1 INTRODUÇÃO
O presente texto apresenta uma discussão acerca da educação escolar nas Reservas Indígenas a partir de documentos históricos produzidos no contexto de atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), consultados no Centro de Documentação Indígena Antônio Brand (CEDOC) (no Núcleo de Estudos e Pesquisa das Populações Indígenas [NEPPI], na Universidade Católica Dom Bosco [UCDB]) e no acervo virtual do Museu do Índio, da Fundação Nacional do Índio/FUNAI. Os documentos analisados, neste artigo, são da 5ª Inspetoria Regional do SPI/I. R. 5, referentes ao sul de Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), mais especificamente ao Posto Indígena José Bonifácio, no atual município de Caarapó, em território dos Guarani e Kaiowá, no período de 1950 a 1960.
Criado em 1997, o CEDOC possui
1) Documentos que datam do século XVIII, referentes à Capitania do Mato Grosso, que abrangia o território do atual Mato Grosso do Sul, ocupado por diversos grupos indígenas. Esses materiais são cópias digitalizadas pelo Arquivo Histórico Ultramarino, de Portugal. 2) Documentos do SPI, órgão indigenista que funcionou de 1910 a 1967. Essa coleção é composta por 58 rolos de microfilmes (de 35 mm, cada um com cerca de 5 mil fotogramas) que são cópias adquiridas do Museu do Índio. (XIMENES; BRANCO; SHINOHARA, 2017, p. 50).
As reflexões correspondem às ações do Projeto de Pesquisa “A relação entre a formação de professores, os projetos políticos pedagógicos e a organização curricular em escolas indígenas Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul”, aprovado no edital EDUCA/FUNDECT e no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da UCDB. É importante registrar que a pesquisa da qual resultam esses escritos, constitui um subgrupo de um projeto maior intitulado “Formação de professores indígenas Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul: relações entre territorialidade, processos próprios de aprendizagem e educação escolar, com financiamento do Observatório da Educação Escolar Indígena”/CAPES/INEP/MEC e de contribuições e reflexões de atividades desenvolvidas no Projeto de Extensão “CEDOC Antônio Brand: história e direitos indígenas”, desenvolvido no referido Centro de Documentação.
O trabalho com documentos históricos é sempre um desafio, pois requer inúmeros olhares “outros” dos pesquisadores para uma tentativa de (re)escrever a maneira de se fazer história. Olhares que precisam de atenção para compreender e interpretar a narrativa histórica, as relações de poder presentes nos documentos marcados e redigidos por grupos dominantes, frutos da colonialidade, as vozes silenciadas, as culturas negadas, os sujeitos esquecidos, inferiorizados e subalternizados, além dos lugares políticos, econômicos e sociais que foram descritos por um modelo eurocêntrico e colonizador.
Apoiado em autores como Mignolo (2010), Porto-Gonçalves e Quental (2012), Quijano (2005) e outros, a colonialidade que se mantém presente mesmo com o fim do colonialismo, produz novas subjetividades na vida dos sujeitos, alterando a sua forma de ser e estar no mundo. De acordo com Vieira (2015, p. 66) “a colonialidade [...] invade o imaginário do outro, o inviabiliza e subalterniza, enquanto impõe novos imaginários”. Nesse sentido, analisar os documentos históricos que mantém um discurso colonial e eurocêntrico, significa estar diante de uma longa caminhada de reflexão, novas posturas, desconstruções de visões hegemônicas de mundo, compreensões de novos conhecimentos inferiorizados e negados pela ótica da colonialidade e, ainda, uma subversão para mostrar o protagonista da população em discussão e a sua história.
2 O SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS (SPI)
Ao tratarmos de fontes documentais, é imprescindível contextualizar os documentos em questão e conhecer seu nascedouro, ou seja, o órgão que o produziu, nesse caso, o SPI (órgão indigenista que atuou entre 1910 e 1967). Pois, como aponta Bacellar (2008, p. 63), “documento algum é neutro, e sempre carrega consigo a opinião da pessoa e/ou do órgão que o escreveu. ”
O SPI foi criado no início do século XX, em 1910, por meio do decreto n. 8.072. Até o ano de 1918 foi denominado de Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), um aparelho governamental, vinculado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC) (LIMA, 2011; BRAND, 1997; SIQUEIRA, 2007). Sua fundação se deu no contexto de instalação das linhas telegráficas nos ‘sertões’ do Brasil, empreendimento carregado dos ideais de ‘progresso’ e integração territorial, característicos do período da Primeira República.
