Introdução
Como se sabe, a modernidade é um período marcado por avanços técnicos sem precedentes, pelo acelerado processo de urbanização e pelo surgimento da capacidade, que parece ilimitada, de produção de mercadorias e serviços. Segundo o diagnóstico de Walter Benjamin (1994), as condições sociais geradas pelo desenvolvimento técnico e pela evolução das forças de produção capitalista, ajudaram na transformação das estruturas subjetivas da nossa percepção, ao ponto de muito passar a se dar sob o ritmo da produção industrial. Alguns exemplos apontados pelo autor são as novas experiências ópticas e táteis. As primeiras emergem em função da circulação de pessoas e mercadorias nas grandes cidades, exigindo um mover-se cada vez mais rápido e atento ao tráfego, às luzes e à multidão, enquanto as segundas surgem com a automatização, quando inúmeras atividades do cotidiano realizadas por um conjunto de movimentos passam a ser substituídas por um único ‘click’, como é exemplo o registro de uma lembrança pelo acionar da máquina fotográfica (Benjamin, 1994).
É na experiência das grandes cidades que emergem entre o final do século XIX e início do XX que a subjetividade moderna ganha contornos mais claros. Elas são o palco em que se intensificam transformações técnicas e socioculturais, exigindo dos sujeitos modernos “[...] a apreensão de uma nova temporalidade, de inéditas formas de velocidade [...]. É na cidade que os sentidos são educados, que corpo, mimese e técnica se compatibilizam para que se constitua uma memória que possa tentar sobreviver aos choques da vida moderna” (Bassani; Richter; Vaz, 2013, p. 77).
No interior deste contexto de mudanças, dos novos ritmos de vida nas grandes cidades e do predomínio da dimensão técnico-instrumental, emergem as práticas de lazer e o chamado tempo livre, partes importantes da experiência de ser moderno, reforçando e constituindo os processos de transformação da percepção e da sensibilidade. Os boulevares e Cafés criaram novos espaços e experiências em público, os passeios na cidade proporcionavam um novo modo de percepção visual devido às ruas largas e alinhadas (Urry, 1996). Muito disso também se observa na prática da viagem, inicialmente de caráter burguês e expressa pelo Grand Tour e posteriormente expandida para camadas sociais menos abastadas, com o aperfeiçoamento e popularização dos meios de transporte.
Conforme explica Salgueiro (2002), a prática do Tour favoreceu, em grande medida, o gosto e a apreciação pelo cenário natural, pois as experiências de grandes deslocamentos permitiam a visualização e a admiração de paisagens totalmente diferentes daquelas encontradas nos locais de origem do viajante. A baixa velocidade dos meios de transporte utilizados no Tour, como carroças, cavalos e barcos à vela, além de oportunizarem a lenta apreciação visual da paisagem, pouco interferiam na percepção auditiva, de modo que o som e o silêncio ainda podiam ser percebidos de forma limpa, diferentemente de quando as viagens passam a ser realizadas pelas ruidosas locomotivas (Salgueiro, 2002). Os avanços dos meios de transporte foram decisivos para a produção de uma experiência sinestésica inédita, na medida em que permitiram o desenvolvimento de uma nova percepção espacial relacionada às noções de proximidade e distância. Além disso, viajar nos modernos meios de transporte propiciava tanto conforto, como uma sensação de velocidade em níveis inimagináveis aos viajantes das dificultosas jornadas tradicionais. Com maiores possibilidades de se ter um automóvel e/ou acesso ao ônibus na segunda metade do século XX, as transformações na percepção tátil aumentaram significativamente e conformaram modos de visualização e apreensão da paisagem cada vez mais rápidos (Salgueiro, 2002).
No contemporâneo, o turismo é praticado a partir de outras condições, mas, como buscamos mostrar a seguir, dentre as inúmeras opções de tempo livre, ele permanece uma prática intensificadora e modeladora importante em nossa formação subjetiva. Neste texto, perguntamos sobre a produção do olhar e seu papel no contexto do turismo de excursões, tendo em vista o lugar preponderante que a visão adquire na viagem e, de modo geral, em toda a vida moderna (Urry, 1996; Sontag, 1981; Türcke, 2010).
