Introdução
O acesso às contribuições bergsonianas exige um esforço, dentre outros empreendimentos reflexivos, de reposicionamento da inteligência, cujo papel essencial seria o de construir ferramentas que nos auxiliassem na manutenção da vida, mas que, ao instaurar o governo e a hipertrofia da linguagem, da espacialização, metrificação do tempo, acabou por nos afastar das coisas, fornecendo apenas simplificações das mesmas. Exemplo para esta afirmação nos parecem as representações sociais acerca da infância (desde os idos medievos, passando pelas concepções modernas, tanto do senso comum, quanto científicas, até alcançarem avanços, com os autores dos Estudos Sociais da Infância), impactando a vida das crianças, não raro de modo tirânico, aviltante, em regimes de sujeição, sacralização do corpo, interdição e silenciamento.
As trilhas abertas serão exercícios de intuição, metodologia bergsoniana que assumimos, com calafrios cervicais, sobretudo pelas represálias, pouca receptividade, senão aversão àquilo que põe em cheque as cristalizadas conquistas epistemológicas. Buscaremos um encontro com o vivido, que se torna novidade e criação – formulação de problemas que nos afligem no cotidiano, procurando enumerar aspectos qualitativos (diferenças), até estranhos, nessas remadas reflexivas, abordagens do espanto, tentando apreender o tempo real a nos passar, inclusive na ocasião da escrita do ensaio (DELEUZE, 1999). Peregrinando também pelo labirinto mnemônico da docência e cenários de duas décadas, atuando na Educação Infantil com expressão musical, garimparemos sentidos noviços para nossa questão fundamental: o devir infância. Reminiscências flutuarão à superfície do presente, atualizações repletas de imagens colhidas da vivência com os cidadãos de fraldas, conforme nos permite a escolha metodológica. Bergson se notabilizou, dentre outras razões, por inaugurar uma perspectiva não espacializada do tempo... duração.
Este trabalho, conforme já declaramos, tem como objetivo central buscar novas compreensões acerca da infância, à luz da filosofia de Bergson. Desse modo, intuímos a necessidade de examinar, ainda que brevemente, as representações tradicionais acerca do universo dos pequenos atores, delineando o campo reflexivo a ser tratado. Nas linhas a seguir, apoiando-nos em Sarmento (2007), Corsaro (2011), James (ano), dentre outros, buscaremos realizar esta tarefa, realçando o quanto tais visões revelam de procedimentos como a homogeneização, espacialização, metrificação temporal (etapização), cristalizações simbólicas do ser criança. Em seguida, iremos descrever bergsonianamente o que vem a ser a infância do movente: realidade heterogênea, qualitativa, produtora de novidades, contingencial, indeterminada... a criança da duração. Um eu profundo ainda não capturado pelas algemas da inteligência: espírito, virtualidade e vontade, puro devir. Raciocinando de modo cético, poderemos engendrar mais uma construção simbólica para a infância! Seja assim então, acontece também com a produção artística e outros fazeres em que o vivido se revela experiência. A inteligência coloniza tudo o que criamos. Importa seguirmos, um dia de cada vez, de modo que busquemos possibilidades de refletir sobre a realidade infantil noutros registros, como os escritos bergsonianos.
Representações ocidentais sobre a infância
Uma leitura obrigatória, tornada lugar comum nos estudos sobre Educação, são os escritos de Ariès (1981) respaldados sobretudo em obras pictóricas. Até o século XVII, eram raras as imagens de crianças, e quando as tínhamos, podíamos verificar traços adultizados nos corpos infantis, ainda que bebês (abdômens e peitorais hercúleos). Isto nos permite inferir que as representações sobre a infância na Idade Média eram um tanto primárias, se considerarmos que existiam. Até o fim do século XIII, quando apareciam, em geral ligadas a temáticas sacras, as figuras infantis eram homúnculos. Nos ambientes sociais, crianças bem-pequenas eram tratadas feito bibelôs, “animaizinhos” (ARIÈS, 1981, p. 10); ao adquirirem certa altura, vestiam roupas de adultos, podendo circular nos mais diversos espaços públicos, inclusive em festas um tanto impróprias em nossos dias. A pictografia nos séculos de arte gótica, anterior ao Renascimento, já antecipa representações infantes mais próximas do sentimento moderno. Imagens de anjos adolescentes, em certa medida aludindo a crianças maiores que ajudavam na missa, consolidar-se-iam no século XIV.
Com a obra Emílio, ou da Educação, escrita em 1792, Rousseau influencia até hoje o pensamento educacional, perspectiva idealizadora da criança inocente – nasce naturalmente boa, reunindo em si os traços do futuro cidadão, desde que não seja corrompida pela sociedade doente, o que supunha a separação do universo adulto, nos anos escolares (GAUTHIER; TARDIF, 2010). Tal visão encontra sua antítese em Hobbes, posto que para ele nascemos lobos. O senso comum tanto endossa a perspectiva rousseauniana, acrescendo-lhe o ideal bíblico de criança, que habitaria o reino celestial, como também a imagem do animal a ser docilizado pelo Leviatã, concebido por Hobbes. A criança má persiste nas representações (elitistas) contemporâneas endereçadas sobretudo às classes desfavorecidas, requerendo-se para ela medidas de repressão, associando-a aos arranjos familiares desestruturados e à própria delinquência (JAMES; JENKS; PROUT, 1998).
Outras representações surgiriam, desta feita de altares epistêmicos, como a criança imanente de Locke, no sec. XVII: “[...]uma tábula rasa, na qual podem ser inscritos quer o vício, quer a virtude, a razão ou a desrazão, sendo missão da sociedade promover o crescimento com vista a uma ordem social coesa” (SARMENTO, 2007, p. 32, destaque do autor). Surgia a concepção desenvolvimentista e de vir-a-ser, aprofundada séculos adiante. A imanência corresponderia às potencialidades infantis, abertas a todo aprendizado. Os pequenos serão aquilo que as instituições educativas, sociais e familiares deles fizerem (JAMES; JENKS; PROUT, 1998).
