Para o pobre os lugares são mais longe.
João Guimarães Rosa1
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é uma das expressões da luta por justiça social no Brasil. Em um país marcado por profundas desigualdades, ele representa a organização do campesinato com vistas à conquista da terra por homens e mulheres historicamente espoliados de seus direitos, inclusive o direito de reconhecimento da legitimidade de sua cultura própria.
Além da violência concreta sofrida pelos sem-terra, a demonização de sua luta, o desrespeito à sua cultura e os obstáculos ao seu acesso à educação em todos os níveis constituem-se como violências simbólicas, comumente instauradas até mesmo de forma burocrático-legal-institucional. Lutar pela terra, para o MST, significa, também, lutar pela afirmação de sua cultura e de seu direito à educação.
É exatamente o caráter dessa luta múltipla que é problematizado em toda a sua complexidade pelo livro Movimento, terra e escola: a etnografia na educação do campo, de Apolliane Xavier Moreira dos Santos (2021). Com base na dissertação de mestrado da autora (Santos, 2010), o livro apresenta os resultados de uma pesquisa imersiva desenvolvida em um assentamento do MST, ancorada em observações in loco, entrevistas semiestruturadas, leitura e análise de ampla bibliografia, incluindo documentação e leis referentes à vida no campo.
A obra contém um prefácio, uma introdução, cinco capítulos e as considerações finais, e faz um movimento centrípeto, que parte da apresentação de um panorama amplo da história da educação rural no Brasil e do MST, afunilando até um trabalho em profundidade desenvolvido com sujeitos do assentamento investigado.
O prefácio ficou a cargo de Écio Antônio Portes, pioneiro no Brasil na realização de estudos sobre o acesso de estudantes pobres ao ensino superior público (Nogueira, 2014; Oliveira, 2017; Portes, 1993), que atenta para a relevância da obra neste momento de profundos retrocessos político-sociais e aponta a práxis do fazer-
-pensar como a dinâmica fundamental da educação dialética promovida nos e pelos movimentos de luta pela terra (Portes, 2021), em um texto escrito com melancolia e revolta, mas também com esperança.
A introdução do trabalho é marcada pela pessoalidade que leva a autora a revelar sua preocupação com as “disparidades existentes entre o meio urbano e o meio rural referentes ao contexto escolar” (Santos, 2021, p. 17), o que a levou, em 2008, à realização de sua pesquisa. A compreensão da escola pública nesse contexto, a caracterização da educação do campo no Brasil, do próprio MST, bem como do assentamento e dos sujeitos da localidade pesquisada constituem o escopo da pesquisa, de caráter imersivo e qualitativo, orientado pela metodologia etnográfica: a pesquisadora viveu durante três meses em um assentamento no interior de Minas Gerais, no qual se situa a escola investigada. A autora detalha em sua introdução os procedimentos metodológicos, a cronologia dos processos da pesquisa e as especificidades éticas e científico-acadêmicas de seu trabalho etnográfico-compreensivo.
Intitulado “A educação rural no Brasil: um bosquejo rústico”, o capítulo inicial apresenta teorizações sobre o espaço rural e a educação rural no Brasil. A autora problematiza as definições reducionistas, dualistas e viciadas de “rural” e “urbano”, assim como as formas de apropriação e utilização do espaço rural do país e seus impactos nos diferentes modelos educacionais (Santos, 2021, p. 27).
A complexidade do tema da educação rural é enfrentada pela autora, que discute a instrumentalização verticalizada da escola no campo por agentes políticos e econômicos via aparato legal. Segundo Santos (2021, p. 41), a educação nos espaços rurais brasileiros, objeto de “medidas paliativas, compensatórias, provisórias, emergenciais e descontínuas”, inclusive quando tratada em âmbito governamental, é sempre gerida pela lógica da exclusão.
A gênese, a história, os princípios, as formas de organização, estruturação e enfrentamento e também a educação do MST constituem o objeto do segundo capítulo, “O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: por outra sina e uma nova cena”, no qual a autora mostra como “o Movimento foi sendo forjado de maneira articulada às questões de seu tempo e com a história que foi construindo” (Santos, 2021, p. 55). A condição do homem oprimido no campo é teoricamente delineada em uma reconstrução histórica que parte da colonização do país e chega até o momento em que a autora desenvolvia a sua pesquisa.
Compreendendo a educação como “uma das possibilidades de continuidade das [suas] ações” (Santos, 2021, p. 46), o movimento é norteado por uma práxis dialética que pressupõe trabalho, educação e luta, não raro taxada de ideológica e violenta pelos discursos (neo)liberais/conservadores de representantes políticos e midiáticos do agronegócio. A autora consegue trilhar criticamente essa história, marcada por ataques dos governos ao MST – se não isso, ao menos por descasos e adiamentos (Santos, 2021) –, e amplia o quadro das discussões acerca da inseparabilidade entre a luta pela terra e a luta pela escola dentro do movimento, sempre em busca de rompimento com o modelo tradicional de educação, com vistas à “formação para a militância” (Santos, 2021, p. 70).
As especificidades do contexto analisado pela pesquisadora-autora constituem o mote do terceiro capítulo, “O assentamento investigado”. Em suas quatro subseções, a autora versa a respeito: 1) do contato inicial com as pessoas e do contexto; 2) da ocupação da área e da organização do assentamento; 3) da complexidade da relação entre o espaço rural e o urbano, bem como das relações de trabalho e dos usos da terra pelos integrantes; e 4) da organização, pela pesquisadora, em conjunto com os moradores, de uma biblioteca para o assentamento.
