Nos últimos dez anos, o país passou a ser considerado, no campo das migrações internacionais, não apenas um país de emigração, mas também um país receptor de novos fluxos migratórios, no fenômeno conhecido como “migrações sul-sul”. Atualmente existem cerca de 120 mil imigrantes no Brasil. São homens, mulheres e crianças, de diferentes idades, representando mais de oitenta distintas nacionalidades. Segundo dados da Coordenação Geral do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) (BRASIL, 2017b), entre as nacionalidades que mais solicitam refúgio no país estão os imigrantes vindos da República Democrática do Congo, que ocupam o décimo lugar1 no quadro geral de solicitações.
No estado do Rio de Janeiro estima-se que existam em torno de mil congoleses e congolesas, e parte dessa população vive em áreas pobres nas periferias do estado, como na cidade de Duque de Caxias. Esse município foi definido certa vez como “a periferia da periferia da cidade do Rio de Janeiro” (SOUZA, 2002), por apresentar índices de qualidade de vida muito piores do que muitas favelas das zonas sul e norte da cidade em termos de emprego, moradia e condições de vida, saneamento, índices de saúde e taxas de homicídio (ALVES, 2003).
É nesse contexto de extrema precariedade que famílias congolesas têm procurado se instalar em Duque de Caxias, e, segundo a Secretaria de Educação do Município (Seeduc), existem cerca de oitenta famílias congolesas no município e cerca de vinte crianças congolesas matriculadas em escolas da rede municipal. Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa que tem como objetivo trazer as percepções de professores e professoras acerca da presença das crianças de origem africana em situação de imigração que estão na escola pública e discutir como tal presença desencadeou reações da equipe escolar, impactando o currículo. Ao contrário de discursos que culpabilizam imigrantes, a presença dessas crianças, que inicialmente poderia constituir um elemento dificultador para o processo de ensino-aprendizagem, desencadeou o desenvolvimento de estratégias de superação e resistência que terminaram por potencializar o currículo, trazendo novos temas, como a discussão sobre as diferenças, preconceitos e discriminação, antes invisibilizados no contexto escolar.
De acordo com o Censo Escolar 2016 (BRASIL, 2017a), foi registrado um aumento de 112% no número de matrículas de alunos estrangeiros no país em oito anos, somando um total de quase 73 mil matrículas em 2016. Apesar desse crescimento, os desafios e o cotidiano de integração dessas pessoas no sistema de educação público ainda é um tema de pouca visibilidade no Brasil. Importante destacar que compreendemos integração como um processo multidimensional (social, econômico, linguístico e cultural) e bidirecional, que envolve os esforços por parte da pessoa em situação de imigração, que procura se integrar na sociedade de acolhimento, assim como a responsabilização do Estado e a abertura dessa sociedade na relação com essas pessoas (LÉGAULT; RACHÉDI, 2008). Desse modo, dado o fluxo crescente de crianças em situação de imigração ou refúgio nas escolas brasileiras, esta pesquisa, de caráter exploratório, é relevante, visto a escassez de estudos sobre o tema no campo da educação brasileira, especialmente na formação de professores.
REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
Nosso trabalho baseia-se na perspectiva crítica de educação intercultural, conceito com o qual temos trabalhado ao longo dos últimos anos, refletindo sobre práticas sociais e educacionais relacionadas ao reconhecimento de diferenças e ao desenvolvimento dessa perspectiva na educação. Nesse sentido, compreendemos a educação intercultural como uma perspectiva que pretende
[...] promover uma educação para o reconhecimento do “outro” para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural. Uma educação capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente integradas. A perspectiva intercultural está orientada à sociedade democrática, plural e humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade. (CANDAU, 2000, p. 35)
Contamos também com as contribuições da concepção histórico-cultural (VYGOTSKY, 2007), que, por priorizar os aspectos sociais, históricos e culturais na compreensão do desenvolvimento, procura avançar com uma práxis mais inclusiva em contextos multiculturais, colaborando para a superação do paradigma etnocêntrico do sujeito cartesiano na escola e, consequentemente, na sociedade.