Em fins do século XVIII e durante o século XIX, presenciamos a expansão do escolanovismo, inspirado nas concepções rousseaunianas em especial, com nomes tais quais Montessori, Fröebel; no século XX, Dewey, Decroly, dentre outros autores. Interessam-nos, ao mirar as contribuições desses herdeiros iluministas, as concepções sobre infância, a orientarem perspectivas pedagógicas que, por sua vez, encaminham até hoje currículos e práticas escolares. Trata-se de agenciamentos feitos pela inteligência científica que encontrariam máxima expressão no debate entre Piaget e Vigotski1, teóricos de uma criança naturalmente em desenvolvimento (JAMES; JENKS; PROUT, 1998 apud SARMENTO, 2007). O primeiro, um leitor assíduo de Bergson e posterior dissidente, defendia a tese de que os pequeninos, ao nascerem, iniciavam um percurso subjetivo de interpretação, organização de dados sobre o meio, construindo estruturas mentais acerca do mundo físico e psicológico, em uma progressão das capacidades intelectivas, mapeáveis por estágios: período sensório-motor; pré-operacional; operacional concreto; hipotético-dedutivo (PIAGET, 2012). Para Vigotski, há diferentes níveis de funcionamento psicológico, com características próprias e irredutíveis, inerentes às funções mentais superiores; o pensamento e a consciência não provêm de estruturas subjetivas internas, apriorísticas, e sim se constituem nas progressivas experiências externas, objetivas e sociais (VIGOTSKI, 2007)
Para James, Jenks e Prout (1998), temos também a representação pré-sociológica da criança inconsciente: interpretada sob o viés psicanalítico, não se contempla uma condição de ser humano completo, com as especificidades do protagonismo social infantil, existiria ali uma predição adulta. Em aproximações aligeiradas, há quem associe as pulsões de morte, violência, sexualidade, etc. à criança má, pelo que revela das forças inconscientes reprimidas (SARMENTO, 2007, p. 32). Há que se reconhecer o pioneirismo freudiano em romper com a imagem da criança inocente, duro golpe na visão judaico-cristã, conservadora e raivosa, sobretudo por ter que conceber um novo ser humano, inserido também no inquietante contexto do inconsciente, com outras lógicas, alheias ao governo da consciência repressora. A sexualidade infantil, no final do século XIX, revelava-se finalmente natural, não mais aberração, prematura depravação. Imagine-se o escândalo científico, naqueles idos puritanistas e vitorianos, que professavam a crença na infância assexuada, terem que admitir a fisiologia atrelada ao prazer e a diagramas etapistas, como as fases oral, anal, fálica, período de latência e fase genital (FREUD, 1976). Teríamos dali em diante a percepção do corpo infantil erógeno, pleno de pulsões, atravessado pela linguagem, um abalo sísmico em nossas crenças alicerçadas nos domínios da razão e da fé, com o reconhecimento do inconsciente.
Um dos traços do sujeito ocidental moderno vem a ser a adultez, o que necessariamente imputa às crianças uma condição de inferioridade, de modo que estas passem a desejar de modo intenso crescerem logo (CORSARO, 2011); tal afã aparece inclusive nas brincadeiras dos pequeninos, ao subirem em escadas, móveis... “Sou maior do que você!” Criança é sobremaneira perceptiva, sente os impactos (inclusive entre elas) de habitar um corpo menor, carregando toda a negatividade simbólica de uma condição biológica não adulta, de incompletude: idade da não razão, improdutividade, tempo de não ser levada a sério. Pela situação física, rotineiramente vive a condição do infans, aquele que não tem voz, tal como o bibelô da Idade Média. Mesmo a Sociologia teria marginalizado os pequenos cidadãos pela subordinação deles, reféns de representações atreladas à ideia de futuro. Isto mudaria com os estudos sociais contemporâneos, capitaneados por autores como Corsaro (2011), Sarmento (2007), Qvortrup (2011), James, Jenks e Prout (1998), dentre outros.
A Sociologia da Infância entende que as crianças são protagonistas sociais. Aquela perspectiva tradicional de haver um processo de socialização – percurso em que elas internalizariam a cultura adulta, moldando-se, adaptando-se a ela, consumindo produtos e símbolos, vivendo uma fase da vida, tempo do vir-a-ser – fora abolida, em nome de uma nova compreensão: trata-se agora de sujeitos de direitos, vivendo no presente, que se apropriam, reproduzem de modo interpretativo e compartilhado as linguagens como um todo; atores sociais que reinventam a realidade e a própria cultura adulta, membros de uma categoria intergeracional permanente. Em que pesem os sensíveis avanços com relação às arcaicas visões, estes sociólogos de língua inglesa não contemplam metodologicamente a realidade dos bebês, para os quais urge a criação de uma nova categoria inserida nos estudos da infância, como sugerem Rosemberg (2012), Tebet (2013), dentre outra(o)s pesquisadora(e)s.
Não nos alongaremos mais no que tange ao preço com que arcam os pequenos cidadãos, pelo que a sociedade há séculos pensa sobre a infância. Enumeramos alguns aspectos que, salvo melhor entendimento, dialogam diretamente com conceitos bergsonianos aqui apresentados sobre o caráter utilitário da razão e tudo o que lhe diz respeito. Isto afirmamos porque as representações ocidentais sobre o universo infantil são fixações simbólicas, tais como a criança sacralizada: ser puro, que não mente, habitante celestial. Ao enumerá-las brevemente, buscamos pensar novos campos de existência para a infância, buscando romper com aqueles grilhões bem-intencionados. Os Estudos Sociais da Infância abriram picadas nessa direção, cabe-nos seguir adiante, garimpando novos olhares, para além do que as ciências educativas e suas construções perpetuam.
