Introdução
Este artigo está marcado por duas pesquisas com crianças que envolveram a nossa incursão em contextos escolares. Seguimos as recomendações de William Corsaro para etnografias e trabalhos de campo com crianças, chegando nos espaços com “status de adulto atípico ou criança grande” (Corsaro, 2005, p. 451). O trabalho de campo é uma parte relevante de nossas pesquisas. Dentre nossas diversas inspirações, está a de usar o método sem um caráter definido, fechado, definitivo ou prescritivo.
Recorremos às metodologias implicadas aos processos e problemáticas que emergem das experiências de estar com as escolas, explorando a importância da implicação e não da aplicação somente. Na esteira dos estudos que problematizam o método, não nos fixamos em um método que legitime o conhecimento. Não se trata de operar apenas num corpo metodológico. Concordamos com as contribuições de Paul Feyerabend (2011), que denuncia epistemologias dogmáticas, assim como as de Helen Verran (2001), que nos diz que o sucesso de uma metodologia não é incompatível com nossos interesses e limitações, que são inevitáveis. Verran aponta que os sistemas metodológicos são sempre diversos e diferentes e que, paralelamente, os pontos de vista estão dentro de uma lógica específica. No mesmo acorde, encontramos os estudos do pensador Dismas Masolo (2009), cujas contribuições elucidam bem como a afro-perspectividade concebe a metodologia numa pesquisa.
Desse modo aquilo que aparenta ser um conflito de racionalidade é, provavelmente apenas um desconforto (por parte daqueles que são ‘monorracionais’), relativamente a estratégias explanatórias pouco familiares. Para aqueles que são ‘polirracionais’, especialmente aqueles a quem o colonialismo impôs métodos ocidentais em simultâneo com os seus próprios métodos (Masolo, 2009, p. 510).
Não recusamos e, tampouco, elegemos uma metodologia-padrão; para os fins de uma pesquisa afro-perspectivista, a metodologia precisa ser polirracional. No entanto, não apostamos nos conflitos de racionalidade, pelo contrário, nos sustentamos na potência dos encontros e repertórios epistêmicos diferentes. À medida que nos deparamos com uma racionalidade desconhecida, somos forçados a ampliar nosso repertório metodológico.
No caso do caderno de campo, nossa metodologia opera sem acreditar que o relato se encaixe na teoria. Buscamos as linhas fora da curva e os acontecimentos sem forçá-los a se enquadrar em categorias prévias, mas no exercício de atenção atenta, na escuta do campo. A metodologia polirracional (afro-perspectivista) se permite tocar, ainda que limitadamente, pelos acontecimentos. Damos preferência à leitura coletiva dos registros e diários de campo, fazendo questão de envolver todos os sujeitos participantes da pesquisa. Desta forma, nossos cadernos de campo e as reflexões surgidas das leituras constituem um acervo coletivo que alimenta e nutre nossas escrituras.
Desde 2009, o Grupo de Pesquisa Afro-perspectiva, Saberes e Infâncias (Afrosin) tem realizado pesquisas com intenções polirracionais. Nossas pesquisas fazem parte de uma agenda do Afrosin2. Com parcerias de pesquisa e o apoio de órgãos de financiamento de pesquisa3 para as investigações, temos trabalhado com os seguintes eixos: infâncias, educação das relações étnico-raciais, artes e filosofia. Nossas motivações foram os constantes relatos informais sobre racismo feitos por discentes de Pedagogia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). As estudantes - em situações de estágio ou enquanto professoras da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental - presenciavam diversos casos de discriminação racial. Além disso, nossa vivência como docentes da educação básica constatou e identifica práticas racistas no contexto escolar das crianças4.
Primeiras Palavras (as infâncias e a raça negra)
Conceitos são sempre dinâmicos. Como nos diz o sociólogo Antônio Sérgio Guimarães em Cor e Raça: raça, cor e outros conceitos analíticos:
A verdade é que qualquer conceito, seja analítico, seja nativo, só faz sentido no contexto ou de uma teoria específica ou de um momento histórico específico. Acredito que não existem conceitos que valham sempre em todo lugar, fora do tempo, do espaço e das teorias. São pouquíssimos conceitos que atravessam o tempo ou as teorias com o mesmo sentido (Guimarães, 2003, p. 63).
A partir de uma abordagem afro-perspectivista5, trabalharemos tanto com conceitos como com noções e categorias analíticas. Em linhas bem gerais, a noção de infância diz respeito aos aspectos jurídicos, psicológicos, biológicos, enfermagem pediátrica, médico-pediátricos e educativos. Essas áreas convergem para sustentar a tese de que a infância é uma fase da vida. Do ponto de vista legal, no Brasil a Lei 8069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu Artigo 2º estabelece que infância é a fase da vida de 0 a 12 anos incompletos (Brasil, 2017, p. 10). No campo da psicologia, temos uma instituição como a Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento (ABPD) que reúne profissionais que promovem e trocam informações sobre pesquisas sobre estudos do desenvolvimento humano. Uma perspectiva recorrente nessa subárea é de que a infância é uma fase dividida em etapas, geralmente três. A primeira fase é a do nascimento até os 3 anos, em seguida de 3 a 6 anos e, por fim, de 6 a 11 anos. Na medicina, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) trabalha com as fases de 1 a 18 meses, 18 meses a 3 anos, 3 a 4 ou 5 anos, 5 a 9 anos e de 10 a 13 anos. A enfermagem pediátrica estabelece outra divisão em três períodos: neonatal de 0 a 28 dias, lactente de 29 dias a 2 anos, pré-escolar de 2 a 7 anos e escolar de 7 a 10 anos de idade.
Apesar das diferenças entre os períodos, o que todas essas áreas têm em comum é classificar a infância como uma etapa da vida. Em outros termos, ser criança aparece como sinônimo da infância. Por outro lado, a categoria analítica infância é diferente, ela não é uma fase transitiva, mas uma categoria permanente (Qvortrup, 2011). Ora, “[…] a infância é a condição social que unifica as crianças como grupo etário e as coloca em experiências comuns, uma vez fazendo parte da mesma experiência histórica e cultura” (Arenhart, 2016, p. 33), o que torna necessário diferenciar as categorias criança e infância. Estamos diante de uma condição historicamente e socialmente construída por práticas institucionais, o que desloca a infância de uma natureza biopsíquica para uma dimensão histórico-cultural e socialmente produzida.