Consideramos ainda as reflexões desenvolvidas por Quijano (2009) no debate sobre colonialidade, procurando analisar a forma como a permanência de estruturas globais e nacionais, que mantêm hierarquias estabelecidas por ideologias coloniais e eurocêntricas, faz-se presente nas representações sobre crianças africanas no contexto escolar brasileiro. O fim do colonialismo não significou o fim da colonialidade, que, nas palavras do autor, é:
[...] um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal. (QUIJANO, 2009, p. 85)
Esse conceito torna-se importante para esta pesquisa por entendermos o sistema educativo e sua estrutura e função social condicionada, mas também sua complexidade e suas contradições. Reconhecemos que a escola por vezes reforça determinadas perspectivas coloniais através de sua organização, conteúdos curriculares, livros didáticos, avaliações; e, ao mesmo tempo, em outras circunstâncias, promove uma tensão e rupturas quando “ensina a transgredir” (HOOKS, 2013), problematizando essa “colonialidade”.
A perspectiva da interseccionalidade também nos ajuda a identificar e discutir a situação específica de crianças africanas em situação de imigração no Rio de Janeiro, pois são negras, africanas, estrangeiras, falantes de outras línguas, que podem ter ou não status de refugiado, e que vivem em uma área periférica de um país do sul. Como lembram Grosfoguel, Oso e Christou, “os migrantes não chegam em um espaço vazio ou neutro, mas em espaços metropolitanos já ‘poluídos’ por relações de poder raciais com uma longa história colonial”2 (2014, p. 07, tradução das autoras) marcada e constituída pela colonialidade. Cabe-nos aqui analisar e discutir como o espaço escolar tem trabalhado a partir dessas experiências.
Importante ainda destacar que compreendemos o currículo escolar como uma construção e seleção de conhecimentos e práticas que são produzidos em contextos históricos e políticos concretos, e, portanto, alvo de disputas e negociações acerca do que se institui como conhecimento legítimo, verdade, poder e identidade. Desse modo, entendendo currículo como as experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio a relações sociais que colaboram para a construção de um conjunto de práticas que propiciam a produção, a circulação e o consumo de significados no espaço social, contribui intensamente para a construção de identidades sociais e culturais (APPLE, 2009; SILVA, 1999a, 1999b).
Para discutir as questões propostas neste estudo, optamos pela realização de uma pesquisa de caráter qualitativo, um estudo de caso em uma escola pública municipal que recebe o maior número de crianças imigrantes no município de Duque de Caxias. Neste artigo, apresentamos reflexões a partir da realização de entrevistas com dez professores do Ensino Fundamental I, sendo duas delas gestoras, atuantes na Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias, uma delas a atual diretora da escola pesquisada, e os demais tiveram estudantes em situação de imigração ou de refúgio em suas turmas nos últimos anos. As entrevistas foram realizadas em dois momentos distintos (cinco realizadas entre março e abril de 2018, e cinco realizadas em maio de 2019), na própria escola, durante horário vago dos professores, com duração de cerca de 40 minutos cada. As entrevistas foram gravadas e depois transcritas para serem analisadas.
O roteiro da entrevista foi estruturado a partir de seis diferentes eixos; mas, devido à limitação de espaço, para este artigo, discutiremos as percepções dos professores e professoras sobre a experiência de estudantes em situação de imigração ou de refúgio na escola municipal. Ao optarmos por conhecer e analisar algumas falas de professores e professoras, pretendemos apresentar alguns indícios da complexa rede de significados que envolvem o processo de integração de crianças estrangeiras na rede pública brasileira e como esse processo impacta currículos e cotidianos escolares.
Sobre o perfil dos docentes: nove são mulheres, três se identificaram como pardos, dois como brancos, quatro como negros, e um não forneceu essa informação. Todos têm mais de 35 anos de idade, e mais da metade dos entrevistados vive em municípios da Baixada Fluminense, região onde se localiza a escola citada. Todos têm mais de 12 anos de experiência na educação básica, trabalham há no mínimo cinco anos na escola pesquisada, e todos tiveram experiências com estudantes em situação de imigração ou refúgio em suas turmas. Sobre a formação, três fizeram curso de formação de professores (Escola Normal), e todos possuem diplomas de ensino superior. Seis também realizaram cursos de pós-graduação: duas tem especialização em gestão e supervisão escolar; uma, em psicomotricidade; uma, em neurociências; uma cursa mestrado; e uma, com mestrado em Relações Étnico-Raciais. Esses dados demonstram o bom nível de formação inicial dos participantes e complementam a longa trajetória no campo da educação.
