Introdução
Este artigo apresenta os resultados de uma análise que buscou identificar continuidades e rupturas sobre o lócus da educação especial entre a Política Nacional de Educação Especial, na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI) (BRASIL, 2008), publicada em janeiro de 2008, e do Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (BRASIL, 2020a), doravante PNEE-2020, proposta em substituição à PNEEPEI.
Em dezembro de 2020, em decorrência da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.590, a PNEE-2020 foi suspensa liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com maioria de votos. Dentre os aspectos que embasaram a decisão, a política foi considerada inconstitucional porque contrariou o paradigma constitucional de que a escola regular é o espaço preferencial para a educação especial (BRASIL, 2020b). O processo de análise de suspensão definitiva ou não ainda está em tramitação no STF.
A partir da decisão do STF, buscou-se analisar como a questão do lócus educativo vinha sendo tratada na política para a educação especial no Brasil, expressa na PNEEPEI, e quais mudanças seriam acarretadas nesse sentido pela PNEE-2020. A análise foi fundamentada na compreensão de que os documentos oficiais são resultados das práticas sociais e expressam a consciência humana de um determinado momento histórico, no/do qual são, imbricadamente, constituídos e constituintes. Resultam de uma combinação de intencionalidades, valores e discursos, os quais expressam nem sempre de forma visível (EVANGELISTA, 2012). Assim, a PNEEPEI e a PNEE-2020, além de estabelecerem diretrizes para a educação, articulam interesses, projetam políticas e produzem intervenções sociais.
A pesquisa com documentos pode contribuir para a elaboração de conhecimento e interpretação da realidade na medida em que pretende investigar as origens dos documentos em questão, apreender suas incoerências, seus paradoxos, seus argumentos pouco razoáveis, identificar as tendências que expressam, as redes de influências que os produziram, os projetos históricos presentes e as perspectivas em disputa das/dos quais são, simultaneamente, expressão e proposição (EVANGELISTA, 2012).
Nessa abordagem, não se trata de analisar o texto em si, mas compreender o documento da política como uma dimensão de um processo contínuo, em que a disputa e o lócus de poder estão em constante mudança (SHIROMA; CAMPOS; GARCIA, 2005).
Como apresentação dos resultados, na primeira parte deste trabalho são discutidos aspectos históricos e sociais relativos ao acesso à educação pelas pessoas com deficiência. Na sequência, faz-se uma breve contextualização dos documentos analisados, para, então, apresentar os resultados encontrados na análise entre ambos.
As continuidades e rupturas referentes ao objeto em questão identificadas, demonstram que a PNEE-2020 reforçou antigos paradigmas da educação especial (integração, segregação, exclusão, modelo biomédico de deficiência e caráter substitutivo de educação especial) com ênfase para o atendimento educacional via iniciativa privada, o que implica um recuo em relação às políticas públicas de promoção dos direitos da pessoa com deficiência, especialmente do direito à educação pública.
O lócus educativo e o financiamento da educação para os estudantes público da educação especial
Historicamente, as pessoas com deficiência enfrentam significativos obstáculos para acesso aos direitos sociais, como a educação. Nota-se, inclusive, que a divergência sobre o espaço onde deve ser oportunizada a escolarização desse grupo é bastante presente e reincidente, haja vista que tais estudantes foram contemplados pela esfera pública tardiamente em relação aos demais e sem uma posição definitiva sobre o local onde deveria acontecer sua educação formal (JANNUZZI, 2004; MAZZOTTA, 2005).
A educação está entre os fatores essenciais e indispensáveis para o desenvolvimento de todas as pessoas, sobretudo daquelas com deficiência. O conjunto de determinantes que atuam sobre a vida do sujeito somente pode ser entendido considerando o modelo social da deficiência, pelo qual se valorizam as condições de interação entre a sociedade e as pessoas com limitações funcionais, “[...] visto que a deficiência é uma construção social” (MAIOR, 2017, p. 32).
Essa perspectiva opõe-se ao modelo biomédico, que “interpreta a deficiência como consequência de uma doença ou acidente, que gera alguma incapacidade a ser superada mediante tratamento de reabilitação [...]. O modelo tem como foco a limitação funcional que se encontram na pessoa, desconsiderando as barreiras presentes no contexto social” (MAIOR, 2017, p. 31). Assim, a integração social tem sido associada à normalização das pessoas com deficiência, com vistas a atender aos padrões de desempenho e estética exigidos pela sociedade.
É evidente que há especificidades nas condições individuais, mas o impacto disso na vida do sujeito depende das possibilidades dispostas, ou não, no contexto social. Entretanto, predominantemente, o acesso à convivência social e aos serviços públicos, como lazer, saúde, assistência e educação se mantêm reduzidos e repletos de obstáculos. Nesse sentido, a discussão sobre o lócus educativo para o público da educação especial, principalmente as pessoas com deficiência, está relacionada ao acesso do trabalhador à educação enquanto direito social.
Ao longo da história, a educação da classe trabalhadora foi direcionada para fins que coadunam com os interesses hegemônicos, para a formação religiosa, preparação ao mercado de trabalho, ou ainda para a formação moral e disciplinar, assim, sempre atendeu às demandas da classe dominante (MANACORDA, 2006). A possibilidade de a escola se constituir como uma instituição que atenda ao interesse da classe trabalhadora, oportunizando o acesso à cultura, efetiva-se com limites impostos pela realidade social e à medida que se obtém espaço no enfrentamento das contradições dessa sociedade. Ou seja, o direito à educação, enquanto elemento de emancipação, é motivo, bem como resultado de litígio e disputa.