Reflexões sobre a inteligência e a duração
As abordagens a seguir estão alicerçadas fundamentalmente na obra Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (BERGSON, 1978). Adentraremos questões concernentes à nossa ação no mundo, sempre orientada por faculdades inteligentes, cuja origem se dá no afã da utilidade, urgência de manutenção da existência, dentre as quais se destacariam a homogeneização do espaço – fundante da própria concepção de matéria e do pensamento, então divisíveis, quantificáveis – e a linguagem, que congela pela ação simbólica traços identitários daquilo que é externo e movente. Procuraremos demonstrar quão falacioso tem sido o percurso da ciência moderna e do conhecimento como um todo, à medida que se ancora nesses expedientes logocêntricos, cujos modos de agir nos afastam do eu interior e da duração pura – natureza íntima e profunda da ação –, restando-nos “experiências” de uma consciência refém da representação, deformada pelo utilitarismo da razão. O filósofo nos acena, todavia, com a possibilidade de vivenciarmos atos livres, se o eu se expressar, não como caricatura psicológica, mas lançado na duração real do agir, que a intuição permite, rompendo com a homogeneidade do espaço, esquematismos e outros estratagemas inteligentes.
Henri Bergson, ao empunhar sua metralhadora contra a inteligência e estatutos, aborda a noção do número. Dialogando com seculares legados, como o pitagórico, cartesiano, newtoniano, comteano, o autor afirma que, quando nomeamos, também numeramos. Ao contarmos os objetos, supomo-los idênticos entre si, o que nos faz lembrar do conceito de símbolo de Peirce (2005): a capacidade sígnica de um indivíduo ser representado e posicionado dentro de uma espécie (série). Um exemplo bergsoniano para esta função matemática da inteligência vem a ser um rebanho com 50 ovelhas (BERGSON, 1978, p.58). Ao concebermos tal conjunto, tornamos as unidades que o compõem idênticas entre si; o preço disto será desconsiderarmos a realidade única de cada ser. O pastor conhece ovelha por ovelha, ciente das diferenças singulares entre uma e outra. A numeração só terá utilidade lógica se, além de somar, estabelecer uma homogeneização e a necessária concepção de espaço. Esta viabiliza a própria ideia de multiplicidade de unidades, natureza do número. Declarou o autor: “Involuntariamente, fixamos num ponto do espaço cada um dos momentos que contamos, e é apenas com esta condição que as unidades abstractas formam uma soma” (BERGSON, 1978, p. 59). Com isto, inferimos que não há como somarmos as unidades de um todo, se não espacializarmos o raciocínio, sem o que também não haveria como formarmos abstrações na geometria, química ou qualquer ciência.
Os discursos científicos se apoiam no artifício inteligente de orientar nossas observações na direção da matéria objetivada; o que somente se torna possível por termos já formada uma função lógica em que distribuímos números, múltiplos que fracionam a matéria, sem a qual não seria possível a transposição. Melhor afirmando, a matéria promove o “translado” (justaposição) das unidades numéricas para o espaço.
Outra abordagem bergsoniana concernente ao número diz respeito ainda à multiplicidade (espacial). Temos duas espécies: uma que se volta aos objetos materiais, visíveis, tangíveis, portanto de fácil localização no espaço, com o que se tornam contáveis e múltiplos em uma coleção (BERGSON, 1978, p.63); outra concernente a estados afetivos e até sensoriais, cujos traços são difíceis de serem representados, fixados em unidades e conjuntos. Ainda que confusos, tais conteúdos tendem a ser justapostos em um espaço ideal, mesmo vivências musicais, como sugere o autor: as badaladas de um sino, por exemplo, podemos organizá-las de modo qualitativo, sem contagens, recolhendo as impressões de duração, sentimentos sucessivos a comporem um ambiente sonoro ou... em uma prescrição racional, separar objetos, contá-los, eliminando qualidades, homogeneizando sonoridades, de tal modo que se tornem múltiplos. Há mais dificuldade em promovermos tais análises, à medida que mergulhamos na consciência, alertou Bergson (p. 64), dimensão pantanosa de sentimentos, cuja contabilização se torna problemática, dada sua dependência da intuição do espaço e respectivos pontos de ancoragem. Isto nos faz lembrar do plano cartesiano, dos pontos que unidos entre si geram uma reta e assim por diante, cercando, quem sabe, um fantasma interior.
Impressões sobre a infância do movente... reminiscências
Retomamos aqui asserções feitas à luz do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (BERGSON, 1978), com relação à ideia de sucessão e a intrínseca relação desta com o tempo real, contexto em que os elementos se interpenetram, solidariamente, sem a concepção abstrata do espaço; esta que faz de modo arbitrário e lógico com que justaponhamos nossos estados de consciência, de modo a reconhecê-los um ao lado do outro e não mais um no outro. Para tanto, promovemos uma espacialização do tempo, a duração torna-se extensão; o filósofo acrescenta ainda:
[...] a sucessão torna-se para nós a forma de uma linha contínua ou de uma cadeia, cujas partes se tocam sem se penetrar. Notemos que esta última imagem implica a percepção, não já sucessiva, mas simultânea, do antes e do depois e que aqui haveria contradição em supor uma sucessão, que fosse apenas sucessão e que, apesar de tudo, se mantivesse num só e mesmo instante (BERGSON, 1978, p.73).