Em relação à análise das entrevistas, escolhemos o método de análise de conteúdo (BARDIN, 2011). Para a organização dos temas-chave que conduziram nossas análises, inicialmente categorizamos os dados coletados, identificamos as ideias que mais se sobressaíram e, em seguida, as relacionamos aos conceitos teóricos pré-estabelecidos na fase inicial do estudo.
A IDENTIFICAÇÃO DE CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE IMIGRAÇÃO NA ESCOLA
Nesta parte do texto, apresentamos as percepções dos professores e professoras entrevistados sobre os/as estudantes estrangeiros/as e suas famílias. Interessante notar que, no momento inicial, a maior parte dos entrevistados sentiu dificuldade em falar sobre a diversidade de suas turmas, não mencionando diretamente o tema da imigração. Para quase a totalidade dos docentes, a condição de extrema pobreza de todas as crianças dessa escola era a característica mais forte:
São alunos muito carentes de tudo, principalmente de afetividade. [...] E o que tem de diferente é que alguns tem carência extrema. Alguns alunos têm problemas de enfermidades e ficam alguns dias sem vir à escola e não tem como ir ao médico. (Docente 2, comunicação pessoal, 2018)
Vivem na periferia e, apesar de ser o 1° Distrito de Caxias, é um bolsão de pobreza muito grande. Eles vivem em torno do rio Sarapuí. Então eles vivem de subempregos ou dos programas sociais. Só isso. [...] São iguais na pobreza. (Docente 1, comunicação pessoal, 2018)
Apenas um docente, ao falar sobre a diversidade de sua turma, citou, de modo espontâneo, a existência de estudantes estrangeiros:
Desde 2015, mais ou menos, alunos congoleses e angolanos começaram a chegar aqui, e essa foi a maior diferença que já aconteceu. Foi uma diferença gritante quando eu tive uma aluna de língua francesa, e os alunos faziam perguntas sobre como se falavam algumas palavras. (Docente 5, comunicação pessoal, 2019)
Para todos os demais, as menções às crianças em situação de imigração ou refúgio surgiram apenas quando perguntamos diretamente sobre a existência de crianças estrangeiras. Ao falar sobre elas, a principal característica citada não foi sobre a diferença de nacionalidade ou língua, mas seus comportamentos em sala de aula. É interessante perceber que quase a totalidade de entrevistados ressaltou de forma extremamente positiva esses estudantes, vistos como “muito interessados”, “com vontade de aprender” e com “muita força de vontade”. Também destacaram o que consideraram como uma “rápida adaptação dessas crianças à rotina da sala de aula”:
Eles têm muito interesse em aprender, muita vontade de estar aqui [...] Parece que são crianças que extrapolam a vontade de aprender. (Docente 4, comunicação pessoal, 2018)
Uma coisa que me chamou a atenção é que elas são assíduas. Se precisar faltar, a irmã avisa. São preocupados com a presença na escola, com os estudos. Não porque tem que estar na escola, mas se preocupam com os estudos. Coisa que não vejo com os outros alunos. Eu posso generalizar porque não tem outro aluno que eu me lembre em cinco anos que se preocupe tanto com o fato de estar aqui para estudar. Eu sinto que essa diferença é gritante. São muito responsáveis. Perguntam, pedem explicação, e as famílias são presentes. (Docente 8, comunicação pessoal, 2019)
A partir das respostas do grupo de professores e professoras, criamos três subcategorias sobre como eles caracterizam o perfil escolar dessas crianças: inteligência, comportamento e afetividade. Nomeamos “afetividade” a subcategoria que reúne os interesses e as vontades, as motivações e os desejos, visto serem estes aspectos constituintes daquela. Para Vygotsky (2007), as emoções são construídas socialmente, pois é na relação com o outro que significamos o mundo e nos significamos, embora a dimensão da afetividade seja um fenômeno privado.