É notório que, de modo geral, o acesso à educação para a classe trabalhadora somente aconteceu por meio da luta empreendida pelos grupos sociais organizados, cujos resultados ascendem e retrocedem de acordo com os interesses hegemônicos em cada momento. Nesse contexto, a educação para a pessoa com deficiência tem processos ainda mais lentos.
O espaço atribuído à pessoa com deficiência é expressão da lógica que alicerça as relações sociais. Sob formas de convivência em que a disputa e a desigualdade determinam o sentido da vida em sociedade, como é o caso da organização contemporânea, as oportunidades de acesso a um tratamento digno àqueles que apresentam alguma necessidade são significativamente restritas, principalmente aos que não dispõem de condições objetivas favoráveis.
Nesse contexto, a escolarização da pessoa com deficiência que pertence à classe trabalhadora foi atingida intensamente pelo movimento de avanços e recuos, de maneira que a educação, como direito social, tem sido um porvir mais distante para esse público do que para as demais pessoas. Ou seja, a educação do trabalhador se estabelece sob severas restrições e a pessoa com deficiência enfrenta condições ainda mais aviltantes.
Historicamente, as instituições privadas tiveram maior participação inicial do que as instituições estatais na oferta de serviços para as pessoas com deficiência (LAPLANE; CAIADO; KASSAR, 2016). Dessa maneira, no processo de institucionalização da educação especial, houve o predomínio das formas de oferta de escolarização por meio de instituições caritativas e filantrópicas, estabelecendo uma relação contraditória entre o aspecto público e privado. Tais instituições começam a ser reconhecidas como públicas ao assumirem o status de instituições especializadas privadas de caráter público. Assim, a educação especial consolidou-se tendo como características o distanciamento do Estado, a privatização do ensino, da assistência social e da saúde das pessoas com deficiência (MELETTI, 2008).
É importante mencionar que o vínculo público-privado se realiza tanto pela indiferença do Estado em tomar responsabilidade por determinadas áreas quanto pelo interesse privado que busca espaço para desenvolvimento de suas atividades. Trata-se de uma relação que se coloca conveniente para ambas as partes, exceto para a população que fica ainda mais distanciada do acesso aos serviços essenciais como direito.
A escolarização para as pessoas com deficiência exige, portanto, uma luta mais intensa, pois a realidade desse grupo decorre de uma história que é marcadamente mais desafiadora, a qual revela a expressão implacável e excludente do sistema social que centraliza a riqueza material acima das relações humanas. Além de buscar que a escola se coloque para a socialização dos conhecimentos, esse grupo de pessoas precisa, anteriormente, alcançar o acesso a essa instituição.
Nesse sentido, não houve uma perspectiva única ou uníssona ao longo da história. Diferentes paradigmas constituíram explicações no decorrer dos tempos sobre o espaço da pessoa com deficiência na educação e na sociedade. Paradigmas são definidos por Kuhn (1998, p. 12) como “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. Portanto, a manutenção ou superação da validade de uma interpretação científica são constituídas por possibilidades históricas e sociais. As ideias que permitem uma interpretação sobre a realidade se estabelecem no conjunto de saberes que são aceitos como explicação em dado momento. Assim, um paradigma somente entra em crise à medida que suas formulações não atendem mais às necessidades que a realidade impõe, então, não podendo “esquivar-se das anomalias que subvertem a tradição”, os membros de uma profissão constituem “investigações extraordinárias” que conduzem a um “novo conjunto de compromissos” (KUHN, 1998, p. 25).
Remetendo o conceito de paradigma à discussão sobre a educação das pessoas com deficiência, pode-se entender que a compreensão contemporânea de quais devem ser as formas e oportunidades educacionais é elaborada nos limites daquilo que é aceito na comunidade com a qual se dialoga. Consequentemente, o que já foi aceito em momentos históricos passados como explicação não corresponde integralmente ao pensamento atual, tampouco às novas possibilidades conquistadas pela humanidade.
O paradigma da exclusão, constitutivo do pensamento que foi marcado por práticas de abandono e extermínio, pautou-se no entendimento de que as pessoas com deficiência eram inferiores e não tinham sequer o direito à vida. A institucionalização, paradigma embasado na caridade e no assistencialismo, embora tenha indicado o direito de existir, não reconhecia a convivência social como alternativa viável. Alicerçado na perspectiva do cientificismo positivista, o paradigma da integração, por sua vez, fundamenta a associação entre deficiência e doenças constituindo redes de tratamento em hospitais psiquiátricos e asilos. Trata-se de um paradigma significativamente recente, reduzindo as possibilidades de inserção social àqueles que se aproximassem de uma suposta normalidade e adquirissem as condições para a convivência social e escolar, o que desencadeou uma rede de serviços, instituições clínico-terapêuticas e associações de característica caritativa para capacitar, habilitar e, posteriormente, oportunizar a participação (SASSAKI, 1999, 2012).
O paradigma inclusivo, cujas políticas tomaram maiores proporções a partir da década de 1990, envolveu as políticas sociais de forma geral focalizando as chamadas minorias ou grupos considerados excluídos (GARCIA, 2013) e, no campo educacional, enfatizou os estudantes que apresentam alguma especificidade na aprendizagem, dentre os quais aqueles com deficiência. Dessa forma, desloca-se da lógica segregativa à inclusiva, o que propiciou destaque à discussão sobre o direito à educação nas escolas comuns da rede regular de ensino (BUENO, 2016).
