o pensamento crítico e responsável. Deixamos o pensamento crítico e esse senso de responsabilidade para serem exercitados na relação de orientação, na interação entre os pares, e na própria condução da pesquisa. Porém, além de não ser suficiente, essa estratégia é fadada às repetições das formações deficientes, com docentes que não receberam formação adequada perpetuando a má formação que receberam. É preciso que os currículos sejam estruturados de modo a promover a educação para o pensamento crítico, pois é para isso que servem os programas de pós-graduação públicos. Se os programas não cumprirem esse papel, continuará havendo uma educação deficiente pois não há outro momento ou espaço para que ela ocorra.
Há outros problemas estruturais causados por essa falta de foco na educação. A avaliação quadrienal dos programas é fortemente centrada na avaliação da produção científica disseminada na forma de artigos, considerando a publicação em veículos de “alto impacto” como sendo evidência forte de boa formação. É fato que a publicação dos resultados de pesquisas em veículos reconhecidos é um indício significativo de que uma boa formação está ocorrendo. Porém, centralizar a avaliação na produção científica, focando estritamente nas publicações e outras produções é efetivamente olhar para um programa como se o seu propósito principal e final fosse essa produção. É esperar que os programas tenham como fim os resultados da pesquisa, e não a excelência na educação das pessoas.
É óbvio que é mais difícil avaliar a qualidade da educação oferecida do que contar artigos publicados. Porém, quando uma medida se torna uma meta, ela deixa de ser uma boa medida (Lei de Goodhart). Esse foco na produção tem levado a mais e mais distorções em nosso sistema de pós-graduação, fazendo com que as pessoas deixem de trabalhar no melhor de seu potencial e de suas condições para se preocuparem em alcançar critérios e metas pré-estabelecidas. Discentes precisam publicar em determinados tipos de veículos para poderem defender suas pesquisas; docentes precisam publicar uma quantidade mínima de artigos todos os anos para continuarem credenciados em seus programas; programas precisam publicar cada vez mais artigos para subirem (ou manterem) suas notas nas avaliações quadrienais. E onde está a qualidade da educação? Como estamos promovendo a educação discente? Como olhamos para ela?
Não se trata de ignorar a produção científica e muito menos de negar a sua importância. Se trata de reconhecer que não estamos avaliando o que importa, e que precisamos discutir e aprender a fazer isso. Caso contrário, continuaremos ignorando que o foco da pós-graduação é a educação de pessoas, e continuaremos perpetuando distorções que nos impedem de fazer o trabalho e gerar as contribuições que só nós, enquanto programas de pós-graduação de universidades públicas, podemos fazer.
Questionar estruturas
O entendimento da identidade de cada programa com o foco na educação nos obriga a questionar muitas das estruturas, práticas e normas vigentes e tidas como positivas (ou produtivas). Um exemplo bem explícito é a estruturação da universidade em ensino-pesquisa-extensão que, por princípio, deve ser indissociável: por questões administrativas nós dividimos as coisas, separamos, criamos regras, normas e sistemas técnicos que implementam essas divisões… e depois trabalhamos para superá-las. Separamos e depois falamos em construir pontes. A divisão entre ensino-pesquisa-extensão é incorporada e assimilada na forma de pensar, entender e fazer as coisas. Os sistemas técnicos e formais criados moldam a prática de um jeito que nos força a pensar e atuar dentro dessas divisões, em vez de atuar de forma integrada.