O excerto acima permite, salvo engano, retomarmos a crítica acerca de concepções sobre a infância notabilizadas em legados como os de Piaget e Vigostki, dentre outros titãs das ciências da Educação. Referimo-nos ao etapismo e o entendimento de que a infância seja uma fase da vida, representação consolidada por ciências como a Psicologia. Parece-nos inegável a importância dessas contribuições para a Didática (e o planejamento), de modo que os saberes pedagógicos se revelam devedores daquela tradição. Afirmamos, contudo, que a cristalização de tais doutrinas levou à representação de uma criança universal, cuja experiência se metrificou, de tal sorte que as fases de seu crescimento corresponderiam, a nosso ver, à justaposição e alinhamento de segmentações etárias, quase como “[...] partes que se tocam, sem se penetrar” (BERGSON, 1978, p. 73), em simultaneidade. O percurso daquela consciência será crivado por marcadores temporais, abortando-se a sucessão. Os termos da experiência temporal são discriminados, ocupando espaços em uma ordem. Uma vez tornada simultaneidade (perfilamento de elementos), a sucessão, que se revela potente na vida infantil, inefável, sobremaneira criativa, passa a ser diagramática, cartesianamente mensurável pelos processos abstrativos psicopedagógicos. Quem, contudo, trabalha diariamente com os miúdos, se olhar bem para eles, ouvi-los, tocá-los... saberá que está diante de seres singulares, desejantes, brincantes, profundamente criativos, provocadores, investigadores, com os quais poderá ter encontros no lugar de aulas. Para tanto, há que se ter coragem, porque se trata de perder às vezes o famigerado e miserável controle da turma e isso tem um preço com o qual nem sempre podemos arcar.
Evocamos aqui a imagem de cerca de 16 milhões de pequenos cidadãos (0 a 5 anos), a serem matriculados em instituições de Educação Infantil; estas atendem apenas a 60% por cento da demanda (em dados arredondados, 8 milhões e setecentos mil crianças), segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE, 2019). A ciência pedagógica, profundamente devedora dos ideais jesuíticos, comenianos, enciclopedistas (GAUTHIER; TARDIF, 2010), perpetua saberes disciplinares. Nesta lógica, torna-se difícil ensinarmos, por exemplo, conteúdos pré-alfabetizadores a uma turma de 20 crianças, se não houver a prática cotidiana de estabelecermos combinados com elas e cumpri-los; noutras palavras, o mesmo ideário de caserna, hospital, fábrica e prisão (FOUCAULT, 2009), a punir o indivíduo que não se submeta aos regimes de poder inscritos no projeto moderno. O que poderá atenuar a angústia docente no contexto de Creche e Pré-escola são as rotinas lúdicas, vivências com a afetividade, investigação, surpresa, emoção estética, narratividade, enfim, expressões de protagonismo infantil, além de outros aspectos interacionistas da aprendizagem. Dewey (1959) nos socorre, ao afirmar que nenhum conteúdo escolar fará sentido para uma criança, se não a envolver afetivamente e ela resistirá como puder ao que lhe for imposto de modo arbitrário, ainda que seja com apatia e indiferença.
As asserções sobre aritmética, há pouco abordadas, colhidas dos escritos de Bergson, presentes no Ensaio (1978), lançam um eco abissal nesta reflexão. Um conceito como a unidade e o número nos levam ao encontro dos pequenos atores, que se tornam cotidianamente múltiplos elementos, desprovidos de qualidades, homogeneizados pela Didática, inscritos com seus nomes no espaço lógico do saber docente, tornando-se uma turma, de sorte que, com as rotinas instrucionais, possam construir produtos artísticos e escolares de grande expressividade, arrancando lágrimas dos pais mais rudes, nos eventos festivos. Poucas situações sociais emocionam tanto uma plateia como crianças tão pequenas entoando perfeitamente uma canção como A lagarta, de Sandra Peres e Paulo Tatit (1999), ou Contrariando, de Thelma Chan (1997), ou ainda, na flauta doce, Sur le pont d’Avignon, do folclore francês. Para atingirmos o resultado, sempre a necessidade de tratar os pequenos atores como unidades numéricas, porque, do contrário, mergulhando qualitativamente no devir dos encontros, abolindo as regras, os acordos, mergulharíamos em um contexto sem nome, movediço e singular, sem manual do professor e uma consequente corrosão dos saberes disciplinares, com o fim do controle adulto sobre as subjetividades.
O que nos exorta a defender uma nova visão de infância é saber que o educador pode e deve resistir com as crianças a tais ordenamentos, apesar dos perigos. Sempre haverá linhas de fuga possíveis, zonas de indeterminação, heterogeneidade, em que aconteçam bizarrices qualitativas, subversões, tateamentos na extensão do mundo, sobretudo criações. Ali onde o movente escoa – devir infância –, há uma relação direta entre a percepção e o contexto sensório-motor; o pequeno corpo, percebendo os outros, toma-se pela afecção. Na relação entre objetos do mundo e o corpo criança (extensões que interagem), há uma infinita variedade de impactos, distâncias, desde aquelas remotas, ocasião em que a percepção projeta atos possíveis, até as mais próximas, culminando com a eliminação de qualquer distância, ocasião em que o corpo percebido no mundo se conecta àquele de quem percebe. Dirá Bergson que a imagem e a percepção são correlatos da consciência: a primeira seria externa ao corpo; a segunda o marca, atinge-o. Deste modo, a superfície corporal, demarcadora das fronteiras entre os corpos (bem como do presente e passado), “[...] nos é dada ao mesmo tempo na forma de sensação e na forma de imagem” (BERGSON, 2010, p. 273). A infância assim desliza sobre o vivido, uma experiência prenhe de narratividade, afecção e acontecimentos, abrigados em campos de consciência que, a todo instante, tendem a ser colonizados por aparatos inteligentes.
Trabalhando com expressão musical, sabíamos da necessidade de lidarmos com conceitos desta linguagem, tornando-os práticas corriqueiras, ao mesmo tempo que algo insano, de outras naturezas, sempre nos lançava com as crianças em situações inusitadas. Muitas vezes as vimos como unidades em um coral, mas em outras, deixávamos assumirem o comando... e aí as favas de flamboyant colhidas na praça vizinha à instituição escolar, a serem usadas como instrumentos de percussão, tornavam-se esquis nos pés dos maluquinhos (ah, Ziraldo!2) e o encontro se tornava uma estranha festa de tombos e gargalhadas. A ludicidade e o movimento assumiam importância maior do que os objetivos específicos planejados. Retomamos essas reminiscências com o intuito de ilustrar idos não orientados pela inteligência didática, bem como ponderar sobre a necessidade de enfrentarmos as tensões cotidianas que nos acometem, quando lecionamos. Para o professor de perfil técnico (CONTRERAS, 2003), a tendência produtivista no agir predomina, ou seja, tratar os pequenos como números. Assim podemos atingir melhor as metas mercadológicas da educação tradicional, além de nos protegermos atrás dos conteúdos e da própria instrução, esquivando-nos do envolvimento com os problemas incontáveis que uma aproximação exige.