Vale constar que, embora a inclusão das pessoas com deficiência tenha conquistado espaço no horizonte de preocupações sociais, no contexto da sociedade capitalista, a conquista de políticas de inclusão não significa mudanças radicais nas estruturas de poder, nem a superação das contradições e desigualdades que caracterizam essa sociedade (GÓES, 2015).
Nesse sentido, as últimas décadas foram de disputa de paradigmas, especialmente com os debates entre as lógicas segregativa e inclusiva, ambas se constituindo expressões das contradições que marcam a vida da pessoa com deficiência na sociedade de classes. A segregação, acompanhada de um conjunto de serviços institucionalizados e da parceria do setor público com instituições privadas, predominou, tanto no que diz respeito ao tempo de atuação quanto no volume organizativo; assim, os processos educacionais em escolas da rede regular de ensino, especificamente, são significativamente recentes.
Como resultado, a história da educação especial no Brasil, na esfera pública, é marcada pela contenda entre aqueles que veem as instituições especializadas como protagonistas na oferta de serviços para as pessoas com deficiência e aqueles que as percebem como colaboradoras da educação inclusiva, ofertando ações complementares ou suplementares. Os grupos que representam essas concepções disputam o direcionamento das ações governamentais, principalmente no que se refere aos recursos financeiros públicos para as instituições privado-assistenciais (REBELO; KASSAR, 2017).
Essas disputas acarretam a determinação do lócus da educação especial, ora com foco nas instituições especializadas privadas, ora na escola regular, dependendo de qual grupo alcança maior expressão nas forças hegemônicas que perpassam os diferentes momentos históricos.
A PNEEPEI e a PNEE-2020 são expressões dessa tensão; dessa forma, compreender como tratam a questão do lócus educativo da educação especial permite compreender quais perspectivas estão em disputa nos documentos.
Contextualização da PNEEPEI e da PNEE-2020
Para compreender as manifestações sociais expressas nos documentos, é necessário considerar o contexto em que foram criados. No que se refere às propostas para a educação especial no Brasil, três momentos históricos podem ser identificados. Apesar de conterem distinções entre si, não representam necessariamente rupturas; da mesma forma, a passagem de um para outro é marcada por debates acalorados (KASSAR; REBELO; OLIVEIRA, 2019).
O primeiro momento ficou mais definido até o final do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e é caracterizado pela convivência de diferentes espaços para a escolarização das pessoas com deficiência, mesmo depois do governo brasileiro se comprometer formalmente com acordos multilaterais. O segundo momento delineia-se após 2003 com a divulgação da ideia de sistema educacional inclusivo, em que o espaço da escolarização da pessoa com deficiência passa a ser deslocado para a escola regular/comum. Um terceiro movimento começa a se alinhavar após o impeachment de Dilma Rousseff, quando os grupos privados de educação especial se fortalecem (KASSAR; REBELO; OLIVEIRA, 2019). A PNEEPEI é expressão do segundo momento e a PNEE-2020 foi uma tentativa resultante do terceiro, ainda em curso apesar da suspensão da política.
Em relação à PNEEPEI, Correia e Baptista (2018) a consideram expressão do processo de democratização do acesso à educação pública brasileira para as pessoas com deficiência, sendo constituída num conjunto de ações organizadas para a afirmação da perspectiva inclusiva; dentre essas, destacam-se os programas: Educação Inclusiva: Direito à Diversidade, em 2003; Implantação das Salas de Recursos Multifuncionais, em 2007; Escola Acessível, em 2013; e Transporte Escolar Acessível, em 2011/2012.
A PNEEPEI está alinhada aos pressupostos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizada pela Organização das Nações Unidas, em 2006, cujas diretrizes são, atualmente, as mais importantes orientações sobre a inclusão da pessoa com deficiência no âmbito internacional e que, no Brasil, signatário da Convenção, receberam caráter de Emenda Constitucional pelo Decreto nº 6.949/2009 (CORREIA; BAPTISTA, 2018).
O documento da PNEEPEI resultou da participação de pesquisadores envolvidos com a educação especial e com estudos sobre a inclusão escolar. É produto das atividades do Grupo de Trabalho, nomeado pela Portaria MEC nº 555/2007, cujos nomes estão indicados no documento que institui a PNEEPEI.
A PNEEPEI constituiu-se em diretriz para as publicações que nortearam ações, principalmente na Educação Básica, indicando rumos e princípios que operacionalizaram serviços nas redes estaduais e municipais de todo país. A superação do ensino substitutivo para o público da educação especial e o destaque do direito à escolarização na escola regular aos estudantes que compõem o público da educação especial, estão entre os aspectos mais reiterados no texto da PNEEPEI.
Rocha, Mendes e Lacerda (2021) analisaram o processo de construção da PNEE-2020. Identificaram, apoiados em Kassar, Rebelo e Oliveira (2019), que o início desse percurso aconteceu em 2017, no governo de Michel Temer, quando o Ministério da Educação (MEC) selecionou consultores especialistas para subsidiar a revisão e atualização das políticas nacionais para a educação especial. Insatisfeitos com os resultados desses trabalhos, diferentes coletivos manifestaram-se contrários à revisão e defenderam a permanência da PNEEPEI. Frente ao debate, em 2018, o MEC abriu uma consulta pública, por meio de plataforma virtual, à minuta da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e ao Longo da Vida.
Rocha, Mendes e Lacerda (2021) destacam a baixa participação nessa consulta, sendo apenas 8.329 pessoas, e problematizam que poderia ser em decorrência do pouco tempo disponibilizado para a divulgação e participação.