Por fim, o conceito de infância difere tanto da noção que se apoia numa dimensão à primeira vista natural quanto da categoria que se ergue sobre aspectos sociais e históricos. O nosso conceito de infância é filosófico-espiritual e baseado em sentidos de mundo afro-perspectivistas. O que são sentidos de mundo ou cosmosentidos? A partir das considerações da sociologia nigeriana Oyeronke Oyewumi (2017) e do pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos (2015), nós construímos sentidos de mundo para o conceito de infância, que encontra inúmeros elementos comuns com autores e autoras ocidentais.
Primeiro é preciso situar que não partimos de um ponto de vista. Nas culturas que se erguem sobre visões de mundo, o objeto de pesquisa “[…] sempre se mantém à vista e na vista. Por definição nos convida a olhá-lo fixamente, a contemplar a diferença, convocando a um olhar de diferenciação” (Oyewumi, 2017, p. 39). As diferenças são classificadas em função de um modelo que estabelece a existência de outros. Visões de mundo sempre trazem o incômodo de inventar outros: “Mulheres, primitivos, judeus, africanos, pobres e toda pessoa qualificada com a etiqueta ‘diferente’, em diversas épocas” são considerados grupos dominados pelo “instinto e afetividade, alheios à razão” (Oyewumi, 2017, p. 40). Sem dúvida, a infância surgiu como um outro do adulto, assim como o negro foi estabelecido como outro do branco. Para Oyewumi isso se basearia justamente em bases epistemológicas que se erguem sobre visões de mundo.
O termo ‘visão de mundo’ que se usa no ocidente para sintetizar a lógica cultural de uma sociedade, expressa adequadamente a prerrogativa ocidental da dimensão visual. Mas, teríamos um resultado eurocêntrico se utilizássemos essa expressão para nos referirmos a culturas que provavelmente dão prioridade para outros sentidos. A qualificação ‘sentido de mundo’ é uma alternativa de maior abertura para descobrir a concepção do mundo de diferentes grupos culturais. Por outro lado, neste estudo ‘visão de mundo’ se aplicará exclusivamente a descrição do sentido cultural ocidental e usaremos ‘sentido de mundo’ em referência à sociedade ioruba e outras culturas que podem privilegiar outros sentidos ou inclusive uma combinação deles (Oyewumi, 2017, p. 39).
Em busca de sentidos de mundo que nos tragam bases para um conceito de infância, estabelecemos diálogos com Antônio Bispo dos Santos. O pensador quilombola fala de sentidos de mundo afro-pindorâmicos. Segundo ele, a palavra pindorâmico faz referência ao nome Pindorama, que teria sido usado por povos indígenas para nomear o atual território brasileiro antes da invasão europeia colonizadora dos portugueses. O termo afro faz menção à população negra. Numa articulação entre as duas palavras, Bispo dos Santos encontra pontos de contato para estabelecermos o que aqui chamamos de sentidos de mundo afro-pindorâmicos.
As manifestações culturais dos povos euro-cristãos monoteístas geralmente são organizadas em uma estrutura vertical com regras estaticamente pré-definidas, número limitado de participantes classificados por sexo, faixa etária, grau de habilidade, divididos em times e/ou equipes, segmentadas do coletivo para o indivíduo (onde o talento individual costuma ser mais valorizado que o trabalho em equipe) e em permanente estado de competitividade. As competições são praticadas em espaços delimitados e arbitradas por um juiz, aos olhos de torcedores e simpatizantes que devem participar com vaias e/ou aplausos (Santos, 2015, p. 41).
Ele estabelece diferenças entre visão de mundo ocidental - denominada de eurocristãos monoteístas - e sentidos de mundo afro-pindorâmicos. Por outro lado, as manifestações culturais, políticas e religiosas dos povos afro-pindorâmicos operam dentro de sentidos de mundo que estabelecem outras formas de organização.
[...] geralmente em estruturas circulares com participantes de ambos os sexos, de diversas faixas etárias e número ilimitado de participantes. As atividades são organizadas por fundamentos e princípios filosóficos comunitários que são verdadeiros ensinamentos de vida. É por isso que no lugar dos juízes, temos as mestras e os mestres na condução dessas atividades. As pessoas que assistem, ao invés de torcerem, podem participar das mais diversas maneiras e no final a manifestação é a grande vencedora, porque se desenvolveu de forma integrada, do individual para o coletivo (onde as ações e atividades desenvolvidas por cada pessoa são uma expressão das tradições de vida e de sabedoria da comunidade) (Santos, 2015, p. 41-42).
Com essas considerações, o conceito de infância emerge como um milagre brincante que restabelece a mais-valia da vida. Por mais-valia entendemos o mesmo que Brian Massumi em O Que os Animais nos Ensinam Sobre Política. Com as leituras do filósofo canadense, nós interpretamos a mais-valia de vida como a capacidade de invenção da vida, uma espécie de inventividade brincante que promove alegria. “Aquilo que se brinca é invenção. O rendimento estético da brincadeira vem com uma mobilização ativa dos poderes de variação improvisados” (Massumi, 2017, p. 28). A radicalização da ludicidade que faz da vida brincadeira e jogo.
Como dito antes, consideramos a existência de infâncias num plano de análise que permite pensarmos num tripé: a noção, a categoria analítica e o conceito. Se o conceito faz a infância funcionar como uma condição de experiência vivente, algo que está para além das fases biopsíquicas (noção) e que não pode ser visto apenas como uma construção social e histórica (categoria analítica), podemos usá-lo, numa equação complexa, como uma tática para enfrentar o racismo que organiza estruturalmente o nosso mundo. Eis nossa hipótese: a força mais poderosa contra o racismo permanece sendo a infância.
Nossa maneira para explorar a hipótese é afro-perspectivista. A afro-perspectividade não é um simples neologismo, mas uma abordagem acadêmica que se posiciona contra o racismo em seus diversos aspectos, considerando-a como um fenômeno-chave para compreensão de inúmeros desafios contemporâneos. Não evocamos nenhuma originalidade, mas um rearranjo de estudos de Molefi Asante, Abdias do Nascimento, Tânia Stolze Lima e Eduardo Viveiros de Castro (Noguera, 2011; Noguera, 2014; Noguera; Barreto, 2018). De maneira geral, a afroperspectividade é um exercício filosófico em diálogo com outras áreas das ciências humanas (especialmente a sociologia da infância) baseado em sentidos de mundo africanos, afro-brasileiros e indígenas de caráter biocêntrico que tem na infância um conceito-chave. Em termos afro-perspectivistas, reconhecemos as infâncias em várias camadas, tal como diversas teorias e estudos preconizam (Qvortrup, 2011). Em especial, a afro-perspectividade aponta a infância - como conceito ontológico - como uma condição existencial, uma forma de experiência, um modo de relação e aquilo que nos aproxima de outras espécies vivas, que torna possível aumentar o repertório de possibilidades de viver. Neste sentido, a infância é o que se deve buscar em qualquer projeto de educação.