Como exemplo prático, desde 2017 tenho coordenado projetos de educação em computação (PEREIRA et al., 2021) e projetos para promover a inclusão digital de estudantes na Educação de Jovens e Adultos, desenvolvendo ações de ensino, pesquisa e extensão (ORTIZ et al. 2019) com o envolvimento de discentes de graduação e pós-graduação. Na UFPR, por exemplo, não consigo trabalhar as três coisas efetivamente juntas: não consigo ter, formalmente, um único projeto que cubra ensino, pesquisa e extensão. São necessários projetos e relatórios separados, que passarão por processos de avaliação independentes, que possuem requisitos distintos de prestação de contas, e que “contabilizam” diferentes cargas horárias e “pontos” para a integralização curricular discente ou a progressão docente. Até meados de 2019, eram sistemas de software completamente diferentes, sem comunicação entre si, que registravam os projetos e seus relatórios (os calendários e prazos até hoje são totalmente independentes). Os sistemas técnicos e formais separam e isolam as coisas, forçando ações e trabalhos isolados de ensino, pesquisa e extensão que acabam se refletindo na forma de pensar: já pensamos em projetos que se “enquadram” nas regras e nos sistemas porque seremos obrigados a nos adequar a eles. Na parte de pesquisa, a Pró-Reitoria de Pesquisa considerou que os órgãos de fomento normalmente financiam projetos com vigência de 5 anos, e passou a recomendar que os projetos dos docentes tivessem duração equivalente: projetos de longa duração precisaria ser transformados em projetos com vigência menor, dentro desse limite. Além de ser uma violação clara da independência acadêmica, esse é mais um exemplo de uma regra técnica que força vigências mais limitadas de projetos de pesquisa. A única coisa que essa regra efetivamente garante é que a instituição está restringindo o corpo docente de pensar em projetos de longo prazo, com resultados para daqui a 10, 15 ou 20 anos. As distorções causadas por esse tipo de restrições “tecnicalizadas” são perigosas e muito nocivas, pois além de moldar a forma como as pessoas pensam, se comportam, ensinam, pesquisam, avaliam e divulgam os resultados de seus trabalhos etc., elas são difíceis de serem mapeadas ou questionadas. É impossível discutir ou negociar com um sistema técnico.
Questionar divisões
Essa separação institucionalizada de ensino-pesquisa-extensão se reflete também na separação entre as áreas do conhecimento. Teoricamente, a separação entre áreas serve para facilitar o nosso trabalho dado a nossa capacidade limitada de lidar com a complexidade do saber. Na prática, porém, nos aprofundamos cada vez mais, trabalhando de forma isolada em áreas e subáreas do conhecimento, para então discutirmos como é que podemos promover a multi/inter/transdisciplinaridade. Chegamos ao absurdo de haver um sistema de avaliação de periódicos (i.e., Qualis) que classificava a “qualidade” de um mesmo periódico de forma diferente dependendo da área de conhecimento. E, então, uma revista específica poderia ser de “excelência” para uma área A mas sem valor para uma área B, como se a importância de uma revista (e de todas as pesquisas que ela publica) fosse dependente da área que a julga.
Embora o sistema Qualis tenha passado por reestruturações e algumas de suas distorções estejam sendo amenizadas por meios mais transparentes e auditáveis de se classificar um veículo, as distorções já causadas são profundas. A produção dos programas, de pesquisadores e estudantes, a atribuição de financiamento, a concessão de bolsas, ainda são fortemente pautadas na análise da produção científica de acordo com a classificação Qualis. Toda essa estrutura acaba fazendo com que as pessoas passem a escolher os veículos para publicação de acordo com a sua classificação no Qualis, em vez de escolher os veículos que são mais adequados para disseminar seus resultados de pesquisa. E isso tem impacto especialmente em comunidades menores ou jovens, em veículos que tratam de temas mais específicos, e nos veículos nacionais.
A estrutura que temos atualmente força as pessoas e programas a focar na produção rápida, em grande escala, de artigos para veículos que tenham uma boa classificação no Qualis e que ofereçam maiores chances de êxito na publicação, em vez de favorecer o trabalho criterioso e cuidadoso para ser divulgado nos veículos de maior importância para o tema investigado e para as comunidades interessadas. A identidade dos nossos programas é fortemente prejudicada pois nossa pesquisa passa a ser pautada pela importância e relevância dada por outros, ou mesmo direcionada à temas que possam ser considerados mais globais em detrimento daqueles de interesse de uma comunidade regional.