Findada a consulta pública em dezembro de 2018, com o novo governo em janeiro de 2019, a proposta ficou parada até a publicação da PNEE-2020, em setembro de 2020, que se constituiu “um documento diferente daquele finalizado no relatório de 2018, sendo uma versão simplificada com vários itens suprimidos” (ROCHA; MENDES; LACERDA, 2021, p. 5).
Embora o governo afirme que a elaboração da PNEE-2020 tenha sido democrática, não houve transparência no processo, pois os nomes das pessoas, das instituições e dos lugares que participaram do debate não foram divulgados (ROCHA; MENDES; LACERDA, 2021). Nesse contexto, não houve consulta às pessoas com deficiência, por meio de suas organizações representativas, nem debate com a sociedade civil (HASHIZUME, 2021; SANTOS; MOREIRA, 2021).
A publicação da PNEE-2020 causou polêmica e dividiu o movimento de luta pelo direito à educação. Diversas instituições e organizações manifestaram-se contra ou a favor de seu conteúdo e, após 26 dias de vigência, foi ajuizada no STF, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6590, solicitando medida cautelar – concedida em 03 de dezembro e referendada em 21 de dezembro de 2020 –, suspendendo a eficácia da política (ROCHA; MENDES; LACERDA, 2021).
Vale ressaltar que a PNEE-2020 foi lançada no contexto de um governo marcado pela intensificação do cerceamento aos direitos sociais. Nessa conjuntura, destaca-se a restrição de recursos para a educação e a retirada de direitos para mulheres, negros e acometidos por questões de saúde mental, por exemplo (KASSAR; LACERDA; MENDES, 2020).
Embora suspensa, a PNEE-2020 manifesta a intenção de um grupo da sociedade de alterar os rumos da educação especial no país, reforçando, sob o anúncio de inovação, paradigmas que vinham sendo questionados não apenas no Brasil, mas globalmente. Provavelmente, essa tentativa não se encerra com a suspensão da política, acarretando a necessidade de organização das forças para que seja possível enfrentá-la.
Portanto, compreender como o deslocamento do lócus educativo proposto na PNEE-2020 em relação à PNEEPEI manifesta rupturas e continuidades na educação especial pode contribuir para conhecer os processos de disputa presentes nessa esfera da sociedade.
O lócus educativo na PNEEPEI e na PNEE-2020
Na análise em busca de rupturas e continuidades entre a PNEEPEI e PNEE-2020, no que se refere ao lócus educativo, observou-se que a PNEE-2020 reforça os paradigmas da integração, segregação, exclusão e os modelos biomédico de deficiência e substitutivo de educação especial, enfatizando o atendimento educacional via iniciativa privada.
A proposição sobre onde deve ocorrer a educação dos estudantes com deficiência permite identificar os paradigmas e proposições que fundamentam as políticas em questão. Na sequência, será apresentado como esses elementos foram observados nos documentos analisados.
O espaço da oferta da educação especial e o modelo substitutivo
No texto da PNEEPEI, ao tratar dos marcos históricos e normativos, encontrou-se críticas à organização tradicional que estabeleceu um modelo de educação especial como atendimento substitutivo ao ensino comum e que levou à criação de instituições especializadas, escolas e classes especiais (BRASIL, 2008). Instituições essas que, segundo esse modelo, teriam a função de substituir a escola comum como espaço para a educação especial.
Contrariando a proposta segregativa, o objetivo da PNEEPEI, textualmente, é: “assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação” (BRASIL, 2008, p. 14) e, para isso, orienta os sistemas de ensino visando, em primeiro lugar, à garantia do acesso ao ensino regular. Defende, portanto, a inclusão dos estudantes com deficiência nas turmas regulares.
Já a PNEE-2020, embora estabeleça em seu Art. 2º, Inciso I, que a educação especial é uma “modalidade de educação escolar oferecida, preferencialmente, na rede regular de ensino” (BRASIL, 2020a), define as escolas regulares inclusivas – expressão utilizada no Decreto – dentre os espaços da educação especial apenas após as escolas e classes especializadas1, as escolas e classes bilíngues de surdos e o aprendizado ao longo da vida. Ou seja, apesar da pretensa preferência pela escola regular, o documento destaca outros espaços para o estudante de ensino em detrimento dela.
Essa predileção também fica evidente nos Art. 7º e 8º da PNEE-2020, que, ao tratarem, respectivamente, dos serviços e recursos e dos “atores” da educação especial, não citam as escolas e as classes regulares, nem os professores das classes regulares. Já a PNEEPEI, destaca a formação dos profissionais da educação em geral para a inclusão e articulação do Atendimento Educacional Especializado (AEE) com a proposta pedagógica do ensino comum (BRASIL, 2008).
Pode-se, portanto, afirmar que há uma ruptura entre as propostas dos dois documentos analisados no que se refere ao espaço onde deve acontecer a educação das pessoas com deficiência: enquanto a PNEEPEI estabelece a inclusão no ensino regular como seu objetivo maior, a PNEE-2020 privilegia outros espaços para a educação desses estudantes.
Essa questão está diretamente relacionada com os modelos complementar e suplementar ou substitutivo da educação especial. Nesse sentido, a PNEEPEI define a educação especial como uma “modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades” (BRASIL, 2008, p. 16), ou seja, ela deve acontecer de forma concomitante e articulada ao ensino regular durante toda a vida escolar do estudante que dela necessitar. Estabelece que as atividades do AEE se diferem das atividades realizadas na sala de aula comum e que não são substitutivas à escolarização, mas que “complementa e/ou suplementa a formação dos alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela” (BRASIL, 2008, p. 16).