A maioria dos professores também ressalta a “excelente aprendizagem” das crianças congolesas, caracterizadas como “muito inteligentes”, “muito ativas e interessadas”, chegando até a serem vistas como um exemplo positivo para as brasileiras, pois esse interesse teria “contagiado” estudantes brasileiros (Docente 2, comunicação pessoal, 2018). Desse modo, identificamos a subcategoria “inteligência”, como vemos na fala transcrita abaixo:
Uma característica que vejo nesses alunos é que eles são muito inteligentes, competitivos, não aceitam errar, são muito engajados no estudo. [...] As facilidades são muito cognitivas. Para aprender o português, por exemplo. Alguns alunos, apesar de algumas dificuldades, têm facilidades para integração também. Alguns arrumam fãs. (Docente 5, comunicação pessoal, 2019)
Já a subcategoria “comportamento” reúne características que definem como os professores percebem o modo como essas crianças se comportam.
Esses alunos que vieram do Congo, como é o caso da S., que é uma aluna muito, muito dedicada, muito comprometida, levava a educação e a escola com muita seriedade, uma aluna que tinha realmente muito interesse. (Docente 3, comunicação pessoal, 2019)
Outro professor chega a citar como a presença dessas crianças em situação de imigração e/ou de refúgio impacta positivamente o cotidiano da sala de aula:
Eles [crianças congolesas] só vieram a acrescentar, né?! Eles são ótimos, eles vieram dar uma força maior na nossa escola. Eles são carismáticos, são amorosos [...] eles são tudo de bom! (Docente 6, comunicação pessoal, 2018)
Interessante destacar que os professores entrevistados encontraram nos aspectos culturais e familiares as possíveis razões para o que destacavam como extremamente positivo no comportamento das crianças em situação de imigração ou refúgio. Nas palavras dos professores,
Eles têm uma relação com a gente, com o mais velho, com aquela questão da hierarquia [...] a forma educada e respeitosa como se relacionam com todas as pessoas também surpreende: [...] eles respeitam muito e são muito educados com todos. (Docente 1, comunicação pessoal, 2018)
Impressiona a seriedade com que consideram a escola: [a criança congolesa e suas famílias] levavam a educação e a escola com muita seriedade. (Docente 3, comunicação pessoal, 2018)
O perfil familiar dessas crianças, segundo eles mais rigoroso e disciplinador, é citado como a principal razão para explicar essa diferença no comportamento do grupo das estrangeiras em relação às crianças brasileiras:
Eu acho que eles têm muito interesse em aprender, em estar aqui, ela [...] tinha sede de aprender. Parece que são crianças que extrapolam a vontade de aprender... Não sei se os pais fazem algum tipo de tratamento para respeitar mais [a escola], como se estivesse em outro espaço. (Docente 4, comunicação pessoal, 2018)
Desse modo, os entrevistados fazem referência a determinados valores familiares, como o respeito aos mais velhos e a consciência da hierarquia, como aspectos positivos das famílias de origem africana que estão nessa escola. Vale destacar que essa intuição dos professores condiz com uma noção de infância presente na Carta africana dos direitos e bem-estar da criança (s.d.). Esse documento, além de especificar os direitos garantidos à infância, compreendida de 0 a 18 anos, também atribui responsabilidades à criança, característica que o difere da Declaração universal dos direitos das crianças (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1959).
A criança de acordo com a sua idade e habilidade [...] devem ter a tarefa de: (a) trabalhar para a coesão da família, respeitar sempre aos seus pais, aos seus superiores, e aos seus anciãos e dar assistência a estes em caso de necessidade; [...] preservar e fortalecer os valores culturais Africanos no seu relacionamento com outros membros da sociedade no espírito de tolerância, diálogo e consulta bem como contribuir para o Bem-Estar moral da sociedade. (CARTA AFRICANA DOS DIREITOS E BEM-ESTAR DA CRIANÇA, 1992)
As três categorias criadas a partir das falas dos professores e professoras, afetividade, inteligência e comportamento, relacionam-se diretamente com o processo de ensino-aprendizagem, e, acima de tudo, aproximam-se da imagem idealizada de aluno na instituição escolar. Dessa forma, vistos como interessadas, inteligentes, bem comportadas e respeitosas, a presença dessas crianças na escola termina por impactar positivamente o currículo escolar ao romper com estigmas xenófobos, trazendo novas dinâmicas para o cotidiano educativo e estimulando docentes e direção escolar a trabalharem com temas antes silenciados na rotina escolar, como veremos a seguir.
PERCEPÇÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DAS CRIANÇAS NA ESCOLA
Com base nas respostas dos professores, chamou-nos atenção o fato de que, quando questionados sobre como viam o processo de integração dessas crianças, todos os professores afirmaram de imediato que esse processo tem sido “muito bom”, “ótimo” ou “excelente”. Apenas quando questionadas sobre a relação das crianças congolesas imigrantes com seus colegas brasileiros a conversa tomava outra direção: os professores mostravam-se incomodados com os inúmeros casos de preconceito e de racismo vivenciados por essas mesmas crianças.
A integração deles com a escola foi boa, mas a integração deles com alguns colegas não foi [...]. Eu vejo uma resistência da parte de alguns colegas em aceitar esses imigrantes, mas eles são pessoas assim de muita força de vontade, de querer vencer. Então eles não têm dificuldade. (Docente 2, comunicação pessoal, 2018)
Como citado anteriormente, compreendemos a integração de pessoas em situação de imigração ou de refúgio como um processo multidimensional e também bilateral, ou seja, é um processo duradouro e que exige envolvimento não só das pessoas estrangeiras como também a abertura da sociedade de acolhimento. Os professores e professoras entrevistados, em seus depoimentos, demonstraram preocupação sobre a necessidade de envolver a comunidade escolar, estudantes e famílias brasileiras, no debate sobre as situações de preconceito ou discriminação enfrentadas pelas crianças africanas imigrantes:
Eles sofrem primeiro por serem estrangeiros [...]. Por mais que a escola tenha a maioria dela formada por crianças negras, existe preconceito. Eles olham para o outro que tem a pele mais escura que a deles. Eles acham que é para mexer ou chamar o outro disso ou daquilo, e tal. Eu ouvi relatos de mães que disseram que eles descobriram o que era racismo aqui na escola porque, de onde eles vieram, todos eram negros. Aqui eles descobriram o significado dessa palavra racismo. (Docente 3, comunicação pessoal, 2018)
Acho que a comunidade ainda os vê como os diferentes. É o olhar sobre a roupa, porque a roupa deles é muito colorida. Eles olham como diferente. E eles têm medo, principalmente em relação... Isso eu ouvi e me chocou: [...] “Eles vêm de lá para pegar o trabalho de quem está aqui, e se aqui já está ruim.” (Docente 1, comunicação pessoal, 2018)
No caso das migrações sul-sul, parece-nos produtivo adotar a perspectiva da “colonialidade” para identificar a permanência de estruturas hierárquicas racistas, sexistas, coloniais e eurocêntricas nos processos transnacionais de incorporação de imigrantes em sociedades metropolitanas. Concordamos com Grosfoguel, Oso e Christou (2014) ao afirmarem que a maior compreensão do fenômeno da migração requer a distinção entre as diversas experiências de migração e de discriminação que os diferentes grupos humanos vivenciam nas metrópoles, determinadas não somente pelo fato de serem estrangeiros, mas também devido ao país específico de origem, à raça, ao gênero, ao perfil sexual, ou a outras categorias que tornam o desafio da integração ainda mais complexo. Nesse sentido, uma perspectiva interseccional tende a ajudar a localização dos conflitos e pode melhor preparar os profissionais das escolas e de outros serviços públicos diretamente envolvidos no processo de integração dessas crianças e famílias, permitindo uma melhor compreensão dos contextos de imigração.