O Brasil urbano (leia-se especialmente Rio de Janeiro, centro do poder político) respirava ares franceses. Era o positivismo comteano, tanto em sua versão política quanto religiosa, que impregnava boa parte da intelligentzia e, muito particularmente, o exército nacional com anseios humanistas cujas exalações acabaram por afetar profundamente os destinos de centenas de povos indígenas espalhados pelo subcontinente Brasil. Foi pelo empenho e pressão de uma boa parte de militares positivistas que se fez a República. O projeto positivista para o Brasil, como outros antes dele, contemplava amplamente a questão indígena, diretamente vinculada à conquista e ao domínio de partes do território nacional. (RAMOS, 1999, p. 276).
A política indigenista estava atrelada a interesses econômicos, políticos e militares do governo brasileiro. Em 1918, o SPILTN transformou-se em Serviço de Proteção aos Índios (SPI). De acordo com Siqueira (2007, p. 39), a mudança não alterou “[...] os objetivos de proteger os índios, [pois continuou] dando ênfase a sua catequese, sendo um mecanismo utilizado para tentar exercer o controle sobre as sociedades indígenas”. As alterações ocorreram mais na esfera institucional com a saída do órgão do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio para o Ministério do Trabalho, em 1930. Entre os anos de 1934 a 1939, integrou o Ministério da Guerra, na Inspetoria de Fronteiras, nesse período foi aprovado o regulamento, no qual se enfatizou a “nacionalização dos silvícolas” e evidenciou o papel indígena no guarnecimento das fronteiras. Na década de 1940, o SPI voltou ao Ministério da Agricultura e, depois, passou a integrar o Ministério do Interior (LIMA, 2002).
As correntes de pensamento predominantes no Brasil na primeira metade do século XX atrelavam-se ao paradigma assimilacionista, ou seja, à ideia de que ser indígena era (ou deveria ser) uma condição transitória.
O modo como o status jurídico de índio foi pensado, sob o enquadre do evolucionismo presente em todos os matizes da imaginação política nos finais do século XIX/inícios do XX, pode ser lido como especificidade histórica da relação entre organização administrativa, povo conquistador e butim. Tal status foi de fato e de direito instrumento no processo de integração das populações indígenas a uma comunidade política representada como nacional: a atribuição da indianidade seria a via de acesso e forma intermediária do cumprimento de um projeto de extinção dos povos nativos enquanto entidades discretas, dotadas de uma historicidade diferencial e de autodeterminação política. No projeto daquele momento, o que se pretendia era transformar os indígenas em trabalhadores rurais e não matá-los: tratava-se de um doce etnocídio e não de um cruento genocídio, como de fato era comum no Brasil daquele momento. (LIMA, 2011, p. 209-10).
Essa perspectiva orientou a política indigenista do Estado brasileiro e as ações dela decorrentes, como a formação das Reservas indígenas, por exemplo. As Reservas eram áreas administradas pelo SPI, com territórios muito menores do que os que os indígenas tradicionalmente ocupavam. Esse processo ocorreu em todo o Brasil com diversas etnias.
Nas áreas reservadas nas primeiras décadas do século XX, é perceptível a intenção do Estado de assegurar algum espaço para a lotação dos indígenas, mas, ao mesmo tempo, liberar as terras de ocupação tradicional dessas populações para as propriedades rurais em formação. Isso foi resultado da política do governo de Getúlio de Vargas de ocupar os espaços supostamente vazios em regiões densamente povoadas por indígenas. Essa política, no sul de Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), consolidou a formação de Reservas como um reduto de mão de obra para as fazendas do entorno, conforme apontam autores como Noêmia Moura (2001), Vera Lúcia Vargas (2003) e Jorge Eremites de Oliveira (2003) no caso dos Terena.