Já a PNEE-2020, no Art. 9º, Inciso III, embora não faça menção direta ao termo substitutivo, evidencia sua orientação nesse sentido ao elencar, dentre as ações para implementação da política que propõe:
definição de critérios de identificação, acolhimento e acompanhamento dos educandos que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas, de modo a proporcionar o atendimento educacional mais adequado, em ambiente o menos restritivo possível, com vistas à inclusão social, acadêmica, cultural e profissional, de forma equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida (BRASIL, 2020a).
Define, ainda, no Art. 4º, Inciso III, dentre seus objetivos, a garantia de AEE “para além da institucionalização de tempos e espaços reservados para atividade complementar ou suplementar” (BRASIL, 2020a).
Observou-se nesses direcionamentos a concepção de que a educação dos estudantes com deficiência que, supostamente, “não se beneficiam das escolas regulares” deve acontecer de forma substitutiva ao ensino regular, em outros espaços, diferentes da escola, não necessariamente institucionalizados.
Portanto, a PNEE-2020 propõe uma ruptura no que se refere ao caráter complementar e suplementar exposto na PNEEPEI, para defender fortalecimento do modelo substitutivo de educação especial. No entanto, vale ressaltar que o modelo substitutivo não estava completamente superado na vigência da PNEEPEI e a continuidade dessa forma de atendimento, nas últimas décadas, mesmo no contexto de ascensão do paradigma inclusivo, está diretamente relacionada à atuação das instituições privadas na educação especial.
A relação público-privado na oferta da educação especial
Embora a PNEEPEI tenha estabelecido o ensino regular como espaço da inclusão, não coibiu a atuação de instituições privadas na educação especial, que tem se mantido constante mesmo após a ascensão das políticas de inclusão, conforme revelam Laplane, Caiado e Kassar (2016). Nesse sentido, observou-se uma continuidade entre a PNEEPEI e a PNEE-2020 no que se refere à participação das instituições privadas na oferta da educação especial. A PNEEPEI não venceu a manutenção dos atendimentos na iniciativa privada e a PNEE-2020, por sua vez, não é objetiva ao identificar quem deverá ofertar, e financiar, os serviços da educação especial: o Estado, as instituições privadas, ou, ainda, ambos.
Na PNEEPEI, o AEE é definido como responsável por identificar, elaborar e organizar “recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando suas necessidades específicas” (BRASIL, 2008, p. 16). Garcia (2013) destaca que o modelo que se desdobrou a partir dessa política concebe a educação especial como AEE e tem as Salas de Recursos Multifuncionais (SRM) como espaço de realização.
No entanto, a PNEEPEI não extinguiu a possibilidade de instituições privadas ofertarem tais serviços. Nesse sentido, nas suas diretrizes, define apenas que o AEE é “oferta obrigatória dos sistemas de ensino e deve ser realizado no turno inverso ao da classe comum, na própria escola ou centro especializado que realize esse serviço educacional” (BRASIL, 2008, p. 16).
Em consequência, a análise dos dados de matrícula, das informações sobre financiamento, dos documentos e da legislação que normatizam parcerias entre o Estado e as organizações da sociedade civil demonstram que houve uma tendência de aumento da interdependência dos setores público e privado, principalmente do setor privado-assistencial, na educação especial, não apenas na oferta de serviços, mas também na formulação e execução de políticas (LAPLANE; CAIADO; KASSAR, 2016).
Essas instituições de gestão privada são, muitas vezes, mantidas com recursos públicos e o resultado disso é a concentração de matrículas em escolas de educação especial, financiadas pelo setor público, enquanto a escola pública fica responsável pela inclusão de alunos com deficiência nas escolas comuns (LAPLANE; CAIADO; KASSAR, 2016).
As escolas especiais de caráter filantrópico tomaram espaço na própria organização de serviços que levam a bandeira de inclusão, assumindo uma suposta perspectiva inclusiva. Nesse sentido, a proposta adquiriu tantas nuances que se tornou significativamente imprecisa e o espaço de escolarização dos estudantes com deficiência entrou num movimento de disputa que é expresso pelas modificações que aconteceram na legislação, mesmo após a PNEEPEI, culminando na PNEE-2020.
No Art. 7º da PNEE-2020, são elencados dezessete serviços e recursos da educação especial, dentre eles, os centros de atendimento educacional especializado voltados para os diversos segmentos do público da educação especial – que se constituem, historicamente, nichos das instituições privadas –, assim como as Sala de Recursos, as escolas e as classes especiais e bilíngues. No entanto, não há menção sobre a responsabilidade pela oferta e financiamento de tais serviços.
Se, na PNEEPEI, a SRM era o espaço prioritário do AEE, na PNEE-2020, tanto a SRM como o AEE são diluídos no rol dos dezessete incisos que compõem o Art. 7º. Como resultado, ao modificar o modelo de oferta de serviços e recursos da educação especial, a PNEE-2020 não apenas mantém, como amplia, as possibilidades de atuação das instituições privadas na oferta da educação especial. Esse debate envolve a terceirização de serviços especializados, fomento à indústria de cursos, empresas e assessorias para diagnósticos e tratamentos; além disso, há a legitimação das instituições privadas como espaço mais qualificado para atuar na área (HASHIZUME, 2021, p. 5).
Nesse sentido, a diminuição de investimentos nas escolas públicas, para a garantia da acessibilidade, e o direcionamento de recursos às instituições especializadas privadas poderiam ser possíveis consequências da PNEE-2020 (SANTOS; MOREIRA, 2021) e provavelmente estejam na intencionalidade dos proponentes dessa "nova" política.