Nossos flautistas de 4 e 5 anos eram unidades, dezenas, centenas a entoarem a Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (1947), gerando uma massa sonora encantadora, nas escadarias de um shopping center, prefeitura e outros espaços públicos. Poderíamos nos manter na posição de educadores técnicos, prestadores de serviços, mas aquelas crianças, assim como outras milhares em duas décadas, não eram apenas números em um pelotão; tampouco nós, docentes, apenas comandantes... Vinha também uma angústia, obviamente, quando abandonávamos os cânones da lógica espacializante, porque, ao nos lançarmos nos jorros da duração, perdíamos as rédeas ilusórias com as quais fixamos os objetos no mundo, ou os símbolos nos discursos racionais. E então vibrávamos junto dos pequenos, remando em direção ao imprevisível, encontro de subjetividades, atuando sobre o material e o tempo, nos fluxos da experiência e do movente.
As crianças têm, acima de tudo, direitos a serem respeitados, enunciados em documentos oficiais, como a Constituição Federal (BRASIL, 1988), o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998) e mesmo a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), dentre outros, mas são esmagados pela racionalidade pedagógica cotidianamente. O logocentrismo do projeto moderno, consolidado no século XVII, agrilhoou-os em todos os terrenos da cultura e rotinas humanas. Com respeito à educação da infância, isto tem seculares consequências, que culminam com a segregação, interdição, silenciamento de tudo o que expresse negação ou resistência ao governo de um ente subjetivo adulto, masculino, heterossexual, ocidental, cristão, branco, produtor de riqueza e conhecimento científico, que considera a experiência intelectual como a mais importante dentre todas as realizações humanas (JAY, 2009). Vale lembrar as bases de tal cânone e equação moderna: a entronização da inteligência, a empreender diversas ações para além do que deveria – fabricar ferramentas para a manutenção da vida.
Aprofundando percepções acerca da duração... Garatujas potentes se tornam estereótipos inertes
Quando concebemos uma impressão presente que contenha outra lembrada, ou iremos justapô-las ou... teremos uma penetração de uma na outra, como em um acorde musical e então o encontro com uma multiplicidade de natureza muito diferente daquela da aritmética, desta feita totalmente qualitativa, crua expressividade, em nada homogeneizante. Assim, não nos parece tranquilo conceber a duração em sua “pureza original” (BERGSON, 1978, p. 76), aliás, torna-se penoso tal exercício, dentre outros aspectos, pelo fato de não estarmos sozinhos na duração; as coisas externas a nós participam disto. O autor ainda acrescenta o fato de que tendemos a homogeneizar o tempo, de modo que os momentos duracionais (permitam-nos este adjetivo) nos pareçam exteriores entre si, tais como corpos, o que faz com que uniformizemos as impressões de duração, podendo aplicar a elas mensurações, localizações, enfim, de modo ilusório estabelecer quantidades, alicerces para epistemologias. Ao explanar sobre a duração, o filósofo endereça contundentes críticas à mecânica, astronomia, psicologia, enfim a todas as ciências, sobretudo por conceberem o tempo como uma grandeza. Temos para tal o exemplo do pêndulo do relógio: quando o observamos, vem-nos a sensação muito convicta de que o tempo existe como quantidade, portanto mensurável como são as laranjas em uma mesa. Kronos assume o status de instância equalizadora, espacializada pela inteligência, condição que permite a um instrumento formado por engrenagens internas, números, ponteiros, dividir em partes idênticas uma ilusão a que denominamos tempo, criação utilitária. Não se trata, adverte Bergson, de obtermos medidas da duração e sim de abstrações simultâneas. Apesar da convicção contrária, ao acompanharmos os ponteiros de um relógio, o que contamos são simultaneidades, desenhadas pela função simbólica. O que se configura dentro de nós, algo pantanoso, sobretudo nas camadas menos atingidas pela linguagem, são movimentos de consciência, estados que se transmutam. Para compreendê-los, tendemos a fixá-los e exteriorizá-los.
Eis uma inferência que ruma na direção do objeto externo a nós, concebido em geral pelas linguagens (sempre capitaneadas pelo símbolo): parece indiferente se estamos diante de um paredão da Chapada dos Guimarães ou de uma escultura de Auguste Rodin, com relação ao modo como nos relacionamos com tais elementos; ambos poderão ser acolhidos de modo racional, então poderemos efetuar medições, análises, estabelecer categorias de observação, tal como fariam os estetas e geólogos. Em direção oposta, temos a possibilidade de exorcizar todos os mecanismos inteligentes e linguageiros, de modo que a percepção possa capturar as coisas em sua crua nudez, contexto de imediata comunicação, contato profundo, segundo o filósofo:
[...] seríamos todos artistas, porque nossa alma vibraria então continuamente em uníssono com a natureza. Nossos olhos, ajudados pela memória, recortariam no espaço e fixariam no tempo quadros inimitáveis. Nosso olhar captaria de passagem, esculpidos no mármore vivo do corpo humano, fragmentos de estátua tão belos como os da estatuária antiga. Ouviríamos cantar no fundo de nossas almas, como música por vezes alegre, o mais das vezes lamentosa, sempre original, a melodia ininterrupta de nossa vida interior. Tudo isso está em torno de nós, tudo isso está em nós, e no entanto nada de tudo isso é percebido por nós distintamente (BERGSON, 1983, p. 72).