No caso das famílias de origem africana em Duque de Caxias, a partir das falas dos professores e professoras entrevistados, podemos verificar que, mesmo em uma sociedade onde a maior parte da população poderia ser vista como negra e pobre, o pensamento colonial se estabelece, ressaltando e hierarquizando diferenças:
Aqui nós temos muito alunos negros, mas o aluno do Congo é diferente. O tom da pele é mais escuro, o penteado deles, eles se destacam com os penteados... Então, a gente olha e vê que não é uma criança brasileira. (Docente 3, comunicação pessoal, 2018)
Sim, eles sofrem preconceito por causa da cor, por causa do modo de se vestir, por causa do modo de se comportar e por causa do modo de falar, mas em nenhum momento eles ficam cabisbaixo ou desistem de ser do jeito que eles são. (Docente 2, comunicação pessoal, 2018)
Nesta última fala, o docente ressalta como positivo o fato de as crianças africanas, apesar das situações de preconceito e discriminação que vivenciam dentro e fora da escola, não ficarem “cabisbaixas” ou “desistirem de ser do jeito que eles são”. Desse modo, não identificamos por parte dos professores e professoras entrevistados o desejo de silenciar a identidade cultural dessas crianças; ao contrário, destacam como valor positivo a afirmação dessa identidade, apesar do ambiente hostil que experimentam na relação com a sociedade de acolhimento.
Nesse sentido, podemos inferir que, se, em um primeiro momento, para grande parte dos professores entrevistados, “integração escolar” teria relação direta com a capacidade ou a disposição das crianças estrangeiras de se adaptarem à rotina escolar, em um segundo momento, é possível observar que eles refletem sobre como as estruturas ou relações discriminatórias existentes nessas relações ou na estrutura da própria instituição escolar precisam ser questionadas para que as experiências escolares dessas crianças sejam vivenciadas de forma mais positiva. Sendo assim, acreditamos que a presença das famílias e das crianças em situação de imigração e de refúgio no contexto dessa escola tem impactado o currículo, provocando reflexões e práticas desses profissionais a partir das situações de discriminação e de racismo vivenciadas não só por imigrantes, mas que se tornaram mais evidentes a partir da presença desse público na rede municipal, como veremos a seguir.
IMPACTOS NO CURRÍCULO ESCOLAR
A partir do desenvolvimento da pesquisa, podemos perceber que a presença de crianças em situação de imigração e de refúgio na escola, seja pelos temas que despertam no cotidiano escolar, seja pela forma como se comportam, termina por impactar o currículo escolar. Ao analisarmos os depoimentos da direção da escola e dos professores entrevistados, verificamos que boa parte da comunidade escolar parece ter sido sensibilizada pela presença desses estudantes, procurando criar mais espaços para envolver as famílias brasileiras e imigrantes no debate sobre as situações de preconceito e de discriminação existentes na escola.
Entre as falas desses professores, é possível perceber que o contato com as crianças congolesas e angolanas disparou reações e conflitos sobre temas antes velados no contexto escolar, como racismo, preconceito e discriminação, exigindo que os professores e professoras revisassem o currículo escolar.
A minha aluna [imigrante], por exemplo, sofreu racismo por parte das crianças. [...] Vi que ela estava sozinha e perguntei o que estava acontecendo. Ela começou a chorar e disse que queria voltar para o seu país. [...] Fiquei decepcionada com a turma. Chorei e chamei a atenção deles, explicando o porquê de ela estar em nosso país. Alguns alunos também choraram pedindo desculpas. Foi uma experiência dolorosa. Eu achava que a minha turma estava me acompanhando, mas estavam reproduzindo opressões. (Docente 5, comunicação pessoal, 2019)
Nesta fala, é possível verificar como o preconceito vivenciado pela criança em situação de imigração funcionou como um disparador para que o docente tomasse consciência sobre como o racismo ainda permanecia muito presente nas práticas e no cotidiano de seus alunos brasileiros. Uma “experiência dolorosa”, como ela se refere, mas que permitiu um olhar reflexivo sobre como agir frente ao racismo estrutural existente na sociedade que acolhe essas crianças.