O reforço dos paradigmas da integração, segregação e exclusão e do modelo biomédico de deficiência
Já na apresentação da PNEEPEI, é expresso o entendimento de que a “educação inclusiva constitui um paradigma educacional fundamentado na concepção de direitos humanos, que conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis” (BRASIL, 2008, p. 5). Na sequência, é destacada a responsabilidade da educação inclusiva na sociedade contemporânea visando à superação da lógica da exclusão. Com base nessa perspectiva, é definido o objetivo da PNEEPEI, que, como visto, resume-se a assegurar a inclusão escolar de alunos da educação especial garantindo o acesso ao ensino regular. Ao definir seu público, a PNEEPEI estabelece o “princípio que as escolas do ensino regular devem educar todos os alunos” (BRASIL, 2008, p. 14); chama “a atenção do ensino regular para o desafio de atender às diferenças" (BRASIL, 2008, p. 15); e destaca que a educação especial deve constituir a proposta pedagógica da escola.
Dessa forma, observou-se que a PNEEPEI está em consonância com a perspectiva de educação inclusiva, que expõe seu fundamento, na medida em que procura organizar a escola regular como espaço para tal. Correia e Baptista avaliam que, na PNEEPEI:
as diretrizes da Convenção [Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência] são incorporadas ao plano normativo da educação brasileira, com a difusão de uma política pública que prevê formas de reestruturar o sistema educacional como um todo e buscar atender aos novos pressupostos (CORREIA; BAPTISTA, 2018, p. 728).
Já a PNEE-2020, embora adjetive a educação especial como equitativa e inclusiva no seu título, no corpo da proposta apresenta sentidos para esses termos que indicam não ser esta sua intencionalidade. Observou-se que, de fato, sua proposta está fundamentada nas perspectivas integracionista, segregacionista e excludente de educação especial.
Como apontado, a PNEE-2020 propõe em seu Art. 9º, Inciso III, o deslocamento dos estudantes “que não se beneficiam nas escolas regulares inclusivas” para outros espaços “menos restrito possível” (BRASIL, 2020a). Essa proposta, além de atribuir o caráter substitutivo à educação especial, demonstra a relação da política com a perspectiva que, ao invés de fomentar a acessibilidade e a eliminação de barreiras na escola regular para a inclusão desses estudantes, propõe retirar os alunos com deficiência da escola e da classe regular, alocando-os em outros espaços segregados, não necessariamente escolares.
A proposta de que esse atendimento possa acontecer em espaços não institucionalizados parece ainda mais perigosa e prejudicial ao público da educação especial, pois remete à compreensão de que esses sujeitos possam ficar fora da escola.
Nesse sentido, a PNEE-2020 está fundamentada no conceito de aprendizado ao longo da vida, repetido diversas vezes no corpo do texto e conceituado no Art. 2º, Inciso V, como:
conjunto de medidas planejadas e implementadas para garantir oportunidades de desenvolvimento e aprendizado ao longo da existência do educando, com a percepção de que a educação não acontece apenas no âmbito escolar, e de que o aprendizado pode ocorrer em outros momentos e contextos, formais ou informais, planejados ou casuais, em um processo ininterrupto (BRASIL, 2020a).
Essa colocação, articulada com a proposta também já citada do Art. 4, Inciso III, de ofertar o AEE “para além da institucionalização de tempos e espaços reservados para atividade complementar ou suplementar” (BRASIL, 2020a), permite a compreensão de que a própria vida se encarrega de ensinar os “educandos que [supostamente] não se beneficiam das escolas regulares”, ou que qualquer espaço serve para eles, mesmo sem regulamentação ou planejamento. Demonstra-se, diante disso, uma clara articulação com concepções que acirram a exclusão dos estudantes público da educação especial.
No que se refere à permanência dos estudantes com deficiência nas escolas regulares, é clara a fundamentação da PNEE-2020 nas perspectivas segregacionistas e integracionistas.
As escolas regulares inclusivas são definidas na PNEE-2020, Art. 2º, Inciso X, como “instituições de ensino que oferecem atendimento educacional especializado aos educandos da educação especial em classes regulares, classes especializadas ou sala de recursos” (BRASIL, 2020a). Essa exposição permite compreender que é possível a existência de escolas regulares que não sejam inclusivas, que não ofertariam os serviços descritos, permitindo a coexistência de escolas inclusivas e não inclusivas (KASSAR; LACERDA; MENDES, 2020). Esse também foi o entendimento do STF ao apontar que a inclusão no ensino regular é apresentada como uma mera alternativa dentro do sistema escolar (BRASIL, 2020b).
Com o modelo proposto pela PNEE-2020, as escolas inclusivas adquirem caráter segregacionista dos estudantes com deficiência. Esse caráter fica ainda mais evidente ao tratar das classes especializadas, que, por sua vez, são definidas no Art, 2ª Inciso VII, como:
classes organizadas em escolas regulares inclusivas, com acessibilidade de arquitetura, equipamentos, mobiliário, projeto pedagógico e material didático planejados com vistas ao atendimento das especificadas do público ao qual são destinadas [...] (BRASIL, 2020a).
A relação que a PNEE-2020 estabelece entre as escolas regulares inclusivas e as classes especializadas, evidencia que o único espaço da escola regular necessariamente acessível seriam as classes especializadas. Isso remete ao modelo integracionista de escola, no qual os estudantes com deficiência ficavam restritos às classes especiais.