Ao longo do tempo, a divisão entre as áreas de conhecimento também se traduziu em valorizações distorcidas, perpetuadas na ideia de que há áreas mais fáceis ou difíceis (na computação, é comum serem chamadas de áreas hard e soft), áreas mais ou menos importantes. Embora uma discussão sobre valor nas áreas do conhecimento demande uma argumentação e aprofundamento que estão fora do escopo deste texto, essa separação das áreas e seu julgamento de valor/relevância resulta na perseguição que temos hoje às humanidades, na desvalorização do conhecimento localizado e situado em uma realidade específica, no desaparecimento do debate e da visão crítica que são a essência da vida nas universidades.
Pautar a avaliação
Nessa necessidade de questionarmos as estruturas, também precisamos questionar o que chamamos de “produção” e de “impacto” na pós-graduação, e como estamos nos avaliando, medindo e valorizando. Isso está diretamente relacionado às minhas discussões anteriores sobre o foco na educação e sobre a insistência de sermos avaliados (pelas instituições, órgãos, pares e por nós mesmos) medidos e cobrados como se nós fôssemos institutos de pesquisa.
Nós precisamos repensar dimensões de avaliação, indicadores e métricas, de modo que eles façam sentido para a identidade do programa no seu contexto situado. E isso exige que os programas parem de se pautar por regras tidas como gerais ou universais pela CAPES, pelos comitês de áreas, pelas próprias instituições, e desenvolvam seu próprio planejamento e estruturação de forma coerente com sua identidade. No PPGInf da UFPR, temos um planejamento desenvolvido de forma participativa que cobre diferentes dimensões: da educação à inserção internacional. O planejamento serve como base para pautar as ações do programa de forma coerente com a sua identidade. Os planejamentos do PPGInf sempre estiveram alinhados ao planejamento do Departamento de Informática da UFPR — ver (PPGINF 2018) para um exemplo. Desde 2021, esses planejamentos estão sendo elaborados com perspectiva de 10 anos, contemplando revisões e acompanhamento continuado.
As avaliações dos programas de pós-graduação são diagnósticas. As regras e métricas de avaliação cobrem aspectos gerais e não dão conta das especificidades do contexto situado dos programas. É por isso que elas não devem ser usadas para pautar a estruturação, planejamento e condução dos programas. Elas servem como lembretes de dimensões e pontos que precisamos nos atentar, porém é nosso papel trazer esses pontos para o nosso contexto situado, e ver o que faz sentido para esse contexto e para o nosso papel nele.
Abandonar o mito do(a) docente médio
Uma prática comum nos programas de pós-graduação é o cálculo de seus indicadores com base no número de docentes permanentes e colaboradores. Número de titulações de discentes, publicação de artigos por nível do Qualis, projetos de pesquisa com financiamento são exemplos comuns de quantificações consideradas na avaliação dos programas, pelas comissões de avaliação externas, pelas universidades e pelos próprios programas com base na quantidade de docentes. Para programas de pós-graduação de universidades públicas essas médias por docente não só não fazem sentido como são nocivas para o pleno desenvolvimento da pós-graduação e das pessoas que fazem parte dela.
Na pós-graduação, além das atividades de ensino e orientação, é esperado que o corpo docente apresente inserção em sua área (inclusive internacionalmente), atue como membro de comitê editorial de revistas e eventos, atue como membro de banca avaliadora, contribua com processos de revisão por pares, desenvolva parcerias com outras instituições e cientistas, capte recursos por meio de projetos financiados, desenvolva produtos de diferentes natureza, atue em funções administrativas e cargos de representação diversos, entre muitas outras atividades. É humanamente impossível que uma pessoa consiga desenvolver trabalho com excelência em todas essas frentes, simultaneamente e de forma continuada, tanto por questões de tempo e recursos quanto por questões da própria afinidade e do perfil docente. Analisar o programa em termos de produção média de docente é chegar em uma representação fictícia de docente que, na prática, é insustentável.