Em outros depoimentos, vemos como o olhar preconceituoso em relação ao continente africano também sensibilizou a equipe escolar, que passou a trazer esse debate para o currículo escolar, colocando em questão suas imagens sobre a África e suas representações sobre a diversidade desse continente:
Alguns alunos da turma diziam “angolana, angolana, angolana”, e ela [criança congolesa] me falou que estava chateada [...]. Então, eu comecei a falar com a turma sobre isso, e um dos alunos disse: “Ah! Ela parece o angolano lá do morro!” [...] “Porque ele é assim da cor dela!” Aí eu tive que mostrar o mapa, mostrar onde é Angola, quem são os angolanos, e pedi para ela falar qual era o lugar de onde ela veio [República Democrática do Congo], e eles localizaram no mapa também. A partir daí começamos a conversar sobre a África. Quais são os países? Qual a distância da África para cá? Quais os países mais próximos ao Congo? Muitos alunos aqui têm essa mania de chamar pessoas negras de “angolano”, e começou a partir daí. (Docente 3, comunicação pessoal, 2018)
Essas discussões que se desenrolavam na emergência da sala de aula, mostraram-se produtivas ao envolverem grande parte da equipe escolar em reuniões que tinham por objetivo desenvolver ações mais planejadas a médio e longo prazo com a participação de toda a escola no debate sobre o racismo e o preconceito. Assim surgiram diferentes projetos pedagógicos, envolvendo também as diferentes famílias:
Eu vejo que o papel da escola em relação a isso é fazer o aluno se colocar no lugar do outro. Fazer o aluno entender que ele é de um jeito, mas que o amigo é de outro jeito e precisa haver esse respeito. O modo de o outro ser não interfere no modo de ele ser. então ele precisa entender isso, e nossa escola tem agido em relação a isso. (Docente 3, comunicação pessoal, 2018)
Muitos [estudantes estrangeiros] me contaram situações parecidas sobre receber apelidos. Foi uma questão de xenofobia, mesmo. Questão de nacionalidade. Aí, movimentou a escola toda. Os responsáveis da menina vieram na escola dizer que isso não poderia acontecer porque era racismo. Aí, surgiu o projeto “Tudo bem ser diferente”. Foi um projeto maravilhoso que integrou a escola inteira, na medida do possível. Nem todo aluno recebe isso muito bem. Mas foi muito bacana. Desde então, a gente vem trabalhando com projetos de inclusão na escola. (Docente 5, comunicação pessoal, 2019)
Nessa perspectiva, esse reconhecimento no espaço curricular teve como uma de suas consequências a legitimação de se ensinar sobre o continente africano a todos os alunos, e essa atitude parece ter possibilitado aos estudantes em situação de imigração um maior espaço de protagonismo na dinâmica de classe:
Eu tenho representantes de turma que são da República Democrática do Congo. Eles são representantes dos estudantes e participam com a gente do planejamento, conselho de classe, e são as vozes das crianças para a gente. E foram eleitas por elas. (Docente 1, comunicação pessoal, 2018)
Esse espaço de protagonismo também foi ampliado para a maior participação das famílias brasileiras. Em diversas falas, vemos que, para o desenvolvimento desse projeto pedagógico, foi fundamental envolver as famílias, pois foi percebido que o trabalho na escola esbarrava em dificuldades, como o racismo estrutural existente na sociedade brasileira.
Em 2016, a gente teve um problema sério com uma turma. Quando a gente foi procurar qual era a causa do problema, eram os pais das crianças que estavam motivando o preconceito, por eles serem diferentes. Em uma reunião de pais, a gente viu isso. Então, nos chocamos. A primeira coisa que a gente fez foi se chocar. Aí, depois de respirar fundo é que a gente foi ver o que poderíamos fazer. Daí que fomos ter todo um trabalho voltado a questão do refúgio. Procurar conhecer porque eles vieram para cá, como eles vivem aqui para tentar mostrar para a escola que eles são diferentes. E tem muito a contribuir com a gente. (Docente 1, comunicação pessoal, 2018)
Desse modo, a presença de crianças em situação de imigração ou refúgio pode ser vista como um estímulo importante, que permitiu uma maior abertura da equipe escolar para a discussão sobre a existência do racismo na escola, envolvendo não só estudantes, como também suas famílias. Por outro lado, criou espaço de maior protagonismo das famílias congolesas e angolanas, que passaram a participar de eventos de formação na escola em questão:
Eu tive uma aproximação mais forte com os familiares numa palestra que teve aqui há dois anos sobre isso... os responsáveis congoleses foram chamados pra falar um pouco da cultura... então, foi uma palestra à tarde, eu pedi até pra ser liberado da outra escola pra participar da palestra, porque eu fiquei bastante curioso. (Docente 7, comunicação pessoal, 2019)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar dos limites da amostra, consideramos importante tecer algumas reflexões sobre como professores e professoras têm percebido o processo de integração de crianças majoritariamente congolesas em situação de imigração ou refúgio em uma escola municipal de Duque de Caxias.