Neste excerto, temos uma ideia mais nítida do que seria o bem-vindo fim da instituição artística, ao vivermos um cotidiano em que fosse rasgado o grosso véu que se interpõe, segundo o autor, entre a vida interior (bem como o que nos rodeia e quase não percebemos) e nossa consciência. Para os artistas, o véu é mais leve e translúcido, posto que lhes permite vivências interditadas pela necessidade que orienta nossa relação com as coisas, de modo a nos mantermos vivos, agindo pragmaticamente. Assim, toda realidade a nos escapar de tal lógica será intuída de modo confuso. Quando desenhamos um rosto em grafite, o que temos no comum das vezes são formas que acreditamos ver, que a inteligência determina; ainda que a pessoa (modelo) esteja diante de nós, ou tenhamos dela uma sólida memória, se não formos artistas, certamente reproduziremos o aprendido, sobretudo nos anos de Educação Básica: estereótipos de rosto, espacializados, homogeneizados, conforme já descrevemos, recorrendo às abordagens bergsonianas acerca da unidade numérica. Tivéssemos a oportunidade de arrancar o véu, poderíamos entrar em contato com linhas, volumes, esquisitas pulsões da forma, ritmos da duração. Ainda recorrendo ao fragmento há pouco apresentado, com o auxílio da memória, encontraríamos “quadros inimitáveis” (BERGSON, 1983, p. 72). E o desenho sairia potente e esdrúxulo, lírico, prenhe de vibrações, gestos tateando a mobilidade e a criação...
Rememorando nossa história com a criançada bem-pequena, não foram poucas as vezes em que testemunhamos seu sofrimento com o logocentrismo pedagógico, regime de poder que subjuga toda a potencialidade que um cidadão de três anos apresenta, com suas garatujas arbóreas. Quando o encontrávamos aos dez, vinha a triste constatação de que a árvore desenhada na creche, expressando estranheza e autoria, tornara-se idêntica às árvores dos colegas. Pensando com nosso autor, a conclusão não poderia ser outra: a instituição escolar (e não apenas ela) cuidou para que as linguagens e seu respectivo compromisso utilitário, uniformizante, fossem transmitidas às crianças, num longo processo de adestramento. As propostas pedagógicas em geral perdem de vista a importância da singularidade com que nossos atores se relacionam com o mundo: olham, cutucam, cheiram, ouvem as coisas, sobretudo porque em tenra idade, ainda não passaram pelo longo processo de sujeição, de aquisição dos múltiplos códigos com os quais deverão se inserir na cultura a que pertencem. A educação deve tornar humanos os seres humanos (DÜRKHEIM,1952).
Portfólios de pequenas assombrações
Afirmamos que a reflexão aqui empreendida não tem a intenção de deflagrar uma cruzada contra a linguagem (destaque à palavra), o que seria, no mínimo, ingênuo. Bergson declarou que a inteligência tem sua gênese na animalidade, que opera no sentido de nos manter vivos na cadeia biológica, atuando sobre o ambiente, buscando maneiras de fixar identidades no grande fluxo do real, da diferença. Eis a base sobre a qual se desenvolve a razão. Nosso grande dilema é que esta assumira funções que não lhe cabiam, sobretudo com respeito ao contato e compreensão da realidade, engendrando o símbolo. O instinto pragmático sobrepõe-se à intuição, dificultando sobremodo entendermos o aspecto temporal da consciência e da duração psicológica. A duração constitui-se o fundamento da experiência, memória e natureza do real. Havemos de ponderar que a ideia de distinção também muda. Na homogeneidade do quantitativo, a distinção entre os objetos/fatos se fazia por justaposição dos mesmos no espaço, numerando-os; na heterogeneidade da duração, existe discriminação, mas não se apresenta abstrata (fruto de operações simbólicas) e sim intuída pela consciência, cujos elementos se organizam de tal sorte que o espaço não é concebido, então se enriquecem, fundindo-se uns aos outros, distintos qualitativamente.
A inteligência, responsável por nossa manutenção na existência, de tal modo cristalizou as concepções espaciais (também atingem a intuição de tempo, metrificando-o), que se tornou impossível para o senso comum raciocinar sobre a multiplicidade sem nexos com o número e o próprio espaço (BERGSON, 1978, p. 86). Reconhecemos a contundência de tal espinho. Somente mediante um exercício árduo é que conseguimos pensar o tempo sem o espacializar, adentrando a multiplicidade das sensações, emoções, fatos da alma, plano movente em que o tempo se desligou da representação simbólica.
Há um pesar, quando fica evidente que o eu superficial se revela refém da racionalidade, que age fracionando nosso psiquismo em segmentos exteriorizados, separados entre si, para serem conhecidos e controlados, recolhidos do abissal poço do eu interior. Do mesmo modo que discrimina objetos materiais, a inteligência justapõe nossos estados mais íntimos, na homogeneidade do espaço abstrato. Prova do alcance de tais mecanismos utilitários vem a ser o fato de que até mesmo nossa compreensão do que seria a duração se constitui reflexo da penetração da espacialidade no domínio da consciência pura, segundo Bergson (1978, p. 88). Assim, o eu superficial parece regular-se pelos ponteiros do relógio; nossos sentimentos, ideias, pulsões, instintos, podem, dessa maneira, ser enquadrados. Então assumimos logopoderes, de modo que conduzamos nossa vida arrazoadamente. Quem seria insano de montar no corcel selvagem, sem sela, sem rédeas, do eu desconectado da linguagem? Quando sonhamos, segundo o autor, há um afrouxamento das funções orgânicas logocêntricas, de sorte que não mensuramos o que dura, apenas sentimos; aquilo antes quantificável tornou-se qualitativo. Sem o comando da linguagem ordinária, temos estados confusos, desinterditados, móveis, praticamente inexprimíveis (sobretudo porque o símbolo precisa fixá-los para os representar). No instante em que rabiscamos esta frase, somos a síntese de dezenas de milhares de horas na docência com os bebês e crianças pequenas...