Um programa deve ser analisado e entendido não em termos da média de produção/atuação docente, mas em termos da atuação agregada de docentes em seus grupos de pesquisa para o programa como um todo. É preciso olhar se o corpo docente está desenvolvendo ações para a melhoria da educação, se está formando novas pessoas, se está atuando de forma a contemplar todos os objetivos do programa. Mesmo ao analisar a atuação individual, olhar para uma produção média não informa e não agrega. Por exemplo: em termos de produção bibliográfica, mais significativo do que constatar que a produção média docente é de “X artigos Qualis A por ano” é constatar que cada docente tem atuado e disseminado resultados de pesquisa em veículos reconhecidos como relevantes por seus pares.
O foco na produção média causa várias distorções que acabam, muitas vezes, sendo propagadas para os sistemas formais e técnicos da pós-graduação. Um exemplo comum é a estipulação de uma produção bibliográfica mínima que um(a) docente deve apresentar para se credenciar ou para permanecer em um programa. Há casos em que docentes que estiverem com produção “abaixo da média” (do programa, ou dos programas nacionais) têm seu vínculo modificado de “permanente” para “colaborador”, ou são descredenciados. Além dessa ser uma das causas da crescente deterioração das condições de trabalho na academia (vide os movimentos por slow science), com aumento de crises de Burnout, intensificação dos problemas de gênero (CARMIN & RIBEIRO 2020), entre outras, ela também causa sérias distorções e pressões insustentáveis.
Esse foco na produção média também estimula estratégias predatórias, como as que colocam docentes mais jovens e com menor produção para trabalhar em projetos e atividades assinados por docentes mais experientes, não como forma de colaboração, mas como forma de inflar a média. Esse foco também penaliza docentes que atuam em áreas mais específicas e em comunidades menores que possuem menos pesquisadores publicando e citando, que consequentemente possuem veículos com menores índices de citações — logo, com uma classificação menor no sistema Qualis. O mesmo problema é enfrentado por docentes que atuam em temas novos, que procuram veículos novos e promissores, ou que resolvem iniciar um novo tema de pesquisa que produzirá resultados apenas no médio ou longo prazo.
Em programas de pós-graduação de universidades públicas cujo corpo docente seja formado por docentes da própria universidade, utilizar médias ou quantidades pré-determinadas de produção como critério para manutenção do credenciamento docente é uma prática ingênua e nociva ao próprio programa. Ingênua porque ao excluir do programa docentes que não atendem a uma métrica específica, essa prática assume que nada é melhor que pouco. Ou seja: o programa despreza o trabalho e as possíveis contribuições de docentes que já fazem parte do quadro de suas instituições apenas porque esse trabalho não atingiu metas pré-estabelecidas. Excluir do programa docentes com menor produção certamente fará a produção média aumentar, mas é sem sentido esperar que isso tornará o programa melhor.
Assim, volto aqui à importância de se ter clara a identidade do programa e trabalhar de forma alinhada a ela e seus valores. Se o propósito de um programa for contribuir para a educação, a produção científica de qualidade e o desenvolvimento social, então a exclusão de docentes por baixa produção bibliográfica só está diminuindo o potencial de contribuição do programa sem produzir nenhum benefício efetivo. Se o problema for de outra natureza que não produtiva, então critérios de produção bibliográfica também não irão resolver.
Os programas precisam ter clareza sobre as possíveis formas de contribuição docente, valorizando efetivamente as contribuições nas mais diversas frentes, da captação de recursos à educação. Assim, em vez de estipular metas de produção e constantemente avaliar se docentes estão atingindo essas metas, os programas precisam credenciar docentes e lhes garantir condições de trabalho adequadas, incluindo a liberdade acadêmica de atuação e investigação. É preciso que os programas se esforcem para oferecer o ambiente ideal no qual docentes possam atuar em suas áreas, nos temas que possuem interesse e afinidade, com os recursos que dispõem e conseguirem captar.
Desburocratizar a pós-graduação
É comum que os programas criem regras e restrições almejando garantir o seu bom funcionamento e evitar práticas ou condutas entendidas como prejudiciais. Uma estratégia comum é determinar o que docentes e discentes podem ou não podem fazer, devem ou não devem fazer. Se, de um lado, é certo que são necessários princípios, regras e normas que ajudem a manter o programa alinhado com seus objetivos e com sua identidade, também é certo que a burocratização excessiva da educação e da pesquisa dificulta o seu pleno exercício e desenvolvimento. O excesso de regras e critérios consomem esforços e trabalhos que seriam empregados nas atividades de ensino e pesquisa, restringem a liberdade de atuação, além de oferecer a receita para que as regras sejam burladas.