A partir das entrevistas realizadas, foi possível identificar que os professores possuem uma percepção positiva sobre como as crianças congolesas têm se adaptado às regras acadêmicas e sobre o seu bom desempenho escolar. Por outro lado, parecem sensibilizados pelo fato de as crianças conviverem com situações frequentes de racismo e preconceito em suas relações com colegas e em sua inserção na comunidade.
Acreditamos que o fenômeno do racismo possa ser entendido em sua complexidade e multidimensionalidade para que os projetos pedagógicos realizados possam afetar todas as dimensões da escola.
Pouco a pouco, de acordo com os relatos desses professores, vemos que a presença de estudantes de origem africana tem contribuído para que essa preocupação esteja nas reflexões e práticas de professores professoras. Acreditamos que essa presença possa ser vista como um importante recurso que impacta o currículo, contribuindo para a concretização de um currículo na perspectiva intercultural e envolve profissionais da educação, estudantes e famílias nesse desafio que permanecerá recorrente não só para as crianças estrangeiras, como também para as brasileiras, se ele for minimizado ou silenciado.
Nesse contexto, a perspectiva interseccional parece contribuir para um olhar mais atento e cuidadoso sobre o processo de integração das crianças em situação de imigração de origem africana: são negras, africanas, estrangeiras, que falam outras línguas e que vivem em áreas periféricas.
As diversas experiências raciais, de classe e de gênero na imigração internacional precisam ser compreendidas também nas instituições escolares, para ampliarmos os sentidos críticos da educação intercultural, encontrando as distintas variáveis que contribuem para o processo de inclusão de famílias de diferentes contextos na rotina escolar. O debate sobre suas diversas situações formativas, suas continuidades e descontinuidades com a experiência escolar contribuem para a ampliação do contexto e das reflexões do campo educativo, visto que a afirmação das diferenças em um país tão desigual como o Brasil supõe o desenvolvimento de concepções e estratégias educativas que favoreçam o enfrentamento dos conflitos (e não a sua negação), “na direção de superação das estruturas socioculturais geradoras de discriminação, de exclusão ou de sujeição entre grupos sociais” (FLEURI, 2005, p. 23).
Nesse sentido, é preciso também reconhecer a existência de um grave problema social que afeta não só a integração das famílias estrangeiras, como a dignidade de todas as famílias dessa região. Todos os professores se mostraram preocupados com o contexto de extrema pobreza que afeta toda a comunidade escolar, e muitas delas citaram o sentimento de frustração que encontram nos limites de suas ações.
Considerando a importância da instituição escolar, que muitas vezes ocupa o lugar de única representação do poder público localmente, professores, professoras e equipe escolar precisam contar com maior apoio do poder público, através de ações sociais integradas e continuadas que possam tornar mais dignas as condições de vida de famílias imigrantes e brasileiras no contexto local. É realmente alarmante quando o Estado se atém a desenvolver ações pontuais e limitadas ao combate à desigualdade em um município como o de Duque de Caxias, que historicamente esteve entre os municípios de maior arrecadação do país, e ainda hoje ocupa o segundo lugar no ranking de arrecadação do Estado, perdendo somente para a capital (CAMAZ, 2015).
Para concluir, o processo de integração de pessoas em situação de imigração ou de refúgio em nosso país é uma responsabilidade de toda a sociedade brasileira. E esse desafio exige o desenvolvimento de políticas públicas construídas com a participação de diferentes atores sociais no combate das desigualdades. Certamente, profissionais da educação podem contribuir e muito nesse processo, se contarem com maiores condições para isso.