INTRODUÇÃO
Desde os primórdios, o estudo e a análise da Administração Pública surgem como uma temática no cruzamento, primo entre a Ciência Política e o Direito, depois entre a Gestão Pública, a Economia Política e a Política e, mais proximamente, a Governação. Diremos, na senda de Moreira e Alves (2008), que os argumentos justificativos para tal dicotomia epistemológica de análise das ciências sociais estão no repúdio dos politólogos pelos assuntos internos, aliado ao caráter prático da formação dos denominados “administradores da coisa pública”, ao que se associa a tradição grega e romana na política e nas administrações públicas do mundo ocidental.
Mas, hoje, coloca-se de novo e, até, com extrema acuidade, em face dos novos desafios, o problema central em termos de “grau desejável” de influência da Política na Administração Pública. Um equilíbrio, em última instância, que não pode ser visto como inseparável dos aspetos históricos e institucionais, que tecem a narrativa em cada país e, dentro deste, a forma como os seus territórios acompanham esse processo, obrigando assim a recentrar o problema no exato sentido em que as políticas públicas são cada vez mais determinantes (EASTON, 1975; NAGEL, 1980).
Se estas perspetivas centram o papel inquestionável do Estado enquanto tutela da ação pública, historicamente, poder-se-á afirmar que terá sido com a denominada crise do Estado Providência (Welfare State), que começam a surgir, em finais dos anos 70 do século passado, críticas à dimensão e ao custo desse mesmo Estado, acrescidas mesmo da sua ineficácia no intervencionismo governamental do setor público, criando aquilo que alguns, como Bilhim (2013), apontam como favoráveis ao aparecimento de mudanças sustentando novos modelos de “gestão pública” e que induzem a adoção de práticas do setor privado, consideradas mais eficientes, tendo em vista a consecução de objetivos organizacionais (LHÉRISSON, 1999).
A problemática da governação, da governabilidade e/ou da governação do nosso tempo tornou-se, portanto, cada vez mais atual, em linha com aquilo que foram as condições colocadas pelo “consenso de Washington”, do FMI e da Comissão Europeia, sob a forma de diversas iniciativas e sempre com o denominador comum de better regulation.
De relevante é constatar que começou a desenvolver-se no último quartel do século XX um “corpus teórico” sobre as boas metodologias e as melhores práticas de governação, visando a densificar o tecido da migração para um “novo” Estado Regulador de elevada qualidade, aquilo que Pierre e Peters chamam de: “uma nova forma de pensar sobre as capacidades do Estado e as relações entre o Estado e a Sociedade” (PIERRE; PETERS, 2000, p. 50).
Estão assim lançadas as condições para o surgimento de um movimento a favor de uma “Nova Gestão Pública”, que, embora surgindo em tempos de valorização do mercado e, mesmo, de defesa da privatização dos serviços públicos, foi também visto como alternativa às propostas para a redução do tamanho do governo ou de diminuição dos gastos, já que, de todas as formas, continuaria a existir um sector público dedicado a oferecer uma grande quantidade de serviços, que os assinalados efeitos anteriormente apontados faziam antever. Aliás, esse movimento, preocupado com a defesa de uma forma de governo mais parecido com o sector privado acaba, também ele, por animar uma “terceira via” de reforma do Estado e muitos programas de modernização da Administração Pública1. Esse movimento, cada vez mais aceito pela comunidade acadêmica com a denominação de New Public Management (HOOD, 1991), acabou por ganhar corpo em muitos países europeus, tendo num documento da OCDE (1997), a propósito da necessidade de formulação e implementação de estratégias de mudança, com base nesta Nova Gestão Pública, uma boa síntese, pela sua antecipação e lucidez prospetiva:
Ainda, que não exista um modelo único ou o ideal de reforma, os objetivos a ter em conta são, em geral, uma maior atenção aos resultados e uma melhor relação qualidade/preço; transferências de competências e mais flexibilidade; o reforço da responsabilidade e do controlo; uma orientação para o cliente e para o serviço; uma maior capacidade de definição das estratégias e das políticas; a introdução da concorrência e dos mecanismos de mercado, e a alteração das relações com outros níveis da administração pública (OECD, 1997).