um poema
que não se entende
é digno de nota
a dignidade suprema
de um navio
perdendo a rota (LEMINSKI, 2013, p. 71)
Como timoneiros dos encontros, não entendíamos muita vez a inquietação que jamais nos abandonara. Hoje, vemos que há dignidade em não buscar compreensão. Melhor sentir o que nos passa, durando, ouvindo as canções entoadas por vozes tão doces quanto as flautas... Coraçõezinhos vibravam juntos... almas não raro indóceis, sempre pedindo presença, novidade, mobilidade. Percebemos agora o quanto escapavam das representações de toda a estatuária psicopedagógica, sobretudo pelo que duravam e permanecem nos moventes caleidoscópios da memória. A todo momento resistiam ao que as ciências educativas predizem, profanando altares epistêmicos com gargalhadas, gritos diante de descobertas, ou cantando versos bufões, como “Quando sou forte, me chamam vento / Quando sou cheiro, me chamam pum!” (BACALOV; TOQUINHO; MORAES, 1980).
Por mais que se repita uma sensação, embora possa não parecer, ela sempre se modifica. A convicção contrária que temos comumente se dá em virtude do poder da linguagem (especialmente a palavra) em congelar os objetos do vivido. Bergson assegura que não se trata apenas de tornar fixos os mesmos, mas até de nos enganar com respeito à sensação vivenciada, como verificamos neste fragmento do autor. A prerrogativa que as palavras têm de congelar identidades se interpõe entre as sensações e nossa consciência. O autor vai além, afirmando que a palavra bem-acabada cristaliza o que há de estável, comum e impessoal em nós, esmagando, senão encobrindo “[...] as impressões delicadas e fugitivas da nossa consciência individual” (BERGSON, 1978, p. 92). Para que houvesse um modo menos incoerente de a inteligência capturar cada impressão, teria para tal que engendrar palavra por palavra, e mesmo assim seria algo inglório, pois estas tendem a impor sua estabilidade ao instável, movediço. Nada se compara, porém, ao esmagamento da consciência, em relação aos sentimentos:
Um amor violento, uma melancolia profunda invadindo a nossa alma: são infindos elementos diversos que se fundem, se penetram, sem contornos precisos, sem a menor tendência a exteriorizarem-se uns relativamente aos outros; a sua originalidade tem este preço (BERGSON, 1978, p. 92).
Eis o abismo de que tratamos. Como exteriorizá-lo, conforme querem as ciências educativas, sem o deformar? Raciocinando com o filósofo, fazemos isto de pronto, quando inserimos em uma multiplicidade sentimentos como a melancolia, discriminando e isolando aspectos. Para tanto, buscamos materialidade, ou seja, objetos-causa. Quantos pequeninos tristinhos nos vêm à mente. Não foram poucas as vezes em que os acolhemos, para ouvir narrativas, desabafos... O cachorro que morreu, o dente que caiu, a mãe no hospital. Os sentimentos em duração se sucedem, acontecem, interpenetram-se. Ao separá-los, criamos representações para tais, de modo que, instalados no tempo espacializado, possamos compreendê-los. Adverte Bergson (1978) que, com isto, ficamos à sombra de nós mesmos. Podemos até nos certificar de que analisamos o contexto, mas o que verdadeiramente fazemos é substituir aqueles sentimentos por estados inertes, justapostos (como em uma coleção), comunicados pelas palavras; estas antigas moedas, portadoras de resíduos impessoais, pactuadas pela coletividade. Eis a grande falácia da linguagem: a concretude do que nos passa no espírito é substituída pelo correlato simbólico da mesma; e quanto mais mergulhamos naquilo que acontece no eu interior, mais clara se torna a percepção do artifício. Este se viabiliza também pelo tangenciar das fronteiras do eu com a exterioridade, intuindo-se impressões simplórias, impessoais, dados de superfície que se revelam, diríamos, universalizáveis. Sentimentos de medo, inveja, amor, ódio, melancolia, apanhados pelas palavras ou outros procedimentos associacionistas, deixam-nos a sensação de uma existência objetiva, comum a todas as almas.
Bergson pondera que, se escavarmos abaixo daquela superfície, reconheceremos que cada indivíduo tem seu modo próprio e intransferível de amar, temer e assim por diante. A linguagem verbal apresenta, tal como na aritmética, a prerrogativa/pretensão de, uma vez associadas entre si as ideias e justapostas (quando deveriam se interpenetrar, para haver um mínimo de correlação com o que representam), produzirmos inabaláveis descrições de nossa vida interior. O que iremos mirar, com tais expedientes, será:
uma psicologia grosseira, vítima da linguagem, a que nos mostra a alma determinada por uma simpatia, aversão ou ódio, como tantas outras forças que pesam sobre ela. Estes sentimentos, contanto que tenham atingido uma profundidade suficiente, representam cada um a alma inteira, no sentido de que todo o conteúdo da alma se reflecte em cada um deles. Dizer que a alma se determina sob a influência de qualquer um destes sentimentos é reconhecer que se determina a si mesma. O associacionista reduz o eu a um agregado de factos de consciência, sensações, sentimentos e ideias. Mas se nestes diversos estados nada mais vir do que o nome que os exprime, se retém apenas o aspecto impessoal, poderá justapô-los indefinidamente sem obter outra coisa a não ser um eu fantasma, a sombra do que se projeta no espaço (BERGSON, 1978, p. 116).