Para tanto, utilizamos dados empíricos produzidos a partir do acompanhamento e registro de 4 excursões que partiam de Florianópolis e tinham como destino cidades da região sul do Brasil. As excursões compõem o Programa de Turismo Social do Serviço Social do Comércio (SESC) de Santa Catarina. Cada uma delas levava em torno de três dezenas de turistas, eram realizadas de ônibus, empregavam um roteiro previamente definido e tinham duração de 2 a 4 dias. Os registros foram feitos em diários de campo, de onde emergem falas, expressões corporais, bem como notas dos próprios pesquisadores. Também realizamos 15 entrevistas (gravadas, transcritas e analisadas) com os turistas, em geral maiores de 60 anos. Com alguma frequência elas foram animadas por fotografias mostradas pelos entrevistados 2.
Na sequência do texto, os resultados são apresentados em três categorias de análise. Iniciamos expondo como o olhar é treinado desde antes das viagens com as imagens prévias a que a cada um é submetido, e no decorrer delas por meio de estratégias que indicam e exigem como e o que deve ser visto, atendendo tanto à proposta de distração dos sentidos no contato com práticas culturais mercantilizadas como aquilo que se espera que as pessoas façam no tempo livre. A seguir apresentamos alguns mecanismos da dinâmica turística que, juntamente com a subjetividade enrijecida dos turistas, compõem a construção de certa temporalidade em que só é possível, pois também desejado, relacionar-se com os objetos e cenários pela visualização, exclusivamente e de forma abreviada. Isso demanda a constante renovação do olhar, a atenção aguda e o consciente desperto, que caracterizam uma percepção condicionada à vivência do choque, se seguimos as contribuições de Walter Benjamin.
Fechando o ciclo de enrijecimento do olhar, iniciado pela cristalização de imagens prévias e mantido pela orientação constante do que deve ser visto na viagem, no terceiro item ressaltamos o enfraquecimento da capacidade de rememorar, mostrando que o registro fotográfico tem sido utilizado para o armazenamento de informações, recurso necessário à memória, tentativa de ativação de algo que os sentidos parecem não ser mais capazes de perceber e registrar. Finalizamos o texto ressaltando que na prática de lazer investigada, os estímulos oferecidos à visão e o próprio ato de olhar constituem-se em entretenimento e, como tal, mercadorias destinadas a produzir sensações, do que decorre o fortalecimento do processo de alienação sensorial presente nos mais diversos contextos da sociedade contemporânea.
Orientação do Olhar: imagens prévias e recursos de mercado para seu direcionamento
O primeiro contato com os lugares e espaços turísticos em geral se dá pelas imagens difundidas e divulgadas sobre eles, sendo elas decisivas para a escolha dos destinos, mas também para a construção de expectativas e mesmo de recordações da viagem. Isto bem se expressa quando Arthur 3.responde com convicção à pergunta sobre o motivo pelo qual escolheu Gramado como destino: “Ah, por curiosidade de conhecer. Porque a gente vê na televisão a vida inteira que Gramado é a cidade do turismo e dos artistas famosos do Brasil” (Arthur - 69 anos, casado. Entrevista em 27 de março de 2015), provavelmente referindo-se ao Festival de Cinema 4.
Mesmo que as imagens prévias não sejam concretamente visualizadas (neste caso, os artistas, o festival...), aquilo que elas representam, ou o imaginário a que elas remetem, participam da construção da experiência do turista. Isto parece válido também para as figuras contidas no próprio material de divulgação das viagens. No caso da excursão Gramado e Canela, por exemplo, aparece uma fotografia de um dos pórticos da primeira cidade. Embora este não tenha sido ponto de visita e tampouco referenciado pelo guia ou por outro turista no decorrer da viagem, um conjunto de outros símbolos sobre Gramado já estava fixado na mente dos turistas, tal como expressa a fala de Arthur, e a foto específica do Pórtico fizera com que ele entrasse em contato com elas. Aquilo que emerge à lembrança como fruto de nosso contato com o excesso imagético reproduzido tecnicamente, carece de profundidade e riqueza espiritual, como constatou Proust, em função do mundo de imagens que lhe vinha à tona com a simples menção da palavra Veneza, isso ainda no início do século passado (Benjamin, 1994, p. 137). Arquivadas e disponíveis na memória voluntária (mémoire volontaire), como constatou o autor, a nossa relação com estas imagens seria desprovida de perceptibilidade e de dimensão aurática.