Com uma narrativa fluida, um tanto literária, plena de pessoalidade – manifesta, inclusive, no discurso em primeira pessoa do singular –, mas sem perder a densidade da escrita acadêmica, a autora detalha os inícios de seu trabalho imersivo na comunidade e o seu percurso metodológico, apresenta os seus instrumentos de coleta de dados e explica as razões pelas quais optou por eles. Em seguida, reconstrói a história do assentamento, que remonta aos idos de 1964, denuncia a “vagarosidade estratégica” do poder público, no sentido de obstaculizar as ações do movimento, e delineia a sua estruturação/organização em núcleos de base e setores (Santos, 2021, p. 91). A autora parte, logo depois, para uma análise de caráter sociogeográfico, por meio da qual apresenta ao leitor uma importante peculiaridade do assentamento: sua proximidade em relação à zona urbana, o que traz comodidades, mas também preocupações, sobretudo no que tange à segurança dos moradores. Na mesma seção, a autora apresenta o quadro geral das relações de trabalho entre os assentados e empresta de Kageyama (1998) o termo pluriatividade para caracterizar tais relações, o que complexifica a configuração do assentamento em relação à luta inicial pela terra. O capítulo se encerra com a descrição de uma espécie de contrapartida da autora pelo acolhimento dos assentados: a organização da biblioteca da escola, até então mais assemelhada a uma “sala de despejo”, um “depósito de livros e entulhos” (Santos, 2021, p. 106).
No quarto capítulo, “A escola investigada”, a pesquisadora revela o histórico e a configuração atual da escola do assentamento e como a luta do MST por educação formal conecta-se à luta pela terra. Em suas palavras, a “reivindicação pela presença da escola no espaço onde residem as famílias é uma das bandeiras de luta da educação do campo” (Santos, 2021, p. 111). Após a descrição da estrutura física da escola, a autora reconstrói as características sociais e profissionais das suas professoras (Santos, 2021, pp. 122-130), das demais trabalhadoras, responsáveis pela manutenção do prédio escolar e pela preparação da merenda (Santos, 2021, pp. 130-132), bem como dos seus alunos, constituindo breves retratos sociológicos desses sujeitos, a exemplo do que fez Lahire (1997, 2006). Tais retratos incluem relatos positivos acerca da vida no assentamento e denúncias às omissões do poder público em relação aos sem-terra.
O capítulo final, “Estudos universitários: como assim? Levantados do chão?”, problematiza o acesso dos militantes do MST à educação superior. Conforme a autora, “o acesso à educação superior compõe, também, uma das batalhas de luta que o movimento abrange para a promoção da melhoria de vida nos espaços rurais”, componente da luta que emerge “como uma reivindicação por um direito social e como possibilidade de formação técnica e humana dos militantes” (Santos, 2021, p. 144). A autora aponta os efeitos dessa luta, já que, na ocasião de sua pesquisa, sete dos assentados cursavam graduação em universidades públicas brasileiras – seis cursavam licenciatura em educação do campo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um cursava agronomia na Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat). Apenas três moradores haviam sido apontados como detentores de títulos acadêmicos em nível de graduação e pós-graduação, nas seguintes áreas: pedagogia, pedagogia da terra, agronomia, educação e psicopedagogia.
Ao tratar da internacionalização dos estudos em nível universitário, a autora salienta a sua dificuldade entre as camadas populares, sobremaneira as do campo, dada a posse restrita dos capitais econômico, cultural, social e simbólico (Bourdieu, 2010a, 2010b, 2010c) que, comumente, apenas as frações mais elevadas das camadas médias e as elites conseguem mobilizar estrategicamente no campo educacional com vistas à reprodução de classe.
Por fim, a autora tece algumas considerações acerca de seu estudo, menos à guisa de conclusão que de abertura para novas problematizações, as quais devem ser construídas academicamente de modo a ampliar a compreensão da educação do campo e do MST.
Caracterizado por Stédile e Fernandes (2005) como uma organização político-social, o MST segue um princípio organizativo popular, camponês e sindical, que luta contra a concentração de terras no Brasil, em nome de uma dinamicidade voltada à manutenção da identidade “Sem Terra” pelos seus militantes. E é justamente esse o quadro que Santos (2021) nos apresenta no livro aqui resenhado, ainda que na particularidade de um assentamento específico, marcado pelas suas idiossincrasias, contradições, conflitos e esperanças.
Traço marcante da obra é o rigor acadêmico não ser prejudicado pela assumida não neutralidade da autora, o que a afasta dos ranços positivistas ainda presentes em nossos meios acadêmicos (Kaufmann, 2004; Oliveira, 2015, 2017). O trabalho é fruto de pesquisa consistente, feita por alguém que não se conforma com os arremedos de projetos externamente construídos, sem a democrática e efetiva participação do homem do campo em sua elaboração, como migalhas lançadas ao povo, mas a fim de agradar o capital, o agronegócio e interesses políticos determinados e contrários à democratização da terra/escola.
Nesses tempos em que, além da luta pelas suas pautas, os movimentos sociais brasileiros precisam defender-se de investidas cada dia mais violentas e lutar contra a sua criminalização, a obra aqui resenhada é social e academicamente bem-vinda. Além de tudo, ela nos alerta para o fato de que sempre que os oprimidos se organizam em nome da justiça, eles precisam fazê-lo cientes de que ela não pode ser alcançada sem luta.