Entre os Guarani e Kaiowá, no sul de Mato Grosso, a ação do SPI provocou a criação de Reservas2 e proporcionou o confinamento compulsório (BRAND, 1997). Com base no estudo de Cavalcante (2013, p. 85)
O SPI reuniu numa mesma área uma grande quantidade de famílias extensas oriundas de diversos tekoha e muitas vezes inimigas entre si. Tais famílias passaram a disputar os mesmos parcos recursos disponíveis e se pretendia que compulsoriamente elas vivessem em harmonia sob a administração de um funcionário do órgão indigenista e de um capitão (liderança indígena nomeada pelo órgão para garantir o êxito do projeto governamental).
O Posto Indígena, instalado nas Reservas, marcava a presença governamental nesses espaços por meio da estrutura burocrática e de funcionários do órgão indigenista. Nascimento e Vieira (2011) pontuam que o passo seguinte era a implantação de escolas e o desenvolvimento de ações para ‘civilização’ dos indígenas visando a sua preparação como ‘trabalhadores nacionais’, uma educação escolar para índios. Os autores salientam que, nesse período, a educação escolar tinha como foco o ensino da Língua Portuguesa e noções de Matemática para o comércio, também eram transmitidas técnicas de agropecuária. De acordo com o Decreto n. 736, de 6 de abril de 1936, que aprovou, em caráter provisório, o Regulamento do Serviço de Proteção aos Índios; isso pode ser observado no art. 7 que apresenta as seguintes medidas: a) medidas e ensinos de natureza hygienica; b) escolas primárias e profissionaes; c) exercícios physicos em geral e especialmente os militares; d) educação moral e cívica; d) ensinos de applicação agrícola ou pecuária.
Analisando as medidas do decreto, observamos que ele apresentava ideais reguladores para o exercício da cidadania, pois visava à constituição de uma lógica de “civilização”, ou seja, “a formação do cidadão como sujeito de direito” (CASTRO-GOMEZ, 2005, p. 81). Dialogando com o autor, percebemos que o decreto pode ser entendido como um “[...] projeto de construção da nação que requeria a estabilização linguística para uma adequada implementação das leis e para facilitar, além do mais, as transições comerciais” (CASTRO-GOMEZ, 2005, p. 82).
Utilizando de outras palavras percebemos o modo como o documento se refere aos povos indígenas, transmite uma ideia de índio colonial, bárbaro, selvagem, além de estar preso a uma visão estática de cultura e identidade. Um indígena com traços exagerados, preso a um olhar europeu que marca a cultura como inferior e subalterna.
As iniciativas de educação formal voltadas para os povos indígenas, ao longo da maior parte da história recente do Brasil, estavam pautadas pelos ideais positivistas, atrelados a uma política de integração nacional e de assimilação pela sociedade envolvente. A crença de que o intenso contato levaria as populações indígenas à extinção de suas culturas, possibilitou aos órgãos responsáveis pelas escolas desenvolverem mecanismos para a transmissão de valores que se contrapunham aos saberes tradicionais, como apontam os estudos de Nascimento e Vieira (2011).
3 OS GUARANI E KAIOWÁ NO MATO GROSSO DO SUL: BREVES CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS
Os Guarani e Kaiowá, assim como as demais populações indígenas do Mato Grosso do Sul, são resultantes de um processo histórico agressivo e violento. Realizando uma leitura dos estudos de história indígena do Estado compreendemos que a ação colonizadora que se instalou na região no período da década de 1920, foi responsável pelo domínio e exploração do território provocando um “esparramo”3 (BRAND, 1993), um “confinamento”4 (BRAND, 1997) e um silenciamento dos grupos que já habitavam o local.