Em outra excursão, denominada Colheita da Maçã, realizada nas cidades de Lages e São Joaquim (SC), a divulgação foi feita com uma fotografia bem aproximada de um conjunto de maçãs polidas e vermelhas, passando a impressão de fartura e frescor da fruta em associação com uma ideia romantizada de natureza. Não por acaso, é a partir desta associação que Dona Valéria explica a escolha de Lages como lugar a ser visitado:
Eu adoro natureza, frutas, plantas [...]. A gente já tinha ido muitas vezes para lá [Lages] e para São Joaquim também. Já tinha ido muitas vezes para a Festa da Maçã, mas nunca tinha ido para a colheita. Eu queria ir mesmo para a colheita, ter a sensação de apanhar a fruta no pé, é tão bonitinho né? (Valéria - Funcionária Pública aposentada, 76 anos, casada. Entrevista em 31 de março de 2015).
A atividade da Colheita da Maçã, central na programação da excursão, foi realizada no segundo dia de viagem e de forma bastante eufórica e acelerada, encerrando cerca de quinze minutos após a chegada numa plantação que estava em fase de colheita dos últimos frutos da estação. Apesar da brevidade da atividade e de a visão dos pomares não mostrá-los tão vermelho e abundante como a divulgação da viagem prometia, as expectativas de Dona Valéria não parecem ter sido frustradas, já que ela diz que adorou ver um belo pomar, mas também tem lá seu lamento: “Eu queria que alguém tirasse uma foto de eu colhendo maçã, mas estava um alvoroço todo, para quem eu ia pedir?” (Valéria - Funcionária Pública aposentada, 76 anos, casada. Entrevista em 31 de março de 2015).
A despeito das ilustrações representarem sempre algo muito específico de cada viagem, com o qual nos relacionamos por um período de tempo extremamente pequeno (isso quando não acontece de nem serem visualizadas diretamente), inclinamo-nos a concordar com Urry (1996, p. 122-123), segundo o qual mesmo diante de alguma paisagem ou cenário turístico, o turista aprecia mais a representação destes lugares devido às imagens com as quais teve contato, do que a própria realidade vivida, de modo que
Aquilo que as pessoas ‘contemplam’ são representações ideais da vista em questão e que elas internalizam a partir dos cartões postais, dos guias de viagem e, cada vez mais, dos programas de televisão. Mesmo quando elas não conseguem ver de fato a maravilha natural em questão, ainda podem senti-la, vê-las em suas mentes. Mesmo quando o objeto deixa de corresponder a sua representação, é esta última que permanecerá na mente das pessoas, como aquilo que elas ‘viram’ de verdade.
O fato de lembrarmos com mais frequência das imagens reproduzidas sobre um lugar do que o nosso contato visual direto com ele expõe um processo no qual a realidade parece cada vez mais com a imagem uma vez registrada (Sontag, 1981). Sabe-se que com o advento da fotografia e a possibilidade da sua reprodução infinita o olhar humano se modificou 5. Além da criação de expectativas e representações simbólicas prévias sobre os destinos turísticos, o fragmento de paisagem selecionado pela lente do fotógrafo implica a seleção e o enquadramento de parte do existente, produzindo imagens idealizadas, muitas vezes assimiladas como totalidade factual.
Deixar-se levar por uma imagem que se sabe não corresponder necessariamente aos fatos é a resposta projetada pelos agentes que elaboram os produtos culturais na sociedade capitalista, como propõem Horkheimer e Adorno (2015). Os autores argumentam que por meio de mecanismos de dominação inconsciente do homem, são determinados ritmos, espaços e sentidos prévios que devem ser atribuídos aos produtos, prescrevendo medidas para que a reação do consumidor seja tomada automaticamente e sem esforço. Assim, as ilustrações presentes na divulgação dos roteiros precisam menos corresponder à realidade do que conduzir a uma fácil associação com as sensações que se pretende vender como mercadoria, mesmo que provisórias ou ilusórias.
A produção e orientação do olhar do turista se intensifica com o excesso imagético a que é submetido e com as sensações que este continuamente proporciona, ainda mais com as orientações físicas e verbais dos guias, como aconteceu no passeio de trem em Curitiba:
Posicionada de frente para os turistas, dentro do vagão, a guia do trem avisa qual dos lados (direito ou esquerdo) estará o próximo elemento turístico sobre o qual ela irá comentar. Explica que faz este aviso antecipadamente para que haja tempo para os turistas se deslocarem para as janelas e conseguirem tirar fotografias. E assim segue, a guia avisa que passaremos por um determinado objeto turístico à esquerda e todos se levantam em busca de um espaço de visualização através das janelas do lado esquerdo dos vagões (Diário de Campo 2 - Excursão Natal Encantado em Curitiba).