Neste artigo é nossa preocupação identificar, portanto, as mutações pelas quais o Estado atravessou desde o final do passado século. Esse, que fica sobretudo marcado pelo esvaziamento do seu papel tradicional e, muito particularmente, ultrapassada uma visão de governação clássica de Administração Pública, conduzida pelos Governos através de políticas públicas centrais. Na realidade, essa visão revela-se, hoje, cada vez mais incapaz de dar resposta cabal aos reais problemas, sociais, económicos, culturais e ambientais; quer, ainda, responder de forma próxima e adequada aos efetivos problemas regionais e locais dos territórios insulares. Desponta, portanto, a necessidade de novas formas de governação, a propósito da qual a OCDE, como se viu, vaticina a Governança como uma fórmula possível de implementação de estratégias de mudança, tendo em vista aproximar as decisões através de mecanismos políticos territoriais de descentralização e autonomia, traduzidos numa superação do Estado centralista, por um modelo de governação partilhada de poder e autoridade.
Este nosso estudo está dividido em quatro partes fundamentais, para além desta Introdução. A primeira seção problematiza o tema da Governança enquanto modelo evolutivo de governação pública. A seção seguinte transporta-nos para a afirmação dos conceitos definidos na seção anterior, no denominado mundo da educação. Isto porque, na Educação, os desafios colocados pelo sucesso e pela qualidade obrigam a repensar os modelos clássicos da governação, justamente onde a autonomia escolar pode ajudar a desenhar complexos sistemas de Governança, com a partilha de políticas educativas, a vários níveis, iniciando um movimento global de reforma educativa.
Aqui chegados, na seção terceira, preocupa-nos refletir sobre a Ilha da Madeira, naquela que é a questão principal. Assim, analisamos aqui, a governação educacional na atualidade, constatando que, após o processo de autonomia e regionalização iniciado em finais do século passado, é crucial a necessidade de seguir-se um caminho próprio e autónomo de (re)construção de políticas educativas regionais, nas matérias de governação regional, que invoquem sua natureza de Região insular europeia; tendo-se presente também, que este é um momento onde a abertura de um ciclo gestionário se perspetiva (em linha com a Nova Gestão Pública) e no qual assinalamos exemplos práticos governativos regionais, onde essa dimensão avulta.
Finalmente, na última seção, apontamos nossas convicções, que vão no sentido de que, não obstante a assinalada forte ligação ao sistema educativo nacional português, deve-se afirmar uma matriz regional, através de um percurso evolutivo alternativo, que não descure todavia, uma path dependence (PIERSON, 2000), com vincado pendor político/sociológico, iniciada nos 40 anos de autonomia regional em Portugal.
GOVERNANÇA
O futuro da governabilidade dos territórios antecipa motivos da “emergência” de um novo modelo de governação (JESSOP, 2000), pelo que, concomitantemente à reorganização da maioria dos Estados, foi-se revelando indispensável também opor aos efeitos do centralismo das decisões governativas, da excessiva legislação e da burocracia a operacionalidade dos próprios sistemas políticos (FERREIRA, 2007). Nesse complexo, acabam avultando mesmo, com merecimento, as autonomias políticas/administrativas dos territórios, que não atingem a independência, mas revestem formas peculiares de descentralização (caso da Ilha da Madeira, em Portugal).
Assistem-se, nesse desenrolar, a processos de descriminação (GIBBS, JONAS et al., 2001) ou rescaling (BRENNER, 1999) do próprio Estado fundador, onde ocorrem, em maior ou menor escala, movimentos de transferência de poder com sentido variável. Isto é, a partilha para cima, através de uma maior ligação do Estado a entidades supranacionais; de forma lateral, através de transferência de competências para organizações e agências governamentais; e, para baixo, à escala regional e local, através de entidades que aumentam sua relevância nos processos de governação. Paralelamente, as várias transformações a que se assiste no Estado nacional conduzem também a um progressivo hollowing–out do próprio Estado (RHODES, 1996). Isto é, funcionalmente, o Estado apesar de manter sua soberania nacional assiste a um seu “esvaziamento”, naquilo que é a coordenação e mesmo definição de políticas, que progressivamente conduzem a uma transferência de poder para escalas intermédias.