A ação colonizadora não indígena pode ser considerada como um colonialismo europeu no além-mar como aponta Castro-Gomez (2005), ou seja, muito mais do que uma imposição política, jurídica, militar e administrativa. De acordo com Oliveira e Candau (2010, p. 18) “Na forma da colonialidade, ele [o colonialismo] chega às raízes mais profundas de um povo e sobrevive [ainda hoje] apesar da descolonização ou emancipação das colônias latino-americanas, asiáticas e africanas nos séculos XIX e XX”. No rastro dessa discussão, Castro-Gomez (2005, p. 83) escreve que “o colonialismo não significou primariamente destruição e espoliação e sim, antes de mais nada, o começo do tortuoso mas inevitável caminho em direção ao desenvolvimento e à modernização”.
Historicamente os índios Guarani e Kaiowá, localizados no sul de Mato Grosso do Sul, ocupavam uma área ampla situada entre o rio Apa, Serra de Maracaju, os rios Brilhante, Ivinhema, Paraná, Iguatemi e a fronteira com o Paraguai. O território tradicional Guarani conhecido como ñande retã (nosso território) compreendia uma região de mata, ao longo dos córregos e rios, em pequenos núcleos populacionais, integrados por uma, duas ou mais famílias, que mantinham entre si inúmeras relações de casamento, tendo à frente os chefes de família mais velhos, denominados de tekoaruvicha (chefes de aldeia) ou ñanderu (nosso pai).
De acordo com Brand (2011, p. 115)
Suas aldeias tradicionais eram compostas por um complexo de casas, roças e matas, constituindo núcleos macrofamiliares relativamente autônomos. Esses núcleos familiares, que mantiveram, historicamente, características muito semelhantes, até a imposição do confinamento nas reservas demarcadas pelo Serviço de Proteção ao Índio, SPI, no que se refere à sua organização sócio-econômica, política e religiosa [...].
As invasões das frentes não indígenas, primeiro com a Companhia Matte Larangeira (1880) e depois com a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) (1940), foram responsáveis pelo deslocamento de muitas famílias indígenas, a superpopulação no interior das reservas demarcadas e a desestruturação de muitas aldeias indígenas, provocando o comprometimento dos recursos naturais dos territórios indígenas dos Guarani e Kaiowá e dificultando a produção de alimentos (BRAND, 1997; 2011).
Esse cenário de luta, resistência e enfrentamento pela terra acentua-se no final dos anos de 1960, com o crescimento populacional na região sul do Estado e a instalação de empreendimentos agropecuários nos espaços ocupados pelos índios guarani e kaiowá. O episódio fez com que os povos indígenas abandonassem suas aldeias e deslocassem “para dentro de oito reservas de terras demarcadas pelo SPI, acentuando-se o confinamento”. (BRAND, 2011, p. 118). Segundo Brand e Nascimento (2006, p. 02), essa situação fez com que os Guarani e Kaiowá fossem
[...] constantemente desafiados a moldar e remoldar sua organização social, construir e reconstruir sua forma de vida e desenvolverem complexas estratégias, alternando momentos de confrontos diretos, permeados por enorme gama de violência, com negociações, trocas e alianças.
Escrevendo sobre os momentos atuais da população Guarani e Kaiowá, podemos perceber que muitos dos problemas presentes nas terras indígenas Guarani e Kaiowá refletem na sua organização social, ou seja, seu “modo de ser”. Além disso, baseado nos estudos de Brand (2011, p. 125), evidenciamos que “o aumento populacional e a proximidade com os centros urbanos gerou outras formas de conflitos e fizeram com que os povos indígenas [...], em especial os Guarani e Kaiowá, aprendessem durante a longa luta pela recuperação e posse de suas terras”.
4 EDUCAÇÃO ESCOLAR NA NAS RESERVAS INDÍGENAS GUARANI E KAIOWÁ: UM ESTUDO A PARTIR DA DOCUMENTAÇÃO DO POSTO INDÍGENA JOSÉ BONIFÁCIO
Os Kaiowá e Guarani são os povos guarani falantes contemporâneos que vivem em Mato Grosso do Sul, estando presentes também em outras regiões do Cone Sul como aponta uma vasta bibliografia histórica e antropológica.