Os guias não apenas indicam e determinam o olhar, como os locais turísticos estão cada vez mais sinalizados de forma a conduzir e circunscrever as experiências visuais. Semelhante à maioria dos pontos turísticos, o Parque Mini Mundo, em Gramado, possui diversas placas indicativas e explicativas de suas atrações, mas, além disso, é distribuído um pequeno jornal que contém um mapa do local, com indicações precisas de detalhes, objetos e cenários que normalmente passam despercebidos aos olhares rápidos e superficiais dos turistas, mas que não podem deixar de ser vistos, a exemplo das reproduções de cenas de um resgate de morador em um prédio em chamas e a de um acidente de carro 6. Estes detalhes, que são considerados atrações importantes do lugar, também são apontados por alguns funcionários que circulam pelo Parque e abordam os turistas, na condição de último recurso contra a desatenção e, ao mesmo tempo, para a manutenção da sua distração.
Estas estratégias pertencem a uma estrutura em que os olhares “Não podem ser deixados ao acaso. As pessoas têm de aprender como, quando e onde olhar” (Urry, 1996, p. 26). Ao mesmo tempo em que reforça a demanda de os sentidos estarem constantemente distraídos para que o sujeito não se sinta entediado, algo combatido pelas atividades de lazer - que servem, paradoxalmente, para matar o tempo, como escreveu Adorno (2015) - a orientação permanente do olhar também ilustra o esforço de atendimento ao desempenho exigido no ‘tempo livre’. Afinal, ir a Gramado e não visitar o Parque, ou ir ao Parque e não ver determinada atração corresponderia ao mau uso do tempo livre, à frustração das férias maravilhosas, do passeio ideal, que só se tornam imprescindíveis pelo caráter fetichista da mercadoria (Adorno, 2015) que envolve a atividade turística.
O tempo de olhar: predomínio da visão, enrijecimento do olhar
Se a visão é o sentido predominante pelo menos desde os inícios da modernidade, na prática de lazer observada isto é determinado e reforçado pela organização temporal das excursões. Ao reproduzirmos o roteiro que foi realizado em um dia da excursão Magia de Natal em Blumenau, é evidente o pequeno período reservado a cada local visitado:
09h 10min. - 09h 50min. Deslocamento de Blumenau para Pomerode 09h 50min. - 10h 30min. Visita ao pórtico de Pomerode, praça e lojas de artesanato. 10h 30min. - 10h 40min. Deslocamento 10h 40min. - 11h Visita Loja Porcelas Schmidt 11h 10min. - 12h Deslocamento de Pomerode para o Hotel 12h - 14h Almoço e Descanso 14h 15min. - 15h11min. City Tour panorâmico Blumenau 15h 11min. - 15h 29min. Visita a Praça Floriano Peixoto e Museu da Cerveja 15h 30min. - 15h 49min. Fundação Cultural Blumenau e Mausoléu Dr. Blumenau 16h - 16h 06min. Parada na Prefeitura de Blumenau para tirar fotografia 16h 23min. - 18h 30min. - Retorno Hotel e Café da tarde |
Fonte: Elaboração dos autores.
Tendo em vista os poucos minutos disponíveis em cada local, não há como não recorrer à visão, o mais veloz entre todos os sentidos, capaz de abarcar mesmo as coisas distantes com extraordinária rapidez, como já apontavam os filósofos gregos (Chauí, 1988). Apesar do tempo abreviado, muitos retornavam para o ônibus mesmo antes do horário combinado, encurtando ainda mais o período de permanência nos pontos turísticos, o que sugere que o turista já viu o suficiente para se satisfazer, ou que já viu o que ‘tinha que ser visto’: Ao ser questionado sobre o tempo disponibilizado nos lugares visitados, Edson respondeu que: “[...] foi o tempo necessário, porque em diversos lugares a gente não tinha muita coisa pra ver. Aí, se ficasse mais tempo ainda, não teria sentido” (Edson - Estudante, 24 anos, solteiro. Entrevista em 19 de dezembro de 14). Evidencia-se que o período que o turista permanece em um local não pode ser demasiado curto a ponto de não conseguir passar os olhos sobre tudo, tampouco demasiado longo a ponto de seus olhos ficarem desamparados. De outra forma, o tempo do turismo, assim como a maioria das práticas de ‘tempo livre’ contemporâneas 7., é o tempo da apreensão visual.