É no contexto dessas transformações que assume relevo, portanto, o conceito de Governança, como alternativa de organização política e modelo de governabilidade. Apesar de se tratar de conceito relativamente recente, que se vem contrapondo aos conceitos de Governo (government) ou Governação (governing) (GRAHAM; AMOS, et al., 2003), acaba sendo já um conceito abundantemente tratado e com múltiplas abordagens e entendimentos, traduzindo diferentes trajetórias nas agendas de governação de muitos países. Epistemologicamente, está conexo com aspetos de organização do próprio território, onde se aplica a tomada de decisão das políticas públicas. Doutrinariamente, está próximo sempre das teorias que apontam para a necessária aproximação do Estado às pessoas e das interdependências entre setores (INNES; BOOHER, 2003), levando também aos conceitos de democracia participativa e aos modelos de governação colaborativa (ANSELL; GASH, 2008), que lançam o debate sobre a importância e regulação da ação coletiva (LE GALÈS, 2002; CARS, HEALEY, et al., 2002).
Não obstante a mencionada complexidade, é consensual entre os autores, que não se tratando de um sinónimo de Governo, a Governança pressupõe uma evolução dos modelos tradicionais, em ruptura com os princípios, mecanismos e procedimentos de gestão/organização pública (RHODES, 1996), traduzindo-se assim, fundamentalmente, na transformação dos modos de governação associados ao Estado burocratizado do Welfare State para um modelo de governação associado a uma visão mais empresarialista e privada (COAFFEE; HEALEY, 2003); ou até, simplesmente, ao abandono de estruturas de governação centralizadas e hierárquicas (BULL; JONES, 2006).
GOVERNANÇA EM EDUCAÇÃO
A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), através do Programme for International Student Assessment (PISA), tem tido um dos contributos mais relevantes para disseminar as políticas públicas, depois consubstanciadas em práticas, que os países vão desenvolvendo um pouco por toda a parte, com realce sobre a autonomia escolar. Aliás, esta dimensão só por si tem vindo inclusive a ser apresentada, ela mesma, como boa prática, para melhorar o sucesso escolar (BONAL; TARABINI, 2013) e para a redução do abandono escolar precoce (GARCIA; DEL CAMPO, 2012), itens relevantes como indicadores internacionais na aposta de melhoria educacional a nível europeu (COMISSÃO EUROPEIA, 2017). Barroso, nesse sentido, considera mesmo, acutilantemente, que só por si, por detrás da autonomia das escolas, esconde-se uma estratégia de reforma (BARROSO, 2004), sendo que a referida autonomia das escolas pode derivar, ela mesma, por seu lado também, em políticas e práticas, que podem ter diferentes impactos sobre a qualidade e a equidade educativa e daí a sua extrema pertinência no estudo (VERGER; NORMAND, 2015).
Na realidade, os resultados apresentados pela OCDE evidenciam que os países onde as escolas dispõem de maior autonomia, o rendimento e, nalguns casos mesmo, o sucesso, são maiores, estabelecendo-se aqui uma clara aproximação entre conceitos e políticas públicas no setor educativo. “Os dados PISA mostram que a relação entre o rendimento das escolas e o seu nível de autonomia na gestão dos recursos é positiva em alguns países e negativa noutros” (OECD, 2011, p. 2).
De facto, tanto na doutrina dedicada a estas matérias, como na governação na educação, em si mesma, assiste-se um pouco, por todo o lado, a um entendimento sobre a implementação de políticas públicas, na área educativa, assumindo-se que se trata de um processo linear tipo top-down ou bottom-up, sem grandes divergências (THRUPP; EASTER, 2012). Não obstante, hoje, as políticas públicas devem aplicar-se em contextos reais escolares, isto é, em escolas que funcionam dentro de um tempo e espaço educativo próprio. Mais, entre as escolas existem diferenças de recursos a vários níveis e elas dispõem de atores com diferentes interesses (FALABELA, 2016), levando por exemplo Ball a considerar, que este conflito de interesses, dentro da escola, surge como uma luta entre interesses e ideologias como se de uma arena se tratasse (BALL, 1989).