Os Kaiowá e os Guarani pertencem à família linguística tupi-guarani, junto com muitos outros grupos do Paraguai, do sul e litoral do Brasil, do norte argentino e da Bolívia. Assim, as comunidades que em Mato Grosso do Sul se autodenominam Kaiowá formam, com a população Paĩ-Tavyterã do Paraguai, uma única etnia, considerando-se, como indica este etnônimo, “habitantes do povoado do centro da terra”. [...] A consciência e o sentimento étnico dos Guarani (Ñandéva) de Mato Grosso do Sul também extrapolam as fronteiras administrativas e políticas convencionais instituídas pelos Estados. Eles formam uma única etnia com as populações que, entre outros nomes, se chamam (Ava) Guarani e (Ava) Chiripa, em outros estados brasileiros, na Argentina e no Paraguai. Entre os povos indígenas guarani falantes, são os Guarani os que mantêm relações mais estreitas, inclusive de parentesco, com os Mbya do sul e do litoral do Brasil. (CHAMORRO, 2015, p. 293).
No sul do antigo Mato Grosso, esses grupos foram afetados por inúmeras levas de colonização, mais intensas após a Guerra da Tríplice Aliança, também conhecida como Guerra do Paraguai (1864-1870). A política indigenista do SPI resultou na criação, entre 1915 e 1928, de oito diminutas Reservas destinadas ao recolhimento da população de centenas de grupos Kaiowá e Guarani (BRAND, 1997). Nesse contexto, foi instalado em Caarapó o Posto Indígena José Bonifácio (atual Terra Indígena de Caarapó, aldeia Tey´ikue), ao qual se referem os documentos do SPI analisados neste texto.
A documentação do órgão indigenista compõe-se de relatórios gerais elaborados pelos Chefes de Posto, nos quais constam informações sobre as escolas; ofícios; correspondências; memorandos; além de documentos escolares como relatórios elaborados pelas professoras, listas de chamadas, atividades e provas. Essa documentação demonstra a concepção educacional e indigenista do Estado brasileiro entre as décadas de 1910 e 1960. É importante registrar que a organização e a escrita dos documentos, na língua portuguesa, são originais.
Campo Grande, MT. Em 11 de junho de 1956. Ao Sr. Encarregado do P. I. José Bonifácio Só hoje nos é dado acusar o recebimento do vosso memorando nº 14, de 11 de maio, aqui chegado no dia 22 desse mesmo mês. Veio o mesmo acompanhado de 4 provas dos alunos Salvador Vilhalba, João Modesto, Panta Sava e Argemiro Isnarde, todos bastantes fracos, notamos também que a frequência dessa escola tem diminuído consideravelmente. Bem compreendemos como são os índios refratários, e depende de muita paciência, dando-se conselho, fazendo se compreender as vantagens, incutir nos mais velhos, nos chefes, porque se o número de alunos não for de 15 para cima, a escola periga ser suprimida, ou transferida para outro posto ou aldeia, e a desse como verá, nos meses de setembro e novembro, (faltou aviso de outubro) do ano passado, chegando a ter frequência de 9 alunos, até é de admirar a Diretoria não chamar a atenção, e antes que isso aconteça, vamos nos prevenir, tudo fazendo para que não venha acontecer a suspensão da escola, tendo, como deve ter, muitas crianças em idade escolar. Confiante que este aviso seja como de costume atendido de bôa vontade apresento-vos, Saudações Deocleciano de Souza Nenê Chefe da I. R. 5 |
Fonte: Acervo SPI, Inspetoria Regional 5, Posto 092 - José Bonifácio, caixa 15, planilha 135, doc. 1-2.
A leitura do documento nos faz perceber que o chefe da I. R. 5, que fazia parte do quadro de pessoal administrativo do SPI, manifestou preocupação com o aprendizado dos estudantes do Posto, embora sem o conhecimento pedagógico necessário, qualificando-os como ‘fracos’. O funcionário evidencia a visão do próprio órgão indigenista ao afirmar que ‘os índios são refratários’ para justificar o elevado número ausências nas aulas. Embora ele cobre providências de outro funcionário administrativo em relação à evasão escolar, não consta na documentação nenhuma reflexão acerca desse processo como resultado de uma educação impositiva e distante do cotidiano e da cultura dos Kaiowá e Guarani.