O predomínio da visão também se apresenta pela dificuldade de o turista relacionar-se com os espaços e objetos a partir de outros sentidos, como exemplifica a situação vivenciada no Jardim das Sensações, no interior do Jardim Botânico, em Curitiba.
16h 30min. - É oferecido aos visitantes a possibilidade de vendar os olhos para entrarem em contato com as plantas por meio do tato e olfato. Algumas turistas dizem em voz alta que não há tempo para esta atividade, pois tem muita outra coisa para olhar, e as demais pessoas concordam. A guia insiste que há tempo, então, os poucos turistas que ainda não dispersaram percorrem rapidamente o trajeto delimitado pelo Jardim das Sensações, encurtando o caminho. Sem colocar as vendas, eles tocam poucas plantas e curvam-se para cheiras outras poucas (Diário de Campo 2 - Natal Encantado em Curitiba).
Mesmo quando há a possibilidade de conhecer por meio de outros sentidos, como mostra a situação acima, ela é, de antemão, recusada pela predominância suprema da visão. Ao não renunciarem ao sentido que mais rápido consegue contatar o ambiente exterior, os turistas rejeitam aqueles que lhes parecem demasiado demorados ou requerem maior esforço.
A orientação e a condução dos sentidos propostos pela estrutura turística em consonância com a subjetividade enrijecida dos turistas, não determina apenas que a visão seja o sentido hegemônico, mas que esta situação se construa por uma única via, que é a da sensação que este sentido proporciona. A sensação corresponde às manifestações de ordem corporal e atende à satisfação de necessidades imediatas, tal como experimentam os turistas em relação aos objetos que atraem seu olhar, que chamam sua atenção, sem que nada deles precisem, de fato, saber. Costa (2005) esclarece que as experiências baseadas na sensação dependem da presença física dos objetos como estímulos para a permanência da satisfação promovida por eles, por isso, quando cessa a visualização do objeto turístico, o mesmo ocorre com a possibilidade de com ele se relacionar. Esta só pode ser recuperada com a retomada da visualização ou com a sua substituição por outro objeto ao olhar.
A demanda exclusiva de visualização também pode ser observada na postura dos turistas frente aos museus, em que só as imagens parecem poder ser “lidas”. Externamente, as fachadas e os nomes dos locais são valorizados, dignos de registro fotográfico. No espaço interno são as figuras ou os objetos mais volumosos que recebem atenção e retenção do olhar por alguns segundos, sempre quando a mirada panorâmica sobre os espaços não for suficiente. São frequentes os city tours chamados de panorâmicos, que consistem na circulação do ônibus de excursão entre pontos turísticos sinalizados pelos guias, incluindo ou não algumas rápidas paradas, com objetivo de se fazer algum registro fotográfico. Uma dessas situações aconteceu em Blumenau, quando
[...] passamos em frente à antiga construção alemã que abriga a Prefeitura, o guia pede para o motorista do ônibus parar bem em frente à construção e lembra que a parada será rápida, só para tirar fotos e reforça ‘agora todo mundo ninja, hein?!’, referindo-se à agilidade que os turistas devem ter para descer do ônibus, fotografar e voltar aos seus assentos. Nesta ocasião poucas pessoas desembarcam e tiram fotos, a maioria permanece no ônibus e algumas dizem que não é preciso descer, pois já dá para ver a Prefeitura ‘dali mesmo’ (Diário de Campo 1 - Excursão Magia de Natal em Blumenau).