É comum, por exemplo, exigir como critério para a defesa que discentes tenham publicado em veículos classificados (e.g., Qualis A). Esse critério costuma ser defendido com o argumento de que a publicação em veículos de “qualidade” é garantia da qualidade do trabalho desenvolvido. Na prática, porém, não há garantia de qualidade, e sim o risco de forçar discentes a conseguir publicação em veículos com classificação específica para que possam prosseguir com a defesa, em vez de deixar discentes e docentes desenvolverem um trabalho cuidadoso para ser publicado nos veículos que julgarem mais relevantes e adequados.
Outro exemplo de critério é o prazo para a defesa, normalmente de 2 anos para o mestrado e de 4 anos para o doutorado. Com a pandemia causada pela Covid-19 esses prazos estão sendo estendidos por programas e até mesmo por órgãos de fomento. A necessidade dessa flexibilização dos prazos não desaparecerá com a pandemia. Considerando a deterioração do financiamento da pós-graduação, a defasagem de bolsas, e as dificuldades de manter estudantes em dedicação exclusiva, os critérios de tempo para o cumprimento dos requisitos precisam ser considerados cuidadosamente sob o risco de desfavorecer discentes em situação de vulnerabilidade ou que experimentem desafios adicionais em seus projetos.
Nós precisamos entender os programas como um organismo vivo que atua em um contexto social que não pode ser entendido e controlado em sua totalidade. Em vez de produzir regras excessivamente específicas, os programas precisam ter recursos que os ajudem a se manter coerentes com suas identidades e alinhados aos seus objetivos: esse é o papel dos colegiados — de forma análoga ao sistema imunológico que ajuda o organismo a se manter saudável e que combate agentes potencialmente nocivos. Então, em vez de pressionar docentes e discentes para que atinjam metas pré-definidas, os programas devem deixar que docentes e discentes façam seus trabalhos no melhor de suas capacidades e condições, e cuidar para manter o ambiente saudável. Só faz sentido descredenciar docentes ou desligar discentes quando sua atuação for prejudicial ao programa e à sociedade — e.g., atuação antiética, fraudulenta, opressora etc.
Desapegar de métricas e esquemas excludentes
A pós-graduação pública não deve se pautar por métricas e esquemas competitivos que sejam estruturalmente excludentes. Até pouco tempo, o já mencionado esquema Qualis definia que apenas uma pequena parcela de veículos poderia ser classificada nos níveis mais elevados. Além das distorções em função do tamanho de comunidades e escopo dos veículos, esse esquema promovia disputa entre diferentes subáreas para que tivessem seus veículos classificados nos estratos mais altos. Por exemplo, na computação, a subárea Interação Humano-Computador passou muito tempo com apenas um periódico classificado no nível mais alto do Qualis mesmo tendo diversos periódicos importantes. Durante anos, essa subárea foi penalizada perante programas de pós-graduação, editais de fomento, chamadas para bolsas de produtividade, concursos públicos e testes seletivos etc. O que essa estrutura garantia não era a qualidade dos veículos classificados nos níveis mais altos, mas a perpetuação de uma desigualdade projetada que favorecia alguns grupos em detrimento de outros.
As bolsas de produtividade de pesquisa são outro exemplo. Historicamente, essas bolsas foram criadas para incentivar a permanência de cientistas no país, impedindo a fuga de cérebros, especialmente das pessoas consideradas mais produtivas. Atualmente, o baixo valor das bolsas, a grande demanda e a baixa disponibilidade fazem com que seu valor efetivo seja menos material e mais simbólico. Como há uma quantidade limitada de bolsas, novas atribuições são realizadas apenas quando outra pessoa perde a sua bolsa, havendo sempre espaços para discussões e questionamentos sobre o que efetivamente significa ser “produtivo” e o que significa produzir em veículos de “qualidade”. Até pouco tempo, a quantidade de bolsistas de produtividade era explicitamente considerada nas avaliações dos programas. Na computação, o Comitê de Área reconheceu essa limitação e tem incentivado os programas a indicar docentes que sejam bolsistas produtividade ou que tenham uma produtividade equivalente e, portanto, não sejam bolsistas devido à falta de recursos.