O excerto acima faz lembrar o quanto nós, educadores, muita vez amparados apenas pelo senso comum ou até por alguma perspectiva teórica, tendemos a reduzir caricatamente nossa percepção sobre as crianças, afirmação já apresentada no presente trabalho, com relação à unidade numérica. Também o fazemos, a partir de algum traço psicológico estereotipado (isto a linguagem executa com maestria). Quantas vezes verificamos colegas, alertando: “Aquele menino ali é de matar! Vingativo!” ou “Essa chora o dia inteiro... pais separados”. Eis um espinhoso exercício docente: descartar as leituras rasteiras, aligeiradas, utilitaristas, que em geral fazemos dos miúdos. Como afirmara Deleuze (2007), o clichê nos protege do caos, da tragédia. Isto declarou com relação à produção artística, mas vemos o quanto tal percepção ecoa também na relação entre educador e criança. Mais econômico (no sentido de pouparmos toda sorte de esforços) se revela o procedimento linguageiro de carimbar todos os conteúdos interiores possíveis, de modo que a expressão de um deles no rosto de um pequeno cidadão sob nossos cuidados seja suficiente para descrevermos sua alma, tal como fazemos nos portfólios (sínteses avaliativas) apresentados aos pais nas reuniões pedagógicas. Se não cuidarmos, entregaremos dossiês de pequenas assombrações, que só habitam o imaginário docente (e dos pais), a anos-luz da realidade pulsante que pretendem representar. É árduo o trabalho do artista e também do educador a querer driblar clichês, que tanto ajudam (ah, planejamento e relatórios...), como impedem o surgimento da novidade; protegem-nos do caos – encontro com subjetividades discentes – e nos mantêm no comando, em rotinas previsíveis, estéreis.
Impressões acerca da imaginação
As crianças se ressentem por estarem confinadas em gradeamentos curriculares logocentrados, cujas concepções passam longe de valorizar expressões qualitativas, pré-intuitivas, mesmo nas expressões artísticas, como as artes visuais, literatura infantil, dança, etc. Os fatos da consciência que se fundem uns aos outros, alheios ao símbolo, constituintes da duração, não têm vez nem voz na escolaridade; certamente encontram na aprendizagem algum modo de expressão, mas que em geral são rechaçados, conforme já afirmamos, ou capturados por estereótipos. A maçã azul certamente vai ser corrigida, apagada no caminho, para que surja aquela da bruxa, bem-vermelha. As casas, montanhas e nuvens tendem a se tornarem idênticas, nas paisagens em lápis de cera.
Marchando tropegamente, em busca de pontos de apoio, em um cenário abstrato, cujas cristalizações buscam atender a imperativos menores, a imaginação, segundo o autor...
[...] não consegue deixar de ver o repouso como anterior à mobilidade, de tomá-lo por ponto de referência, de instalar-se nele, e de não perceber no movimento, enfim, senão uma variação de distância, o espaço precedendo o movimento. Então, num espaço homogêneo e indefinidamente divisível nossa imaginação desenhará uma trajetória e fixará posições: aplicando a seguir o movimento contra a trajetória, o fará divisível como essa linha e, como ela, desprovido de qualidade (BERGSON, 2010, 256).
Eis a imaginação agrilhoada à inteligência! O que nos poderia auxiliar nas remadas rumo à novidade acaba por servir ao projeto logocêntrico aqui descrito. Em vez de romper com as redes utilitárias que nos estrangulam, servirá ao deus da homogeneidade e fixidez. Ah, imaginação! Como foste cara ao transcendentalismo kantiano... então vamos correr outra vez atrás dos pequenos de fraldas. Se não entendem o movimento tal como descreve nosso autor – transporte de estados, distâncias concernentes às vibrações e qualidades, reverberando em infindáveis outros estados –, pelo menos na Creche e Pré-escola, experimentam estranhices, os objetos têm múltiplas identidades. Vivem a fuçar as coisas, desarmados... na brinquedoteca universitária, vimos um cozinheiro-morcego-motorista, divertindo-se com sua espada-espeto- de-churrasco-cavalo-laranja-flauta doce.
Círculos concêntricos... nada conclusivos
Procuramos aqui esboçar uma ontologia da infância, por a entendermos, como Bergson, que ela se constitui potente expressão do devir, base da existência humana. Ali nos dias de lactente, na primeira cela (o berço), vemos se ordenarem rudimentares campos de consciência... outros virão, como nos círculos concêntricos, metáfora bergsoniana. Vale-nos reafirmar a relevância de refletirmos sobre a infância do movente, pelo aspecto de continuidade e indivisibilidade da duração interior. Pensarmos a consciência e a existência humanas supõe uma totalidade, que não coincide com as descrições epistêmicas em geral. O destaque ao sonho na consciência infantil, a memória pura, a duração do que passa concentricamente, nos estimulam a seguir nessa reflexão.
Quando nascemos, o choro figura como um primeiro hábito motor. O berreiro a plenos pulmões revela-nos lançados nos domínios da ação e do tempo, embora consigamos lembrar o que passou em geral a partir de três anos. Ocorridos anteriores ficam mergulhados nos porões da inconsciência. A memória pura, já nos primeiros passos conscientes, retém e expande nosso trajeto no mundo, coadunada com as ações do presente sensório-motor. Reafirmamos que a experiência vem a se constituir uma totalidade que abriga infinitos campos responsáveis pelas complexas articulações entre o virtual e o atual. Uma mãe é capaz de reconhecer se o choro significa fome, manha, dor de ouvido, cólica abdominal, sono, etc. Portanto, podemos afirmar, sem traições ao autor, que há na enunciação do bebê um plano de consciência, embora distante ainda da performance de um falante. Pensarmos nos miúdos da Creche/Pré-escola e o que lhes passa, segundo a filosofia bergsoniana auxilia-nos sobremodo, pelo que já fora aqui exposto, na tarefa de vê-los como humanos em plenitude, e não como fase da vida. O espírito infantil somos nós, permanece no tempo, ainda que contribuintes, multados pelo fisco, dependentes de analgésicos ou telenovelas... Como nos parece saudável entendermos que somos um todo indivisível, interioridade movente, que se projeta na contingência, no asfalto escaldante da matéria! Do primeiro dente que nasce no berçário, ao último a cair, no lar de idosos, somos extensões em duração, vibrantes, indeterminadas, qualitativas.