O Racismo Como Sistema-Mundo (e suas relações com as infâncias)
O historiador e filósofo camaronês Achille Mbembe traz contribuições instigantes para pensarmos o sistema-mundo. Sua interpretação de Franz Fanon e a aproximação com os estudos pós-coloniais rendem muitos frutos. Em Crítica da Razão Negra encontramos a seguinte passagem:
‘África’ e ‘negro’ - uma relação de coengendramentro liga esses dois conceitos. Falar de um é, na realidade, evocar o outro. Um confere ao outro o seu valor consagrado. Como já dissemos, nem todos os africanos são negros. No entanto, se África tem um corpo e se ele é um corpo, um isto, é o Negro que o confere a ela - pouco importa onde ele se encontra no mundo. E se Negro é uma alcunha, se ele é aquilo, é por causa de África [...], examinamos o modo como a África e o Negro acabaram por se tornar o signo de uma alteridade impossível de assimilar, a própria efração do sentido, uma alegre histeria (Mbembe, 2018, p. 79).
Ora, a efração do sentido é a sua transgressão. As populações negras do mundo inteiro e o continente africano estão numa situação de desvalia dentro do sistema geopolítico global. Mbembe continua sua análise e postula que a etnologia ocidental e as filosofias da história produziram uma dicotomia radical em que as sociedades podem ser classificadas em sociedades primitivas e civilizadas. Em paralelo, o impacto da obra Origem das Espécies, de Charles Darwin, e algumas de suas recepções mais influentes ajudam a corroborar com a hipótese de que a África seria a infância da humanidade. Por associação, a negritude - entendida aqui simplesmente como ser negra ou ser negro - seria a face da infância. Em algumas abordagens nas áreas de biologia, psicologia e psicanálise, encontramos duas categorias analíticas que podem nos ajudar a pensar essa relação entre infância, África e negritude. O biólogo alemão Ernst Haeckel foi um difusor dos trabalhos de Darwin, sustentando as categorias de filogênese e ontogênese como indispensáveis para entendermos as relações entre o desenvolvimento de uma espécie e de um indivíduo. A partir de Haeckel (1904), a ontogenia estaria reiterada e, ainda mais, sistematizada como o estudo do desenvolvimento de um organismo individual desde a fecundação; filogenia é o estudo do desenvolvimento de uma espécie. Em algum grau existiriam relações entre filogenia e ontogenia.
O projeto de colonização europeia operou por meio de fabulações que fizeram miscelâneas estapafúrdias, dentre as quais: a filogênese da humanidade tem início negro. Em outras palavras, o processo filogenético tem como endereço: África. Daí a tese mais aceita de que os primeiros seres humanos surgiram no continente africano corroboraria para justificar a infância filogenética como sendo eminentemente um sinônimo para gente negra. Diversos expoentes intelectuais europeus do século XIX foram responsáveis por embutir em todos os seus discursos científicos, “[…] mitos destinados a fundamentar o seu poder, o hemisfério ocidental considerava-se o centro do globo, o país natal da razão, da vida universal e da verdade da humanidade” (Mbembe, 2018, p. 29). O hemisfério norte, o ocidente seria a fase adulta da humanidade. O que dizer então de pessoas que estão duplamente na infância? Infância porque são crianças e, ao mesmo tempo uma eterna infância porque são negras. Nesses parâmetros, os povos negros representariam essa infância de toda a humanidade, e o sujeito branco, o adulto-salvador. É essa visão de mundo que passou a organizar as relações geopolíticas entre os povos. A partir desses aspectos, especulamos que, filogeneticamente, negro se transformou em sinônimo de infância da humanidade.
No contexto brasileiro isso está explícito na maneira como o Estado conduziu o pós-abolição. A república brasileira fez de tudo para expulsar a população negra, desde a propagação dos mitos mais estapafúrdios para justificar imigração branca, como o de que europeus brancos eram mais trabalhadores e mais eficientes do que os negros, até os meios mais cruéis para tornar a grande massa populacional negra invisível. Os dados da época informam uma contradição incontornável para o projeto de construção de uma nação capitalista. Os dados abaixo desconstroem essa narrativa.
Como se pode explicar semelhante anomalia? Muito bem, respondemos nós - o europeu na fazenda é um mártir: o clima, o sistema de alimentação e o trabalho agreste fazem com que ele, depois de um ano de trabalho, no qual forra um peculiozinho, se retire para a cidade, tornando-se um negociante em qualquer escala. No estado de São Paulo, há uns 300.000 trabalhadores europeus nas fazendas, os quais não dão vazão ao trabalho que em 1887 era feito com folga por 100.000 pretos! O desprezo dado aos pretos pelos fazendeiros é uma das principais crises da lavoura. Depois da abolição, um preto limava mil pés de café por 40$000 anuais, hoje o europeu limpa por 80$000; um preto colhia um alqueire de café por 300 reis, e hoje o europeu colhe por 1$000. [...] Os pretos em todos os pontos de vista devem ser preferidos aos estrangeiros para o trabalho agrícola; e nem se diga que o trabalho do europeu supera o do nacional, porque dizem que o europeu trabalha impulsionado pela inteligência [...] O governo paga, além da passagem, 70$000 por imigrante agrícola, o qual não para na fazenda e absolve essa quantia dos cofres públicos, sem o mesmo resultado para a lavoura e prova do Estado. Se esse dinheiro revertesse em benefício da educação agrícola dos nacionais, que grandes vantagens não seria para a lavoura e para o estado (Jornal O Progresso apud Pinto, 2006, p. 155).
A lógica do capital pretende lucrar. A população negra escravizada produzia muito mais do que os brancos europeus que chegaram. Não seria mais racional manter as pessoas ex-escravizadas como assalariadas? O que moveu a política de imigração, portanto, não foi a produtividade, mas tão somente o racismo. A população negra não era bem-vinda em território brasileiro. Temos como exemplo a escola, que tinha como objetivo para essa população a regeneração, a cura do mal de ser negro.
Por outro lado convém attender aos milhares de indivíduos que, sahidos da escravidão na maior ignorância, sem crenças, sem noção dos deveres, precisam receber na escola a instrução e educação necessários para a sua completa regeneração: convém também attender a grande affluencia de imigrantes que se estabelecem em nosso solo, e cujos interesses intellectuaes e morais não podem ser diferentes daquelles que dirigem os destinos da sociedade (Rio de Janeiro, 1889, p. 3-4).