Destaca-se, ainda, que a PNEE-2020 não faz menção à participação dos estudantes com deficiência na sala de aula regular em todo o teor do texto, exceto no trecho em que define a escola regular e no Art. 6º, Inciso I (KASSAR; LACERDA; MENDES, 2020). Esse silenciamento remete às perspectivas integracionista e segregacionista na medida em que enfatiza outros espaços para a educação dos estudantes com deficiência em detrimento da sala de aula regular e, até mesmo, é excludente quando enfatiza o aprendizado ao longo da vida como possibilidade de educação não institucionalizada para as pessoas com deficiência.
Ou seja, a PNEE-2020 não define ações a serem realizadas para a inclusão do público da educação especial nas escolas regulares, ao contrário, define a necessidade de estabelecer critérios para a segregação, a integração e a exclusão desses estudantes destinando-lhes outros espaços. Dessa forma, manifesta uma ruptura com o que vinha sendo construído com a PNEEPEI e retoma práticas que se buscou superar com essa política de 2008.
Para finalizar a apresentação dos resultados da análise, observou-se ainda o retrocesso nos documentos estudados no que se refere à concepção de deficiência. Sobre as definições do seu público, a PNEEPEI destaca que:
devem ser contextualizadas e não se esgotam na mera categorização e especificações atribuídas a um quadro de deficiência, transtornos, distúrbios e aptidões. Considera-se que as pessoas se modificam continuamente transformando o contexto no qual se inserem. Esse dinamismo exige uma atuação pedagógica voltada para alterar a situação de exclusão, enfatizando a importância de ambientes heterogêneos que promovam a aprendizagem de todos os alunos (BRASIL, 2008, p. 15).
Aqui, observa-se a relação da PNEEPEI com a concepção biopsicossocial da deficiência. Correia e Baptista (2018) consideram que a PNEEPEI, ao alinhar-se aos pressupostos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, expressa a concepção de deficiência como um conceito em evolução e resultado da interação da pessoa com seu contexto, tal como definido na Convenção.
Nessa concepção, a deficiência é entendida como construção social e a participação na sociedade está relacionada com o contexto em que essa pessoa com deficiência se insere. Assim, a deficiência não é uma característica biológica, mas refere-se “à interação entre a pessoa e as barreiras ou os elementos facilitadores existentes nas atitudes e na provisão de acessibilidade e de tecnologia assistiva como resultado das políticas públicas” (MAIOR, 2017, p. 32).
A análise exposta até aqui da PNEE-2020 evidencia que não é essa a concepção de deficiência subjacente no documento. Ao fundamentar-se na compreensão da não adaptação dos estudantes que “não se beneficiam das escolas regulares inclusivas”, a PNEE-2020 atribui a responsabilidade ao próprio estudante em estar ou não apto a frequentar determinado espaço, tirando o foco das barreiras existentes e eximindo a escola de sua tarefa de garantir a educação de qualidade para todos (HASHIZUME, 2021; SANTOS; MOREIRA, 2021).
Na mesma perspectiva, ao definir os serviços e recursos da educação especial, a PNEE-2020 considera em seu Art. 7º, Parágrafo Único, “outros serviços e recursos para atender os educandos da educação especial, ainda que sejam utilizados de forma temporária ou para finalidade específica” (BRASIL, 2020a). Dessa forma, a PNEE-2020 permite que verbas da educação fossem utilizadas para financiar serviços não educacionais, inclusive terapêuticos, e estaria, assim, sobrepondo o direito universal à saúde ao da educação (HASHIZUME, 2021).
Observa-se que a concepção de deficiência está imbricada ao lócus educativo, pois a organização das políticas que determinam onde o estudante com deficiência deve ser educado. Nesse sentido, historicamente, o modelo clínico-médico amparou as políticas segregativas (BLANCO; GLAT, 2007).
A PNEE-2020, fundamentada na concepção biomédica de deficiência, propôs que a educação especial fosse excludente, segregacionista, integracionista e substitutiva ao ensino regular. Na PNEEPEI, encontra-se crítica a esse modelo que acarretou a organização da educação especial com base nas instituições especializadas, nas classes e escolas especiais. “Essa organização, fundamentada no conceito de normalidade/anormalidade, determina formas de atendimento clínico terapêuticos [...] que definem, por meio de diagnósticos, as práticas escolares para os alunos com deficiência” (BRASIL, 2008, p. 6). A PNEEPEI destaca a necessidade de superação de tais entendimentos, pois têm sido meio de exclusão, de regulação e de naturalização do fracasso escolar (BRASIL, 2008).
Assim, a PNEE-2020 configurou-se como um obstáculo à luta por direitos para o público da educação especial no que se refere ao acesso à escolarização; nesse contexto, seus pressupostos tornam vazio de sentido o princípio de um “ambiente escolar acolhedor e inclusivo” (BRASIL, 2020a, Art. 3º, Inciso III), disposto no documento.
Considerações finais
Este estudo pautou-se no entendimento que a legislação, ao ser utilizada como fonte de pesquisa, colabora para a interpretação da realidade na medida em que expressa os conflitos que a produziram e revela o movimento, as disputas de interesses que entram em colisão aos serem produtoras e/ou resultantes das alterações que os documentos provocam (ou não).
Portanto, embora o conteúdo da legislação possa parecer aleatório e arbitrário, não é. Daí, a importância de conhecer o discurso para além do que é revelado no sentido imediato, evidenciando os interesses aos quais atende e as disputas que expressa. Evidentemente, o discurso dos documentos precisa ser interpretado com base no contexto histórico e no conjunto de relações que tomam corpo e predominam nesse momento.