Ora, essa realidade complexa, onde as escolas são vistas como “organizações micropolíticas” (BALL, 1989; BLASE, 1991; MARSHALL; SCRIBNER, 1991), remete-nos para a importância de considerar que o processo de implementação da política educativa, longe de resultar numa interpretação e aplicação direta e homogénea em todas as escolas, deriva de uma interpretação e aplicação ampla com múltiplas reinterpretações e matizes. Particularmente, trata-se de ter em consideração aquilo que Ball, Maguire e Braun (2012) avisadamente designam pelo conceito de enactment aplicado à administração educacional. Isto é, a forma como as escolas desenvolvem as políticas nos contextos educativos reais passa, assim, por um processo de interpretação e tradução das políticas educativas em práticas, isto é, sua recontextualização e aplicação, por parte dos atores escolares, que se movem nos contextos das escolas. Aqueles autores alertam ainda, a propósito de contextos, para a história da escola, dos seus recursos e infraestruturas, dos processos e dos envolvimentos, bem como toda a cultura organizacional onde se incluem as pessoas e Keddie (2014) assinala a relevância do contexto em que se situa a escola, para explicar as diferenças dos processos internos, as interpretações e os resultados que decorrem das políticas.
Releva portanto, trazer para a administração educacional o conceito aludido da Governança. É que, também aqui, a questão da interação entre entidades múltiplas e atores diversos se coloca, quiçá, até mais relevantemente, a um nível mais sistémico de organização da própria administração educacional. Efetivamente, as funções educativas são cada vez menos exclusivas dos Estados (AGRANOFF; MCGUIRE, 2003; BARROSO, 2003; FORMOSINHO, FERNANDES et al., 2005; LIMA; AFONSO, 2002).
Acresce que, num modelo de governo da educação assente na noção do único ator central, as questões de governação e de definição das políticas educativas públicas avultam com base numa delimitação precisa e clara das duas áreas: Política e Administração. No âmbito da Política, chega-se à decisão sobre a formulação dos problemas e dos objetivos de ação. Só após, faz-se apelo a conceitos científicos e técnicos para desenhar as medidas e sua efetiva aplicação. Por essa razão, a fase de implementação, ao contrário da tomada de decisão, é encarada como um processo não público, como uma atividade exclusivamente técnica. Compreende-se portanto, que devam ser entendidas (e mesmo estudadas) a formulação de políticas e a governação tout court, através do mero aperfeiçoamento e da racionalização das próprias políticas, da clarificação de objetivos, da redução do número de intervenientes na própria fase de implementação, e de uma melhor informação, maior monitorização e controlo da atividade (KICKERT; KLIJN; KOPPENJAN, 1997). Diremos que hoje será evidente, como propugna Barroso (2003), que governar na área da educação implica um conjunto múltiplo de organizações e de conexões, sem as quais a concretização das políticas públicas pode ficar comprometida.
Com maior ou menor incidência foram surgindo, no último quartel do século XX, em especial com enfoque nos países de inspiração anglo-saxônica, com destaque relevante para Inglaterra e Nova Zelândia, alternativas ao modelo centralizado da educação. A Nova Gestão Pública apontada, como se viu, pela OCDE como um novo paradigma de organização dos serviços públicos (CHRISTENSEN & LAEGREID, 2001), tem também uma aportação no âmbito da governação educativa. Aqui, podem alterar-se até de forma drástica (TOLOFARI, 2005), a forma de conceber a governação das instituições educativas e sua autonomia. Princípios, como os da prestação de contas (“accountability”) e da gestão baseada em resultados, passam mesmo a ser indicadores determinantes para regular, prover e financiar as escolas.Em rigor, porém, até podemos aditar todo um conjunto de teorias, para além daquela, que analisam o declínio da soberania e da fragmentação institucional do Estado, apontando-lhe alternativas, casos do The New Public Governance, (OSBORNE, 2006); New Governance, (RHODES, 1997); The Public Governance, (SKELCHER, 2005; STEPHEN, 2006).
Importante é reter que a influência dessas novas abordagens, também no “mundo da educação”, têm surgido como “uma relativa sincronia das reformas, uma forte similitude entre alguns eixos estruturantes e estratégias adotadas e, mesmo, uma constância argumentativa quanto aos imperativos das mudanças” (LIMA; AFONSO, 2002, p. 7).