Vemos, assim, a mão escravocrata na missão civilizadora da escola. Além disso, grandes expoentes brancos da elite intelectual e cultural brasileira da primeira metade do século XX não deixam dúvidas de que a população negra não era tolerada. Algumas das cartas entre Monteiro Lobato e personagens como os médicos Renato Khel, Arthur Neiva e seu amigo e também escritor Godofredo Rangel retratam um projeto de desenvolvimento em busca de uma nação branca em suas correspondências. Um dos maiores expoentes da literatura infanto-juvenil brasileira reuniu mais de 500 páginas de cartas de anos de conversas com o escritor Godofredo Rangel.
Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral - e no físico, que feiura! Num desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas - todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível - amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como sardinhas e há um desastre por dia, metade não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. ‘Que foi?’ ‘Desastre na Central’. Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança! (Lobato, 1964, p. 133).
Essas considerações ajudam a pensar aquilo que Mbembe (2018) afirmou como sendo designar África como uma ausência. Ou ainda, o nome da incapacidade de pronunciar o universal. África estaria ligada à noção de infância em escala mundial. Se a noção de infância nos fala de uma fase da vida individual, aqui assume o sentido de um período da humanidade, de uma etapa evolutiva do ser humano. A lógica da visão de mundo ocidental estabeleceria um quadro, vale dizer banal e indecente, no qual: no início a espécie teria começado negra e no continente africano; mas, com o tempo as adaptações teriam proporcionado a evolução. A agenda geopolítica do ocidente, que se autoproclamou guardiã da razão, se baseia numa visão de mundo que ampliou a noção de infância do indivíduo às alturas dos continentes e das raças, o que fez do racismo, ainda que isso seja sempre desmentido, um inquestionável postulado da natureza.
A Peste Branca e a Adultidade
Foi num trabalho de campo que aprendemos a categoria analítica adultidade com uma criança de 8 anos (Noguera; Gutman; Feitosa, 2017). Os diários de campo da equipe de pesquisa registraram em conversas com o grupo focal de vinte crianças de 6 a 11 anos, o neologismo: adultidade. A menina, que aqui chamaremos de Olivia, disse que a adultidade é alguma coisa que as pessoas adultas têm e as fazem malvadas. Ela ensinou ao grupo de pesquisa algo que podemos combinar com a expressão mal branco, de Artaud (2006).
[...] numa ilha sem qualquer contato com a civilização atual, a simples passagem de um navio contendo apenas pessoas sadias pode provocar o surgimento de doenças desconhecidas nessa ilha e que são especialidade de nossos países: zona, influenza, gripe, reumatismos, sinusite, polineurite, etc, etc. E, também, se achamos que os negros cheiram mal, ignoramos que para tudo o que não é Europa somos nós, brancos, que cheiramos mal. Eu diria mesmo que exalamos um odor branco, branco assim como se pode falar num ‘mal branco’. [...] a cor branca tornou-se a insígnia da mais extremada decomposição (Artaud, 2006, p. 4).
Em Teatro e o Seu Duplo, o dramaturgo francês Antoine Artaud afirma que a Europa branca, ao entrar em contato com outros povos, foi responsável por uma espécie de contágio perigoso, do nosso ponto de vista, para toda a humanidade.
Trabalhamos uma superposição entre adultidade e a peste branca. Nossa hipótese filosófica é de que elas deslizam uma por dentro da outra, sendo conceitos que, ora funcionam como correlatos, ora como coextensivos. A peste branca é definida como um projeto de colonização europeia do resto do mundo, algo próximo de uma doença. Tal como sugeriu, em certa medida, os estudos biogeográficos de Jared Diamond (1997), tidos como bastante controversos em virtude do caráter determinista. No livro Armas, Germes e Aço, Diamond sugere que a Ásia e, principalmente, a Europa, por motivos geográficos e de interações, produziu um adoecimento em larga escala, o que ocorreu pela mais frequente criação de animais (aumentando a chance de contágios), uso de exércitos permanentes (carreando recursos que implicavam em mais trabalho do que o resto da sociedade), muralhas diante ameaças contínuas (stress contínuo diante de eminentes ataques) e declaração de guerra a outros povos em busca de mais recursos. Povos africanos, ameríndios e todos os chamados de primitivos pelos brancos seriam a priori mais inteligentes do que os europeus, principalmente porque não teriam o instinto de colonização, que seria um sinal, conforme Diamond, de uma certa inferioridade. Aqui não nos interessa discutir toda extensão da complexa tese diamondiana, mas somente chamar atenção para alguns aspectos. Para Diamond, a vontade da Europa em expandir seus domínios em busca de território teria mais relação com baixa inteligência e convívio prolongado com doenças. Em poucas palavras, os povos doentes são mais violentos. Para o biogeógrafo, sociedades africanas e indígenas tradicionais são melhores. Ele comenta isso comparando povos tradicionais da Nova Guiné com os ocidentais.
É fácil encontrar dois motivos para comprovar minha impressão de que os nativos da Nova Guiné são mais inteligentes que os ocidentais. Primeiro, os europeus têm vivido por milhares de anos em sociedades densamente povoadas, com governos centrais, polícia e sistema judiciário. Nessas sociedades, doenças epidêmicas infecciosas (como a varíola) estavam entre as mais importantes causas de mortes [...]. Por outro lado, os nativos da Nova Guiné têm vivido em sociedades nas quais a quantidade de pessoas é pequena demais para permitir o desenvolvimento de doenças epidêmicas comuns às populações mais densas [...] As crianças europeias e norte-americanas de hoje gastam boa parte de seu tempo passivamente entretidas pela televisão, pelo rádio e pelo cinema. Em um lar médio norte-americano, a televisão fica ligada diariamente durante sete horas. Por outro lado, as crianças da Nova Guiné não têm essa oportunidade e fazem alguma atividade durante quase todas as horas em que permanecem acordadas, seja conversando ou brincando com outras crianças ou com adultos. Quase todos os estudos sobre o desenvolvimento das crianças enfatizam o papel do estímulo infantil e da atividade para o desenvolvimento mental, além de destacarem os prejuízos mentais irreversíveis associados à ausência de estímulos. Esse efeito naturalmente contribui com um componente não-genético para a função mental em média superior apresentada pelos nativos [...]. Portanto, o habitual pressuposto racista tem que ser virado de cabeça para baixo (Diamond, 1997, p. 25-26).