Além de ser a situação exemplar de que, no turismo, o conhecimento depende e muitas vezes se limita à apreensão visual, o city tour panorâmico também é a experiência máxima da percepção temporal medida pela visão, ou seja, de um tempo determinado pelo intervalo entre um piscar de olhos e outro, em que sempre um novo objeto a ser olhado se apresenta. A forma como o turista reage nesta situação muito se assemelha àquela do passante em meio à multidão das grandes cidades e ao espectador de cinema, a ambos se impõe a percepção na forma de choques (Benjamin, 1994). Ao homem da multidão “mover-se através do tráfego implicava em uma série de choques e colisões [...]. Nos cruzamentos perigosos, inervações fazem-no estremecer em rápidas sequências, como descargas de uma bateria”; ao espectador de cinema, implica a recepção distraída da sequência de imagens 8.(Benjamin, 1994, p. 124); ao turista sobrevém o entorpecimento pela sucessão ininterrupta de objetos a serem vistos, o que é revelado pela fala de Arthur, quando descreve deslumbrado o passeio pela cidade de Gramado: “Tudo que a gente via enchia os olhos, tudo era coisa bonita, era mais um prédio, mais um apartamento, mais um hotel. Passava por um e já vinha outro, tu nem sabia mais o que fazer” (Arthur - 69 anos, casado. Entrevista em 27 de março de 2015).
Os estímulos recebidos nestas situações exigem atenção aguda e consciente desperto a fim de amortecer e resistir aos sobressaltos constantes. A partir das teorias de Freud e de Valéry, Benjamin (1994, p. 110) explica que “a recepção do choque é atenuada por meio de um treinamento no controle dos estímulos”, o que se efetua ao nível do consciente desperto.
O fato de o choque ser assim amortecido e aparado pelo consciente emprestaria ao evento que o provoca o caráter de experiência vivida em sentido estrito. E, incorporando imediatamente este evento ao acervo das lembranças conscientes, o tornaria estéril para a experiência poética (Benjamin, 1994, p. 110).
Assim, são poucas as chances de as vivências de choque9.se integrarem à vida e à memória do sujeito, e embora o treinamento a que o corpo e os sentidos se submetem seja importante como forma de proteção contra os choques, o fato de as condições sociais contemporâneas serem caracterizadas pelo seu excesso submete muito dos nossos gestos, sensações e sentidos a respostas automáticas e uniformes. Acostumado à percepção dispersa e descontínua, o sujeito necessita da renovação constante de estímulos, inclusive por meio do entretenimento, como garantia para distrair o vazio em que se encontraria sem eles. A menos que se possa extrair poesia do choque, resistindo a ele como fez Charles-Pierre Baudelaire 10.(Benjamin, 1994), o sistema sensorial condicionado - adaptado inicialmente ao ritmo das máquinas da produção industrial e, atualmente, à velocidade das imagens e informações veiculadas pelos meios de comunicação e internet - resulta no enfraquecimento das nossas forças espirituais, particularmente as mnemônicas (de arquivamento na memória) e miméticas (de produção e reconhecimento de semelhanças), e na ampliação de uma existência isenta de conteúdo, mas cheia de distração.
Além da recepção visual, ao mesmo tempo atenta e dispersa, exigida pela mudança de imagem durante o city tour panorâmico, a vivência de choque é sentida pelo turista quando direciona automaticamente o corpo e a atenção ao que o guia aponta e fala, por meio de um mecanismo quase que reflexo, assim como também o faz em função das setas das placas indicativas dos parques temáticos. Os excessos de orientação e informação, e a necessidade de apreensão visual quase que instantânea dos objetos turísticos são intensificadores de uma dinâmica social permeada por uma profusão de estímulos “dos quais a consciência se deve esquivar” (Buck-Morss, 1996, p. 22).
Registrar e lembrar/esquecer
Para além de olhar a paisagem ou objeto, visualizá-lo e capturá-lo através das lentes da máquina fotográfica também é importante para o turista. Em entrevista domiciliar, Vilson indica e conta empolgado que aquele computador está cheio [de fotografias]. “Agora já vai direto ao computador, nem revelamos mais. Eu estive uma vez na Bolívia e comprei uma máquina profissional. Mas é legal, às vezes a gente vai ali [no computador] e revê aquilo que a gente já passou” (Vilson - Técnico em enfermagem e radiologia aposentado, 64 anos, casado. Entrevista em 22 de dezembro de 2014). Suzana também ressalta o seu gosto pelas fotos e o armazenamento no computador, explicando que “[...] da cidade de Torres eu tirei umas duzentas fotos. No computador eu tenho pastas separadas com cada local e data em que eu viajei” (Suzana - Trabalha de secretária, é bibliotecária aposentada, 51 anos, solteira. Entrevista em 26 de março de 2015).