Trata-se portanto, de progressivamente ir olvidando uma conceção central de governo em favor de uma atividade de coordenação da vida social garantida por múltiplas entidades, de forma descentralizada e até autónoma, abarcando um cenário de implementação das políticas, que implica um crescente número de relacionamentos entre organizações públicas e não públicas assentando, mesmo, em cruzamentos cada vez mais complexos entre atividades (AGRANOFF; MCGUIRE, 2003), pelo que a consideração de Governança, também na educação, ganha relevo. Aliás, a mencionada autonomia escolar interconecta-se com o processo mais amplo de reconfiguração dos modos de Governança e de regulação das políticas educativas. De facto, assiste-se a uma passagem da regulação da educação, através de um controlo prévio mediante a aferição pelo cumprimento da lei, para um novo modo de regulação baseado no desenvolvimento dos processos, onde o importante é a qualidade e os sucessos educativos.
Não obstante, vários têm sido os autores, que apontam fragilidades ao modelo trazido por uma nova governação pública para a educação, caso de Dunleavy e Hood (1994), que o designam por “modelo da galinha sem pescoço”, numa alusão crítica e dura ao impacto dos serviços públicos serem geridos em excesso ao nível de cada unidade organizacional e de modo insuficiente ao nível do próprio sistema, como uma orientação global. Fundamentalmente, é apontado ao modelo sua clara opção pela adaptação e implementação de políticas públicas com fundamento no setor privado, com o risco do essencial: a menorização dos serviços públicos. Isto, justamente, numa dimensão onde a Educação terá, aliás, relevo. E também, num contexto, onde a dimensão económica não pode ser central e, menos ainda, a erosão da prioridade concedida à equidade na definição e implementação de políticas, substituindo-a por uma enfase primacial nas questões de eficiência (BARDOUILLE, 2000; RHODES, 1996).
GOVERNANÇA EM EDUCAÇÃO NA MADEIRA
Estudos recentes têm-se debruçado, também, sobre um possível alcance para as definições de Governança, com enfoque regional. Destaque interessante em Ache, “A Governança, em primeira instância, pode ser simplesmente entendida como as estruturas e as formas pelas quais as regiões são geridas, num sentido administrativo, jurídico, público, privado, local, nacional e europeu. (ACHE, 2000, p. 444).
Fundamentalmente, trata-se de constatar, em linha até com o “princípio da subsidiariedade” (artigo 5º, nº 3, do Tratado da União Europeia), relevante para as regiões europeias, que os atores locais conseguem avaliar melhor os problemas da sua região, do que os agentes nacionais ou supraestaduais. Expetativas políticas e sociais geradas pela cooperação possível entre atores regionais em áreas fundamentais e próximas dos cidadãos, casos do emprego, regulação mercado trabalho, e da educação (JANN, 2003; AMOS, 2010).
Reveste-se pois, pertinente, ensaiar uma análise meso (HYDEN; COURT, 2002) que perscrute na realidade governativa educacional insular da Madeira, efeitos de Governança.
Concretamente, depois de um período de consagração da autonomia regional2, devemo-nos reportar ao momento atual3, grosso modo, decorrente da assinatura pela Madeira com o Estado português, em 27 de janeiro de 2012, de um Programa de Ajustamento Econômico e Financeiro, 2012-2015 (PAEF-RAM), aprovado pela Resolução do Conselho de Governo Regional nº 41/2012, de 01 de fevereiro4. É propósito declarado deste Programa, mediante o elenco, por vezes exaustivo, que faz das várias áreas da governação regional, impor restrições e limites, objetivamente, na despesa pública. A esse nível, a educação acaba surgindo, assim, no referido PAEF-RAM, como sendo compromisso do Governo Regional em reduzir: “o peso do sector da educação no orçamento regional” (ponto 24.).
Compreende-se portanto, que este marco cronológico inicie um ciclo, donde começa a avultar uma lógica gestionária, mais do que uma política de (re)destribuição de poderes. (LIMA, 1995) . É aqui que se começa a assistir à emergência dos discursos que apelam aos modelos de inspiração e de gestão privadas, particularmente, de cariz empresarial: “importação de lógicas de mercado para os sistemas escolares”, em detrimento do político (BARROSO; VISEU, 2003, p.898). O denominado gerencialismo na administração pública e, especialmente, na administração da educação, cujos pilares assentam em princípios da Nova Gestão Pública e em perspetivas da administração pública empresarial, já com manifesta e transversal influência em Portugal (SANTIAGO; MAGALHÃES; CARVALHO, 2005).