Em certa medida, as afirmações de Diamond ajudam a pensar numa inversão antievolucionista. O que parece evoluído seria justamente o mais atrasado e, ainda pior, perigoso, porque impõe modelos terríveis de gestão da vida, modos opressivos a que alguns grupos são submetidos, impondo a instrumentalização de muitos em benefícios de poucos. Sabemos que a ideia de que existem povos mais inteligentes do que outros é perigosa e que historicamente já trouxe consequências nefastas, como a escravização negra do século XIV ao XIX, a crise ambiental global, o fluxo de refugiados por motivos de guerra e xenofobia, o aumento crescente de violência contra mulheres, o crescimento de grupos e ataques racistas e outras formas de opressão. A nossa tese é de que a infância - como modo de existir - é a condição necessária e suficiente para enfrentar esses problemas e transformarmos a realidade em um estado de coisas biocêntrico. No entanto, é curioso termos uma tese que diz algo bem distinto de outras mais populares e que lutam para organizar a vida pública. O que nos interessa é que, a partir dos estudos de Diamond, das poéticas considerações de Artaud e das palavras de uma criança que cunhou o conceito adultidade, temos bases para afirmar nossa expressão conceitual, peste branca. Por peste branca entendemos uma perigosa nuvem que atravessou o mar Atlântico e invadiu outros continentes autoproclamando-se narcisicamente como modelo civilizatório. Nos usos das armas, invadiu a África e a América, estabeleceu colônias em todo o resto do planeta julgando que a sua aparente vitória não fosse a derrota de todo o mundo. Eis a adultidade - uma adulteração perigosa do desejo, um esquecimento de que o mistério da vida deve ser celebrado. Adultidade indica o descarrilamento dos trilhos de um milagre: existir é um convite ao desejo de liberdade. Porém, quando a existência se adultera e se resume a mercantilização ou fica presa nas armadilhas do racismo perverso, estamos diante de um perigo que ameaça todos os seres. Dentro da lógica de que a África é a infância da humanidade, a adultidade é o comportamento daqueles que se autodenominaram os grandes civilizadores. Ora, eles difundiram pelo mundo uma peste voraz e contagiosa que por ser branca significa justamente: esquecimento. Dar branco indica esquecer. A peste branca inoculada pela adultidade europeia tem uma missão: nos faz esquecer que o milagre da existência merece celebração cotidiana. A peste branca quer substituir a experiência vital por mercadorias, por modelos de existência reduzidos e incapazes de traduzir toda mais-valia de vida que podemos experimentar. Tal como nos diz Mbembe (2018), tornar vida e morte tão inseparáveis que alguns devem figurar como cadáver do mundo. A peste branca, tal como denominamos, começou escravizando povos negros, expulsando povos ameríndios de seus territórios. Mas, o seu objetivo é criar a maior quantidade possível de mortos-vivos. Fazer com que ser humano seja ser, nos termos de Mbembe: corpo-máquina e corpo-mercadoria. A adultidade é esse modo de ser que recusa qualquer outra possibilidade que não seja a seriedade dos mortos-vivos, gente que goza seus falsos prazeres sempre em função de uma mercadoria.
Dois Estudos de Caso: um par de tênis e duas botas
Diante dessa categoria, a infância precisa ficar em primeiro plano, o que torna relevante nos voltarmos para as crianças; afinal, a categoria analítica infância é o que unifica as crianças. Tal como afirma Manuel Jacinto Sarmento (2007), é por meio da categoria de infância que conseguimos identificar elementos comuns que distinguem crianças de adultos e fatores que expressam uma condição geracional comum. A infância como categoria é “[…] relativamente independente dos sujeitos empíricos que a integram, dado que ocupa uma posição estrutural” (Sarmento, 2008, p. 7). Temos, portanto, elementos das culturas infantis que aproximam todas as crianças independentemente de raça, classe social, gênero e cultura, mas, ao mesmo tempo, a categoria infância opera por meio de intersecções. Em se tratando de um estudo que tematiza o racismo, é relevante colocar crianças negras em primeiro plano. É preciso que falemos de crianças negras, o que merece uma ponderação. Em Sociologia da Infância, Raça e Etnografia: intersecções possíveis para o estudo das infâncias brasileiras, Míghian Danae Nunes contribui para o assunto. “Parece correto afirmar que a infância negra que é visibilizada pelos estudos acadêmicos possui um lugar relacionado com a ideia de falta, ausência, para além da ideia de incompletude que já é associada à imagem da infância” (Nunes, 2015, p. 419). Ela observa que os estudos sobre infância negra tendem a enfatizar muito mais os problemas, insucessos, fracasso escolar, dados de exclusão social, privações de diversos tipos relativos às crianças negras. Como já foi dito, para além da denúncia; interessa-nos a pronúncia.
O nosso percurso metodológico permanece um caminho entreaberto. Mas no caso da tomada de um filme como objeto de pesquisa, incorporamos alguns aspectos da análise visual crítica da britânica Gillian Rose. Para Rose, a pesquisa de imagens não deve ter como alvo encontrar a verdade; não se trata de fazer uma exegese atrás de um sentido único, profundo e fixo, mas de construir uma possibilidade de leitura (Rose, 2001). Por isso, não tomamos o filme apenas como linguagem no sentido restrito do termo. O audiovisual é um saber, uma experiência. Dessa forma, no ritmo de uma metodologia polirracional, colocamos em diálogo o filme Cores e Botas com acontecimentos registrados num caderno de campo da educação infantil. Em diálogo: duas crianças, a do filme e a do caderno de campo. Num filme, encontramos a menina. Ela, Joana, negra e estudante. Ele, João, negro, estudante. Ele: situado numa creche fluminense de periferia, onde nossa equipe observou e interagiu com crianças de uma turma de 3 anos completos.
No cenário nacional da indústria de entretenimento voltada para o público infantil destacamos o filme em que a personagem Joana é alvo de violência racial. Vale lembrar que de 1986 a 1992, as crianças brasileiras assistiam um dos mais badalados programas infantis de variedades da TV aberta nacional, o chamado Xou da Xuxa. O filme Cores e Botas (2010), dirigido por Juliana Vicente é muito interessante. Na trama de quase 16 minutos, uma menina chamada Joana quer ser Paquita. O detalhe: Joana é negra e todas as Paquitas são brancas e com cabelos loiros. A branquitude era o primeiro crivo para concorrer ao cargo de Paquita, era preciso ser uma menina branca (de cabelos loiros) para participar da seleção, o que estava explícito no time escalado para trabalhar com a apresentadora. O Xou da Xuxa nunca teve assistentes de palco negras. Vale registrar que, mais adiante, Xuxa Meneghel apresentou Xuxa Park (1994 a 1999) e Planeta Xuxa (1997 a 2002). Neste último, contratou Adriana Bombom, que sem dúvida não tinha o mesmo status das Paquita e, além disso, era marcada por um apelido racial: Bombom, que faz menção ao chocolate.