O documento nos permite refletir esse momento como “um conjunto de relações de poder que hierarquizam os lugares e suas gentes, classificando-os de acordo com um suposto grau de evolução e desenvolvimento societário” (PORTO GONÇALVES; QUENTAL, 2012, p. 07). Mesmo não havendo uma formação pedagógica por parte do funcionário, observamos que as classificações dos estudantes indígenas acabam acontecendo.
As diferenças social e linguística dos indígenas não são consideradas. Em nenhum momento é registrado que a dificuldade no aprendizado pode estar associada à imposição da língua portuguesa sobre a língua materna e que as ausências nas aulas possam ser justificadas pelo trabalho que realizam junto as famílias em seu tekoha (território). Em uma análise mais direcionada ao documento, é possível observar que o chefe do posto não possui um conhecimento da realidade dos estudantes que frequentam a escola e, por esse motivo, acaba inferiorizando sua capacidade.
A principal preocupação demonstrada no documento 1 é o risco de fechamento da escola devido à falta de alunos frequentes. A escola foi mantida, e o número de estudantes matriculados aumentou, como apontam documentos seguintes. No entanto a questão da ausência dos alunos continuou sendo pauta de outros textos. A seguir, a transcrição do documento 2.
Escola A escola deste Posto, funcionou regularmente, com matricula de 45 alunos, mas com pouca frequência, as faltas eram justificadas alegando diversos motivos, principalmente falta de roupas. Os alunos assíduos tiveram bom aproveitamento, demonstrando inteligência, apezar dos mesmos não falarem nada em Português. [...] Encarregado do Posto |
Fonte: Acervo SPI, Inspetoria Regional 5, Posto 092 - José Bonifácio, Caixa 16, Planilha 135, doc. 135-138.
O documento 2 evidencia a preocupação do Chefe de Posto em mostrar que o aprendizado na escola ocorria conforme o esperado pelo SPI. Entretanto a questão das faltas é novamente apontada e, como justificativa, aparece a ‘falta de roupas’. Nesse caso, é pertinente o questionamento: o problema seria a escassez de recursos das famílias Kaiowá e Guarani ou ainda a imposição da escola em relação a um determinado tipo de vestimenta desconectado da cultura desses povos?
Não pretendemos nesse momento colocar em discussão a difícil história do povo Kaiowá e Guarani, mas gostaríamos de evidenciar como a articulação do poder se destaca e se desenvolve por meio da elaboração de um discurso ou manifestação. Esses discursos se formam, se configuram, se produzem e propõem novos olhares de classificação e de ordem social (QUIJANO, 2005, 2007; WALSH, 2009; PORTO-GONÇALVES e QUENTAL, 2012).
O autor do documento 2 coloca em contradição a questão do aprendizado quando pontua que os estudantes não falavam a Língua Portuguesa. Por outro lado, toda a metodologia das escolas mantidas pelo SPI era monolíngue em português. Sendo assim, como poderia ocorrer o processo de ensino-aprendizagem de forma satisfatória se o corpo docente se expressava em português, e os discentes, em língua guarani? Se retomarmos a proposta inicial do SPI para a educação escolar, observamos que a preocupação do órgão estava centrada na diversidade linguística e cultural das populações indígenas.
Se realizarmos um estudo mais sistematizado das práticas organizadas pelo SPI, nas diferentes etnias indígenas do país, presenciamos que não ocorreu um investimento da alfabetização bilíngue nas comunidades indígenas nem houve uma formação de professores não indígenas para realizar esse trabalho nas escolas indígenas (FERREIRA, 2001).