Assiste-se na Madeira, neste período, à criação de uma Escola de ensino secundário de natureza profissional pública (Escola Profissional de São Martinho) que, como refere o preâmbulo da sua criação, o Decreto Legislativo Regional nº 14/2011/M, de 10 de agosto: “Seja dotada de autonomia administrativo-financeira, consequentemente, imbuída de uma agilização de procedimentos ao nível da gestão, que permita dar cumprimento aos desafios que estão colocados no âmbito do Plano de Desenvolvimento Económico e Social (PDES 2007-2013 (…)”; e, onde, a gestão privatística é claramente o objetivo, por revestir esta forma de gestão como é referido, de maior agilização procedimental. Cria-se, subsequentemente, o Instituto para a Qualificação, IP-RAM (Decreto Legislativo Regional nº 6/2016/M, de 08 de fevereiro), com propósitos iguais aos anteriormente declarados. Não obstante, vai-se até mais longe, num sentido de afirmação da gestão privada, já que, com essa nova opção legislativa, acabará por ficar, ainda, a referida Escola Profissional de São Martinho (entretanto renomeada de Escola Profissional Dr. Francisco Fernandes5) integrada no referido Instituto (artigo 3º, do Decreto Legislativo Regional nº 6/2016/M), constituindo-se uma original estrutura organizacional, que congrega na própria administração uma escola profissional pública.
O exemplo, ainda, da privatização, pela Resolução do Conselho do Governo Regional nº 1504/2009, de 16 de dezembro, no caso, da Escola Profissional de Hotelaria e Turismo da Madeira6, mediante a concessão da sua gestão a uma entidade privada, por um período de 15 anos, prorrogável por iguais períodos é sintomático deste impulso regional privatístico de índole gestionário.
Com a aprovação do Estatuto de Educação e Ensino Privado da Região Autónoma da Madeira, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional nº 15/2011/M, de 10 de agosto, acentua-se o desenvolvimento dessa mesma lógica privatística, no caso por cedência ao ensino privado. Apesar de a rede escolar regional ser predominantemente de natureza pública (na realidade em queda, passando, no período de uma década, de 75%, em 2004, para 66%, em 2014) constata-se um claro aumento do ensino privado ao longo desse mesmo período, sem embargo de um gradual decréscimo de população estudantil na Madeira (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2014, p. 34). Estaremos aqui, aliás, perante uma perspetiva que faz denotar a existência, em crescendo, de “operadores privados na rede pública” (HOMEM CRISTO, 2013, p. 85), mediante a abertura, dessa mesma rede, através do princípio de igualdade do financiamento, independentemente da natureza das escolas (artigo 65º, do Decreto Legislativo Regional nº 15/2011/M).
A outro nível, e tendo por base a Lei 31/2002, de 20 de dezembro, que no desenvolvimento da Lei de Bases do Sistema Educativo transporta para educação uma perspetiva de avaliação das escolas em Portugal, tendente à melhoria da qualidade do sistema educativo, na Madeira, a Portaria nº 245/2014, de 23 de dezembro, veio definir, aqui, com um grau de abrangência conceptual até mais amplo, um possível quadro de total aferição da qualidade do sistema educativo regional. Particularmente, é defendido nesse modelo normativo regional, um sistema de dinâmicas de autoavaliação das escolas, convocando a participação de diversos atores implicados no seu funcionamento, mas objetiva, sobretudo, uma lógica gerencialista: prestação de contas pelas escolas. Escolas da Madeira, cujo modelo de organização se assenta num regime organizacional próprio7, que lhes consagra total autonomia administrativa, financeira e pedagógica.
EM CONCLUSÃO
O que se assiste de forma evolutiva na Madeira, na área da educação, é no sentido em que a descentralização territorial provocada com a criação da Região Autónoma e, consequente regionalização educativa, traduziu-se num “fragmentar” do modelo de regulação da administração do sistema educativo único e estatal, introduzindo-lhe aquilo que autores como Howlett e Hamesh, designam por “mudanças marginais” (1995, p. 185). Estas mais não são do que alterações, por vezes pouco visíveis ou perceptíveis em termos macro, que não põem em causa a essência do próprio sistema nacional; ou, ainda, uma estratégia para percorrer um percurso próprio (HALPIN; TROYNA, 1995), mediante uma política educativa de education policy borrowing, mesclada com uma education policy learning (DALE, 1999); ou, em linha com Robertson e Dale (2008), através de um “mimetismo”, mediante um processo de “regulação partilhada”.