Conhecemos João, um menino negro de 3 anos de idade, por meio de um trabalho de campo feito em 2016 numa creche da periferia do Rio de Janeiro. Nosso diário de campo captou instantes do menino. Ele pega o tênis, vai para frente do espelho, senta e posiciona seus pés ao lado da mercadoria: primeiro o pé direito, em seguida, o esquerdo. Depois alternadamente, até que, admirado e absorvido pelo par de tênis de marca famosa, parece hipnotizado e por alguns minutos paralisado. No filme, a menina Joana deseja ser Paquita, uma fantasia racista. A sua família negra de classe média insiste que podemos conquistar tudo que desejamos com muito trabalho, porque é através do trabalho que o ser humano “[…] impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza” (Marx, 1971, p. 202) e daí, trabalharíamos para conquistar os nossos desejos. Num raciocínio simplório, desejamos e trabalhamos para conquistar o que desejamos. A mercadoria aqui entendida tão somente como resultado do trabalho, no contexto do capitalismo significa aquilo que pode satisfazer necessidades humanas. É muito ingênuo estabelecer um nexo causal entre trabalho e conquista do desejo.
Podemos especular que Joana e João parecem com milhões de meninas e meninos, sempre capturadas e capturados pelos pés. A expressão popular (uma categoria nativa), pegar pelo pé encontra boa definição na situação dessas duas crianças. Afinal, calçados têm muito a ver com racismo. No contexto brasileiro, os pés foram e parecem continuar como um sinal importante para distinção entre gentes livres e escravizadas, brancos e não brancos. Se a lógica é de que a mercadoria pode ser a fonte da realização dos desejos, estamos diante de um grave problema. Os pares de tênis e botas são mercadorias, especificamente calçados. No entanto, o que são calçados no cenário brasileiro escravista e atual? Além de objetos de desejo, mercadorias, calçados são marcadores sociorraciais. Conforme as historiadoras Katia Mattoso (1982), Manuela Cunha (1985) e o historiador Sidney Chalhoub (1990), todo período em que a escravidão negra foi vigente no Brasil, a população escravizada andava descalça. Calçar os pés era permitido para gente branca e pessoas alforriadas. Para Chalhoub (1990), os sapatos foram peças decisivas para definir escravidão e liberdade. Principalmente no que diz respeito à população negra; a maneira de identificar pessoas alforriadas e escravizadas eram os pés calçados. A partir disso, podemos especular filosoficamente que essa mercadoria - na raiz do racismo brasileiro - passou a assumir um aspecto muito poderoso no imaginário nacional. Os pés (bem) calçados são muito importantes para definir graus de liberdade. No contexto escravista, tínhamos situações em que pessoas forras não conseguiam calçar sapatos por terem tido décadas de vida com os pés descalços, o que fazia muitas delas andarem com sapatos pendurados num dos ombros ou no pescoço.
Joana, a personagem do filme, ambiciona ser Paquita, porém, depois da decepção de ser eliminada numa pré-seleção para concorrer ao papel, fica triste e consciente. Ela descobre que sendo negra nunca poderá ser aceita para a função, ainda que seu pai e sua mãe digam que ela pode ser tudo que quiser. Ela sabe que não pode ser branca. No final do filme, a menina joga vários pares de botas de Paquita fora e decide fotografá-las. Ela sorri novamente tirando fotos das botas que jogou no lixo. Tal como a personagem do filme, o menino da creche também já sabe que não pode calçar o tênis. Por um lado, não pertencem ao menino, por outro, mesmo que coloque o tênis, em algum momento terá que tirar. Na hora que ficar descalço, João perderá o que a mercadoria lhe tinha concedido. Ele ambiciona o tênis, mas sem fixar o olhar no espelho, um olhar sem ilusão e, ao mesmo tempo, capturado pelas malhas do fetiche, dentro dos limites da sociabilidade cruel que aprendeu a ler. João parece desejar o tênis, fita-o por longos minutos como se nada mais existisse ao seu redor. No fim, decide brincar. João sorri brincando com outras crianças e deixa o tênis do colega de turma de lado.
Uma das máximas embutidas na história do Brasil escravista e pouco trabalhada é de que descalços apenas os brancos são livres. Entre negros, o calçado é fundamental, mas, para os brancos, basta a branquitude. João não calça o tênis. Ele é tão miúdo e tão consciente. Joana é uma menina de aproximadamente oito ou nove anos e, do mesmo modo que João, tão consciente. A mercadoria poderia realmente conceder a liberdade da branquitude? João poderia ser mais feliz se tivesse o par de tênis caro? Joana poderia se tornar mais respeitada se fosse Paquita?
As mercadorias são os fetiches que tiram as almas das coisas e nos fazem cativos de nossos prazeres - pior das escravidões, no sentido spinozista, de servidão pelos afetos. Em linguagem spinozista, o afeto pelo calçado pode se tornar uma paixão triste (Spinoza, 2009). É contra as paixões tristes que convocamos a infância negra como uma forma de combate, assunto que retomaremos mais adiante. O filósofo europeu do século XVII, Baruch Espinoza ensina bastante a respeito dos afetos. Para Espinoza, a noção de afeto engloba tanto paixões como ações. Na sua obra a Ética, o filósofo define afeto como uma paixão ou ânimo que aumenta ou diminui a força de existir de um corpo. Os afetos têm papel central na filosofia de Espinoza. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (Spinoza, 2009, p. 163). Espinoza reconhece três afecções primárias das quais as outras derivam ou estão de alguma maneira ligadas. As três são: alegria, tristeza e desejo.
Nos dois casos mencionados temos duas paixões perigosas. João, pelo tênis de marca famosa. Joana, pelas botas, uma maneira de dizer: “[…] quero me tornar Paquita”. Essas duas crianças funcionam como um alerta para as brutalidades que afetam as infâncias negras. Nessas crianças encontramos pequenas ações (que aqui não deixam de ser ações pequenas) de enfrentamento do racismo. João e Joana parecem conseguir contra-atacar diante de um jogo ardiloso das mercadorias como promessa de alegria, já que os tênis e as botas despertaram o desejo das crianças, mas a impossibilidade de possuí-los provocou um afeto triste.