No documento 3 o Chefe de Posto descreve algumas dificuldades enfrentadas na escola:
Escola, esta funciona também dentro da exigência da N.P.A., na parte da manhã, com uma frequência regular. Tendo matriculado 34 alunos e uma freqüência média de 25. Temos feito tudo para aumentar a frequência, mas, infelizmente é sempre a mesma. Notamos que os pais não tem interesse em mandar seus filhos a escola. Geralmente nas reuniões falo nas necessidades dos filhos aprenderem a ler e escrever. A nossa escola a dois anos vem sofrendo com a falta de material escolar. Este ano ainda não recebemos a merenda escolar, que muito ajuda na frequência dos alunos. Material esportivo também é interessante nessa parte, principalmente bola de futebol. |
Fonte: Acervo SPI\Inspetoria Regional 5, Posto 092 - José Bonifácio, caixa 14, Planilha 132, doc. 83.
A leitura do documento registra que o chefe do posto tem se esforçado para aumentar a frequência dos estudantes indígenas na escola cobrando dos alunos a presença e solicitando das autoridades a merenda e o material escolar para os estudantes. No documento, ainda notamos que o responsável pelo posto do SPI escreve que “os pais não têm interesse em mandar seus filhos à escola”.
Para essa afirmação, precisamos refletir acerca de algumas questões: Por qual motivo os pais não têm encaminhado seus filhos para escola? Será que os estudantes indígenas estão querendo frequentar a escola? Será que a escola tem despertado interesse nesses estudantes indígenas? Refletindo sobre essas questões, supomos, com base em estudos sobre a educação escolar indígena, que as possíveis ausências dos estudantes no ambiente escolar podem estar ligadas ao trabalho desempenhado junto à família na roça. Outra questão que podemos levantar é que a educação escolar é algo muito recente para os Guarani e Kaiowá, pois foi um longo processo para aceitar a escola em suas comunidades.
A dificuldade em aprender a Língua Portuguesa e a ausência da alfabetização bilíngue também pode ser um fator que contribuiu para as constantes faltas dos estudantes indígenas nas escolas. Como a aprendizagem ocorria com dificuldade levava a muitas desistências durante o período letivo.
A seguir, a transcrição do documento 4:
Relatório das atividades da escola José Bonifácio durante o mês de abril Programa de ensino 2º ano História Descobrimento do Brasil, ano, mês e dia. Os habitantes, primeiro e segundo nome dado ao Brasil. Português Ditado, cópia, separar sílabas , completar sentença. Geografia Conhecimento de cidades, estados e municípios. Ciências Animais vertebrados e invertebrados de que são úteis os animais, de onde nascem as plantas. Matemática Pequenos problemas, contas de somar, dividir, multiplicar e diminuir. Algarismos romanos de 1 a 100. 1º ano C Cópia número de 1 a 15 e contas de somar. 1º ano B Abecedários e números de 1 a 50. 1º ano A ou principiantes As vogais e os números de 1 a 10. Deixaram de fazer sabatina 31 alunos, uns por estarem doentes, outros por serem principiantes e outros por não comparecerem às aulas. Necessitamos de vasilhames para o preparo da merenda escolar. Continua o trabalho no rancho da escola do Bocajá, que já se acha quase pronto. Posto indígena José Bonifácio, 30 de abril de 1966. Adir Lanzarini Silva Professora |
Fonte: Acervo SPI, Inspetoria Regional 5, Posto 092 - José Bonifácio, Caixa 15, planilha 137, doc. 168-169.
Observa-se que os conteúdos apresentados nas disciplinas de História, Geografia, Ciências e Matemática estão descontextualizados do cotidiano e da cultura dos estudantes Guarani e Kaiowá. O diálogo entre os saberes/conhecimentos tradicionais e os saberes ocidentais não aparece nas propostas temáticas das disciplinas.
Analisando os conteúdos, é evidente que a construção eurocêntrica prevalece, e o padrão superior e universal de conhecimento é o dominante. No documento, a disciplina de História, focada no Descobrimento do Brasil, mostra bem esse contexto da Europa em criar mecanismos colonizadores em torno de qualquer outra forma de ser do sujeito e da produção de um único conhecimento (LANDER, 2005; VIEIRA, 2015).
Reduzir a história do território Guarani e Kaiowá à conjuntura da ocupação colonial portuguesa, apresenta o quanto o pensamento moderno se articulou para marginalizar, silenciar, invisibilizar e estereotipar o conhecimento produzido e localizado fora de seus parâmetros. Dialogando com Lander (2005, p. 13) percebemos o quanto essas outras formas de organização da sociedade são apresentadas sempre em condições de subalternização, ou seja, são grupos que surgiram muito antes “do desenvolvimento histórico da humanidade, o que, no imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade”.