Contudo, em momento próximo, a lógica de privatização começa a imperar. Seja no sentido de um desinvestimento progressivo público, seja através de estratégias de concessão, ou mesmo privatização tout court. Esta realidade, tende assim a ser apresentada como coincidente com a própria ideia de reforma da administração pública, na linha de “uma modernização do serviço público”8 (CHARLOT, 1994, p. 97) No fundo, visa-se à apropriação dos modelos de funcionamento típicos do sector empresarial (ALVES, 2013). Coloca-se pois, aqui, com especial evidência, que merece destaque, uma tônica de política de ação, que enquadra os problemas essencialmente educativos e pedagógicos à “luz de uma visão”, que radica numa opção pela lógica de gestão privada, que defende serem os instrumentos de formação, considerados relevantes do ponto de vista econômico e empresarial, que melhor os haverão de resolver (SANTIAGO; MAGALHÃES; CARVALHO, 2005). Até porque, como se viu, sustenta-se que o sistema educativo, no seu todo, tem, também ele, que ser compatível com as orientações dominantes, emanadas de grandes organizações internacionais (OCDE, União Europeia), contribuindo para aquilo que Roger Dale (2001, p.146) designou por: "agenda globalmente estruturada para a educação”.
Sem embargo, pensamos que uma nova visão da denominada “coisa pública” deve levar a perceber que a discussão não pode continuar a ser centrada em dicotomias como gestão ou governação. O que mais importa é entender que os reais problemas da Administração são sempre multidimensionais e, por isso, mais que o domínio deste ou daquele saber específico, exigem para serem compreendidos, a completa integração de diversos pontos de vista.
Na realidade, a “teoria da complexidade” acaba reconhecendo a própria natureza da gestão pública como sendo atualmente incerta e fragmentada (HAVERI, 2006), usufruindo concorrentemente da variante sociológica, que releva os aspetos relacionais e estratégicos da organização, à luz da tradicional análise intraorganizacional e sistémica (BILHIM , 2008).
Ao longo das últimas décadas, a consolidação dos estudos sobre as políticas públicas de educação vêm ocorrendo em resposta à centralidade adquirida pela problematização de temáticas relacionadas com as mudanças, nos tipos de regulação da educação e no estilo de competências: científicas, profissionais e burocráticas. Na educação, aliás, essas mudanças nos modos de regulação se traduzem na intensificação dos processos de multiregulação, na complexificação das suas modalidades de execução e no aumento, cada vez mais, da regulação transnacional e hibridismo da regulação nacional e regional (BARROSO , 2006).
De resto, estas tendências têm sido visíveis e começam a chegar a países como Portugal, tradicionalmente mais resistente à mudança, onde novas modalidades de regulação surgiram nas últimas décadas, acabando por emergir, mesmo, no espaço insular da Madeira, como se evidenciou, manifestando-se na adoção de novas formas e processos de governação e gestão da educação (casos de descentralização, contratualização, parcerias público privadas, etc.) e na presença, de algumas intenções discursivas nas políticas públicas, como na autoavaliação e na avaliação externa das escolas (MAROY, 2009; 2011).
Esta fórmula, a que se pode associar um “estilo” de Governança, traz implícita alguns indícios reformadores, marcados pela denominada administração pública de tipo gerencial, claramente de matriz vinculada pelas correntes do New Public Management e onde se denota, até, alguma inspiração ideológica, que coloca a governação pública dependente do mercado, como no caso do ensino privado, e a gestão pública seguindo os princípios da gestão privatística.
Não obstante, todas as assinaladas investidas, a modernização praticada até agora vem reclamando, no entanto, um “novo modelo” de Governança pública na Madeira. Mais orientado a dinamizar o funcionamento das organizações e a conseguir uma melhoria da ação educativa e menos a enfatizar a sujeição a procedimentos estandardizados e fixados em rígidos mecanismos legais e normativos burocráticos de execução (SAHLBERG, 2011). Essa perspetiva avultará como relevante, podendo até daqui emergir um elemento que colmate algumas falhas e regule as relações entre o setor privado e público (em lugar de o querer substituir), máxime, entre a Região e a sociedade/comunidade. É que a “aplicação e o impacto da NGP está fortemente condicionada pelas tradições institucionais e as culturas profissionais que prevalecem em diferentes contextos” (VERGER; NORMAND, 2015, p.615).