O registro fotográfico foi recorrente nas viagens acompanhadas, prática que atinge hoje patamares há pouco inimagináveis, com a facilidade da fotografia digital, a possibilidade quase infinita de armazenamento, além da troca instantânea de imagens pelos smartphones e redes sociais. Neste universo, nem os critérios estéticos, tampouco os de significância pessoal podem ser identificados como parâmetro, trata-se de fotografar tudo e qualquer coisa, seguindo a lógica do consumo, como constata Sontag (1981): fotografar, consumir - usar/olhar, descartar - e (re)fotografar. Isso, mesmo havendo o predomínio das máquinas fotográficas digitais entre a maioria dos turistas, que era idosa, diferente do que podemos identificar entre os mais jovens, cujos dispositivos de registros (smartphones) confundem-se com suas próprias mãos.
Se o tempo do turista é o da apreensão visual, também é, em certa medida, o tempo do registro fotográfico:
Acompanho uma senhora pelo Bosque Papa João Paulo II, os passos são rápidos. Em seguida ela me pergunta se quero ir até o Museu Oscar Niemeyer. Olhamos no relógio e vemos que só temos mais 5 minutos, mesmo assim, corremos até lá. Olhamos a arquitetura do Museu por fora e caminhamos pelo hall de entrada, onde há algumas esculturas. Ela me pergunta qual é o nome daquilo e procura alguma identificação do Museu para tirar uma fotografia, senão esqueceria onde esteve e não saberia contar sobre as imagens registradas. Bato a foto dela ao lado da placa indicando o nome do Museu e seguimos apressadas para o ônibus (Diário de Campo 2 - Excursão Natal Encantado em Curitiba).
Como substituta da experiência, a fotografia passa a ter o papel de armazenar informações, por isso a preocupação em registrar o local que indica o nome do Museu Oscar Niemeyer, como foi descrito acima. Da mesma forma fazem a maioria dos turistas, quando fotografam placas com detalhes das construções, títulos dos monumentos, fachadas com nomes dos lugares visitados. Os registros fotográficos de uma viagem tornam-se um sistema de informação para o próprio turista (Sontag, 1981), eles fornecem os dados (lugares, pessoas, monumentos, datas, clima, relevo, condição geográfica) por meio dos quais a viagem será contada ou exibida. O conteúdo da narrativa é determinado pelos dados armazenados na imagem que só diferem daqueles amplamente conhecidos e fornecidos pela agência de viagem por adicionarem a figura do próprio viajante no registro fotográfico e pela qualidade inferior do registro.
Num contexto em que todo universo perceptivo (que envolve expectativas, temporalidade e conhecimento) depende da apreensão visual, as lembranças não poderiam estar atreladas a outra coisa senão às imagens registradas. Como diz Vilson, “O bom de tirar fotos é ter a lembrança do lugar. E, por exemplo, o Chile é uma viagem longa, e a gente pensa, quando estaremos aqui de novo? Então, sempre aproveitamos para tirar fotos” (Vilson - Técnico em enfermagem e radiologia aposentado, 64 anos, casado. Entrevista em 22 de dezembro de 2014). A fotografia é ao mesmo tempo a tentativa de posse dos objetos e das paisagens, como a tentativa de posse da própria lembrança.
Segundo Agamben (2007), a posse, ou a propriedade, é peculiar aos objetos de consumo, aqueles dos quais não conseguimos necessariamente fazer uso. Se para lembrar os lugares visitados é preciso ter a fotografia ou, se dependemos da sua posse para lembrar, então a própria lembrança se torna objeto de consumo que representa o ato de destruição do objeto (Agamben, 2007). Na incapacidade de uma relação direta com o objeto devido a nossas limitações perceptivas (por exemplo, contemplar com atenção uma paisagem, uma construção, ou uma manifestação cultural) resta-nos levar o objeto turístico para casa na forma de souvenir ou fotografia, em uma tentativa de possuí-lo, mesmo à distância.
Sem a intenção de deturpar o ato de fotografar ou a imagem fotográfica, que a princípio poderiam despertar nossa consciência (Sontag, 1981), e ser mais uma forma de ‘ver o mundo’, é preciso destacar que seu uso vem sendo o substituto soberano de todas as formas de ver, como assinala John Ruskin 11.(De Botton, 2003). Para além de citar lugares e cenários e comprová-los com a fotografia, esses autores propõem o desenvolvimento de uma maior atenção ou de uma atenção consciente às paisagens, o que nos facultaria melhor conhecê-las, pelo esforço do seu entendimento. O desejo de posse, que hoje tentamos satisfazer pela fotografia, só poderia ser satisfeito por este entendimento, como conclui De Botton (2003), a partir de Ruskin, o que permitiria a apreensão do objeto por meio da memória.