O documento ainda registra a ausência dos alunos como um problema persistente. É apontado um número de 31 alunos que deixaram de fazer uma atividade avaliativa, denominada sabatina (método de revisão de matéria, feito de forma oral). A ausência é justificada por vários motivos: doença, alunos ainda iniciantes ou desistência de frequentar as aulas. As constantes faltas dos estudantes indígenas na escola do posto Indígena José Bonifácio, colocam em pauta atualmente o fator linguístico e a tentativa de homogeneização cultual, como alguns dos responsáveis pelos problemas da educação escolar nas áreas indígenas ao longo do século XX.
Esse panorama da educação formal nas áreas indígenas alterou-se com as mudanças na política indigenista e na legislação educacional de forma geral. Como resultado dos movimentos sociais que eclodiram a partir da década de 1970 e das lutas dos povos indígenas, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231, passou a garantir aos indígenas o direito à sua organização social, seus costumes, suas línguas, suas crenças e aos seus territórios de ocupação tradicional (BRASIL, 1988). O Estado brasileiro abandonou, ao menos oficialmente, o paradigma assimilacionista, que tinha como objetivo o apagamento das distintividades étnicas desses grupos. Com essa importante mudança, abriu-se o caminho para a construção da Educação Escolar Indígena diferenciada, específica, comunitária, bilíngue e intercultural. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n. 9.394/1996 assegura que:
[...] a Educação Escolar Indígena deverá ter um tratamento diferenciado do das demais escolas dos sistemas de ensino, o que é enfatizado pela prática do bilingüismo e da interculturalidade. Outros dispositivos da LDB possibilitam colocar em prática esses direitos, dando liberdade para cada escola indígena definir, de acordo com suas particularidades, seu respectivo projeto político-pedagógico. (GRUPIONI, 2002, p. 132).
Muitos desafios ainda precisam ser revistos e muito ainda há que ser discutido pelos povos indígenas em relação à educação escolar. Entretanto as mudanças na legislação indigenista e nas políticas públicas educacionais representam avanços na direção do respeito à diferença.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Serviço de Proteção ao Índio/SPI, que atuou entre 1910 e 1967 em todo o território nacional, assumiu uma posição de progresso junto aos povos indígenas, diferente da proposta missionária e evangelizadora imposta pelos padres jesuítas. Tendo ações marcadas pela proteção, tutela e civilização dessa população, o SPI apresentou trabalhos para integrar os povos indígenas a um modelo econômico nacional resultando na inclusão curricular a presença de disciplinas como: “Práticas Agrícolas” para os meninos e “Práticas Domésticas” para as meninas (FERREIRA, 2001).
Entre os documentos analisados para a elaboração da pesquisa, referentes ao Posto Indígena José Bonifácio, evidenciamos o paradigma assimilacionista da política indigenista e educacional praticada pelo SPI. Os relatórios dos funcionários do órgão não demonstram a preocupação em ensinar os conteúdos exigidos na língua materna, mas reforça a importância dos conteúdos e das disciplinas ministradas em Língua Portuguesa.
Também é possível verificar, a partir dos documentos, que o ensino bilíngue não era uma preocupação nem possivelmente uma saída para evitar a ausência diária de estudantes indígenas nas escolas. A partir da documentação em análise, presenciamos que a língua guarani era desconsiderada e desconhecida pelos professores. É importante registrar que não podemos culpar esses docentes que atuavam nessas instituições de ensino nas comunidades indígenas, pois muitos não tinham formação específica no magistério nem o domínio da língua indígena.
A documentação analisada sobre a educação escolar Guarani e Kaiowá no período do SPI nos convida a realizar sempre novas reflexões, pois, a cada caminho e registro, novas percepções, problematizações podem serem realizadas e, com isso, diferentes pesquisadores podem se aventurar nessa temática de pesquisa.