Quando olhamos atrás para as análises científicas, chegamos à conclusão, de fato, que não há um conceito único de governança pública. Aqui, muito em linha com Kissler e Heidemann, estaremos perante aquilo que Max Weber denominaria de: “conceito ideologicamente amorfo” (2006, p. 480), já que não existe um conceito único e robusto de Governança pública, mas antes uma série de diferentes pontos de partida, epistemologicamente falando, para uma nova estruturação das relações entre o Estado e as suas instituições, sejam públicas (onde incluímos as Regiões Autónomas), sejam privadas.
Perspetivar uma evolução para a dimensão educacional da Autonomia regional na Madeira e, consequentemente, da governação nessa área, dependerá assim, particularmente, da mobilização e do posicionamento que venham a tomar todos os “parceiros educativos com as quais esta tem de conviver” (ALVES, 2013). A todos coloca-se sempre (até de forma renovada), embora se assista a uma continuidade das regras nacionais, a necessidade de uma afirmação regional, que se deverá assinalar em rupturas a nível das práticas (e da forma de colocá-las no terreno), o que acaba por conduzir a uma administração autônoma, que resulta, por um lado, com o corte relativamente à cadeia hierárquica do Estado (consequência da autonomia política e administrativa que a Madeira goza); e, por outro, de forma mais construtiva, criando as condições necessárias a conceber e implementar as soluções mais adequadas às necessidades, às expectativas e aos recursos regionais da Madeira, enquanto Região Autónoma (ALVES, 2014).
Ainda, num efetivo quadro teórico de análise, a contribuição trazida por uma abordagem neoinstitucionalista da ciência política, comumente associada ao neoinstitucionalismo histórico (STEINMO; THELEN; LONGSTRETH, 1992), poderá ser convocada. Trata-se de poder recorrer à path dependence ou dependência da trajetória, numa tradução livre. Esse conceito revela que as instituições se desenvolvem ao longo da história e que o processo por meio do qual as instituições modernas são formadas não somente é relevante para explicar o funcionamento da política e situações específicas, como também gera constrangimentos nas escolhas para o futuro. Para Putnam (1996) o conceito de path dependence traz implícito que o lugar a que se pode chegar depende do lugar de onde se veio (PIERSON, 2000). E com isto, acaba-se rejeitando um postulado tradicional da convergência institucional, de que as mesmas forças ativas produzem em todo lugar os mesmos resultados (HALL;TAYLOR, 2003).
Relevará portanto, colocar em discussão a emergência de uma “visão regional” (ALVES, 2012, p.193), que promova uma política educativa autonômica, que mais determinada do que a decretar uma reforma, construa os alicerces para uma permanente construção organizacional, em contínua articulação entre as diferentes administrações educativas, central, regional e local, bem como com as escolas, não descurando nestas os parceiros, que as integram, e sobretudo os atores que diariamente as fazem funcionar.
De resto, uma das “lições” mais relevantes, que se pode considerar sobre a mudança educacional é que o importante não se pode impor por decreto e, que, quanto mais complexa for a mudança, menos se poderá até impor (FULLAN, 2002).
Atualmente, a realidade nos conduz a encará-la no pressuposto de que os resultados estarão mais do que nos extremos, no equilíbrio que depende da coerência entre os distintos elementos do sistema educativo, como um todo, de modo a assegurar mudança, ou mudanças, com sustentação.
De fato, a construção de uma capacidade regional de afirmação educacional, vinculada à colaboração e ao compromisso dos atores, tem de estar reciprocamente unida com uma responsabilização pelos resultados e como parte de uma política educativa, que aposte decididamente na equidade (BOLÍVAR, 2012). Mais que ter soluções milagrosas para os problemas, sempre indeterminados e imprevistos, uma nova Governança educacional (SAHLBERG, 2011), poderá capacitar (empowering) as escolas, professores, famílias, alunos (HARGREAVES; FULLAN, 2014), para que também suas respostas avultem como determinantes.