Considerações finais
Se as condições objetivas (estrutura urbana, desenvolvimento dos meios de transporte, tecnologias de captação e reprodução de imagens etc.) contribuíram para que a visão se tornasse o sentido central de apreensão da realidade na modernidade, poderíamos dizer que o turismo a transformou em uma forma de lazer e distração, fazendo do olhar uma atividade com fim em si mesma. Mais do que compreender que o turismo consiste na construção e no desenvolvimento histórico e social de um olhar direcionado a uma imagem (da paisagem, do cenário…), como propõe Urry (1996), a análise empreendida a partir dos dados apresentados sugere que a construção e o desenvolvimento deste olhar se direciona para seu uso quase que unicamente como entretenimento.
Ao seguir a dinâmica da diversão organizada que o entretenimento pressupõe, o turismo prepara e conduz o olhar, assim como os demais sentidos, de modo que nenhum esforço seja feito para que uma determinada experiência - aquela definida e eleita pelo mercado turístico - se realize. Uma única via de relação com o objeto é disponibilizada e estabelecida, habituando os sentidos de tal forma que nem imaginação, nem pensamento sejam necessários. Como consequência, tem-se a produção de sentidos e experiências altamente enrijecidas e padronizadas, diferente de posturas/ações que pudessem favorecer a diversidade de modos de ver, agir, sentir e interpretar o mundo.
Se, por um lado, o modelo turístico contribui para a supervalorização e o enrijecimento do sentido da visão, por outro, a situação investigada mostra que ele também atende à demanda de constante visualização. Atualizando aquilo que Benjamin sinalizava na primeira metade do século XX, sobre a torrente de estímulo e excitação a que o homem moderno estaria submetido, Christoph Türcke (2010) argumenta que a situação se radicaliza na contemporaneidade em virtude, especialmente, do espaço tomado pelos meios de comunicação, dos audiovisuais e da conversão de todo acontecimento em espetáculo. Num contexto de submissão permanente aos choques imagéticos, ao qual não escapam os períodos de lazer, como vimos, todo aparato sensorial tende a tornar-se ultrassaturado e anestesiado, levando à diminuição de nossas capacidades de reflexão e de compreensão. Nossa percepção estaria cada vez mais subordinada aos estímulos que provocam sensações, ao ponto que a busca por aquilo que fascina e encanta teria se tornado uma espécie de vício na dinâmica social contemporânea (Türcke, 2010).
O turismo tem se apresentado como mais um fenômeno das sensações, inicialmente porque se destina a apresentar objetos que chamam a atenção, principalmente do olhar, além de manter um ritmo incessante de produção de novos destinos ou atrações em roteiros conhecidos, com a promessa do contato com objetos e experiências ‘raras’, ‘únicas’ e ‘excitantes’. No interior da sua dinâmica tudo parece adquirir a lógica do sensacional; os objetos e elementos da história, cultura e natureza perdem seu valor e sentido para transformarem-se em espetáculo, ou seja, provocarem sensações. Mas, para que chamem a atenção, precisam ser de fácil assimilação e, portanto, sobressaírem-se visualmente. De preferência, que sejam percebidos por um único lance do olhar ou que sejam ‘autoexplicativos’, como as imagens (figuras, fotografias, esculturas) dos museus, ou qualquer outro objeto (monumentos, construções, manifestações culturais...), desde que sejam apreciados e percebidos unicamente pela sensação visual que provocam, sendo que, quando esta se esgota a relação com o objeto também acaba.
A dinâmica social apreendida aqui a partir da análise de uma prática do ‘tempo livre’ parece reforçar a passagem de uma experiência marcada pelo que somos capazes de registrar, pois nos toca, espanta e provoca (como sujeitos), para aquilo a que apenas respondemos (como organismo). Isso não é privilégio do turismo, tampouco da esfera laboral, quando nossos sentidos estão, em grande medida, demasiados ocupados e treinados em nome de uma produtividade múltipla e refinada, mas penetra também em todo período dedicado ao lazer 12.