Observa-se que a PNEEPEI foi publicada num contexto em que o país procurava alicerçar seu vínculo com organismos multinacionais, no que se refere à inclusão das pessoas com deficiência. Dessa maneira, tal política expressa, em âmbito nacional, o que vinha sendo discutido internacionalmente na área e que culminaria com o Decreto nº 6.949/2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
Apesar dos seus limites, a PNEEPEI é, pelo menos em parte, expressão da luta e resultado dos anseios das próprias pessoas com deficiência. Assim, pouco mais de dez anos de vigência, é um intervalo breve para a efetivação de transformações mais significativas (CORREIA; BAPTISTA, 2018), considerando, ainda, o contexto da sociedade capitalista.
Já a PNEE-2020, foi promulgada no conjunto de ações de cerceamento de direitos. O declínio nas condições objetivas de vida é representativo do recrudescimento das contradições que marcam as relações de trabalho, e decorre da ação predatória do capital, que contorna suas crises ampliando a exploração sobre a classe trabalhadora e colocando em condições significativamente aviltantes os grupos mais vulneráveis da população. Nesse sentido, pauta-se na identificação de problemas como tentativa de implementar determinados encaminhamentos que não estão necessariamente voltados para a correção dos equívocos, mas para o desmonte das ações e serviços antecedentes.
Trata-se de uma situação que não é inaugural, visto que, historicamente, os problemas econômicos e estruturais dessa sociedade são contornados às custas da subjugação do trabalhador. Mas, a proposição da PNEE-2020 revela a intencionalidade de, nesse momento, estabelecer a acentuação das dificuldades e provocação de recuos agressivos às possibilidades de vida digna, ampliando as dificuldades para a conquista de direitos sociais.
Destaca-se a intensificação de relações políticas pautadas na lógica neoliberal como motivadora das normativas que compactuam com a finalidade de adequar o conjunto da vida em sociedade à situação de acirramento das relações de exploração entre capital e trabalho. Nesse sentido, a PNEE-2020 revelou a perspectiva que está em curso para a área da educação e, mais especificamente, da educação especial. De modo geral, embora suspenso, expressa a intencionalidade dos programas e ações a serem implementados. Em seu texto, possibilitou uma tentativa de estabelecimento de diretrizes, princípios e objetivos, de maneira que indicou os serviços e recursos para o que supostamente seria uma nova composição da educação especial.
A educação especial, em seu formato de escolarização substitutiva, é estabelecida por meio do entendimento de que as instituições privadas têm maior tradição, experiência e, por isso, conhecimento; portanto, corrobora a ideia de que a educação desse grupo de estudantes deve acontecer nessas escolas ou classes exclusivas. Essa pretensa expertise para a realização do trabalho promove a defesa do vínculo público-privado, que insere a educação na lógica de mercado, produto que se distancia de ser tratado como direito social.
Nesse contexto, ao longo da história, a educação especial tem sido significativamente atingida por meio de convênios com destaque para o caráter filantrópico e assistencial das instituições. Assim, a responsabilidade sobre a educação da pessoa com deficiência é transferida para a iniciativa privada e para a própria sociedade.
A PNEE-2020 indica a tentativa de reforçar os modelos biomédico de deficiência, das formas segregativas e integrativas de educação especial, declinando da proposta inclusiva, na medida em que volta o foco para o vínculo público-privado e abre oportunidade para a ampliação do processo privatista. Discursa sobre a inclusão, mas a perspectiva assumida expressa o entendimento em relação ao lócus educativo e ao financiamento da educação para os estudantes que constituem o público da educação especial no sentido de retroceder o incentivo que havia para que a escolarização ocorresse na rede pública de ensino. Retoma, reiteradamente, as escolas especiais, sob a ressignificação de classes e escolas especializadas.
Portanto, o discurso argumenta uma atualização da política de educação especial, mas a intencionalidade é de ajuste e reforço de paradigmas já conhecidos para atender à perspectiva mercadológica que conduz à privatização e terceirização dos serviços.
Notadamente, a garantia da escolarização pública aos estudantes que compõem o público da educação especial é uma questão que não foi efetivada na realidade brasileira, mas, na PNEE-2020, são expressivas a dubiedade e a falta de limitação entre a ação pública e o espaço privado. Essa relação atende a interesses e corresponde ao conjunto de ações do atual governo, que já vinha se posicionando pela redução dos investimentos diretos na educação pública (entre outras áreas), operando com ações diversas, por exemplo, a polêmica Emenda Constitucional n° 95/2016, que instituiu o Regime Fiscal do Teto dos Gastos Públicos, limitando os crescimentos de despesas e investimentos públicos durante vinte anos.
A PNEE-2020 é uma tentativa de efetivar uma proposta que expressa as ambiguidades da educação brasileira e, mais especificamente, a educação especial, posicionando-a de forma significativamente contrária ao direito de escolarização pública para a pessoa com deficiência, na intencionalidade de retroceder, de forma aguda, aos direitos buscados por meio de lutas intensas.
Algumas alterações nas políticas das últimas décadas permitiram supor que pelo menos o acesso à escola pública estaria assegurado para as pessoas com deficiência, entretanto, o paradigma segregativo não foi definitivamente superado. O discursado enfrentamento às formas segregativas, efetivamente, não adquiriu materialidade, especialmente no que tange à relação público-privado.
Para finalizar, vale ressaltar a atual situação de suspensão do decreto e a importância do movimento coletivo organizado das pessoas com deficiência como forma de resistência a qualquer ação de retomada desse documento, bem como a novas investidas no âmbito das políticas que expressem retrocesso aos direitos.