A filósofa Marilena Chaui (1995; 1999) comenta o pensamento filosófico de Espinoza e explica que aumentar a potência de uma pessoa equivale a expansão de seu território de ação, ampliando a sua independência, propiciando outras relações com os outros corpos. No caso das duas crianças negras foi preciso que expandissem seus territórios ou ficariam restritas aos limites da falta de dinheiro (classe social) e do impedimento de fazer um teste (racismo). Numa leitura espinosana, isso significava golpear a menina e o menino o afeto da tristeza. Porém, Joana desistiu de ser Paquita e começou a fotografar, ela aumentou a sua potência de agir no mundo. João optou por brincar. A sua brincadeira não carecia de calçar os pés com tênis de marca famosa e pode encontrar o afeto da alegria.
Mbembe (2018), em sua erótica da mercadoria, anuncia o processo da escravidão com muitas semelhanças com Espinoza. O sistema-mundo racismo é a disputa por “[…] monopólio e gestão racializada dos recursos da sociedade e do planeta” (Moore, 2007, p. 293). Porém, seria ingenuidade supor que o racismo funciona apenas pelos meios mais explícitos. A sua força está justamente num grau de dissimulação cínica, num erotismo sedutor que tem se tornado mais poderoso neste momento da história da humanidade em que o capitalismo se serve do animismo (Mbembe, 2018). Para Mbembe, o neoliberalismo é o contexto de fusão entre plano político-econômico capitalista e animismo (Mbembe, 2018, p.17). Na perspectiva de Mbembe, o racismo está sempre fazendo seus indecentes convites para que negros incorporem um ethos que seja um misto de animal de carga e coisa a ser exibida. E, no contexto neoliberal, o ser humano em geral se torna o sujeito do mercado e da dívida, além do confinamento nos variados tipos de prisões; endividar se transforma numa profunda forma de controle. Estamos diante, então, de uma erótica da mercadoria, porque o projeto do capitalismo é tão somente fazer as pessoas escravas de seus próprios prazeres. Por isso, perguntamos: o que as crianças negras fantasiam? Ou indo mais longe, com o que ser humano goza? Aqui cabe uma breve digressão sobre a distinção e a relação entre o desejo e o prazer. Seguindo as considerações de Espinoza, Deleuze e Mbembe, a sujeição se dá pela via do prazer, não pela via do desejo. Ou seja, a sujeição vem por meio dos controles pela conformação dos fluxos desejantes, por meio da repetição, estabelecendo normas dos afetos já efetuados - o gozo das posses privadas tornadas públicas nas redes sociais, as crianças que querem ser heroínas, heróis, príncipes e princesas, e toda a sorte de perversão ou reterritorialização dos fluxos. Os prazeres já estão pré-fabricados e bastaria acessá-los por meio de alguma mercadoria. O desejo não pode ser reduzido num produto. As crianças negras aqui mencionadas passam por isso: par de botas (fantasia de Paquita) e par de tênis (sucesso). Essas mercadorias seriam muito mais a conquista de um prazer do que a manifestação de desejos. Os prazeres são armadilhas, porque ao invés de aumentarem a potência de existir, a diminuem.
Na esteira desses autores, defendemos o primado do desejo, essa força movente, que mobiliza o virtual e não depende do objeto ou de qualquer forma de objetificação. Assim, o desejo de nada carece, é a potência de desterritorialização dos dispositivos que assentam de maneira coercitiva a relação entre sujeito e objeto; a sexualidade sobre o sexo; os fantasmas ou ao espetáculo das aparências. “O seu gozo depende quase inteiramente da capacidade de reconstruir publicamente sua vida íntima e de oferecê-la no mercado como uma mercadoria passível de troca” (Mbembe, 2018, p.16). O que podemos traduzir como o gozo de estar em redes sociais virtuais para celebrar “[…] vidas perfeitas”. Geralmente as fotos na internet, nas mais diversas redes de relacionamentos, captam sorrisos, momentos felizes, situações que retratam inteligência, coragem, criatividade. Cada vez mais cedo esse modelo é imposto à infância, ainda mais porque a dissipação das fronteiras tem sido erguida pela globalização das imagens que navegam pela internet. A infância como categoria social é um território que faz parte das zonas de investimento do capitalismo animista constituído pelo racismo estrutural. “Uma parte do trabalho consiste agora em transformar o real em ficção e a ficção em real” e tudo isso passa por “[…] pela mobilização total através das imagens” (Mbembe, 2018, p. 2018).
Essa trama perversa vem de longe. Ela já estava presente no projeto dos potentados coloniais que se serviam do dispositivo fantasmagórico da colonização para fazer das populações negras uma ficção aberrante que, por direito, devia ser escravizada e controlada. O potentado remete ao senhor rural, o homem branco e grande proprietário em países colonizados que exercia o seu poder de modo independente da metrópole (Botelho; Reis, 2008). Esse potentado já prenunciava em seus dispositivos uma erótica da mercadoria. Mbembe (2018) desemaranha as forças dos cativeiros ao definir um imaginário sem simbólico em um perpétuo preenchimento por uma febril fruição de mercadorias, denunciando a pilhagem simbólica.
Para Mbembe, podemos compreender as relações étnico-raciais no entroncamento entre delírio e mercadoria, o que passa a expressar uma crueldade polimorfa sem limites ao tornar visível uma representação maculada por uma ferida proveniente da cisão entre os signos e o imaginário. Isso pode ser visto pela substituição perversa do patuá (signo de uma cultura animista) pelos badulaques, mercadorias produzidas em propulsão pelo ocidente em sua era da reprodutibilidade técnica, ao alterar a geopolítica das feridas históricas, ao defender a plantation e o potentado como trauma originário com seus/nossos investimentos inconscientes na subjetivação colonial e sua efetuação nos corpos e nos espaços. O fantasma dessa imagem do potentado tenta sempre se reinventar através dos novos senhores brancos, do adulto branco que pode resolver os problemas e ser porta-voz de alguma verdade, por ter um discurso justo e convincente.
A via de resistência aberta pela Crítica da Razão Negra não se dá pelo enfrentamento direto. A menina Joana do filme Cores e Botas tanto quanto o menino João enfrentam e resistem às artimanhas da erótica da mercadoria mais pela tática do que pela estratégia. Não se trata de um movimento que frontalmente crie estratégias para acabar com o sistema-mundo do racismo, mas, tão somente táticas. É preciso assumir que as táticas são pequenas e infantis, um tipo de contraefetuação, isto é, o triunfo do desejo livre, independente e que é a causa de seus acontecimentos. Enquanto as estratégias são de ordem mais geral, operam para enfrentar grandes confrontos. Nós fazemos valer a diferença entre estratégia e tática pela estatura. A estratégia está interessada nos grandes combates. A tática trabalha como uma contraefetuação, não se deixa emaranhar pelas malhas/armadilhas de produção de sentido do hegemônico e vazam por entre tantas linhas cortantes do capitalismo colonialista. Algo que desconfiamos que provavelmente só gente negra, povos indígenas e crianças possam fazer.