Para os programas de pós-graduação, porém, utilizar a mesma noção de produtividade para julgar a produtividade docente é um erro grave. Primeiro porque as bolsas de produtividade se referem à pesquisa, e como já apontei no item 2, o foco de um programa de pós-graduação deve ser a educação. Segundo porque considerar a produtividade em pesquisa com base apenas na produção bibliográfica é empobrecer demasiadamente a finalidade dos programas e ignorar o papel docente na formação de estudantes. Terceiro porque essa visão de produtividade é essencialmente quantitativa e, novamente, desfavorece cientistas que atuam em temas ou problemas que exigem mais tempo para produzir algum resultado concreto, que pertencem a comunidades menores, e que investigam em temas mais específicos cujos veículos tenham menor impacto quantitativo. Coerentes com sua identidade e conscientes do foco na educação, os programas devem priorizar avaliações multidimensionais que sejam capazes de capturar tudo o que seja relevante de trabalho produzido na pós-graduação.
O que precisamos manter em mente é: se não formos capazes de garantir que nossa avaliação cubra tudo o que for relevante na atuação docente em nossos programas, e se não formos capazes de garantir que nossa avaliação dá conta das especificidades e da diversidade da atuação e contribuição docente, então não devemos utilizá-la como forma de classificar docentes e indicar a sua produtividade. Se isso for feito, servirá apenas para reforçar o mito do docente médio, para desincentivar a diversidade e o trabalho sério, e para criar um ambiente de trabalho hostil. E essa talvez seja a forma mais rápida de degradar um programa de pós-graduação público.
Investir na ciência aberta
O mercado das publicações científicas conhecidamente adota práticas predatórias, cobrando taxas abusivas para a publicação ou acesso a conteúdos. Setenareski et al., (2016) explicam como funciona a estrutura desse mercado e mostram como o movimento do software livre e do código aberto se expandiram e geraram novos desenvolvimentos em oposição a uma estrutura oligopolista, fomentando a ciência aberta.
Embora o problema dos abusos praticados pelas grandes editoras seja conhecido e debatido há bastante tempo, o período que atravessamos mostra que não podemos continuar coniventes com essas práticas. Não é (e nunca foi) justificável utilizarmos recursos públicos para custear o acesso a artigos científicos resultantes de trabalho financiado com… recursos públicos. Mesmo quando não temos financiamento adicional para a pesquisa, o nosso salário é um investimento público. Portanto, temos a obrigação de garantir que os resultados do nosso trabalho estejam disponíveis para acesso e uso pela sociedade que nos financia.
O argumento comum é que os veículos de maior “impacto” e tradição são mantidos por editoras tradicionais que cobram altas taxas, e que se não publicarmos nesses veículos não disseminamos a produção de forma adequada, ela deixa de ter impacto, deixamos de ser influentes em nossas áreas, somos mal avaliados por órgãos de fomento e pelos nossos próprios programas, perdemos nosso apoio à pesquisa etc. Logo, a conclusão é de que precisamos “jogar o jogo”, publicando nesses veículos e pagando altas taxas (muitas vezes de milhares de dólares) para que os resultados de nosso trabalho fiquem disponíveis ou para que possamos acessá-los depois da publicação. Nesse momento em que praticamente não temos recursos para custear nossas atividades de pesquisa, isso significa custear a publicação dos artigos com o nosso próprio salário ou, pior ainda, deixar os custos para os(as) estudantes.
Precisamos mudar nossa cultura, visão, metas e métricas para investirmos na ciência aberta. Isso significa direcionar esforços (submissão, publicação, avaliação, editoração, divulgação etc.) para apoiar (e, se necessário, criar) veículos gratuitos que garantam o acesso aberto, e para apoiar projetos de pesquisa que disponibilizem seus resultados (métodos, dados, software) de forma aberta. A comunidade científica já vem direcionando esforços para a criação e fortalecimento de veículos e estruturas que garantam a disseminação do conhecimento e recursos de forma aberta. É necessário agora uma mudança de mentalidade e de prática: direcionar nossos esforços para projetos e veículos alinhados com a proposta de ciência aberta, e desincentivar práticas elitistas e predatórias. Se nos articularmos enquanto programas de pós-graduação, essa mudança na mentalidade e na prática ajudará a ter resultados mais rápidos, aumentando a importância e o impacto de projetos e veículos já no curto e nos médios prazos.
No PPGInf, a cultura do software livre (CASTILHO et al. 2020) foi fundamental para a formação de uma identidade que entende e valoriza a diversidade. No âmbito nacional, a SBC tem direcionado esforços cada vez maiores para fomentar a ciência aberta. Nos últimos anos, ela disponibilizou a plataforma SOL (SBC Open Lib3) que permite o acesso gratuito a milhares de artigos publicados em seus eventos e revistas. O Journal on Interactive Systems no qual tenho atuado como editor, por exemplo, possui um processo rigoroso de revisão por pares, e recebe e publica artigos em regime de fluxo contínuo: tão logo um artigo é aceito e tem sua versão homologada pelo comitê editorial, ele já é publicado e fica disponível para acesso online, sem nenhum custo para quem pública e para quem lê.
É óbvio que essa mudança tem custos, assim como permanecer nessa mentalidade subserviente também tem. Continuar se submetendo a essa indústria opressiva, elitista e excludente, que drena recursos públicos para controlar o acesso ao conhecimento e aos recursos produzidos, é colaborar com a sua perpetuação. É preciso trabalharmos para mudar esse cenário agora, preparando o terreno para as próximas gerações.
Promover a diversidade e inclusão
Nas metas dos programas de pós-graduação é comum encontrar a preocupação em atrair e selecionar excelentes discentes, inclusive do exterior (no caso de programas interessados na internacionalização). Muito menos comum é encontrar a preocupação explícita em atrair discentes que tenham interesse na formação stricto sensu e oferecer a essas pessoas as condições necessárias para que se desenvolvam plenamente. Não estou defendendo que os programas não devam buscar ter excelentes discentes, e sim chamando a atenção para que o foco primário esteja na educação de excelência. O foco primário na seleção pode nos direcionar a um programa que se preocupa mais em selecionar pessoas com excelente formação prévia do que em proporcionar às pessoas selecionadas uma excelente formação.
É nosso papel fazer com que a educação da pós-graduação se torne cada vez mais acessível às pessoas, especialmente àquelas em situação de maior vulnerabilidade. E o que efetivamente temos feito para isso? Com a queda do investimento público, o desaparecimento das bolsas, a deterioração das condições de formação nos níveis anteriores, a pós-graduação corre o risco de se tornar cada vez mais elitista, e um espaço onde apenas pessoas com boa formação prévia e boas condições socioeconômicas conseguem entrar e permanecer.
É certo que nosso problema de financiamento é crítico e que isso precisa ser revertido — inclusive procurando outras fontes de financiamento, mas atentos para que esses investimentos não desvirtuem a finalidade da universidade pública. Porém, além da barreira econômica, há muitas outras barreiras que precisam ser derrubadas ou reduzidas. Oferecemos condições de estudo para pessoas que precisem trabalhar em tempo integral? Para pessoas que possuem algum tipo de deficiência? Para pessoas que precisem compensar faltas em suas formações anteriores? Há muitas barreiras na cultura, nas estruturas e regras de nossas universidades e programas, e precisamos constantemente trabalhar para reduzi-las. Não se trata de baixar o rigor, e sim de oferecer as condições para que as pessoas se desenvolvam, incluindo iniciativas que ajudem a compensar prejuízos causados pela falta de oportunidade que as pessoas enfrentaram ao longo da vida.