Joana e João são duas crianças negras que contraefetuaram o único ataque possível, investir sua vida contra a tristeza, tal como a reclamação de Míghian Nunes de que a infância negra tem sido muito estudada pela sua dupla falta. Aqui, esses dois casos estariam redimindo o registro recorrente e ressaltando um aspecto propositivo. O que existe nas pequenas ações dessas duas crianças negras, mesmo que vejamos uma como real e a outra como fictícia? Como explica Mbembe (2018), numa sociedade global neoliberal todos os esforços pretendem fazer com que as fronteiras desapareçam, deixando o capital livre para circular e convidar as pessoas para um tipo de coisificação animalizada.
Pois bem, a infância negra pode ser pensada para além do caráter de categoria social que abriga as crianças negras. Ela pode ser pensada especulativamente como um conceito disruptivo - aquilo que fez a menina de oito anos cunhar adultidade, Joana jogar as botas fora, e João trocar o desejo do par tênis pela experiência da brincadeira. As crianças negras são obrigadas a resistir. Na Conferência Internacional sobre Crianças, Repressão e Lei na África do Sul feita em Harare, Zimbábue, em setembro de 1987, quando o regime do apartheid era oficial, Angela Davis afirmou que mesmo diante dos maiores horrores e atrocidades, “[…] as crianças da África do Sul mantêm seu indomável espírito de resistência. Isso se confirmou diversas vezes em seus testemunhos nessa conferência”. Davis afirmou diversas vezes que a resistência das crianças negras era algo fora do comum. Ao se referir ao cenário de opressão racial da década de 1980, a filósofa observou que “[...] as crianças negras da África do Sul estão [...] conscientes [...] de que há [...] risco de morte [...]. E continuam dançando, cantando, mantendo viva sua audaciosa crença na liberdade iminente” (Davis, 2017, p. 95).
Angela Davis escreveu sobre as crianças negras sul-africanas: “Sua resistência é inspiradora. Mas, não esqueçamos de que são crianças” (Davis, 2017, p. 96). Com isso não estamos postulando a inexistência da vulnerabilidade infantil, mas, reconhecendo que apenas a infância pode suscitar a curiosidade e o encantamento diante da vida, mesmo nos momentos mais terríveis. Não se trata apenas das experiências das crianças. É o caso de uma leitura afroperspectivista em que a condição da infância é um modo de lançar olhares inéditos sobre o mundo em busca de percursos que estão por fazer. Em outros termos, a evocação da infância negra pode funcionar como uma resistência à coisificação e animalização. A exaltação da infância e da negritude podem se tornar possibilidades para educar em favor da vida - uma esperança que habita o presente.
10 Teses Infantis para Combater o Racismo
É em função de pensarmos a infância negra como um conceito que vamos estipular teses de combate ao racismo. Ainda cabem ressalvas que não cansamos de repetir. O racismo não é um problema que possa ser pensado pelo viés do esclarecimento. Informação e conhecimento não são capazes de destituir o projeto racista, a estrutura sistêmica que se organiza pela discriminação racial. Tampouco podemos mudar a cabeça de uma pessoa com conversas esclarecidas e argumentos bem montados. Partindo do coração como um órgão pensante, tal como nos ensina o filósofo Amenemope6 em sua obra clássica de 30 capítulos. Espinoza séculos mais tarde enquadraria o conhecimento como mais um afeto. Em termos afroperspectivistas, assumimos inspirações amenemopeanas, afro-pindorâmicas, mbembeanas, espinosanas e da tese do Homo Ludens de Johan Huizinga.
Na esteira de filósofos como Amenemope e Espinoza, podemos afirmar que somos seres afetivos e que não existe uma cisão radical entre as dimensões do afeto e da razão. Dito isso, é importante reconhecer que o racismo é um problema que só pode ser enfrentado pelo afeto. Através da junção da arena original da atividade (luta, casa, corrida, caçada) com a simulação no play ou no jogo, os brincantes encenam, vivem em realidade, incorporam sem encarnar: faz de conta que é sendo pela força de um atravessamento, um arrematar mútuo na dimensão transindividual. Um faz de conta que não depende da palavra, sendo gesto vital que reforça a vitalidade do corpo e faz nascer o novo do mesmo ao romper a linguagem para tocar na vida, são gestos, sons, palavras, fogo, gritos. Para o dramaturgo Artaud (2006), tudo o que não nasceu pode vir a nascer, desde que não nos contentemos em permanecer simples órgãos de registro. A título de conclusões parciais, apresentamos teses que problematizem os perigos do racismo e do adultocentrismo para educação. Nossos resultados de pesquisa indicam que a educação deve ser antirracista e antiadultocêntrica. Portanto, encaminhar uma proposta em afroperspectiva pressupõe um conjunto de princípios, nunca regras fixas ou manuais. Portanto, vamos apontar alguns elementos que possam fazer germinar uma educação baseada na infância, isto é, comprometida com a vida, o que não é uma exclusividade da abordagem afroperspectivista; porém, um princípio inegociável da concepção de educação em afroperspectiva é viver em estado de infância. Na área de educação, a afroperspectividade não passa de um convite para que, durante os processos educativos, crianças, idosos, adolescentes, jovens e adultos possam habitar suas infâncias - porque só podemos ensinar e aprender frequentando nossas infâncias.
As 10 teses infantis propriamente ditas para combater o racismo são estas:
- Brincar como modelo irrecusável das relações humanas, com o meio ambiente e outras espécies de gente não humana (tais como cachorros, borboletas etc.);
- Visitar a sua própria cultura como se fosse estrangeira;
- Sonhar antes de dormir (ou aceitar que o milagre é inseparável do cotidiano do mistério de viver);
- Inventar práticas políticas antirracistas com os cotidianos (ou sempre assumir que o debate não produz resultados finais);
- Banhar a si e aos outros em águas respeitosas cantando canções alegres, tomar banho cantando canções alegres (em águas respeitosas);
- Assumir que o pensamento é sempre afetivo (ou escrever e desenhar nas paredes de casa);
- Comer frutas (ou criar uma lei obrigatória que faça adultos brincarem);
- Cuidar de jardins e hortas (ou criar a obrigatoriedade da ficção audiovisual ser negra, indígena e afro-pindorâmica);
- Reconhecer a branquitude como um perigo paDesse modo aquilo que aparenta ser um conflitora todos viventes do planeta;
- Viajar por culturas que não sejam a sua própria (ou manter a virtude epistêmica da infância - polirracionalidade).