O papel da universidade pública não é formar a mão de obra que o mercado quer, é educar as pessoas para que sejam capazes de realizar as transformações que a sociedade precisa, e isso inclui, mas não se limita à formação de pessoal qualificado. O papel da universidade é de transformar a realidade em que ela existe e tem sentido, de forma responsável e alinhada aos direitos humanos universais. Quando a universidade pública cede às pressões (políticas, econômicas, legais) e não se mantém fiel ao seu propósito, nossa sociedade sofre perdas irreversíveis simplesmente porque não existe outra instituição que seja capaz e que tenha a finalidade de desempenhar o papel que a universidade pública tem.
Considerações finais
Neste artigo, caracterizado como um artigo de opinião e posicionamento, recorri às discussões que desenvolvemos na mesa “A Pós-graduação e a Pesquisa: sobre enfrentamentos e ressonâncias na produção acadêmica”, realizada no Seminário de Educação 2021 da UFMT, para apresentar o meu entendimento sobre o cenário atual da pós-graduação pública no Brasil. Para que a pessoa leitora entenda o meu contexto, citei brevemente minhas principais experiências de formação e atuação profissional, e trouxe algumas das bases e documentos que informam o meu posicionamento e influenciam na forma como enxergo o cenário que vivemos — e, consequentemente, o nosso papel nele. Defendo que precisamos resgatar e manter vivos o debate e a discussão permanentes, informados por princípios e valores, como aqueles presentes na Carta Magna Universitária e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Com base no cenário delineado e na visão de mundo apresentada, trouxe 10 pontos críticos que precisamos trabalhar na nossa pós-graduação pública:
Reconhecer e cultivar a Identidade de cada programa
Focar na educação
Questionar estruturas
Questionar divisões
Pautar a avaliação
Abandonar o mito do(a) docente médio
Desburocratizar a pós-graduação
Desapegar de métricas e esquemas excludentes
Investir na ciência aberta
Promover a diversidade e inclusão
Esses pontos são interligados: reconhecer a identidade do programa e focar na educação, por exemplo, são dois pontos que influenciam o modo como entendemos e vivemos a pós-graduação nas universidades públicas, incluindo a forma como a estruturamos, apresentamos, conduzimos e avaliamos. Argumento que, se esses pontos não forem trabalhados, perpetuaremos distorções e limitações que impedem a pós-graduação de contribuir com uma sociedade mais justa e plenamente desenvolvida.
A educação, a ciência e a tecnologia não são pré-definidas e imutáveis: elas são projetadas, construídas e implementadas por nós, ou por pessoas como nós. É nossa responsabilidade trabalhar para que a pós-graduação pública seja aperfeiçoada continuamente, servindo aos propósitos de uma sociedade democrática e justa.
A importância da discussão que trago neste texto não está centrada nas posições que apresento, mas em colocar esses pontos em discussão. Precisamos urgentemente discutir, pensar criticamente, questionarmos, revisitarmos o que entendemos e fazemos na pós-graduação. Precisamos, nos nossos milhares programas e nas nossas mais de 190 universidades públicas, agirmos, de forma crítica e responsável, para defender e desenvolver a pós-graduação pública no país.
Agradecimentos: Agradeço ao LêTECE e à Coordenação Geral do SemiEdu 2021, Cristiano Maciel, Katia Morosov Alonso e Terezinha Fernandes, da UFMT, e aos colegas da mesa, Edméa Santos (UFRRJ), Marcel Thiago Damasceno Ribeiro (UFMT) e Vinicius Pereira (UFMT). Agradeço ao comitê editorial da Revista de Educação Pública pelo convite para publicar minhas ideias na forma de artigo no dossiê especial sobre o SemiEdu 2021. Agradeço aos\às colegas e discentes do Departamento de Informática e do Programa de Pós-Graduação em Informática da UFPR pela constante troca de ideias, debates, reflexões e ações em prol da educação pública e de qualidade para todas as pessoas. Agradecimento especial a Adelaide Silva, Fabiano Silva, Letícia Mara Peres, Luis Carlos de Bona e Marcos Castilho pelos comentários e sugestões neste texto.